domingo, 28 de setembro de 2014

Um conto perfeito



Esperando meus filhos e minha esposa saírem do culto, sentado na praça em frente à igreja, debaixo de um ipê amarelo. Choveu toda a noite e o domingo é glorioso, alegre e tranquilo. Peguei um livro quase a esmo na estante para me fazer companhia, e coube que tal livro fosse o volume de contos policiais de William Faulkner, Lance mortal, lançado pela editora Benvirá. Procuro o menor conto do livro e o releio: a maravilha de curtas 25 páginas intitulada Um erro de química. Quem me visse acharia que ou eu tivesse algum problema de infantilismo mental ou estava passando por um final de bebedeira da madrugada de sábado. Fiquei pasmo pela excelência da história, desse que sem dúvida é um conto perfeito. Tem tudo lá: True detectives, espantosas maquinações sinestésicas de suspense que cativam a atenção do leitor com uma grande dose de hipnotismo-pânico, a canastrice convincente do exagero que faz homenagem à literatura de gênero, e até uma metalinguagem bem-humorada no último parágrafo bastante típico do virtuosismo de Faulkner. O que me faz, às vezes, me distanciar de Faulkner?, me vi perguntando. Convido qualquer apreciador de literatura a ler esse conto e não ter a absoluta certeza da genialidade de Faulkner. O cara é a raiz daquela excelência feita na literatura do século XX. Eu ria, apertava o livro, olhava para alguns passantes com a fantasia de pensar em dizer "vocês viram isso?, o que esse cara fez?". Não só a escrita perfeita, como um conhecimento humano e uma sabedoria bem acima da média. O tipo de leitura que te faz pensar em muitas e intrincadas coisas; o tipo de prevenção definitiva contra o alzheimer que em poucos anos consumirá epidemicamente uma maioria de cérebros amaciados por entretenimento e cultura ruim. Uma das coisas que eu sempre penso é: esse cara não era um intelectual, não era uma acadêmico, o muito que perigosamente se pode dizer dele com sua aprovação é que não passava de um caipira, e só nessas 25 páginas, que não estão entre o que ele fez de melhor, ele vence o mundo todo. É bom demais ler Bellow e Roth, mas me assola uma consciência de perda de tempo imensa por não estar fazendo como há 20 anos, cotidianamente em contato maciço com o universo de Faulkner.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

O pintassilgo, de Donna Tartt



Depois de ler O pintassilgo, novo romance de Donna Tartt, é difícil não dar ouvidos para críticos como James Wood que acusam o infantilismo na produção da atual literatura. Desconsiderando diagnósticos mais genéricos, como o de Vargas Llosa, que diz que o infantilismo é uma praga espiritual oriunda da degeneração do gosto que assola todas as vertentes da cultura de 20 anos para cá, o romance da Tartt por si mesmo desperta cogitações sérias de que essa pobreza, vinda de uma visão limitada do mundo, revela de maneira menos segura para nosso conforto civilizatório que a atrofia da experiência está também fazendo seus estragos no campo da imaginação. E experiência tem sido um tabu para os escritores norte-americanos, essa classe de criadores que sofre de maneira mais primordial a transformação do mundo físico da experiência tradicional para o virtualismo sinestésico que simula a coisa autêntica. Tartt, por inúmeras vezes neste seu romance, se enquadra na crítica que Joseph Bródski fez a uma obra de Solzenítskin: assim como o autor russo de Pavilhão de Cancerosos, ela tangencia a sublimidade, bate nas portas de uma expressão que se adivinha grandiosa, para logo em seguida morrer na praia. Ela nunca acontece nas altas esferas artísticas as quais desde sua foto com ar vitoriano nas orelhas do livro ela promete ser capaz de acontecer. Ela sempre perde a linha de concentração e cede de maneira até ofensiva aos interesses batidos do mercado de imagens feitas, todas elas dedicadas à alta percentagem de atender ao gosto infanto-juvenil. Tudo é um tanto mais grave porque Tartt é, indiscutivelmente, uma escritora que tem mais qualidades e bem mais talento que o restante de seus pares; é capaz de descrições formidáveis, de construção de personagens precisamente verdadeiros (que são realçados pela generosa quantidade de movimento que a autora dá a eles: personagens que oferecem uma humana e ilimitável gradação de olhares enquanto conversam); e de páginas que aventuram reflexões filosóficas que seriam relevantes se na própria ação de escrevê-las não viesse a reação subjacente dela moderar o tom para não espantar o modelo de leitor jovial que ela enxerga do outro lado do livro.

Além da falta de consistência. As primeiras 200 páginas são muito boas. O leitor que traz na cabeça os apegos que o fez se interessar pelo livro_ de ser dickensiano e meio que na contramão do virtuosismo técnico modístico dos romances americanos atuais_, se alegra ao ver o apartamento um pé abaixo da linha da sarjeta onde o jovem herói do romance vai morar, com todas as suas sombras e seu conforto de antiquário cheio de móveis antigos e livros empilhados, com as janelinhas nubladas polvilhadas pela chuva constante. O leitor é levado à melhor parte de seu memorial de leituras introspectivas quando o jovem herói se encontra com a menina de olhar enigmático que ele viu por último no atentado terrorista que matou sua mãe, a menina meio que deformada pela explosão, com metade da cabeça restaurada por placas de metal, deitada em um quarto soturno do apartamento e ouvindo Arvo Part em doses regradas para combater sua enorme dor de cabeça. Há uma beleza tocante nisso, uma beleza clássica pelo alquebramento sereno; há um convite feliz para o diálogo e para o recolhimento valioso que a grande literatura oferece. Eu poderia seguir pelas 700 páginas se tudo acontecesse dentro dessa atmosfera do quarto. Não que as 700 páginas do livro funcionassem melhor naquela falácia costumeira de que se fossem menos as páginas... ; o livro tinha que ter mesmo suas 700 páginas, mas gastadas com outras coisas, gastadas com a capacidade abortada de Tartt de recolhimento. Talvez A história secreta tenha conquistado tantos adeptos por causa desse recolhimento, o que verei em uma das minhas próximas leituras. Mas aqui, Tartt atende com exageros ao gosto do infantilismo, com um arremedo pedante de tudo que ela imagina ser cool e euforicamente provocante, de tudo que ela imagina em sua ingenuidade de escritora adulta com amplo potencial ser o que agrada à juvenília.

O interessante é que, para o leitor atento, fica fácil notar que Tartt não domina nada o universo juvenil urbano moderno. Seu adolescente problemático narrador se droga demais, toma todos os tipos de narcóticos possíveis como se fossem balinhas M&M de chocolate, e ainda assim, no auge da paranoia, lê O idiota e escreve ensaios estudantis de dez páginas sobre Thoureau e literatura inglesa. Em seu i-pod (que, perdoem minha ignorância sobre o assunto, me parece uma peça anacrônica de se possuir como um utensílio trivial na época em que as cenas são narradas, 14 anos atrás), ele tem "tudo o que há de melhor em hip-hop", ao lado de Shostakovitch, Mahler e Bach. Tartt se divide entre o que gostaria de fazer com o livro, com o que deve fazer para o mercado editorial, e os personagens sofrem com esse bipolarismo de comportamentos e gostos. Tartt gostaria de situar todo seu livro em uma Nova York sombria e dickensiana, mas resolve atirar seu herói por 200 páginas na cidade mais no extremo disso (como se houvesse um certo masoquismo em sua escolha), Las Vegas. E mesmo nessa cidade intranscedente ela consegue jogar suas pitadas de fog londrino, pois o herói mora em um bairro de casas abandonadas aonde os carteiros não chegam, como uma versão esquisita do universo de Oliver Twist, e nunca menciona nem de longe o glamour neônico da cidade.

O pintassilgo é um zeitsgest do romance moderno americano. Enquanto a literatura europeia aproveita, em um de seus ramos, do revisionismo histórico, como Sebald e Nooteboom, a literatura norte-americana se perde em suas instâncias medianas em explorar uma espécie de instante perpétuo provocado por um novo extasiamento em relação à nova repaginação de poder financeiro da América, caindo no efeito colateral de transformar tudo em uma súmula de Hollywood e sitcom.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Fantasmas de ocasião



Eram dois velhinhos muito velhos. Eram tão velhos que olhá-los desmerecia qualquer pensamento de continuidade, como se ficasse claro na mente do observador que o momento ocupado no tempo e no espaço por eles era tão indelével que já no outro dia eles não teriam o direito de estarem na memória imediata. E foi assim que desapareceram da minha memória, após ter transcorridos uns dois meses da minha juventude em que os via descendo no elevador quase todos os dias, com suas surpreendentes caras estereotipadas de judeus sefarditas itinerantes, vestidos de  casacos cinzas e com absurdos sacos pesados nas costas. E voltei a pensar neles por algum remanejamento do olhar ontem no apartamento de minha mãe, quando observava pela janela o pátio de estacionamento dez andares abaixo, com seu falso ar de abandono que a chuva contínua outorgava ignorando os tantos carros em placidez imóvel estacionados por sobre os números das vagas. Lembra daqueles dois velhinhos judeus muito velhos que moravam, acho, no sétimo andar?, perguntei à minha irmã. Ela olhou pouco abaixo do teto, enquanto arrumava o zíper da bagagem a ser levada para um congresso em São Paulo, procurando pela lembrança, e só repetiu velhos muito velhos no lugar da negativa. Descrevi-os por alto, a excessiva educação quando me viam entrar no elevador, uma subserviência pungente de abaixarem as cabeças quando eu perguntava se me davam licença para entrar, que eu passei a sempre perguntar para apreciar novamente seus sotaques de deserto e suas inflexões gnômicas em dizerem em suas costuras de português, poir favor, entrre, esteje a vontáde. Eram tão educados que me passavam a impressão que queriam se livrar de mim o mais rápido possível, uma humildade de foragidos que ofereceriam o lombo para serem deixados em paz, com o cimentado contentamento dos sobreviventes que se adaptaram à invisibilidade. Quando eu entrava eles se calavam por completo e mantinham as cabeças baixas; dois irmãos cujas dessemelhanças se evidenciavam por debaixo da linha de uniformidade das roupas cinzas, da fragilidade cujos sacos pareciam ir quebrá-los em diversos fragmentos. O mais novo transmitia a pureza desnorteada dos idiotas da família, tinha olhos vesgos que exumavam um tipo de docilidade oriental que era o suprassumo da inocência. Como um comerciante sobrevivia com aquela aparência?, eu pensava, e um comerciante com o gene da astúcia judaica! Talvez fosse o poeta desmerecido, a ovelha negra. Por isso, por ter que chamá-lo às honras do sangue, que seu irmão_ um tipo enfezado com olhos aterrados no solo insofismável da realidade_ sempre lhe passava as mais cortantes reprimendas, que eu presenciava em esporádicas ocasiões em que os via nas ruas próximas ao prédio, eles estando certos de terem desaparecidos no ar e seguros dos olhares alheios. Não, definitivamente eu não me lembro deles, minha irmã disse.

Na janta, lembrei-me de tascar essa pergunta à minha mãe, completando a descrição do segundo irmão com rompantes sensíveis que sempre me odeio depois por ter agido inadvertidamente como um homem apartado demais para o mundo literário_ um homem que lê em excesso, vejo a crítica subjuntiva nos cantos de enfado dos olhos de minha mãe, enquanto ela sustem o garfo próximo à boca. Acentuo que o irmão mais velho tinha uns olhos crivados dos fanáticos, mas os fanáticos pela vida, por tudo que seja tocável, material, sistematizado, o sujeito dos números mas não do universo nupcial da matemática com as especulações metafisicas. Deveria tratar deus como um mero sintoma inquestionável da geometria sólida pela qual transitava beneficiado pela permanência aguerrida no mundo. Um homem de certa forma perfeito, em sua obliquidade a todos os julgamentos. Não, não me recordo desse senhor, sentencia minha mãe, retornando ao jantar e ansiosa por passar para outro assunto. Hoje, antes de retornar para casa, paro no casebre da viúva do zelador que mora no prédio desde os primórdios e puxo os assuntos triviais até que o clima esteja maleável para lhe encaixar a pergunta. Dois senhores?, a viúva repete olhando para o topo das plantas no jardim. Ela faz uma lista ligeira dos muitos velhos que habitaram ali uma vez ou outra, mas nenhum sendo esses dois profetas bíblicos dissidentes. Lembra de tantos outros os quais eu não me recordo. Me dá um sorriso de desistência, antes recordando que houve alguns meses que ele e seu marido saíram de licença prêmio, tendo passado períodos distantes do prédio. Entro no carro cogitando da teoria dos kardecistas de que os mundos do aquém e do além não dividem uma fronteira precisa, havendo quem de um e outro desses mundos penetre no que julgamos ser a fase de sonho que transcorre em cada um deles. Me vem as disparidades tardias que eu não havia cogitado antes, do porque verdadeiramente dos dois levarem aqueles sacos pesados nas costas, qual feira comportaria entidades tão desenraizadas da urbanidade citadina do final do século XX?; por que se vestiam com tecidos que pareciam rústicos sacos de batatas?

Na conversa pela webcam agora há pouco, entre minha esposa e minha mãe, eu torno a perguntar simulando brincadeira pelos velhos. Minha mãe me lembra as febres cerebrais que eu tinha na infância, o gigante que brincava de ciranda com crianças na esquina, a teimosa certeza de que eu voava até os postes de luz e me sentava nos fios elétricos até me dar na telha voltar. Rio sem  naturalidade mas solto a seguinte frase, que ela não ouvirá mas a deixará enfadada até o nível da irritabilidade: Tenha paciência comigo, mãe, que estou esquecido. Podes segurar abertos mais um pouquinho esses teus olhos tão pesados e tocar teu instrumento, nem que seja dois acordes?

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Por ocasião do 186º aniversário de Liev Tolstói

A felicidade em "Guerra e paz"


Não deixa de ser curioso que em 2500 páginas já de todo memoráveis, os capítulos em que o leitor tem a imediata consciência de estar presenciando um dos maiores momentos da literatura correspondam a cenas felizes de caçada na neve que se encerram num idílico jantar numa cabana camponesa. Tais capítulos do incriticável Guerra e Paz (quem seria louco o bastante, ou capacitado o bastante?) confirmam a sentença de Richard Tull, o autor falido de A Informação, de Martin Amis, que diz ser Tolstoi o único escritor que conseguiu registrar a felicidade por escrito. A leitura sensorial sobre Nicolai Rostóv e sua irmã, Natascha Rostóv, no último momento de interação amorosa tida por eles antes que o primeiro parta para a segunda etapa da guerra russa contra Napoleão, e antes que a segunda se case, corresponde ao processo eminentemente telepático da leitura, que Walter Benjamin descobre em seu ensaio sobre o surrealismo. Essas cenas são tão monumentais que a simplicidade com que são tratadas despertam a sensação tardia de que Tolstoi utilizou de um joguete mefistofélico correspondente à transposição no papel da crueldade investida em toda a efemeridade dos momentos felizes, o que o faz um dos escritores mais perigosos, indevidamente colocado como um sujeito mais espiritualmente são que o para sempre indissociável a ele Dostoiévski. Enquanto o autor de Os Demônios dá sua estocada sobre o destino incontornável do homem para a falência e o crime através de uma miríade de palavreado desconexo e selvagem, Tolstoi caminha pela linha direta de sua genialidade de narrador puro, sem barreiras, sem frenetismos, sem as intercambiações pela clinica psiquiátrica, o que, de um outro ponto de vista, soa mais pérfido que a perfidez atribuída há um século ao seu perturbado colega de letras. Sua telepatia dada na fluidez ligeira do texto proporciona a lucidez incômoda de uma ciência da vida nessa terra como condicionada unicamente a uma entidade histórica indiferente, para a qual a decisão humana não representa nada, que, se os estudiosos acadêmicos se propuserem a reavaliar o modernismo de Tolstoi, talvez percebessem ser essa visão mais factível da verdade do que a neuropatologia dostoiévskiana que inspirou toda a literatura do século XX. Os heróis de Dostoiévski mostram, em negativo, que a doença reina como comandante suprema das hordas da história, e por isso, numa sequência lógica distante, a cura progressiva dessa doença faria com que esses exércitos de sevícias, concupiscências, ambições de poder, egoísmos e egolatrias, barbáries e bestialidades, dispusessem das armas naturalmente num estágio de conserto evolutivo planejado; já Tolstoi, como alguém detentor de uma posição privilegiada de observador bem acima do ruído onipresente, sabe que a doença humana é incurável e, pior, não tem a minima participação fagulhar nos mecanismos históricos. Dois exemplo disso são o capítulo inicial do volume 2, e as elucubrações da segunda parte desse mesmo volume de Guerra e Paz. No primeiro, numa cena engraçadíssima, um grupo de soldados ulanos, na ânsia de cumprir uma mísera ordem de Napoleão para atravessar um rio de águas caudalosas, se afoga vaidosamente em honra do atarefado e indiferente imperador francês.

"Quando o ajudante de ordens voltou e, escolhendo um momento apropriado, dignou-se a chamar a atenção do imperador para a dedicação dos poloneses à sua pessoa, o homem pequeno de casaco cinza levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a caminhar com ele de um lado para outro, pela margem do rio, dando-lhe ordens e, de vez em quando, lançando olhares descontentes para os ulanos que se afogavam e distraíam a sua atenção."

No outro momento, Tolstoi faz uma análise do que levou russos e franceses à guerra de 1812, por todos tida como absurda e assassina, mas que, à revelia da razão e das decisões internas de paz de ambos os lados, motivou dois exércitos ao suicídio pelo único motivo da determinação histórica estar acima do controle humano. E Tolstoi entremeia um ensaio decantado sobre a vanidade das ações humanas como um observador posicionado 55 anos à frente dos eventos, numa dessas liberdades idiossincráticas típicas de Tolstoi de não estar nem aí para as técnicas do romance europeu, arrebanhando a estultície de historiadores franceses e russos apontando o quanto cada um puxar a sardinha da interpretação da vitória para sua pátria não desanuvia em nada a compreensão dos fatos.

A falta de uma perspectiva real da grandiosidade de Guerra e Paz para a literatura do século XX, seus elementos simbólicos no estudo da História, da sociologia das massas, do poder, sua força premonitória de mostrar a insurgência do massacre desafogador bolchevique, seu caráter chocantemente à frente das correntes modernistas e sua lucidez despercebida, revelam a suspeita de que trata-se de um romance não devidamente lido e inconsequentemene negligenciado.Tolstói não é nem um pouco panfletário, ao contrário dos impulsos didáticos de Dostoiévski que o levaram ao estudo pormenorizado da queda adâmica; o cristianismo de Tolstói é amplamente iconoclasta e investido da concepção de que Cristo é a derradeira figura diabólica (Zizek, A Visão em Paralaxe), enquanto o cristianismo de Dostoiévski bebe do mais profundo ufanismo de povo escolhido da velha Rússia piedosa e primitiva, com todo o seu ortodoxismo canhestro. Tolstói levou às últimas consequências sua concepção da história como um fardo inescapável, conduzindo-se para um isolamento ativo (na medida em que foi pedagogo e anarquista thoureano social amplamente participativo) em que a definição oca de místico demonstra desconhecimento do quanto suas teorias religiosas eram fincadas com os pés no chão, e o quanto obras como O Reino de Deus Está em Vós atribuem-se a um filósofo de peso com a mesma sanguinidade de um Nietzsche do que de um raso pregador evangélico. Tolstói foi menos esotérico na fé no expurgo do pecado através de sua descrição fatídica na escrita do que Dostoiévski, e vemos isso em dois momentos sublimes desses imensos escritores: nas cenas finais de Os Demônios, após a densa viagem do leitor pela atmosfera policialesca e pelas revelações do inferno que há por detrás das realizações políticas, o gênio diabólico da revolução Piotr Stiepánovitch Vierkhoviénski, após a crueldade extrema do assassinato de um inocente em nome da causa revolucionária, encerra o romance de límpida consciência assim como começou, conversando com novos adeptos ao movimento com a mesma paixão imolada pela culpa e incapaz de arrependimento. Dostoiévski aqui faz mais uma vez seu panfletarismo sobre a queda, mostrando didaticamente a lição da cozinha onde a política realmente é confeccionada, sem eufemismos, sem encantos, sem demagogias; assim como amplia o diagnóstico dos mecanismos do poder de submissão político e religioso no discurso do Grande Inquisidor nos Irmãos Karamazov. 

Já Tolstoi, na cena acima mencionada da caçada em Otrádnoie, impressiona por sua pureza narrativa, a sua absoluta ausência como autor das cenas, de forma que toda a carga subliminar aflora da ação, das expressões faciais, da tensão do encontro, da fúria da descrição dos cães atacando o lobo, da forma carregada de reprimido ódio como o servo exímio caçador se dirige com asco latente ao principe que fracassa no cerco à presa. Nessa cena há toda uma pulsão profética sutilmente aterrorizante da virada dos ciclos de dominação em que o dominado pega as rédeas da história e massacra seu senhor que se pressupunha eterno. Há de se descrever minimamente a cena para que se saiba o que estou querendo dizer: saem para a caçada na neve, nas propriedades do príncipe Rostóv, o velho príncipe, seu filho Nicolai, sua filha Natascha, e sua afilhada Sônia, na companhia dos servos caçadores cuja única obrigação que devem pelo generoso direito de sobrevivência lhes dado nas terras do fidalgo é exercerem suas ciências da caça. Os príncipes são seres que trazem a notória distinção de classe nas roupas elegantes, na postura senhorial, na educação primorosa nas melhores escolas européias, no direito de lutarem pela pátria em cargos de comando distantes do perigo dos campos de batalha; as moças são aristocratas belíssimas, rescendendo à doce curiosidade pela vida. Já os caçadores são homens broncos, quase maltrapilhos, misto de selvagens proficientes nas artes do combate contra a natureza, uma espécie de forças cósmicas controladas pela constituição limítrofe em corpos humanos regidos pela intuição perene do chicote e da deportação para a Sibéria, caso queiram burlar a sólida e tranquilamente inamovível paisagem social. Um dos caçadores, de nome Danilo, que demonstra um ódio profundo para com seus patrões e por tudo que lhe cheire a pompa palaciana, depois que o velho príncipe deixa que o lobo fure o cerco, contorna a falha do seu senhor atirando-se junto com os cães por sobre a presa reconduzida. Quando Danilo se aproxima do velho príncipe_ o conde Rostóv_, o conde, por um brevíssimo instante, pressente o perigo atemporal a que os da sua classe estariam sujeitos no desnodoamento cíclico da história dali a cem anos, na fúria de confronto abortada que vê em Danilo.  Mais tarde, à noite, quando todos se sentam em volta de uma fogueira e o lobo, ainda vivo, é exposto para a apreciação amarrado a uma tala de madeira por sobre uma manta de couro, a amenidade do controle habitual se reconstitui tanto na atitude servil de Danilo, quanto do perdão bonachão do conde. 

"O conde lembrou-se do lobo que ele deixara escapar e do seu atrito com Danilo.
  _ Puxa, irmão, quando você se zanga, se zanga mesmo_ disse o conde. Danilo nada respondeu e apenas sorriu, um sorriso infantil, tímido e simpático."

Aqui o leitor prevê o massacre da família Romanóv e tudo que viria a ser a União Soviética e as nações prototípicas do socialismo do século XX. E Tolstói antevê, com sua pureza diabólica, o aprisionamento a que estamos fadados à perene repetição dos reconfiguramentos da História, que nenhum esclarecimento didático sobre sua relojoaria interna fará que pare o seu devir infinito. Na mesma época que Marx, Tolstói descobre por si mesmo que os eventos históricos acontecem primeiro como tragédia, e depois como farsa, numa sucessão inevitável e sob um moto perpétuo. Nisso está todo o seu abandono às suas obras, na velhice, e toda a sua abnegação a tudo que faça parte aos mesquinhos esquemas de dominação humanos, desde a política à religião. Nisso está sua excomunhão e sua negação ao dinheiro e às pobrezas simbólicas de amor à pátria, que desde sempre se lhe revelara ser sinônimo de amor à guerra. E nisso está a força incomensurável da dor da felicidade tolstoiana nas cenas sublimes dos Rostóv descansando-se da caça na aldeia camponesa de Otrádnoie. A dor de que a pairagem de esplêndida alegria infantil naquele contínum de tempo aparentemente desvinculado e refugiado da história está vinculada à consumação da infelicidade futura daquela família já na iminência da falência, em que Natascha sucumbiria à desonra social, Sônia às decepções da solidão da maturidade, o conde ao desaparecimento natural, e Nicolai à volta aos campos da guerra.

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O século que não foi de Tolstói



Eu passei muito tempo amando Dostoiévski, só lendo Dostoiévski, tendo Dostoiévski como a unanimidade mais vantajosa tanto no aprendizado da escrita como dos ângulos mais certos para observar o raivoso e mesquinho diabo humano, de forma que me esqueci quase por completo de que ao lado dele há um outro desbravador de igual ou superior envergadura. Durante o século XX, Léon Tólstoi passou por um curioso processo de esquecimento que, à diferença dos tantos outros autores esquecidos, foi motivado não pela obsolescência e envelhecimento de sua obra, mas por sua imensa superioridade. Tolstói, trocando em miudos, foi relegado a um segundo plano na esfera dos grandes escritores justo por ser o maior de todos. O maior esteta, o compositor do maior painel ficcional de todos os tempos, o narrador por excelência, o dono de uma perfeição excessiva em cada um dos bastiões da escrita que frequentou, de forma que nomes sinonímicos das letras chegam a ficar pequenos perto dele. Era muito mais refinado na concisão lapidar do que Flaubert, nunca tendo sentido o terror que o francês sentia de ser escravo de sua própria técnica; sua memorialística faz com que os romances de formação produzidos pelos autores nos anos futuros percam o ar distintivo de legitimidade; suas fábulas infantis e moralistas são tão cheias de torpezas, degradações, e modelos etéreos de ascensão que dá a direção da literatura fantástica que se produziria no restante do século XX; suas descrições de pessoas  e paisagens são de uma beleza trágica e de uma reverberância para outras profundidades do discurso que é impossível ao leitor, mesmo a dez mil quilômetros de distância, não ter a certeza de que é íntimo das ruas de São Petersburgo e de Moscou, assim como não lhe sai da memória a lembrança detalhada da morte da princezinha e do rosto monumental do velho conde Bezukhov no leito de morte. Cada descrição de Tolstói tem as sombras de Rembrandt. Ser levado por ele através da enorme Rússia com seus mujiques e seus salões da aristocracia, é saber como os leitores do século XIX já sabiam o que era o cinemascope, ao mesmo tempo em que se entende porque Martin Amis disse que Tolstói foi o único escritor que conseguiu reproduzir por escrito a felicidade.

E mesmo assim, estabelece-se a incógnita do por que Tostói foi canonizado e preso a uma redoma de admiração empoeirada por cem anos, tornando-se um desses nomes citados como pontos de grandeza mas muito pouco lidos. No Brasil, por exemplo, até cinco anos atrás era algo de sobeja dificuldade achar alguma tradução de seus três romances principais, sobrando ao leitor persistente a procura por traduções antigas de Anna Karenina em sebos de livros usados, ou a espera de que o ciclo quinquenal de publicações de clássicos da literatura universal feito por revistas e jornais relançasse alguma tradução vertida do inglês. Ainda hoje, eu que procuro Guerra e Paz nas livrarias que visito, só encontro a informação no computador de buscas de que uma edição da obra em dois volumes pode ser importada de Portugal, ou então pode-se adquirir por um preço tirânico quatro volumes da LP&M que, apesar do respeito que tenho a essa editora, não me inspiram muita confiança.

É algo que penso ser motivo de um estudo mais abrangente por parte dos pensadores que se ocupam com os contrapontos ideológicos dos séculos, a razão de por que Dostoiévski foi eleito o representante do então moderno século XX, em detração de colocarem Tolstói como o homem estigmatizado por ter definido por inteiro o século XIX (a ponto de se enterrar na história junto com ele), e, uma nova questão que surge nesses cem anos da morte de Tolstói: a qual dos dois pertencerá agora o século XXI? Em um magnífico ensaio sobre esse assunto, escrito por Joseph Bródski e publicado pela Cia. das Letras no volume Menos que Um, Bródski diz que os autores modernos se identificaram com o conturbado e inconstante Dostoiévski. As vertentes mais importantes da intelectualidade do século XX tomaram Dostoiévski como pai  do homem urbano, exilado, perseguido por poderes institucionais inéditos que os transformariam em números, privando-os do direito à individualidade. Dostoiévski entregou dilapidado aos grandes analistas da alma da humanidade, confrontada pela primeira vez com sua bestialidade desencantada, um novo posicionamento profilático capaz de um certo esclarecimento ao ver para dentro do seu interior de caos e fúria. Em uma simples passagem de Crime e Castigo, em que Raskolnikov anda pelas ruas de Moscou tomado por uma febre cerebral, formulando no curso de seus pensamentos inconstantes a tese pessoal da grandeza que há por detrás do assassinato, há mais do que a gênese de vários procedimentos modernos da narrativa, do stream of consciousness, do relativismo moral, da quebra da linearidade da escrita, do romance coisa desprovido de personagens e ocupado no centro por impulsões do ego, o romance freudiano de Beckett.., há também o sintoma da falta de segurança total proporcionado pelas duas grandes guerras mundiais que lançou o homem na depressão desespiritualizada da modernidade.

Bródski cita o imediatismo da escrita de Dostoiévski (já citado por Nabokov, que disse não haver uma página de Dostoiévski que possa fazer parte de uma compilação de textos representativos), sua falta de uma organização mais apurada da narrativa, seus aparentes excessos que descambam espontaneamente para o grotesco, seu desleixo pela limpidez e fluidez. Exceto na intensidade, Dostoiévski é o oposto de Tolstói, e um oposto que, num primeiro momento, parece diminuído diante aos atributos retilíneos de Tolstói. Tolstói era  não só melhor escritor como melhor homem que Dostoiévksi. Tolstói foi coerente com tudo que  acreditou, até mesmo quando escolheu por puro exercício de campo ser um aristocrata burgues devasso na juventude. Entendia com lucidez os ciclos ontológicos da evolução pessoal, e por isso renegou seus grandes livros, permitindo que eles circulassem livremente nos milhões de exemplares pelo mundo , sem que cobrasse um centavo dos milionários direitos autorais a que teria direito. Em seu cristianismo íntegro, em sua piedade guerreira pelos despossuídos que nada tinha de pedante, criticou duramente tanto a igreja católica por seu niilismo abjeto de culto castrador a um Cristo martirizado, quanto ao evangelismo reformador ganacioso e prostituído pela sede pelo dinheiro; partilhou sua fortuna com os empregados de sua grande propriedade rural, Yasnaya Polyana, distribuindo-lhes a posse da terra. Diante tais ações, foi excomungado pela igreja russa ortodoxa, e olhado com suspeita pelos camponeses, e, no fim da vida, quando parte em exílio voluntário para longe dos interesses surrupiadores de seus herdeiros, morre solitariamente na gare de Astapovo.

Dostoiévski, epiléptico, polemista inconstante que sentia prazer em rebaixar-se diante o inimigo ao pedir-lhe desculpas,  propenso a admirar homens nefastos do alto poder czarista, e cujo cristianismo desesperado revelava toda uma arraigada falta de fé, era, pois, o anti-Tostói. Isso fez a diferença real a seu favor. Em seu eslavismo em cantar a superioridade do povo russo sobre os demais povos da Terra, foi, por contradição, o porta-voz do homem ocidental. Tolstói era centrado demais, seus tormentos espirituais dotados de uma dor cabível em um desenho lógico previa a redenção pelo isolamento e pela fidelidade individual; Tolstói era muito oriental e completo para ser interessante ao mundo ocidental e desfragmentado do século XX. Enquanto Dostoiévski era, geneticamente, o formulador de Mersault, Antoine Roquentin, Thomas Sutpen, Stephen Dedalus, no que tinha de pesadelo, de dissonância, de intriga, de incompletude.

Escrevi esse texto motivado pela leitura de Ressurreição, o último dos três grandes romances de Tolstói que a editora CosacNaify lançou, em 2010, no Brasil. A CosacNaify está fazendo o excepcional trabalho de resgatar Tolstói ao leitor brasileiro, empreitada que tem no tradutor direto do russo, Rubens Figueiredo, sua peça chave. Já lançou a primeira tradução direto do russo de Anna Kariênina, que teve sua primeira edição esgotada, assim como a obra de Tolstói preferida de Harold Bloom, Khadji-Murát, (essa pela tradução também do ótimo Boris Schnaiderman). Os livros tem um acabamento luxuoso, capa dura, fita de seda para marcar a página, fotos, de forma que são belas peças que também servem para colocar em relevância, no tocante de quem as possui, ao menos a decoração da casa.

Lendo Ressurreição aventuro dizer que talvez esse novo século seja, até por saturação à toda herança bem esgotada que o modernismo recebeu de Dostoiévski, o século de Tolstói. Uma surpresa foi a descoberta de que um de meus autores preferidos, Thomas Bernhard, parece ter bebido muito da maneira de escrever de Tolstói, em sua limpidez, sua falta de pomposidades, seu discurso direto e destemido, sua repulsa a se integrar ao modernismo e às escolas da moda, sua forma minimalista de, em alguns preciosos parágrafos, usar da repetição para firmar uma ideia (a diferença fundamental que valoriza essas traduções diretas é notar esse detalhe substancial do método de escrita de Tolstói, completamente apagado nas traduções do francês e do inglês). Talvez esse novo século não suporte mais os modelos de realidade paralela, as fábulas kafkianas, as parábulas distópicas de Orwell, e, aos esclarecidos que ainda restam e aos inconformados, a crítica dura e sem artificação de Tolstói seja a nova arma para confrontar os poderes instituídos. Pois Ressurreição é uma viagem sem eufemismos e sem retoques artísticos aos porões do sistema judiciário russos (e, por derivação, brasileiros), e mais ainda, uma denúncia saturada da corrupção humana, da ignorância e, sobretudo, da crueldade gritante mas oficialmente aceita dos que se omitem.

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O cristão niilista


Rosamund Bartlett diz lá para o final da magnífica biografia que escreveu sobre Liev Tolstói que Tolstói jamais acreditou na vida após a morte, pelo menos no modo como a maior parte dos cristãos acredita na vida após a morte. Isso é uma observação desconcertante para alguém que escreveu um tratado no mínimo original sobre a percepção da existência divina através do espelho reflexo do niilismo depressivo, como Uma confissão. Nesta obra, inédita no Brasil a não ser por um bombástico primeiro capítulo na compilação lançada pela Companhia das Letras em Os últimos dias, o russo mostra bem uma de suas características mais idiossincráticas de escritor: a nudez contrastante a que o grande esteta e um dos mais sofisticados narradores da história chegava quando falava de si mesmo. Neste capítulo, Tolstói se entrega a uma meditação solitária, que se poderia dizer "escrita apenas para si mesmo", num testemunho corajoso de todas as suas fraquezas, de forma que é uma peça de sinceridade que vai além dos auto-vasculhamentos escatológicos de Montaigne. Aqui o artista que colocava todos os outros do mundo no bolso por sua erudição e seu alcance de visão, usa um linguajar que os salões requintados de intelectuais de seu tempo não relutariam em taxar de atrasado e pobre. Por isso é uma confissão, a ante-sala em que se senta o velho Tolstói antes de que assuma, como num novo Eclesiastes, que tudo que escreveu e toda a arte é meramente uma vaidade vazia. Esse capítulo me atingiu em cheio. Eu conhecia parte pequena da extensa obra doutrinária do autor de Guerra e paz, como seus contos da Cartilha, que tem a estatura que tem justamente por serem de uma singeleza desarmante; conhecia sua magnum opus filosófica O reino de deus está em nós, que é muito, mas muito mais do que se convencionou dizer o estado soviético e o padrão cultural do século passado (ambas essas coisas destrinchadas sobejamente por Bartlett na parte final de seu livro), e nada me soou mais verdadeiro de ler e mais revelador sobre a crença de Tosltói que esse primeiro capítulo.

Foi com Uma confissão que Tolstói foi excomungado pela Igreja Ortodoxa Russa. Esse capítulo me pareceu o que Camus sempre procurou escrever em A peste e nos diários de viagens em que documentava sobre a profunda depressão que sentia na fatuidade de suas conferências internacionais. Ler esse Tolstói me remeteu imediatamente a Camus. Quando li o diário da vinda de Camus para o Brasil em 1949, pensei: "esse homem vive em um desejo irrefreável de se matar, e não fazê-lo constitui o pior dos infernos para ele". Em uma parte notavelmente marcante, uma morena brasileira se esfrega nele durante um baile, e ele emprega todas as suas forças para não vomitar (há uma cena semelhante em Os mímicos, em que um personagem de Naipaul sente um asco homicida ao ver a pele de sua amante que lhe parece repugnantemente com um pudim). Pois Tolstói relata que pensou várias vezes em acabar com sua vida, tendo lido Schopenhauer na pré-adolescência e após, em seus 14 anos, ter ouvido, fascinado, um amigo expor para ele e para seu irmão Ivan uma explicação pormenorizada e brilhante de que Deus não existia. Depois disso, Tolstói luta para se manter vivo em um universo que não tem sentido e não oferece o menor lenitivo para que se continue a acordar dia a dia e participar da imensa mentira que faz deste mundo uma prisão de injustiças e assassinatos. Tudo parece para o homem de menos de 40 anos que acaba de escrever Guerra e paz um inferno ainda mais profundo e opressivo que qualquer inferno cristão, pois este se apoia em uma norma comunitária e milenar de fingir impregnar sentido através de sistemas mentais e ritos tradicionais. Tais arquétipos amortizantes do suicídio comunal são, ainda por cima, bastante fáceis de serem denunciados, pois todos eles são contraditórios e escondem uma gritante hierarquia de interesses em manter a maioria da população na ignorância para solidificar um esquema de classes dominantes. Em Guerra e paz já se pode ver essa conversão a um cristianismo pragmático que pretende estancar o absurdo por todos os lados; mas é depois de sua fase grandiloquente (que lhe permite produzir ainda um calhamaço como Anna Kariênina, vencendo sua declarada enorme afasia em labutar em cima de algo que lhe parecia sem propósito) como ficcionista que Tolstói se transforma em filósofo.

Ele lê de tudo. Aprende por conta própria umas cinco línguas diferentes (entre elas o hebraico, o grego e o alemão); em um final de semana aprende o esperanto, crente no intuito de seu inventor de que tal idioma converterá em uma comunidade global todos os povos. A lista de estudos que Rosamund Bartlett enumera do que forma o escopo da fase madura e tardia de Tolstói é um assombro: não só entra em contato com todas as ideias que estão a ser escritas pelo mundo, encomendando onerosas edições importadas, como sua crescente rede de fieis e seguidores lhe manda uma profusão de livros de todas as partes. Lê toda a filosofia germânica e grega; se apaixona ferrenhamente por Rousseau, que é um de seus mestres para toda a vida. Sedimenta suas ambições homéricas, lendo A Ilíada e Odisséia no original. Conhece cada seita sectária da Rússia, visitando seus mosteiros ou seus tolos de Deus indo por onde eles peregrinam. A universalização do conhecimento que traz para si é tão cerceada que nada escapa de seus olhos. Está preparado para, como no conto de Tchécov, A aposta, em que um dos apostadores fica décadas trancado em um quarto sem contato com o mundo, alimentando-se com toda a cultura humana, renegar toda a produção intelectual do homem como simples vaidade. E neste estado de espírito Tolstói atinge a sua primeira de uma série de severas crises transformadoras. Quer deixar tudo, lar, família, propriedade; quer renegar sua obra, abrindo mão dos milionários direitos autorais (era então, o autor mais vendido do mundo); quer arrepender-se ativamente de todos seus pecados como senhor de terras que possuía (e exercia essa posse) as vidas dos seus servos e o corpo de suas servas.

Daí que Uma confissão é o ápice de sua produção intelectual. Hiperbólico em tudo que fazia, cada um de seus livros filosóficos era uma via láctea de milhares de páginas condensadas em tomos editados e vendidos sempre à revelia das proibições taxativas do censor do tsar_ O reino de Deus está em nós, diz Bartlett, tem um manuscrito original de três mil e quinhentas páginas. Mas vamos a o que diz Uma confissão, que pode ser o cerne para entender a doutrina de fé sem recompensas místicas professada por Tolstói. O capítulo único que dispomos revela um Tolstói existencialista, no âmago de seu desespero. Ele diz que pensar na não-existência de Deus o levava às portas do suicídio, pois não poderia viver sem que houvesse um objetivo justo para compensar todas as mazelas da vida. Daí sentia, subitamente, uma reconfortante proximidade de Deus, sem previsão, sem que seu racionalismo incidisse de imediato_ nesse limbo em que a possibilidade se tornava evidente, a vida se renovava para ele, e tudo era plenitude e luz. Mas tais momentos não duravam muito, e sua mente racional cogitativa o lançava de volta às sombras da certeza de que nenhum maravilhamento divino era possível coexistir com um mundo animalesco, regido por leis econômicas selvagens e impulsos nervosos mediados por simples correntes enzimáticas. A solução nestas horas para tanto eco que lhe provocava o opressivo vazio era acabar com sua vida. E aqui vem a parte fundamental de sua escrita: através da razão, ele chegou à certeza incontestável da existência de Deus: se a vida só era possível quando ele era assolado pela lógica divina, era porque Deus é a própria existência. Deus simplesmente não é uma presença extemporânea, que coabita em estado suspensivo por sobre o universo; Deus apenas é. Ele é indissociável do universo. Vivemos Nele, e Ele está em nós. Através dessa leitura magnífica, dessa descoberta suprema, obtida não por meios místicos ou metafísicos, Tolstói calou em si definitivamente qualquer traço de incerteza. Seu esoterismo é tão pragmático, heroico e romântico (em última escala), quanto os crentes sem Deus de Camus, o médico e o repórter que se isolam na Oram condenada pela peste para darem sentido às suas vidas morrendo na tentativa de salvar ou emancipar um pouco do terror das pessoas sentenciadas pela doença. Tolstói chegara a essa descoberta depois de sanitizar os evangelhos, traduzindo-os do grego seccionando os milagres e a magia interpolada, segundo ele, pelas instituições que prostituíram e manipularam sua mensagem ao longo da história, e dando a seus leitores um Jesus humano, um profeta brilhante que contudo padecia, para nossa felicidade, das nossas mesmas fragilidades e insuficiências.

Mas Tolstói se insinua mais do que isso. Como é sabido, ele fazia questão de, em seus grandes romances, perverter as normas da escrita que uma Europa refinada instituía como modelo de excelência. Nas novas traduções do russo, lançadas pelo país nas últimas décadas, vemos que ele assumia uma redundância programada para manter sua independência (influenciando enormemente a escrita de Thomas Bernhard), e não tendo pudores em emendar pregações e reflexões pessoais no meio da narrativa. Impossível, para mim, que o cristianismo de Tolstói tivesse mesmo esse positivismo pragmático ancorado em uma didática pacifista que só ia até onde estivesse um controle social igualitário. Um niilista como fora Tolstói, só poderia suplantar a hipótese do suicídio se conseguisse calar sua limitação em ver além o ponto infinito para onde sua crença se convergia. Sua concepção de Deus é a mesma de Don Dellilo e Saul Bellow, que diziam que Deus era inacessível e sempre será inacessível à nossa terrenidade inexorável, à nossa falta compulsória de credenciais para o absurdo_ à nossa sensaboria extrema. O estado soviético condenou por cem anos as obras filosóficas de Tolstói ao silêncio, pelo alto teor de contestação que elas contêm, e esse olvido alimentado pela difamação de que tais escritos eram de um evangelismo rançoso de velho foi assumido por um Ocidente que se deslumbrava com todos os níveis de escolas do pensamento surgidos em reflexo à decadência moral do homem no século XX. Mas a volta, se é que há, destes textos de Tolstói para o mundo pode estar vindo atrasado demais. Em uma hora em que as sutilezas do pensamento e a fé em uma comunidade humana progressista moralmente desenvolvida é algo inconcebível na grosseria do hedonismo atual. (Rosamund Bartlett escreve, no capítulo final, um panorama valiosamente revelador sobre o que o stalinismo fez com a família e o pensamento de Tolstói; quando viram que a popularidade de Tolstói era algo grande demais para ser excisado sem consequências, eles fizeram que Tosltói se juntasse a eles: além de ser um pai espiritual para o bolchevismo, foi transformado no artista perfeito enormemente equivocado em seu sistema doutrinário, mas modelo de correção e herói nacional.) Há muito no silêncio de Tolstói.

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Tolstói X Shakespeare


Sempre bom descobrir o quanto escritores canônicos podem ser extremamente engraçados. Quem teme ou repudia a literatura não consegue conceber, por exemplo, que autores como Kafka são grandes humoristas, que por detrás da imagem fácil de que o homem de letras vive enredado em sérios debates sobre a alma existe um observador descompromissado tão loquaz e divertido quanto alguém que se oferece para uma fofoca na fila do pão da padaria. Tenho essa realidade como uma das mutilações a que sofre, inconscientemente, aquele que julga como entretenimento genuíno a novela global, o videogame, ou algum dos escapes da internet, e considera sem sombra de dúvidas que a leitura é um tédio infinito.

Pois bem, não quero falar de Kafka, mas de um ensaio intitulado Sobre Shakespeare e o teatro (Um ensaio crítico), do qual ainda sinto o peito desobstruído a os olhos marejados das lágrimas das gargalhadas que estava tendo ha pouco, quando o lia. Seu autor é, ninguém menos, que Liev Tolstói (ééé, os visitantes esporádicos do blog terão que ter paciência comigo), alguém do qual não me é surpreendente a sua veia cômica, já que sei de páginas em seus dois principais romances que não ficam devendo em nada a Thomas Pynchon ou Mark Twain (para citar apenas dois dos mais engraçados escritores). Esse ensaio consta da sensacional compilação de textos tardios de Tolstói, Os últimos dias, publicado pela Penguin Companhia (uma coleção cujo trabalho de editoração é sempre belo e um regalo para quem ama livros). Tal ensaio trata-se de 80 páginas em que o célebre russo analisa as principais peças de Shakespeare com uma parcimônia e dedicação total, narrando enredos, citando sentenças, descrevendo detalhes cênicos, apontando idiossincrasias dos personagens e do autor inglês no ato de composição das obras. 

Como introdução, Tolstói declara que quando jovem, ouvia e lia muitas personalidades importantes falando do gênio absoluto, do inigualável conhecimento humano, e da poesia inalcançável de Shakespeare, mas que, ao começar a ler sua peças, não conseguiu de forma alguma perceber esses elogios e, indo mais longe, só via em tais trabalhos uma falta de talento, uma pobreza estética e um misto de arranjos sem lógica para costurar tramas de pontas soltas, que lhe provocava um peso de consciência e uma sensação de que lhe faltava os méritos devidos de leitor por ser cego a evidências tão nítidas à maioria quase unânime dos que glorificam o bardo inglês. Por essa impressão lhe causar bastante incômodo, Tolstói pôs-se a estudar a fundo a obra de Shakespeare. Leu-a em inglês, em alemão, em russo e em francês; leu todos os estudiosos de Shakespeare e todas as referências feitas a ele. Faz um pormenorizado arrebanhamento de citações da grandiosidade de Shakespeare na introdução para concluir que (aí entra a sua precisa noção do time-in do humor), agora, aos 75 anos, não consegue mais esconder as suas sólidas ideias sobre o que dá a entender ser o grande engodo da cultura ocidental em fundamentar a sua literatura num autor cheio de falhas gritantes.

Aí sim inicia-se uma deliciosa _ e gargalhante_ sequência de exames cuidadosos sobre as peças de Shakespeare. Tolstói não é o único a refutar a excelência de Shakespeare: Bernard Shaw o fez, mas de maneira paradoxalmente séria e ortodoxa para um comediante, utilizando o que para ele era a mais fraca das composições do autor, Hamlet_ Shaw utilizou, durante toda sua vida, a nomenclatura mutilada de "Shakespear", para demonstrar a noção de franca incompletude do criticado. Mas são nessas páginas do russo que o leitor se brinda do encontro de dois dos maiores escritores de todos os tempos, no exercício inédito de descanonização da parte de um deles, que, após uma vida de pesquisas e interação comprometida, se lança ao que, para qualquer outro, seria um desplante abominável. 

Pode-se discordar das invectivas de Tolstói, mas acompanhar a sua implosão de Rei Lear, por exemplo, é um convite a reler a peça com esse novo olhar. Tolstói assinala inconsistência a cada página, aponta erros, imposturas, despropósitos, puras besteiras para agradar a platéia, e assim vai. Já na primeira cena da peça, se pergunta como um rei que amava de forma especial à filha mais nova, Cordélia, e que tinha plena certeza do amor e dedicação desta, a renega peremptoriamente só porque não soube bajulá-lo da mesma forma que suas outras duas filhas, Goneril e Regana (tidas notoriamente por todo o reino como víboras), o que disso faz surgir toda a desgraça e destruição de si e de tudo que o cerca. Toltói salienta como Shakespeare abortava qualquer força e convencimento das cenas por intercalar monólogos longuíssimos e sem sentido do velho Lear a todo momento. Descreve como todas as ações dos personagens não faz qualquer sentido e vão imediatamente de contra a qualquer lógica da convivência. O texto é recheado de análises como as que seguem abaixo:

"Nesse momento, por algum motivo, chega Lear, coberto de flores silvestres. Ele enlouqueceu e suas falas são ainda mais absurdas do que antes: discorre sobre cunhagem de dinheiro, sobre arco, entrega a alguém uma luva de ferro, depois grita que está vendo um rato, que quer atraí-lo com um pedaço de queijo, e em seguida, de repente, pergunta a senha para Edgar, e Edgar na mesma hora responde com as palavras 'manjerona doce'. Lear diz: Passe!_ o cego Gloucester, que não reconheceu nem o filho nem Kent, reconhece a voz do rei."

"Em seguida, Lear pronuncia um monólogo sobre injustiça nos tribunais que é de todo incoerente na boca de alguém enlouquecido. Depois disso, chega um cavalheiro com soldados, enviado por Cordélia para buscar Lear. O rei continua agindo como louco e sai correndo. O cavalheiro enviado à procura de Lear não corre atrás dele, mas por um longo tempo fala a Edgar sobre a disposição dos exércitos franceses e britânicos."

"Em seguida, entra Lear com Cordélia morta nos braços, apesar de ter mais de oitenta anos e estar doente. De novo começa um terrível delírio de Lear, que provoca vergonha com suas brincadeiras sem graça. Lear exige que todos uivem e ora pensa que Cordélia morreu, ora que está viva. 'Com vossa língua e olhos eu faria/ Ruir os céus.' Ele conta que matou o escravo que enforcou Cordélia, em seguida diz que os olhos dele enxergam mal e nesse instante reconhece Kent, que lhe passara despercebido o tempo todo."

As análises seguintes no ensaio são da mesma forma desconstrutivistas e altamente cômicas, o que faz dessa pequena obra de Tolstói uma das mais engraçadas da literatura.

domingo, 7 de setembro de 2014

Um belo erro



Em um registro de início da década de 1970 em seu diário, Norman Mailer se pergunta o que essa geração de escritores de Thomas Pynchon achava que estava fazendo. É fácil ver o realista tradicional que era Norman Mailer, pertencente à escola dos romances de guerra que remetiam a Hemingway e às biografias pretensamente panorâmicas da política dos Estados Unidos, desconcertado diante as experiências inapropriadas que falavam sobre drogas e tinha ritmo de comédia pastelão de O arco-íris da gravidade. É divertido observar o pasmo catastrofista de Mailer com o que lhe deveria parecer a crise absoluta do romance naqueles idos do século passado, com o calhamaço suportadamente lido até antes da metade de Pynchon em mãos. Não podemos culpar a incapacidade de perceber essa faceta do novo em Mailer; poucos escritores estariam na posição de entender o que gente como Pynchon fazia com a linguagem e os temas herdados de outra gente como William S. Burroughs (um ponto deve ser dado para Ian McEwan, que assistiu às conferências de Burroughs em Londres e afirmou que os romancistas ingleses só aprenderam a escrever depois disso). Ainda mais para alguém doente pela grandiloquência como Mailer, que tinha todos os cacoetes e gestos encenados da grandeza literária mais que um direito genuíno a ela, e para quem escrever sobre os temas clássicos da literatura só tinha os caminhos solidamente constituídos pela tradição, não se podendo desviar um centímetro dela.

Hoje, com o painel do romance atual, é indubitável aceitar sem reservas o lugar de Pynchon entre os grandes escritores da metade final do século XX. Uma aceitação que se torna mais esclarecedora ao vermos que a produção desses últimos dez anos na seara da ficção carece dramaticamente de empreendedorismo linguístico, de força revolucionária, da autenticidade do novo, do arrebatamento do estranhismo radical. O que se vê é que os ficcionistas vem manejando as técnicas sedimentadas de 40 anos atrás, e se amparando de uma maneira beirando ao constrangimento na propaganda interna dos elogios recíprocos e nos moldes do que é entretenimento livresco na era da velocidade digital propagada pela nova crítica literária. A quantidade de "melhor romance do século 21", de "grande obra que irá mudar a escrita dos anos vindouros", da "renovação do prazer e profundidade da leitura",  de "maior feito nas letras dos últimos 50 anos", do "novo grande romance americano (e aqui se coloca qualquer outra nacionalidade"), é tão grande que se chega a cogitar em algum software que produza essas sentenças laudatórias sem a mínima compostura quanto à inteligência do leitor e as imprima aos montes nas contracapas dos livros. A impressão que advêm ao consumidor, depois que caem os panos do sarcasmo, é que algo muito sério acontece por debaixo desse arranjo que só tem por fora o tom leve de brincadeira. O que vemos é que, se Mailer estava enganado quanto à crise do romance em seu tempo, agora temos todos os motivos para acreditarmos que tal gênero sofre realmente um momento extenso de definhamento, não do que costumam apontar quanto a interesse dos leitores ou quantidade de gente de alguma relevância escrevendo, mas em seu núcleo mais grave da falta de criatividade. Ou falta do que dizer, ou falta de experiência básica de vida para escrever.

De 2010 para cá li parte considerável do que se vende como grandes romances atuais, e afora um ou outro, nenhum me pareceu nem chegar perto da propaganda que foram vendidos. Tirando a excelência clara de Javier Marías, Philip Roth, o próprio Pynchon no auge de sua produção tardia, os novatos das letras estão fadados ao esquecimento assim que a poeira do marketing se assentar. Eu disse em algum outro texto que sou um leitor passível de constante deslumbramento, e que cada dois meses me deixo arrebatar por um romance. É verdade. Mas é porque ainda resta muita coisa boa para se ler de escritores de gerações passadas que se encontram vivos: Le Clézio, Nooteboom, Vargas Llosa. O perigo é que escritores mais novos, como Eugenides, Chabon, Franzen, começam a pisar em falso com suas novas obras, começam a perder o que parecia ser a força inicial de grandes prosadores que tinham e se deixam escorregar para o ambiente contemporâneo de narrar em livro como se estivesse escrevendo para uma série de televisão. Começam a escrever como Jennifer Egan, com uma excelência técnica relativa que também parece um software em que dá ao público o que convenciona-se que ele queira: agilidade, sombras sobre a mortalidade que são dissipadas com uma lata de coca-cola, sexo depravado com seu adendo indispensável de compensação moralista punitiva no final, diálogos de seres urbanos inteligentes em suas intimidades invioladas de consumidores em apartamentos descolados. Requinte, é a norma da literatura produzida atualmente, e o requinte tem o gosto aspartâmico da profundidade simuladamente alcançada. É uma linha decídua preocupante que o mesmo autor dos magníficos Virgens Suicidas e Middlesex seja quem escreveu a comédia televisiva de erros bastante fraca A trama do casamento; ou que As correções, de Franzen, seja vilipendiada em troca de Liberdade, esse romance chatíssimo e de um pieguismo desaforado, que foi um dos romances que a loteria de realengo da crítica anunciou como o maior do século XXI. (Comecei ontem O pintassilgo, temeroso de que a tão aclamada Tartt seja mais um desses engodos de vendas.)

Michael Chabon ainda está em um patamar acima desses outros companheiros citados. Quem leu As aventuras de Kavalier & Clain e Associação Judaica de Polícia sabe do que estou dizendo (dois desses livros que se tornam paixão instantânea, que só o futuro dirá o quanto a distância temporal os colocarão nas futuras listas pessoais de melhores livros de todos os tempos). Seu último romance, Telegraph Avenue, me pareceu um enigma enquanto o lia. Não sabia mesmo definir, nem na seguridade apraz a todas as confissões difíceis de minha poltrona de leitura, se eu estava gostando ou não desse livro. O fato é que contava positivamente que eu o estava lendo todas as horas, até chegar ao fim; o fato contrário era que me parecia que Chabon, a exemplo do papagaio da parte 3 do livro, que faz uma panorâmica em voo por cima dos dramas pessoais em uma escrita de uma só longa sentença, tangenciava a trama sem nunca entrar realmente nela, às custas de uma demonstração de virtuosismo de mostrar o quanto sabe escrever bem que caía no vazio. Gabriel Márquez dizia que quando estava aprendendo escrever, destrinchar uma página de Hemingway era muito fácil, devido à simplicidade do escritor de Por quem os sinos dobram; já analisar uma página de Faulkner era como desmontar um relógio ultra-complexo e tentar juntar de maneira correta todas as suas partes de novo. Pois partindo desse ponto de vista, o livro de Chabon é uma generosa abertura total do escritório do escritor; neste romance, ele nos mostra à exaustão todas as sua técnicas, suas armadilhas, seus maquinários dos minúsculos aos mais evidentes. Acontece que ele se mostra de forma exagerada, extenuante. Não há uma palavra de preguiça neste livro: tudo é escrito em uma fé em sua eficiência e propósito, com um frescor e inteligência típica do escritor, que é o que me faz pensar que há algo escondido nele que me passou batido, ou que eu ainda não aceitei da forma correta. Como se Telegraph Avenue fosse o Moby Dick de Chabon, um livro que só será reconhecido em suas sutis artimanhas daqui algumas décadas (por enquanto fica no leitor contemporâneo só a miopia dos que  acham que capítulos curtos e ensaios náuticos é pura enrolação). 

Chabon é um mestre. Não adianta virem com essa de que ele parece forçar o humor, etc, etc. O cara é um mestre, é só lerem com atenção. Quando li Associação Judaica de Polícia, havia acabado de ler O mestre e margarida, e eu soube que dificilmente coincidiria novamente ler lado a lado livros que tinham diálogos tão excepcionais. E a profundidade do tema de AJP, a forma como toca em um dos mais caros assuntos da alma, é uma proeza para poucos escritores. De forma que é perigoso analisar Telegraph Avenue com um filtro apenas, o de que Chabon simplesmente errou. No livro, parece que nada acontece: forma-se um cenário espetacular para uma trama que envolve a história do jazz, e os personagens (como em uma parte do livro admite) são bastante pynchonianos, mas isso tudo é abandonado por Chabon. Os indícios da relojoaria do romance são oferecidos também à farta: um dos personagens, negro, velho jazzista, traz em seu bolso uma edição escangalhada e muito anotada de Ulisses, o livro que é uma espécie de cabala para o ensinar a viver. E TA é fundamentalmente o prosaísmo, o provincianismo, a vida não-intelectual e visceral de Ulisses. Mas Chabon quer que todos esses sinais sejam sofisticados, o que não é difícil para ele; quer que o leitor erudito reconheça as migalhas de pão que orientam o traçado de ida e retorno ao labirinto, com a mesma inteligência pop que no novo filme do Homem-Aranha o tema musical do herói é um plágio intencional de Fanfare for the common man, enquanto se é mostrado o cotidiano inglório de um Homem-Aranha combatendo o crime como se enfrentasse o metrô com uma pasta executiva debaixo do braço indo para o escritório (ou, ao que me parece uma isca sofisticada demais para o público alvo de uma franquia francamente inferior à de Sam Raimi, o personagem negro de Electro deixando a sua condição de invisibilidade racial para aparecer nas telas da Times Square  enquanto o fluxo de energia luminosa dos cabos elétricos remete ao esconderijo do narrador do grande livro de Ralph Ellison, que se escondia em um depósito subterrâneo da Companhia Elétrica).

Em uma página do romance pode-se colher uma série de referências pop e da história dos EUA, assim como em Ulisses temos a mesma coisa em referência à história da Irlanda e da Europa. Jethro Tull, Return to Forever, as convenções partidárias de um incipiente Barack Obama, o sistema de saúde americano com suas intersecções com uma obstetrícia ainda medieval, a velha exploração sobre a onipresença cultura do fast-food e das indústrias do entretenimento na personalidade e no modo de pensar e agir dos personagens. O que se sente no romance de Chabon é essa euforia, essa ilimitada vida e ruído urbano de Joyce, suas camadas de infinitas correlações inteligentes que o leitor parece adquirir a capacidade quase tegumentar de perceber_ há aquele ganho atrasado de compreensão em que tudo parece desconexo e tumultuado mas que páginas adiante de súbito se nos revela, o que Chabon se mostra exímio em fazer.

Mas é impossível não desejar que Chabon tivesse contado realmente a história dos personagens, tivesse amarrado todas as pontas que ele deixou soltas. Os personagens são maravilhosos, prometem muito: os donos da loja de discos antigos de jazz que está para fechar as portas por causa da chegada da megastore, o vereador mandrião que promete ajudá-los mas que só faz acentuar ainda mais o fim, o filho homossexual, o filho bastardo, o velho pianista de jazz que tem um papagaio sábio chamado Cinquenta-e-Oito, a mulher grávida que trabalha como parteira e que cometeu um erro no exercício da profissão. E por aí vai. Chabon poderia ter feito o que anuncia fazer: ter sido francamente pynchoniano e joyceano nesta obra que é uma clara demonstração de amor a esses dois escritores. Chabon deve ter algum propósito. Talvez esse seja o mais humano de seus livros, o mais pessoal, por Chabon ter recorrido à voluntariedade de dizer que esses seres humanos pueris, sem nada de muito interessante, sem nenhuma relevância, falidos e à procura da felicidade instantânea, são o que realmente importa, são o emblema de uma certa e factível continuidade do homem. E dizer dessa forma, nesse experimentalismo inusitado e ousado de incorrer no erro de não ser entendido, é um ato de renovação da escrita que situa Chabon acima dos arquétipos previsíveis do que se vem fazendo na indústria da escrita atual.


sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O pintassilgo


Tanto se fala de Donna Tartt, e mais ainda de seu novo romance, O pintassilgo, que estou ansioso para conhecê-los. Estou em uma dessas semanas em que fico absolutamente sozinho em casa, à mercê da música, da escrita, da leitura e dos pratos de solteiro preparados aventureiramente à noite. E hoje me chega o pacote da Companhia das Letras, que vem em ótima hora. Vou iniciar a leitura de O pintassilgo na segunda-feira; quem estiver passando por esse blog que queira testar se Tartt é essa grande escritora de que tanto se fala, e que tal best-seller e vencedor do Pulitzer seja mesmo a tão aclamada obra-prima, lendo concomitante comigo o romance, poderemos no post da minha resenha talvez debater sobre o assunto.