sexta-feira, 26 de julho de 2013

Quem entende Foucault?



Li de Foucault o História da loucura e o primeiro volume de História da sexualidade. O primeiro já me havia chamado a atenção na juventude, e me aventurei a ler umas cem páginas iniciais sem nunca passar disso, até que pude comprar o volume e gastar uns dois meses lendo-o por inteiro. O segundo, eu relocava da biblioteca da faculdade de história, que tinha todas as três partes da obra, até que o término da proeza coincidisse com minha assinatura por quase toda a pequena ficha de empréstimo guardada pela bibliotecária na caixinha de livros em uso. Gostei muito de História da loucura, com toda aquela minuciosa vistoria na documentação de sanatórios para loucos da Europa medieval e moderna, mas já a História da sexualidade, por mais que me concentrasse e virasse o volume do avesso, na batalha corporal pela aquisição do propósito do sofisticado trabalho do francês mais influente do final do século XX, tive que me resignar a aceitar que a leitura passou incólume por mim. Parte do não aproveitamento dessa leitura de Foucault se deve à séria impressão que tive de que todo o primeiro volume era uma mera introdução, ou como um ensaio de orquestra cujo folheto de programação indica uma peça de extraordinário envolvimento que, contudo, nunca é iniciado; parte porque fiquei com a cara de bobo de quem realmente, por mais tenazes tenham sido meus esforços, não entendera nada do que o autor escrevera. Fiquei sabendo que os dois outros livros sobre a sexualidade eram ainda mais herméticos, e, corajosamente e com um acento de culpa, abri mão do desejo maçônico de ser integrado entre o grupo de discussão dos privilegiados alunos que tinham o seguro ar de terem transitado lucidamente pelos campos foucaultianos. O que me sobrara da leitura desse estudo era, apenas, a descoberta de que os tabus sexuais de todos os tipos foram criados por uma cristandade cuja única boa ação involuntária num rol de perfídias de dominação política era a assepsia corporal, e que havia uma oposição em nada atenuante para a igreja entre a antiga liberdade romana de aceitação sem nojo do próprio corpo e as formalidades acobertadas da pudicícia católica. Só.

Falando a verdade, Foucault nunca acrescentou em nada para minha formação rumo ao esclarecimento. Mantenho uma saudável cordialidade com Foucault, tenho uns cinco livros dele na minha biblioteca que me caem em mãos aleatoriamente e para os quais nutro o mesmo ligeiro assoberbamento peitoral de me envaidecer diante seu peso e suas circunstâncias imaginárias. Quando estou com amigos, o fetiche de ver um deles dizer "olha, você tem o Vigiar e Punir", é tão acalentador quanto quando veem alguns de meus livros preferidos, pois compactuo, ainda que sem a mínima digestão, com a suposição bastante solidificada de que Foucault é um dos gigantes do pensamento. Mas nunca consegui passar do primeiro capítulo de Vigiar e Punir e, por mais que me seja interessante a tese central das entrevistas compiladas de Microfísica do Poder, sempre que o pego para ler volta com notável impacto a sensação da orquestra em eterno ensaio. De modos que, como todo leitor tem suas fragilidades, por mais que seja consciente de sua presteza, uma das minhas fragilidades é deixar Foucault em paz, com toda a sua aracnídea atmosfera concentrada em que circulam-no em reverência atenciosas e diligentes figurinhas que mantem-se alegremente apequenadas para dignificarem ainda mais o mestre. Talvez o fato de nunca ter me sentido excluído dos modismos acadêmicos seja porque nunca levei-os a sério, e mesmo os vi com deboche e dó durante os anos que passei pela universidade. Sempre soube, com altivez, que meus heróis eram gente que batia a poeira dos sapatos nas portas das solenes e ridiculamente autistas faculdades de humanas, como Bernhard e Faulkner, ou gente que, apesar de terem toda a titularidade outorgada pelo mérito nessas instituições, as criticavam duramente no que tinham de canhestras e alienadas, como Hannah Arendt e Edward Said.

Das tantas vezes que me deparei com os cacoetes aprendidos de Foucault entre os personagens mímicos acadêmicos, a única que realmente me impressionou, por todas as nuances à avaliação que tinha, foi um professor convidado que um dia veio para uma palestra em nossa universidade. Eu não o conhecia, mas os preparos e correrias do corpo docente e seus pupilos eram tantos que ficava notório que o cara era uma espécie de sumidade. Chegada a noite, fiquei em pé ao lado de uma das janelas do auditório lotado, e pus-me a ouvi-lo. O mais incrível era que ele falava como um livro. Eu nunca tinha visto isso antes, apesar de conhecer várias pessoas extraordinariamente cultas e versáteis na exposição das ideias a um nível elevadíssimo. Cada sentença que ele dizia era lapidar, poderia ser transcrita na página, embalada com couro e posta já pronta na estante da biblioteca. A total ineficiência da minha parte em identificar o artifício ali_ se revelava algum indício de ter decorado um texto, ou se alguém lhe falava por um ponto de ouvido, ou se ele era um médium suficientemente treinado em arrebatamentos de incrível facilidade prolongada_, acentuava ainda mais minha sensação de apoucamento diante ele. As palavras jorravam tranquilamente por ele, com uma fluência tão desimpedida que eu via o funcionalismo invejosamente alcançado por horas de treinamento olímpico que o permitia, rapidamente, escolher uma entre vinte outras palavras que sua memória lhe servia em cada parte do discurso, e essa palavra era a mais cristalina, erudita e certa para o encaixe do momento. Parecia o Charlie Parker do monólogo. Fiquei tomado por inúmeras cogitações espetadas pela inveja, das mais colegiais como o quanto isso poderia ser útil nas conquistas femininas, até as mais disparatadas como a de que a Nasa deveria mandar um filme com ele falando por duas horas junto aos espólios daquela nave que ruma a esmo pelo universo para propagandear as proezas mais impressionantes de nossa espécie a algum hipotético alienígena. Daí percebi, com certo alívio, que esse era o problema na lisura perfeccionista dele: eu me deslumbrava com sua fala, mas não prestava a mínima atenção a ela, assim como a grande maioria dos alunos e dos professores que balançavam a cabeça em concordância, sentados do lado dele. E tinha algo mais: ao contrário de Parker, ele era atonal e monocórdio, cansava ao longo do tempo. Produzia uma quantidade infinita de silogismos foneticamente brilhantes, mas não criava nenhum universo em que o ouvinte pudesse se recolher nele. A sala ainda continuava lá, não se desfragmentava diante um portal para um novo mundo que sua exposição poderia promover, e a musicalidade quadrada de sua voz não servia para preencher o ambiente: ficava, pelo contrário, cada vez menor, saída de seu núcleo de fogo que aos poucos revelava uma chama fria. Haviam padres que dava gosto ouvir, independente da religião, como um padre amigo meu que falava de uma multitude de indignações sociais e um mixórdia de informações paralelas deliciosas sobre história e casos pessoais, assim como havia um ou outro professor que também parava nossa atenção, entre pigarros e gaguejamentos ligeiros, e nos fascinava_ ou gente do povo, mentirosos contumazes, bêbados histriônicos, um pedreiro que um dia, em uma pensão de uma cidadezinha distante, quase me matou de rir com a arte inigualável de contar sobre a mulher louca com quem a desfaçatez da juventude o fez se casar. 

Aquele mestre foucaultiano havia aprendido tão bem com seu modelo que era a encarnação das minhas leituras de Foucault: uma inteligência muito superior que, contudo, não servia para muita coisa; um poder de negação e desconstrucionismo que criara um universo do discurso para comportar solitariamente a si mesmo e ficava revoluteando, num ciclo de compulsividade adâmica que acentuava um fanatismo doente, embora o tipo de patologia não fosse a mesma que promovia a genialidade artística como a de Walser, Mann ou Van Gogh. E essa era mais uma das chaves da questão: o foucaultianismo era apenas uma força de destruição, sistematizada, concentrada, agregadora de seguidores que se viam em seus suados especificismos espelhados nela, mas... não construía nada, não criava nada. O foucaultianismo era a pós-modernidade em toda sua literariedade esmagadoramente lúcida de conhecer as correntes do pensamento e a derrocada sem mais nenhum fermento em que ele se encontrava, tendo de trabalhar com o vazio que deveria promover e explorar para firmar a legitimidade de ser uma nova escola. Daí Foucault, e todos os seus correligionários à frente ou atrás no tempo, Lacan, Derrida, Baudrillard, Roland Barthes, propalarem a matemática intrincada cuja soma de 1+1 era tudo, menos 2, desde ontologismos cósmicos como o fundamento filosófico de que o homem não existe, até o decreto da não existência de eventualidades mais pontuais como a da guerra do Golfo ou a AIDS (que Foucault se negou a acreditar que existia, dizendo ser mais uma das verdades falsas inventadas para manter o quadro social de dominação, até que sucumbiu pela doença). Como disse recentemente um escritor, Foucault marcou com um ferrete a cultura de seu tempo: a propensão ao sofisma e ao artifício intelectual.

Eu não excluo o fato indiscutível de que Foucault foi um pensador engajado na desmistificação e denúncia das estruturas de poder, um ferrenho opositor à burguesia e um iconoclasta legítimo. Porém, o palavrório classista a que ele e seus conterrâneos se lançaram, causou um estancamento no debate produtivo tão carregado de dogmas e preconceitos esnobistas, que o estrago demorará gerações para ser atenuado. Foucault, com sua densidade atonal e sua inteligência alienígena, acabou por trabalhar contra o que, em um primeiro momento em que não o encegava a pretensão de fundador de um niilismo desconstrutivista absoluto, seria o objeto e tema de sua obra: um humanismo que iria investigar todas as raízes e heras milenares da dominação, miséria e alienação, em busca do caminho da liberdade ativa. Mas o que fez foi lançar a cultura em uma encruzilhada em que os valores de mérito e aristocracia espiritual caíram por terra diante a imperiosidade da aceitação da igualdade de todas as diferenças, um politicamente correto que, na era da internet, torna de mesmo peso coisas como o funk e Mozart, qualquer romance que trate de lesbianismo de maneira progressista e Tolstói, pela simples razão inquestionável de que a expressão popular, sendo o oposto lógico da burguesia e das estruturas de dominação que a favorece, o equivalente em quilate artístico e sofisticação intelectual. Os altos discursos de Foucault se restringiram a isso, num negativo estranho mas não paradoxal: numa realidade pragmática em que as ideias perdem sua importância e a cultura se desvanece, atirando mesmo contra o arrivismo ultra-cerebral do próprio Foucault, Lacan, Derrida, etc, que também eles são absorvidos rapidamente pela obsolescência de uma humanidade que cada vez mais é dominada por novas armas da velha estrutura estanque, coisa que Foucault não previu: o laconismo, o grunhido, a mutilação da linguagem e de qualquer refinamento, na diversão onipresente da imagem.

36 comentários:

  1. não estou habilitado a comentar; por coincidência (q nada, há mta gente nos remetendo a foucault agora), neste fim de semana, numa livraria, pela 1ª vez abri um livro dele e li Nietszche, Freud e Marx. Achei um belo de um texto. Falam muito de As palavras e as coisas né, quero ler.

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    1. Os pequenos textos de Foucault me pareciam assim também, quando eu os via superficialmente. Mas, quando eu enfrentava a fera por inteiro, o resultado último era o cansaço. Da única vez que vi Bellow citar Foucault, ele usou o epíteto de ultra-filósofo, não sem ironia.

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  2. Texto escrito sob medida para me irritar. :)
    O grande problema de Foucault está aí estampado na sua confessa impaciência em passar das cem primeiras páginas: Ele foi vitimado por ter sido feito, à sua revelia, no primeiro intelectual público global depois de Sartre. Daí a tese Bartheseana da Morte do Autor se torna real ao quadrado. Você, me parece, tem mais restrições aos filhos ilegítimos de Foucault, filhos que, diga-se de passagem ele não pariu - o politicamente correto como ferramenta de tortura, a leitura de gênero burra, o movimento queer, etc - do que a Foucault propriamente dito. É a hipótese falha daquele livrinho muito ruim do Baudrillard, o "Oublier Foucault", de que Foucault é culpado pela sincofantia intelectual que passou a segui-lo.
    E Foucault, um voto de confiança, nada tem a ver com Lacan, Derrida e Althusser além do branco do olho. Se você leu mesmo o Folie et Deraison na sua integridade (não me recordo que tenha sido editado no Brasil por inteiro, a obra como um todo tem para lá de 600 páginas e lembro que a Perspectiva traduziu uma versão resumida da mesma), é custoso que não tenha atinado para o brilhantismo claro, para a virtuosidade literária, desse livro que era a tese de doutoramento de Foucault (!!!). Folie et Deraison não tem nada da opacidade de um Derrida, nem se mede pelo destino meramente desconstrutivo do projeto pós-moderno Francês. O mesmo se aplica na minha opinião o Les Mots et les Choses (Palavras e as Coisas) e principalmente aos Volumes II e III do História da Sexualidade. São um convite à leitura, um deleite aberto a qualquer um, nada de leitura para iniciados.

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    1. Não me escapou que seria uma provocação a você.

      Luiz, temos que esclarecer uma coisa: o mercado editorial brasileiro, embora contenha algumas falhas, é um dos melhores do mundo. Dificilmente não teria uma tradução integral de história da loucura. Estou com minha edição em mãos, a da Perspectiva (já clássica, como vemos), e ela é a tradução completa, feita por José Teixeira Coelho Neto; tem 530 páginas de texto, mais 22 de notas. Não sei de onde você tirou que ela é incompleta; meu exemplar é a oitava edição, de 2005. Tem um prefaciozinho ironicamente revelador, em que Foucault parte para cima da desconstrucionalização dos...prefácios, e que se encerra assim:"_ Mas você acaba de fazer um prefácio! _Pelo menos é curto." Digo isso, também, em relação a outras obras capitais de história, como História do medo no ocidente, etc.

      Eu li sim por inteiro essa obra, que achei realmente soberba, mas ao longo do tempo, como é das leituras, vou podendo localizá-la no local ideal de minhas valorizações. Não há como você negar que Foucault rebuscava cada vez mais seu texto, como uma doença, o que é comum, e deveria ser estudado por alguma outra pessoa, entre escritores que querem transcender determinado meio e transcender-se; escritores tardios ou de escolas tardias. Aconteceu isso com Faulkner, que complicou demasiadamente as coisas com seu último livro, com Henry James, que tentou inventar uma nova forma de escrita através do hermetismo exagerado, o Finnegans Wake, etc. E também com Foucault. Acho isso, principalmente por parte de Foucault, uma coisa sem fundamento nenhum, apenas para dar um ar maior de coisa sagrada, de muita inteligência.

      Realmente não entendi o História da sexualidade. Foucault é muito diferente de Adorno, que é um dos caras que mais gosto, embora ambos escrevessem com excesso de dificuldade. Adorno o fazia propositalmente, como algo estético, que contestava a mediocrização da cultura e das novas roupagens da brutalidade, elegendo uma nova aristocracia espiritual cada vez mais solitária em uma realidade de barbárie, barbárie esta que se lançava contra a própria língua e escrita. Já Foucault escrevia assim por gratuidade, por empáfia, pela busca de uma originalidade que acabou não alcançando. E seu reducionismo paranoico de ver tudo como uma conspiração política à lá "o chamado de Chtulhu", derivou sim, a meu ver, para a mediocrização dos valores e dos gostos, já que ele via a cultura como mera elitização que deveria ser combatida.

      Derrida, Lacan, etc... fazem parte da mesma corrente, temporal, acadêmica, histórica, da chamada pós-modernidade. Não desconsidero a importância destes autores, mas eles se encaixam danosamente cada vez mais a uma mentalidade reinante em que tudo é especialização e embrutecimento do espírito, com muito palavreado e pouca significação. Procure aí um livro chamado On looking into the abyss, de Gertrude Himmelfarb, em que ela aponta algumas imposturas dessa turma.

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    2. Há textos maravilhosos de Said, principalmente em suas conferências Reith, em que Said combate o especifismo e o acusa de calar o discurso e, assim, continuar promovendo as formas de dominação dos mesmos poderes instituídos. Pessoalmente acho: mais Said, e menos Foucault.

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    3. Charlles, por muito tempo o Folie et Deraison permeneceu sem uma tradução completa em inglês até a mais ou menos uns quatro anos. Explico. É que do catatau editado tendo como base a tese de doutoramento de Foucault, produziu-se na França uma edição menor, mais simplificada, da tese central de Foucault. Foi a partir dessa edição menor Francesa, abridged em inglês, que se traduziu esse Foucault para outras línguas. Precisaria ver com mais calma, mas acredito que a tradução brasileira é baseada nessa.
      Foucault foi muitas coisas para muita gente. Como a famosa frase do Apóstolo Paulo, ele foi grego para os gregos, Judeu para os Judeus, liberto para os livres, etc. Acho que a pecha de pós-moderno é muito simplificante. Ela abarca pensadores tão diferentes quanto Deleuze, Foucault, Derrida, Rorty. Portanto, reafirmo. De comum entre Foucault e essa turma Francesa que você alencou aí em cima, em comum só o branco do olho. Por exemplo, como pode haver alguma relação entre Foucault e Lacan se o primeiro trata de propor que a psicanálise nada mais é que uma ciência que constrói (inventa) o seu próprio objeto, quer dizer, ela fabrica aquilo que ela própria se propõe a descobrir. Isso aí está posto no Vontade de Saber, o infame livreto de Foucault (de acordo com o seu texto). Mas eu discordo mesmo da sua opinião em colocar Foucault junto com os herméticos Franceses da Ecole Normale de Paris principalmente porque Foucault, tirando algumas exceções, não é impenetrável.
      Arqueologia do Saber é talvez seu livro mais difícil e de acordo com Deleuze, deve ser lido como um practical joke de Foucault aos métier intelectual Francês.
      Sabia que o Les Mots et les Choses foi um sucesso editorial na França quando lançado em 1966. Nos primeiros cinco dias o livro vendeu 800 exemplares só em Paris. A primeira reimpressão se esgotou em mais ou menos um mês. Coisa que o jornal Nouvel Observateur anotou na resenha do livro com o título "Foucault vende como pãezinhos quentes." Trata-se portanto, não só na minha opinião, de um best-seller desde a sua concepção. Coisa que, você precisa admitir, não é comum para um livro de filosofia.
      A filosofia tem o seu jargão todo próprio, construído a ferro e fogo de séculos de metafísica, ética e ontologia. Querer que Foucault leia como Marie Claire me parece impróprio.

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    4. Ah, só mais uma coisa. Se é para listar gente da sua "boa turma" que achava Foucault intratável (Bellow, etc). Não custa lembrar que Edward Said escreveu uma resenha super-elogiosa do Arqueologia do Saber nos setenta. Se tiver interesse posso enviar ela prontamente. :)

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    5. Mais tarde volto com mais réplica, se for o caso. Mas apenas digo, antes de guardar meu volume trabalhosamente achado de manhã, que na página 4, da catalogação sistemática, vem copyright para a Éditions Gallimard, 1972, e vem como título original Histoire de la folie à l`âge classique. Tenho por mim que se trata de uma tradução direta do francês.

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    6. Claro que eu quero.

      Marie Clare é apelação. Eu gosto muito, muitíssimo, de autores impenetráveis. Meu lado pretendente a escritor divide o lema de Pynchon, que não vê nenhum mérito em autores límpidos e perfeitamente legítimos. Não gosto, por exemplo, de Flaubert, mas gosto muito de Stendhal, Proust e Céline, como cansativamente venho dizendo. Por isso, não cola essa provocação sua.

      A dicotomia entre Lacan e Foucault não desqualifique que eles pertencem muito à mesma corrente ideológica e estilística e de concepções teleológicas.

      Concordo, aliás, com a súmula do que você disse, e, talvez, volte mais tarde a meus Foucaults, mas não abro mão de que ele é, muitas vezes, impenetrável pela própria impenetrabilidade.

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    7. :)
      Conheço poucos leitores como você, Charlles. Não cola essa de que não entendeu La Volonté de Savoir ou o Surveiller et Punir. O volume I da História da Sexualidade, Vontade de Saber, tem realmente uma seção bem espinhosinha, na qual Foucault coloca em parêntese a sua tese de que a Psicanálise e as demais ciências da Sciencia Sexualis inventaram a sexualidade, para tratar de desmontar a tese clássica Marxista de poder. Trata-se de crítica teórica no seu sentido mais pleno, sendo leitura prazerosa apenas para meia dúzia desses outsiders que tem prazer na carpofilia ou bonecas infláveis. Mas o restante do livro é um sorbet de tão delicioso, principalmente a parte final sobre Biopolítica, qual seja, a tese originalíssima de Foucault (a qual, se Foucault só existisse aqui, já contaria como um legado para a filosofia moderna) de que a democracia moderna reinscreve a vida (o Bios grego expulso do fazer político com Aristóteles) dentro da Política, colocando-a como objeto primeiro das estratégias presentes de governabilidade. Quer dizer, a análise do nascimento das técnicas de controle social através de projetos eugênicos, de teorias de controle da população, campanhas de vacinação em massa, etc.
      Não vou te forçar o braço a revisitar Foucault (mesmo porque a impressão é a de que você precisa visitá-lo primeiro ;))
      Mas eu leria o Surveiller et Punir, esse mesmo livro que resisti por muito tempo por conta do bando de sincofantes que se escoram nele, dos seus leitores de orelhada.
      Uma das minhas partes preferidas do Surveiller et punir, aquela na qual Foucault afirma, numa brilhante reversão do tema Gnóstico-Platônico de que o corpo é prisão da alma, "a alma é a prisão do corpo":

      "Não se deveria dizer que a alma é
      uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar que ela existe, que tem uma
      realidade, que é produzida permanentemente, em tomo, na superfície, no interior do
      corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos —
      de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um
      aparelho de produção e controlados durante toda a existência. Realidade histórica
      dessa alma, que, diferentemente da alma representada pela teologia cristã, não nasce
      faltosa e merecedora de castigo, mas nasce antes de procedimentos de punição, de
      vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente
      substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a
      referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um
      saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa
      realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram
      demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela
      técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela. valorizaram-se as
      reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão
      dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão
      filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam
      a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição bem mais profunda que ele. Uma
      “alma” o habita e o leva à existência, que é ela mesma uma peça no domínio
      exercido pelo poder sobre o corpo. A alma, efeito e instrumento de uma anatomia
      política; a alma, prisão do corpo."

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    8. Foucault comme des petit pains

      http://referentiel.nouvelobs.com/archives_pdf/OBS0091_19660810/OBS0091_19660810_029.pdf

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    9. E é claro que eu quis dizer coprofilia...

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    10. “(….mas nasce antes de procedimentos de punição, de vigilância, de castigo e de coação. Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; é o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de análise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela. valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo. Mas não devemos nos enganar: a alma, ilusão dos teólogos, não foi substituída por um homem real, objeto de saber, de reflexão filosófica ou de intervenção técnica. O homem de que nos falam e que nos convidam a liberar já é em si mesmo o efeito de uma sujeição…)”
      Luiz, suas reflexões são interessantíssimas!, pois a meu ver tocam numa da pedras lapidares da nossa ideologia cristã, isto é: COMO PODE EXISTIR O LIVRE-ARBÍTRIO se, justamente quando estamos mais indefesos, ou seja, nos primeiros anos de nossas vidas, somos praticamente moldados a pensar, a sentir e, fundamentalmente, a amar?
      Portanto, tais reflexões acarretam perguntas cruciais: (1) é possível a existência da liberdade humana? (2) Não seria a liberdade apenas uma abstração metafísica? (3) Será que não há a uma liberdade, mas diversas, cada uma associada a um específico momento histórico?

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    11. Li a História da Loucura em 86…
      .
      Após refletir sobre o post e os comentários, fui lá, na biblioteca, e encontrei o bichinho…: todo tordo; empoeirado; esquecido…; capinha branca…; uma foto amarelada dum maluco, ou maluca, sei lá, com aquele inegável quase sorriso, ou não, a lembrar-me o famoso quadro de Da Vinci… Nossa, quanto tempo!... Como é possível?... Não me lembro de nada… Será que o li mesmo?... Comecei a folheá-lo e acariciá-lo… Tive um repentino acesso de tosse causado, possivelmente, pela poeira que adentrou à garganta… Incrível, o li inteirinho… Mas será que fui eu que escrevi tantos comentários na marginalia…? Sem dúvida, fora mesmo… Mas pra onde foi tudo isso?... Talvez para o inconsciente, vai saber…
      .
      Reli o prefácio, e estava lá: “… Não procuremos nem justificar esse velho livro, nem reinscrevê-lo hoje; a série dos eventos à qual ele pertence, e que é sua verdadeira lei, está longe de estar concluída.”
      .
      É, alguns livros são assim… Não somos assim?

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    12. Para minha surpresa, nesse instante, percebo que o segundo capítulo do "Jardim dos Castanhos", começa assim...:
      .
      .
      SE
      by Ramiro Conceição
      .
      .
      E se, sem resgate, sem justiça,
      sem apocalipse, sem redenção,
      sem amor, memória ou história,
      sem epistemologia, filosofia, poesia ou sem ciência,
      tudo terminasse como se não houvesse acontecido?
      .
      E se o tal “tudo posso naquele que me fortalece”
      vier sempre acompanhado dum dízimo matreiro
      para que se deixe a rabeira e se vire um camelo,
      a mais,a perpetuar a sede insensata do mundo?
      .
      E se não existir ética, moral, alma ou espírito?
      E se o ápice da evolução for essa acumulação,
      essa coisificação, esse nosso lixo sobre tudo?


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    13. Charlles,
      Se a tradução é baseada na edição de 72 da Gallimard, então quem está certo é você. Mas eu podia jurar que edições anteriores do Folie et Déraison pela Perspectiva eram bem mais curtas que essa mais recente.
      Só para constar que eu não delirei essa coisa toda. Ian Hacking, filósofo daqui da U of Toronto, no prefácio da linda edição que eu tenho aqui em casa, da Routledge.
      "Thank goodness this enormous book is finally available in English. A masterpiece
      needs no foreword, so I shall hardly go beyond the title. The original one is a bit like
      Alice’s Cheshire Cat, of which nothing is left but the grin. It starts out as Madness and Unreason: History of Madness in the Classical Age, and fades away so that weare left with our present History of Madness. I shall go through the steps. It is agradual disappearing act, and I shall point you in the direction of the disappeared ‘unreason’, not to explain it, but to encourage you to notice it. In the tale of the titles and of unreason, there are all the signs of Foucault changing his mind about madness.The exact title in 1961 was
      Folie et Déraison. Histoire de la folie à l’âge classique... ‘Unreason’ was right up there alongside ‘Madness’. The big book of 1961 was severely abridged, and appeared as a paperback in 1964. Half of the first preface was suppressed. On the cover we see only
      Histoire de la folie. On the title page thefull 1961 title appears in block letters, but with
      Folie et Déraison in smaller print thanthe subtitle. Fading, like the cat. This version was translated into many languages, while only an Italian publisher did the unabridged book. For the 1965 English version, Foucault restored a little material that he had cut from the 1964 French abridgement. For a moment, a flicker more of the cat’s face came back. For here are the most vivid assertions about Unreason tobe found in the entire work. They will hardly make sense out of context, so I refer you to the pages in question which were suppressed and then restored (pp.225–250). You will find sentences like this: ‘How can we avoid summing up this experience by the single word
      Unreason? By that we mean all that for which reasonis at once nearest and most distant, fullest and most empty.’
      In 1972 Foucault published a second edition of the entire book, plus three appendices, but with a substitute preface. The French title had become what was formerly the subtitle,
      History of Madness in the Classical Age."
      Portanto a única coisa faltando na edição da Perspectiva deve ser mesmo o prefácio original, aquele que foi depois suprimido depois que o aluno Derrida entrou de sola no Foucault acusando ser impossível falar da De-Razão a partir do discurso da Razão. Desculpas, Monsieur, pelo equívoco. É que, como vês não seria vergonha nenhuma se a edição brasileira fosse baseada naquela mutilada.

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  3. Logo no meu primeiro semestre do curso de letras me apresentaram um texto chatíssimo de Barthes, cujo trauma me fez esquecer o título. Deste modo, fiquei dez anos me esquivando dele, até me indicaram os ensaios de Mitologias (que abri ontem só porque me disseram que ele fala de cinema, luta-livre, detergentes, coisas banais), e me parecem realmente maravilhosos. Estes filósofos e cientistas deveriam todos tentar escrever como ensaístas (e nisso respeito demais o Steven Pinker, que usa linguagem de divulgação para falar de coisas muito complexas).

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    1. Tenho muitos ensaístas em minhas leituras. Não leio Lacan, nem Derrida, por pura falta de tesão. Mas gostei do Baudrillard, do Bauman... Mas meu preferido, que está muito acima destes em questão de beleza textual, é Edward Said, principalmente os magníficos ensaios de Reflexões sobre o exílio.

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  4. Las clases magistrales de Cortázar

    Un nuevo libro reúne las lecciones de literatura que el autor de Rayuela dictó en Berkeley, en 1980. Su pensamiento y la intimidad de sus elecciones artísticas, en un adelanto exclusivo

    http://www.lanacion.com.ar/1604397-las-clases-magistrales-de-cortazar

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  5. Para Foucault, como se ainda houvesse tempo...

    W.H.Auden (1907-1973)

    EM HONRA AO CALCÁRIO

    Se ele forma a única paisagem de que nós, os inconstantes,
    Estamos sempre saudosos, isso acontece, especialmente,
    Porque ele dissolve em água. Guarde essas inclinações do terreno
    Com sua superfície sabendo a tomilho e, embaixo,
    Um sistema secreto de cavernas e passagens, escute as fontes
    Que borbulham aqui e ali como se fossem risadas,
    Cada uma delas enchendo uma poça pelo peixe e pela escultura
    Sua própria ravina cujas paredes entretém
    A borboleta e o lagarto, examine esta região
    De pequenas distâncias e lugares definidos:
    O que poderia ser mais Maternal ou um melhor pano de fundo
    Para o filho, o macho galanteador que se recosta
    Contra uma pedra sob o sol, sem duvidar
    De que mesmo com suas falhas é amado, cujos esforços são
    Meras extensões de seu poder de encantar? Dos campos naturalmente crescidos
    Aos templos construídos, de águas surgidas à força a
    Fontes pronunciadas, desde um vinhedo selvagem a um domado,
    São engenhosos ainda que pequenos passos que o desejo de uma criança
    Em receber mais atenção do que seus irmãos, da
    Maneira que for, pode facilmente suplantar.

    Em seguida, observe o grupo de rivais enquanto eles sobem
    As trilhas de pedras altas em dois ou três, às vezes
    Com os braços em outros braços, mas jamais, graças a Deus, com os pés,
    \ ou amarrados
    No lado umbroso de um quadrado sob o meio-dia com
    Um discurso volúvel, conhecendo a todos bem demais para imaginar
    Que existam segredos importantes, incapaz de
    Conceber um deus cujos humores e tremores sejam de ordem moral
    E não ser apaziguado por um texto inteligente
    Ou uma boa cantiga: pois está habituado com uma pedra que reage
    Ele jamais teve de esconder o rosto por temor
    De uma cratera cuja fúria fumegante não pode ser regulada,
    Ajustada às necessidades locais dos vales
    Onde tudo pode ser tocado ou alcançado a pé,
    Seus olhos nunca se fixaram no espaço infinito
    Pela treliça do rastelo de um nômade, nascido com sorte,
    Suas pernas nunca se depararam com os fungos
    Nem com os insetos da mata, as formas e vidas monstruosas
    Com as quais, gostamos de pensar, não guardamos semelhança alguma.
    Então, quando alguém passa para o mal, o modo de funcionamento da mente
    Permanece incompreensível: virar gigolô,
    Ou vender jóias falsas ou arruinar uma bela voz de tenor
    Por efeitos que põem a casa abaixo, poderia acontecer a qualquer um
    Mesmo aos bons e aos maus...
    É por isso, creio eu,
    Que o bom e o mau jamais permaneceram aqui por muito tempo, apenas buscavam
    Solos desregulados onde a beleza não era tão visível,
    A luz menos aproveitável e o sentido da vida
    Algo mais que um campo destruído. “Vem”, gritaram os restos de granito
    "O quão evasivo é teu humor, o quão acidental é
    Teu beijo mais doce, o quão permanente é a morte." (Pretensos santos
    Se vão conjurando.) "Vem!", bramiram a argila e o cascalho,
    "Em nossos domínio, há espaço para braços a cavar; rios
    Esperam ser desbravados e escravos aguardam para construir-lhe uma tumba
    Em grande estilo: suave como o barro de que é feita a humanidade e ambos
    Prescindem alterações." (Césares pretensos se levantam e
    Saem, batendo a porta.) Mas os incautos foram pegos
    Por uma voz mais fria, mais macia, o suspiro dos oceanos:
    "Sou a solidão que não pede nada, não oferece nada;
    É por isso que eu te liberto. Inexiste o amor;
    Só há inveja, toda ela triste."

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  6. _continuação_

    Elas tinham razão, minha cara, todas essas vozes tinham razão;
    e ainda têm; esse terreno não é o doce lar que parece;
    Nem sua paz vem da calma histórica de um lugar
    Onde algo se estabelecera de uma vez por todas: uma retrógrada
    Província dilapidada, ligada ao
    Mundo por um túnel com um certo apelo
    Promissor, isso é tudo que é agora? Não exatamente:
    Possui uma obrigação mundana a despeito de si mesma
    Que não se negligencia, mas questiona
    Todos os grandes poderes a assumir; ela perturba nossos direitos. O poeta,
    Admirado pelo seu mais sincero hábito de chamar
    De sol o sol, sua mente se perturba, se constrange
    Com essas estátuas de mármore, que tão obviamente duvida
    De seu mito antimitológico, e desses moleques,
    Perseguindo o cientista pela colunata adornada
    Com tais ofertas vivazes, revive suas preocupações com os aspectos
    Mais remotos da Natureza: também eu sinto-me reprovado, pela coisa
    E você sabe o quanto. Não perder tempo, não se deixar ser preso
    Não ficar para trás, nem, de jeito nenhum! Lembrar
    As feras que se perpetuam, ou algo como a água
    Ou uma pedra cuja condução é previsível, essas
    São nossos pedidos, cujo maior conforto seja a música
    Que pode ser feita em qualquer lugar, é invisível,
    E é inodora. Temos que observar de longe
    A morte como fato, sem dúvida temos razão: Mas se
    Os pecados podem ser perdoados, se os corpos se levantam dos mortos
    Essas modificações da matéria em
    Atletas inocentes e fontes gesticulantes,
    Realizadas só por prazer, guarde posteriormente:
    Os abençoados não se importarão de que ângulo são considerados.
    Já que não têm o que esconder. Querida, não sei nada das
    Duas, mas quando eu tento imaginar um amor sem falha
    Ou a vida do porvir, o que eu ouço é o murmurejar
    Das correntes subterrâneas. O que vejo é uma paisagem calcárea.

    Tradução: Eduardo Lima

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    1. Auden! O cara que fez o Joseph Bródski aprender a escrever em inglês para escrever ensaios, para honrar o homem mais inteligente do século, segundo o russo.

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  7. Um exemplo: pegue "Eu, Pierre Riviére, que degolei minh mãe, minha irmã e meu irmão". É uma abordagem coletiva a partir dos autos de um processo e do memorial escrito pelo próprio assassino. Alunos de Foucault abordaram esses textos de maneira clara, precisa, conscisa, iluminadora. Eis que há também a abordagem de Foucault... então ele se dá a voos "poéticos", de "filosofia", se dispõe à desconstrução, ao semiótico, à busca da nuance da nuance da nuance... e nos cansa, entedia, nos faz dormir. É bom exemplo.

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  8. Eu acho que o Foucault escreve bem fácil para um filósofo. Acho que vocês dois caem num problema de categorias. O Foucault não é um sociólogo do conhecimento, nem um historiador, nem mesmo um crítico literário (apesar de ter escrito umas duas obras de crítica nos sessenta). Ele é um filósofo, que inclusive se interessou por problemas abordados pela turma que ía de Nietzsche a Heidegger, e, bem no fim da vida, voltou a Kant.
    Entre Nietzsche e Heidegger, penso que seu estilo e forma estão muito mais próximos do primeiro do que do último.
    Nunca vi o Charlles reclamar aqui da ilegibilidade de um Sein und Zeit.

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    1. Não sei se você se lembra de algo que posso chamar de "Controvérsia Sokol". Sokol vem a ser um físico e matemático que escreveu, de blague, uma matéria para publicação na revista Social Text, utilizando todos os cacoetes linguísticos de Deleuze, Guattari, Derrida, Foucault e outros menos midiáticos. Apesar de conter somente inconsistências teóricas, o artigo foi publicado; em seguida, Sokol revelou a fraude e pôs em discussão o quanto de ausência de sentido há na obscuridade programática da filosofia em seu ramo francês (especificamente).

      É veio antigo: desde a Idade Média, a Universidade de Paris propunha embates entre os velhos mestres e pretendentes a cátedras; daí o método bizantino de filosofia francesa, sendo desde então impossível de gerar novas veias teóricas sem seguir pelo caminho da absurdidade pura e simples (isso você vê bem no Rabelais, que não me deixa mentir, aquele frade mentiroso).

      Nietzsche, de fato, pode ser tido por ensaísta social, não filósofo.

      A Filosofia, para recuperar relevância, vem se dedicando a detratar o que podemos chamar de "Ciências Sociais"; quer ser as fundações e o último andar ainda não construído; virou coisa de disputa entre clubes de futebol. Isso é irrelevante, como esse mergulho na obscuridade pela obscuridade, que cita elementos de ciência omo a Física Quântica sem compreender nada da disciplina, apenas para revolutear inutilmente em torno de um tema muito mais profundo do que meros enunvciados originais.

      É uma discussão para dias e dias, mas de rala consquencia. Então fico por aqui mesmo.

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    2. Controvérsia Sokol. Digitei no Google e parece que lá não há muita coisa. Vou reprocurar com variâncias, mais tarde.

      Disse muito bem. A filosofia francesa é um tanto indigesta para mim. Há uns dois anos tentei ler o novo bam-bam-bam do gênero, o Michel Onfray, um livro que tomei de empréstimo de um amigo, cujo título não me recordo, mas, juro, as 50 páginas que consegui atravessar antes da abandonar o livro por completo está entre as coisas mais cacetes e desagradáveis que já li. Falavam sobre a infância do autor em uma fábrica de queijos ou algo assim_ bom que a memória sobre isso seja imprecisa_, fábrica que dominava todo o pequeno povoado onde ele nasceu, massacrando seus pais, tios, amigos, etc. Descreve minuciosamente cada sensação, cada detalhe atmosférico da fábrica, em um angustiante pesadelo. Faz isso tudo para se engrandecer depois, bastante arrogante, por ter se livrado daquilo pela universidade e os estudos. Tudo num niilismo opressivo, uma falta de ternura, uma agressividade fria e plasticamente viril que só vejo na pluri-sexualidade de gente como Pondé. De uma obtusidade tremenda, como se julgasse viver em uma época remota do século passado em que essas palavras pudessem fazer dele um pop-star das letras.

      Niet nada tem a ver com esses caras. Niet, antes de filósofo e sociólogo (coisa que não acho, em absoluto, que ele tenha sido), foi poeta. Dos bons; como Camus, como Bernhard.

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    3. Citei de memória, mas, pelo que vi, o nome do cara é Sokal; mas posso jurar que é Sokol... engraçado isso. Tem um troço em:

      http://en.wikipedia.org/wiki/Sokal_affair

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    4. Marcos, o embate entre filosofia norte-americana (de matriz inglesa), centrada na lógica e na filosofia da linguagem e a filosofia continental se dá muito mais por uma questão de método, por acusações de falta de rigor lançadas à filosofia francesa, do que em torno de questões de estilo, forma, e ou obscurantismo.
      Discordo que o hermetismo seja uma marca especial da filosofia francesa. Citei o Heidegger aí em cima, em especial o "Ser e o Tempo", mas poderia ter citado também Hegel e outros da tradição germânica. Vou além. Acho a virada linguística da filosofia norte-americana, dita a única filosofia verdadeira e possível a partir de Wittgenstein, muito mais intragável do que qualquer dos Franceses cabalistas.
      Mas o meu ponto, voltando às críticas do Charlles (que eu reputo a uma leitura da juventude, da imaturidade) é o de que Foucault não está em absoluto junto com a turma daquela filosofia francesa aberta apenas aos iniciados (Lacan, Derrida, Deleuze, Althusser, Balibar, etc). Foucault se lê com uma facilidade assombrosa, tanto mais quando se recorda que o que ele faz é FILOSOFIA, não história, sociologia, ou crítica literária. Os títulos mais importantes de Foucault, ou quase todos eles, se iniciam por uma referência verbal a Histoire. Mas o que Foucault faz não é em absoluto o trabalho de um historiador (como os bons historiadores da tradição Francesa dos Annales). Foucault inclusive refuta qualquer afiliação da sua obra com a História de Longa Duração dos Annales, das Mentalidades que se arrastam por séculos no seu Arqueologia do Saber. O que Foucault fez de mais relevante para a filosofia, dentro de suas contribuições para a teorização dos mecanismos do poder, foi desenvolver até as suas últimas consequências a idéia de Genealogia de Nietzsche, qual seja a história paltada não na descoberta do passado, e sim a história do presente. Foucault e Nietzsche tem muito mais em comum do que quer o Charlles. Leia-se por exemplo o ensaio escrito em 1970 (salvo engano) "Nietzsche, Genealogia e História." Ali Foucault demonstra quão bom leitor ele era de Nietzsche e o quanto o seu método dependia do "tipo de historiografia" que o último fazia. A Genealogia, tanto em Nietzsche quanto em Foucault, nega qualquer possibilidade de se falar de uma origem (Ursprung), uma causa primeira que explique, ou que sirva de elo causal único para se explicar qualquer fenômeno. A Genealogia trata justamente de desmontar essas etiologias, mostrar a sua face de mito das origens, a fim de se possibilitar que entidades do presente (o Homem, as ciências humanas, a moral em Nietzsche) seja reificada ou naturalizada no presente como um dado eterno, coexistente ao humano, etc. Nesse sentido toda a suposta "historiografia" do Foucault mais tardio, pós-60, é essa mesma Genealogia, essa história do presente, que está bem posta na Genealogia da Moral de Nietzsche, a qual nada mais foi (quem leu sabe) que uma desnaturalização dos conceitos "bondade" e "maldade." História da Sexualidade do Foucault é um experimento aos modos da Genealogia da Moral do Nietzsche.
      É bem verdade que Nietzsche foi um grande aforista e que fez filosofia como poeta, coisa que Foucault não foi. Mas Foucault está muito mais próximo de Nietzsche, no tocante ao método e a legibilidade, do que a Lacan e Derrida. Malgrada a tentativa de colocar toda essa turma debaixo do tal pós-modernismo.

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  9. O Marcos citou o Moi, Pierre Rivière, como um exemplo de obra acessível do Foucault. Eu poderia listar aqui pelo menos mais uma dezena. Tem por exemplo o livrinho delicioso que ele escreveu sobre a pintura de Magritte, o Ceci n'est pas une pipe. Ou leia-se por exemplo TODAS as edições das transcrições de suas aulas no Collège de France a partir de 1971. As aulas são de uma clareza, de uma estrutura, que custa lembrar que elas partem de um registro da oralidade. Portanto nada mais distante daquela imagem do Mestre guru, que cativa multidões mas que ninguém entende, citado pelo Charlles.

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    1. Talvez a questão tenha sido posto errada, talvez por mim. Não é que o texto de Foucault seja mais "difícil" ou hermético. Aqui entram variáveis que comportam desde a proficiência do leitor até a sua paciência, ou a profundidade de sua obsessão pelas letras. Sou muito obcecado neste ponto. Gosto muito de textos que, para leitores comuns, são tidos como rocambolescos e impossíveis, e na verdade não são: exemplo, o maravilhosamente "fácil" Ulisses. Adoro o Adorno, entendo-o de forma tão clara quanto uma manhã de verão no campo, e o acho lindíssimo_ das coisas mais lindas que já li. E Adorno é intransponível para a maior parte dos leitores "posers" ou leitores que pretendem-se como tal e nunca o são.

      A questão é: Foulcault, pelo menos para mim, parece MESMO não dizer nada. Já coloquei isso acima. Talvez eu TENHA ENTENDIDO, então, o História da Sexualidade, e, sinceramente, é muito oco. Considero o Foucault um cara bem acima da média, mas que perdeu o foco, entrou numa furada modística, sei lá: oco, oco, oco.

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    2. Esse do cachimbo, dizem que é muito bom mesmo. Proponho-me a lê-lo. Pegarei emprestado de um amigo aqui.

      Não é por ser oco que eu não voltarei a Foucault um dia. Ele não faz parte de meus autores que nunca lerei (ex: Sartre e Updike, e Miller, o Henry).

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    3. Charlles,
      A sua impressão de incompletude, de prefácio do História da Sexualidade I é correta. O livro funcionaria originalmente como um prefácio ao seu projeto que constaria a princípio com sete volumes. Os demais tratariam do nascimento daqueles outros sujeitos sexuais inventados pela psicanálise que ele apresenta apenas de passagem no Vontade de Saber, o Perverso, o problema do Onanismo infantil, a Mulher Histérica. Foucault também planejava escrever um livro sobre o nascimento do homem desejante no Cristianismo, auto-denominado Les Aveux de la Chair, seu também chamado livro "Cristão" sobre a sexualidade. Nenhum desses livros chegou a vir à luz. Os volumes II, III e IV, sobre o Pervertido sexual, a Criança que se masturba e a Histérica nunca saíram do esboço. O Les Aveux de la Chair chegou a ser escrito, mas proíbido de ser publicado no testamento deixado por Foucault. Portanto há mesmo algo de provocação, de provisório e de intróito no Volume I nunca chegou a ser plenamente desenvolvido.
      Os Volumes II e III do História da Sexualidade acabaram tendo uma cara que tem pouca continuidade com o Vontade de Saber. São grandes livros, mas afeitos a um outro projeto do Foucault.

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    4. Bom. Acho que você precisava dizer então no seu texto o porquê exatamente Foucault é "oco, oco, oco." Se não a crítica fica vazia. Um exercício estético de vaidade.

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