sábado, 30 de julho de 2011

Someone's knockin' at the door/ Somebody's ringin' the bell


"Ao penetrar na terra, fiz tábula rasa de tudo, menos da minha mente. Da minha mente. E a mente que concebe um projeto de vida não deve nunca perder de vista o caos que levou a tal projeto. Isto vale tanto para as sociedades como para os indivíduos. Assim, tendo tentado dar forma ao caos que mora no cerne de nossas certezas, devo agora sair, emergir. E ainda há um conflito dentro de mim: há uma metade de mim que afirma, junto com Louis Armstrong: "Abre a janela e deixe o ar viciado sair"; enquanto a outra afirma: "O milho era bonito de verde, antes da colheita". É claro que Louis estava brincando, ele próprio nunca deixaria sair o ar viciado, pois isso acabaria com a música e a dança, e a música que saía do ar viciado do seu pavilhão de ouro era música da boa; e isso é tudo que importa. O ar viciado está aí, na música e na dança, com a sua diversidade_ e eu estarei por aí, com a minha. E _ como já disse antes_ cheguei a uma decisão. Vou me desvencilhar de minha pele velha e deixá-la aqui, na minha toca. Vou sair por aí, embora nem por isso me torne menos invisível. Mas vou sair, mesmo assim. Acho que já não era sem tempo, pois, pensando bem, até na hibernação existe o risco do exagero. Talvez seja esse o meu maior crime social, o de ter prolongado demais o meu tempo de hibernação. Pois existe uma possibilidade de que mesmo um homem invisível tenha uma responsabilidade social a cumprir.

     _ Ah! já estou ouvindo vocês... Então foi tudo conversa fiada, tudo cascata...! Ele só queria era uma platéia cativa para os seus delírios!

      Mas isto só é verdade até certo ponto: invisível e sem substância, voz incorpórea, por assim dizer, que outra coisa me restava fazer? Que outra coisa, além de tentar lhes explicar o que acontecia comigo, nesse tempo todo em que vocês não me viam? Eis aqui o que realmente me assusta:

      Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu não falo também por vocês? "
                             
                  Ralph Ellison, Homem Invisível, tradução de Márcia Serra, editora Marco Zero, pp. 498-499

quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Passo que se Apressa


Ontem assisti ao Sonhos Eróticos de Uma Noite de Verão, de Woody Allen. Está longe de ser o melhor filme dele, aliás julguei-o tão ruim que só foi possível assistí-lo até o fim em duas partes. Mas, como em todas as obras de pouca inspiração, há uma fagulha de angústia genuína, quando o personagem interpretado por Allen revê após anos a personagem interpretada por Mia Farrow. Todo o filme se passa numa casa de campo, no que imagino ser a Inglaterra dos anos 1900 ou 1910, e é lá que o casal, que só se viram num momento crucial de suas juventudes, é absorvido pela pesada sensação de perda diante a realidade de que o beijo que deixaram escapar à beira do lago, naquele longuínquo tempo, poderia ter determinado que fossem felizes juntos. Mas agora, o personagem de Allen está casado com uma mulher frígida, tendo que derivar suas energias sexuais acumuladas para suas invenções tresloucadas de descascadores de maçã e instrumentos voadores, e a personagem de Mia se casará com um gênio acadêmico com o dobro de sua idade no dia seguinte. Nada podem fazer diante o momento sublime não consumado, mas seus diálogos fugidios_ a exasperação alleniana por sua timidez idiota em não ter dado o beijo_ revelam que a vida de cada um fôra só a acomodação às contingências, um prosseguimento nas trivialidades cotidianas que o lapso daquele crime temporal havia resultado.

Assisti a essas coisas com o coração na mão, como dizem. Eu, à beira dos 40, com dois filhos e uma mulher com os quais sou absolutamente feliz em amplos sentidos. E tais cenas fizeram voltar a lembrança do que sempre imaginei que iria ser o motivo de uma vida derrotada. Com meu romantismo ainda não decantado e ridicularizado o suficiente, antes de me casar eu girava como um galo pela cidade, e nas voltas trôpegas pelo caminho de casa, de madrugada, eu me deparava como em sonho_ como naquelas alucinações fellinianas de retalhos da infância provinciana_ com um velho sentado num tamborete desconfortável diante a televisão, no quadrângulo desconsolado de uma porta aberta para a rua, num casebre de esquina de paredes de tijolos crus. Ele não me via; mostrava-se tomado por completo pelas forças de algum antigo e já cordial arrependimento, para o qual, contudo, o ruído da televisão servia para manter essa sua companhia sonolenta, retirar desse seu fiel capataz qualquer afã em elevar a voz; seu olhar vago, sua boca entreaberta_ a boca de um velho_, mostrava a calma astúcia de quem já conhece e domina as manhas de seu companheiro. Eu partia dali acelerando os passos, policiando-me para que não alcançasse aquele lugar novamente, mas o velho sempre me encontrava.

Quando eu fazia o curso de veterinária, apaxonei-me de forma doentia pela moça mais bonita e inteligente da turma. Acho que não tem nenhum mal dizer que se chamava Adriana. Eu passava as aulas olhando o seu perfil, estudando-lhe os gestos (meu deus, não consigo tirar esse tom demodê do texto!). Quando soube que ela fazia estágio no departamento de Reprodução Animal, inscriví-me como voluntário para auxiliar nas pesquisas. Assim, consegui a felicidade de sermos nós dois os últimos a deixarmos o prédio, à noite. Acompanhava-a do ponto de ônibus até o seu prédio. Claro que ela sabia da minha devoção. Ela era toda recatada, centrada nos estudos, falava num português impecável e mesmo que nós passassemos fins de semana em seu apartamento corrigindo material de pesquisa, havia um filtro de polidez entre nós que dava uma qualidade de cinemascope a toda brincadeira. Por vezes ela me fazia sentir ser o adolescente de Verão de 42 (e ela se parecia demais com a Jennifer O´Neil). Como sempre em minhas atitudes, havia uma pedra basal de farsa por debaixo daquele platonismo. Numa noite mais impulsiva, quando já eramos íntimos o bastante para sentirmos a falta da companhia um do outro, confessei em palavras ordinárias que a amava. Ela aludiu à áurea fantasmal de um amor oculto, para o qual ela ainda simulava fé, para dizer que entre nós não poderia haver outra coisa que amizade. Disse que nossas índoles eram avessas demais para dar certo, eu com minhas aptidões de ex-estudante de jornalismo com os cabelos compridos, e ela com sua disciplina em conquistar um lugar no mundo por si mesma. Mas pelos próximos meses ela ficava em estado de êxtase. Eu havia sussurrado ao ouvido dessa Nádia as palavras eólicas do conto de Chécov: amo-te Nádia; amo-te Adriana. Eu tentava beijá-la, sentindo o perfume de seus cabelos, mas ela sorria de completa e faceira alegria ao desviar o rosto. Eu escrevia poemas todos os dias para ela_ uma coisa me veio agora, deixei de escrever poesias para sempre por causa dessa ilha espiritual_, e lhe entregava. Instruí-a na leitura de romances. Lemos praticamente juntos, ela deitada em meu ombro, o Finado Matias Pascual, cuja personagem também se chamava Adriana e também era belíssima. Enfim, em circunstâncias outras, estava ela sentada na bancada da sala de pesquisas e eu em pé diante ela. Toda a turma estava na sala de aula ao lado, assistindo as explicações de um mestre argentino. E eu disse: não seria ousado que justo hoje você me cedesse um beijo, com tanta gente que poderia nos flagrar? Ela disse um massacrante pois bem que me fez aproximar os lábios dos dela, sentir-lhe a respiração opressiva. E...me neguei. Só isso: me neguei. Rimos nosso riso com um pouco menos de brilho de quando o cinema acaba e o cinemascope é suplantado pela luz da rua miserável nos fundos da saída. Eu namorava um outra menina então, coisa que ela ainda não sabia, e acho que foi por consideração à outra que não lhe beijei. Depois ela nos viu sentados no pátio, e teve um comportamento tão díspare de choque, que tive que atender às suspeitas da namorada contando que eu  a amara uma certa vez, há muito tempo, esqueci não te preocupes. Uns dois anos depois, na festa de formatura, ela me tirou do baile, me levou para um canto no jardim onde ninguém, só o meu remorso, poderia nos ver, e ela estava linda de uma forma absurda, linda de uma forma trágica que me fez pensar o quanto eu teria que remodelar todo o planejamento para minha vida dali em diante se errasse o passo. E...me neguei.

A juventude nos faz pensar assim, ser possível morrer por um momento desperdiçado. Tentei imaginar depois como seria seu beijo, mas nunca consegui. Em vários momentos teria dado tudo por aquele beijo. Ontem, porém, o filme de Allen tanto me perturbou quanto me arrefeceu. Por detrás dos personagens de Allen e Mia, haviam Allen e Mia.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O Homem Mais Perigoso do Mundo

 
 
Há um conto de Saul Bellow intitulado Como Foi Seu Dia que trata da visão de uma simples dona de casa americana quanto ao grande portento intelectual e filósofo acadêmico do qual ela é amante. Esse pensador moderno, altamente graduado nos níveis universitários, conversava de igual para igual com Hannah Arendt, desenvolvera uma teoria de reinterpretação original dos escritos de Marx, fazia congressos pelo mundo inteiro e era um aficcionado por boas doses de whisky para encerrar o dia. Em suma, era um astro mundial das ideias, algo equivalente a um Mick Jagger cuja atração exercida sobre um extrato específico do mercado de entretenimento era proporcional ao que fazia alunas pós-adolescentes e mulheres de meia idade se curvarem diante a sua imanência sexual de crueza masculina subjacente à imagem consumível de cérebro infatigável. Bellow, com sua contumaz energia em tecer frases iniciais disfarçadas sob a mais insuspeita trivialidade, começa o conto assim: Assoberbada por dúvidas, seduzida por seu espírito inquieto, Katrina Goliger iniciou uma viagem que não deveria fazer. Tendo encerrado a jornada pelas quatrocentas e tantas páginas de Em Defesa das Causas Perdidas, me veio à mente a lembrança desse conto e a convicção de que Slavoj Zizek é o amante ultra-cerebral de Katrina Goliger. O auge do conto de Bellow é uma cena num avião em que os dois, Katrina e seu Zizek, passam bem próximos da morte. Por um momento, entre as descrições de uma vida milionária em vários sentidos (tanto financeira quanto a da quantidade de holofotes projetados), o conto nos mostra o significado fugidio e atordoador que surgiria caso a entidade fosse pulverizada por um acidente inesperado que só é factível acontecer com simples indivíduos. Se o grande pensador morresse na queda de um avião, quantas possibilidades redencionistas seriam abortadas para o futuro político do mundo, repetindo uma nota de rodapé no livro de Zizek que nos passa a dedução de que a realidade atual, em seus diversos niveis, surgiu das ideias escritas em quartos às vezes paupérrimos por homens isolados? Ou, apreendendo a lição de Conrad em O Coração das Trevas, quando Marlow falseia à noiva abandonada por Kurtz que as últimas palavras dele foram dirigidas a ela: o que isso importa?, os céus e a terra continuarão sem nunca terem percebido qualquer vã intrusão humana em sua eterna existência.

Um jornal chegou a alegar sobre Zizek que ele "é o homem mais perigoso" sobre a face da Terra. Uma leitura mesmo leviana de seus textos não deixa prever a verdade de uma tal afirmação, não pela acurácia do leitor em se deixar levar pelo lado pop de suas referências entremeadas a filmes de Hollywood, que suavizam sua defesa condicional a Stalin e Mao, e não por se ficar apenas na apreciação retórica de sua afirmação de que o erro destes homens foi não terem sido radicais o suficiente, mas porque o mundo de hoje é absolutamente impermeável a se deixar se fundamentar por novos pensadores isolados em quartos paupérrimos. O livro de Zizek é sim ótimo; lê-lo é retornar um pouco à impressão de segurança que os textos de Nietzsche davam na juventude, quando se era possível participar de uma postura de reação sem precisar se auto-policiar contra o cinismo. Traz a mesma sensação de permanência que eu sentia ao atravessar todo o centro da cidade à pé, num fim de tarde de céu carregado de nuvens de chuva, enfebrecido pelas palavras impossíveis de A Gaia Ciência. Tirando a sua teorização às vezes pesada sobre Lacan, que condiz a uma das duas "causas perdidas" do título (ele que é abertamente freudo-marxista), seu texto pode ser lido com a mesma velocidade interessada que se lê um romance ou um ensaio de temática mais solta. Mas surge uma série de problemas para o leitor maduro, aquele mesmo que, após os 30 anos, se delicia mais com a música de Niet do que com o que ele verdadeiramente queria dizer, que já está emancipado (infelizmente, às vezes) das retóricas wagnerianas e das peregrinações por vales e montanhas atrás da Verdade_ que já está atolado pelas Verdades a ponto de olhar mais com piedade resignada do que com exaustão para as lombadas dos livros na estante. Para esse leitor, a música de Zizek, menos bela que a do alemão, não basta como teria bastado numa leitura de há vinte anos. Seria como a mesma incapacidade de se satisfazer com um espetáculo de malabarismos em que fica evidente demais para a platéia que as facas lançadas no ar podem tanto matar o artista quanto os espectadores nas arquibancadas. 
 
A Experiência atrapalha bastante quando Zizek, carregado da mais elétrica batuta retórica para fazer sua orquestra tocar a sofisticação bombástica de seu concerto, relativiza Mao dizendo que Mao fôra "genial" ao instituir contra si mesmo a Revolução Cultural na China, num golpe de adstringir o regime e centralizar em astuta reviravolta o poder em suas mãos. Zizek poderia ser o homem mais perigoso do mundo se o mundo caísse no seu acentuado poder de sedução_ se o mundo fosse uma Katrina Goliger estupidificada, calmamente, como uma gata de raça refestelada no colo generoso do dono, diante a encarnação humana da plenipotência_, pois Zizek requer uma lucidez de analista de mercado por parte do leitor para que esse perceba a especulação feita num universo virtual que quer valorizar os objetos materiais às custas de suas representações subjetivas. Zizek ataca onde está a ferida, seguindo a técnica de conseguir legitimidade por ser o primeiro a apontar o cisco no próprio olho, aceitando que Mao fez morrer dez milhões de camponeses chineses na grande crise agrária de 1958-1961, mas aos poucos fazendo escorregar esse fato brutal para o ralo das estatísticas puristas lavadas de significados, e transformando, com sua simpatia de promover a distração textual através de interpolações cinematográficas e outras paradas no universo pop, esse dado numa recorrência logística da História, um dado que, se Mao tivesse sido mais radical, teria se justificado no futuro. Dez milhões de pessoas mortas da forma mais cruel imaginável (de fome!), que teriam alçadas ao escalão de mártires nacionais quando a etapa final do pesadelo fosse compensada na aportagem da sociedade igualitária perfeita. E quantas etapas seriam aceitas mais? E se o grande avatar mais radical de Mao cometesse uma pequena distração no arranjo cronológico para a Shangri-Lá verdadeira, e outras dez milhões de pessoas fosse necessário atirar no sacrifício? Ou outras vinte milhões? Imaginei várias vezes a vergonha que eu sentiria se, na Flip, eu dirigisse essas perguntas a Zizek, pois outra face de sua astúcia é o de, à força de sua inexorável teorização técnica, descartar com humor as investidas diretas e simplórias. Trazer todo o seu pensamento situado nas mais altas esferas do discurso psicanalítico e de teoria política, para esse horizonte colegial de nenhuma luz estroboscópica (apenas os 100 vatz que me serviram para ler suas palavras no quarto)?
 
Numa parte de seu livro, ele se dedica em trinta páginas a responder às críticas de Ernesto Laclau à suas ideias. Laclau escreveu que Zizek esperava a aparição de marcianos no cenário da história atual para refazer com mérito sobre-humano os descaminhos das versões pragmatizadas do marxismo. Ou seja, Laclau ironizou a leitura mais superficial de Zizek_ a da retomada do ponto zero, ou o ponto um, das intenções ainda imaculadas dos grandes reformistas socias da esquerda, Trotski, o jovem Stalin, Lenin, o jovem e o tardio Mao_, insinuando que a humanidade não faria aparecer nenhum elemento de seu comportamento fartamente padronizado de assassinos políticos que fosse virginal o suficiente para não ser engolido pelo mal do poder absoluto. Zizek usa de uma parafernália de termos do mais hermético vernáculo acadêmico para dizer que Laclau não soube ler seus livros, e que Laclau perverteu por completo os conceitos criados pelo seu mestre Lacan. Zizek se enfuna num linguagem tão maçônica, carregada de palavras copuladas (grande-Outro, negação determinada, diegético real, etc.) e termos específicos; lança-se num lago de Narciso particular tão velado, que dá a impressão ao leitor que deveria ter pulado aquelas páginas por não lhe serem dedicadas. Sai-se dessas páginas se conjugando à possível verdade da contra-acusação do autor de que Laclau não entendeu o que ele quis dizer, porque fica parecendo que o significado dessas passagens de Zizek é mesmo além do entendimento. São corpos linguísticos que deveriam ser assimilados osmoticamente, para avalizar em maior grau a importância do autor, que, olhem só, escreveu um livro com tantas outras páginas salutares e divertidas, tantas passagens anedóticas e engraçadas.

Um aspecto imprescindível para o entendimento de que Niet é o grande pensador que é, é a de que morreu louco. Sem a loucura, Niet não teria a estatura que tem hoje. Uma longa vida com uma morte pacífica teria relegado Niet a um simples autor provinciano, que em um momento patológico escreveu assombrações mentais cuja cura as converteram em excentricidades datadas. É pensando no Niet com o cérebro consumido pela sífilis que sabemos interpretar com uma carga incomensurável de beleza e fé numa distante humanidade do porvir sua aforística contrária à ralé germano-burguesa, sua poética de insistir cansadamente de que um dia, "irmão", nos encontraremos numa linha temporal em que a pureza conseguida pelos sofrimento nos autenticará como homens puros. É graças ao velho Niet que podemos acreditar que seria bom se a humanidade como a temos hoje desaparecesse em sacrifício imolador para o surgimento do Super Homem. (Também é graças à morte precoce de Bernhard que seus romances são tão iradamente essenciais.) Porque essa certeza determinada de que não existe mais quem proferiu essas incorreções políticas retirou tais textos da gravidade normativa dando-lhes um caráter de expurgo quase sagrado, de catarse acima do certo e do errado, transformou o que a saúde teria configurado como crime num diagnóstico de iluminado potencial premonitório. Sabendo que não existe uma personalidade à espera das compensações ordinárias ligadas à partidarização e à pertença grupal (Niet dizendo que a raça alemã era a fraca, e a judáica a que se fortalecia ainda mais por quanto mais agruras se submetia), fica estranhamente plausível aceitar o próprio fim para que chegue a época redentora (a cena final de Gran Torino). Tudo o mais que em nosso tempo, as forças da saúde consolidadas e das confortáveis posições de atos de ofício estabelecidas, fala sagazmente sobre extermínio, assassinatos, em nome da biopolítica, em nome da história futura em que os fins justificam os meios, soam o que realmente é: um pragmatismo alienado do sofrimento infligido ao outro desabrigado e desprotegido, para assinar a vaidade intelectual do que está abrigado e protegido pelas instituições oficiais do saber.

Lendo Zizek, que é realmente uma leitura essencial para se compreender nossos dias, vejo o quanto há de contraditório nos lances de suas ideias. Ele trata de algo fundamental: a não aceitação pacífica de vitória total do capitalismo. Para afirmar a unanimidade capitalista, ele lembra de uma banalidade despercebida: há 30 anos não se usa mais a palavra "capitalismo". É difícil ver seu emprego nos textos correntes. Ele instiga à re-criação de uma nova esquerda, não essa que está aí que, como salienta sarcasticamente, "com essa esquerda não precisamos mais da direita." Sua proposta é de uma esquerda auto-elucidada ao extremo sobre seus imensos fracassos, e não escamoteadora de suas culpas; uma esquerda que antecipe as críticas da oposição expondo suas vilanias na cara. E é aqui que, para parafrasear T.S.Eliot, cai a sombra entre a intenção e a ação dos textos de Zizek. No meio da brilhante reificação das grandes utopias e das grandes ideias sociais, Zizek falha enormemente em se negar a voltar ao ponto zero para pular direto ao ponto um. Incapaz de sacrificar por inteiro os heróis dessa esquerda corporativa e auto-negligente que ele tão magnificamente condena, Zizek se encolhe no abraço aos seus ídolos juvenis, e tenta restabelecer Lenin, Stalin, Mao. Assim, ele cai na contra-produção da base de sua teoria, a de que os grandes sonhos de emancipação humana ainda são possíveis. Contradiz-se por mostrar flagrantemente que não sobrou nenhuma dogmatização no edifício icônico da esquerda, por isso tendo que disfarçar em milhares de palavras que Stalin, Mao, Lenin, Trotski, se prestam a serem os alvos religiosos de um novo caminho, desde que o assecla demonstre uma fé inquebrantável de dirigir suas orações às fácias virtuais desses santos quando eles ainda vestiam suas túnicas, antes de terem sido tentados e caídos na mais completa devassidão demoníaca. No fundo de sua estatura filosófica, Zizek não faz mais que cometer o pior pecado atribuível a um historiador: fazer a pergunta "e se?", cogitar da história hipotética. E se Lenin não tivesse morrido em 1924?; e se Stalin não tivesse subido ao poder?; e se Mao tivesse aberto a economia da China? Zizek mostra a grande preguiça ou insuficiência de se pensar em algo absolutamente novo, caindo assim numa mistificação perigosa. Numa determinada parte de seu livro ele relembra uma frase de Hegel, de que não é bom conhecermos demasiado. Uma advertência quanto ao excesso de esclarecimento (algo que Adorno também intuíra). Mas seu intelecto turbinado, seu excesso de conhecimento, o faz pouco auto-referente. Incrivelmente não vê que caiu na cegueira de que "o que é bom para os outros não o é para mim". Não vê que ele é o homem ultra-instruído, alguém que pode ficar confortavelmente fora da história, em sua casa refrigerada, em sua sala de professor de frente a um dos mais belos cenários do mundo em Liubliana, alguém que detêm o que milhões de vítimas do poder do século XX sequer sonhavam conseguir: a proeminência da palavra. Quer ser retrógrado na pesca do antigo iluminismo, mas perde de vista o "coração terno" do qual Checov falava.

terça-feira, 19 de julho de 2011

A Aventura de Shostakovitch Durante o Interrogatório na KGB, em 1937

 
Deram-me um passe [de segurança] e fui para a sala [do NKVD]. O investigador se levantou quando entrei e me cumprimentou. Foi muito amistoso e me convidou a sentar. Começou a fazer perguntas sobre minha saúde, minha família, o trabalho que estava fazendo_ todo tipo de pergunta. Falava de maneira muito amistosa, receptiva e bem-educada. Então, de repente, perguntou: "Diga-me, conhece Tukhatchevski?". Eu disse que sim e ele perguntou: "Como?". E eu disse: "Num dos meus concertos. Depois do concerto, Tukhatchevski foi ao camarim me parabenizar. Disse que gostava da minha música, que era meu admirador. Disse que gostaria de me encontrar para conversar sobre música quando viesse Leningrado. Disse que seria um prazer discutir música comigo. Disse que, se e fosse a Moscou, gostaria muito de me ver." "E com que frequência se encontravam?" "Só quando Tukhatchevski vinha à cidade. Costumava me convidar para jantar." "Quem mais estava à mesa?" "Só a família dele. Familiares e parentes." "E o que discutiam?" "Música, principalmente." "Política, não?" "Não, nunca falávamos de política. Eu sabia como eram essas coisas." "Dmitri Dmitrievitch, isso é muito sério. O senhor precisa se lembrar. Hoje é sábado. Vou assinar seu passe e o senhor pode ir para casa.. Mas, ao meio-dia de segunda-feira, tem de volta aqui. Não se esqueça. Isso é muito sério, muito importante." Entendi que era o fim. Aqueles dois dias até segunda-feira foram um pesadelo. Disse à minha mulher que talvez não voltasse. Ela chegou a me preparar uma bolsa, do tipo que se prepara para quem vai ser levado. Colocou roupas de baixo de inverno. Eu sabia que não ia voltar. Fui até lá ao meio-dia [da segunda-feira] e me apresentei na recepção. Havia um soldado lá. Dei-lhe meu passaporte [interno]. Disse-lhe que fora convocado. Ele procurou meu nome: primeira lista, segunda, terceira. E disse: "Quem o convocou?". Eu disse: "O inspetor Zakovski." Ele disse: "Ele não vai poder atendê-lo hoje. Volte para casa. Nós o chamaremos". Devolveu meu passaporte e fui para casa. Só mais tarde, à noite, soube que o inspetor fora preso.

Disponível em inglês em: 
http://www.siue.edu/~aho/musov/basner/basner.html

(Citado em Em Defesa das Causas Perdidas, de Slavoj Zizek, tradução de Maria Beatriz de Medina, Boitempo Editorial, pp. 251-252.)

sábado, 16 de julho de 2011

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Contoscionismos, contosnanismos, contoscos

                                                                       I've got the spirit, but lose the feeling
                                                                                                           Joy Division


Vocês vão dizer que eu deveria ter usado de maior consideração diante o convite de Lália Mendonça para que eu fizesse parte da reunião para a sua morte. Claro que jamais seria a mesma festa involuntária que a Lália conseguia transformar desde as conversas mais triviais até os encontros mais obscuros de nossa classe de profissionais, quando a sua risada escrachada e sua falta total de boas maneiras colocava tudo a baixo, até o repúdio que eu sentia pelo que sempre achei ser a propensão de Lália  para a pobreza. Mas, alguma vez, olha a ironia da coisa, das vezes em que eu era tocado pelo absurdo de sua falta de respeito aos padrões de fé cotidianos, eu devo ter soltado a frase: “Ah, Lália, tu transformarias até um funeral em uma festa.” Ao que ela, tão encalacrada no presente onde reina o terrível engano da impunidade quanto eu, deve ter emitido outra de suas gargalhadas de matrona colombiana, e concluído com uma de suas frases habituais: “Não estamos aqui somente para viver, Epaminondas?” E agora o cartão branco no formato de uma carta de espadachim em miniatura, com as letras ornadas de dourado, paira em minhas mãos, com aquela rispidez equivocadamente súbita que mal esconde a premeditação do destino em cair do restante de contas para se pagar, propagandas de cosméticos e de canais de TV a cabo, algum ou outro pedido manuscrito ou escrito numa tipografia caseira de mimeógrafo para socorro de um doente, cai na palma da minha mão e não tem como eu não ler com uma espécie de pesar, um pesar seco, vigoroso, que pretenderia, se fôssemos super-homens ou semi-deuses com o domínio do passado, voltar ao tempo até a data em que tudo começou a ruir na vida da Lália, e resgatá-la, resgatá-la de sua pobreza, de sua ingerência aos mais prosaicos artifícios da vida, do câncer que lhe comia e que destinava a última mordida para a sexta-feira de seu convite em que ela tornaria a se apresentar ao mundo, para que então aquele convite não contivesse o absurdo com que uma Lália demente escrevera em palavras cheias da mais vazia alegria.

Por isso digo a vocês que aquilo acabou com o meu dia, o que por si mesmo já era um gesto de consideração ao sofrimento de Lália. Nesses últimos meses _ anos, sejamos precisos_ as coisas não andaram bem para nenhum de nós, intercomunicadores com o Além. Tanto que aquilo que os outros chamam de padrão de vida decente deu uma decaída severa para mim, que tive que me mudar de seis residências ao longo de dois anos, obedecendo a uma linha descídua de quitinetes com vistas para a praça da matriz, um apartamento de dois quartos num bloco em San Diego, e, por final, esse quarto-sala nos fundos de uma pensão familiar remodelada para ser um refúgio provisório para quem não quer dar as caras por algum tempo. O locatário, um homem de uns sessenta anos, com um dos olhos mortos (não me recordo se o direito ou o esquerdo), e uma voz sumida de alguém que teve das suas com drogas pesadas ou foi exposto à violência na infância (os espíritos se negam a voltar aos bons tempos de celebração da fofoca), nem sequer me olhou por mais que o segundo suficiente para saber a quem cobrar se atrasar o aluguel, com sua indiferença alheia que indicava ser um profissional a quem se deveria valorizar aquela espécie própria de resguardo sigiloso. Na desgraça somos todos cordiais, pensei, enquanto arrumava minha mesa redonda do lado mais próximo à janela (para caso os espíritos continuassem renitentes e tivesse que recorrer a uma insinuação teatral com as luzes de fundo), minha penteadeira remodelada, e minhas caixas, de forma a aproveitar da melhor maneira o espaço. Todos iguais, a ponto de não me preocupar mais com os irritantes detalhes das minhas roupas ditas extravagantes. O locatário, nem o rapaz do caminhão de mudanças, fizeram como se importassem com minha calça de sarja com as cores da aurora boreal, e minha camisa de mangas longas sem gola e aberta até quase a meio peito, e nem tão pouco meus cabelos enrolados sem muito empenho numa fita de cetim azul (há quanto tempo não dedico a eles um banho de química revigorante), mas tem sempre aquela eletricidade fagulhar, aquela catalogação rápida de resolver a questão em que lhes aparece pela cabeça “uma bicha”, para encerrar o assunto. Mas o velho locatário em sua perícia de não transparecer que vê nem com o olho bom, não demonstrou qualquer recalque diante meu estranhismo. Talvez seja ingenuidade da minha parte achar que alguém possa ser estranho hoje em dia, e o velho é que tem a verdadeira presença de não se espantar com nada.


No primeiro dia, antes que eu selecionasse pela pequena sacada algum dos rapazes que tivesse a aparência menos conspícua para que saísse distribuindo meu cartão de apresentação, já uma mulher aparece-me batendo à porta. Na verdade o senhor cego que bateu à porta por ela, a título de apresentação, dizendo-me sem lançar a mínima olhada do olho que presta (acho que é o direito) para ver a personificação que eu dera ao ambiente, de que uma tal senhora Genôra ou Gênova, não me atentei bem, pedia para ter uma reunião comigo. Ele disse assim mesmo, com essa pompa deslocada que me dava certa importância de pessoa famosa, a quem precisava de intermediadores para consultar a agenda. Eu ri; olhei-o julgando-o o cara mais simpático do Trópico de Capricórnio para cá e disse, mas claro, senhor, com todo prazer, que a mande entrar. E o locatário abriu a guarda afastando-se para o lado e me apresentando com um sinal a uma velhinha que só poder-se-ia usar esse diminutivo em relação a ela pela caridade natural que alguns bons espíritos têm com as senhoras de mais de setenta anos, porque se tratava de uma mulher que preenchia de fio a pavio o ângulo de luz que vinha da lâmpada do corredor, como não a tinha visto ainda, aparecendo sobre os ombros do locatário, era que eram elas, uma senhora com vestido de chita branca com detalhes funcionalmente floridos destes que as velhas usam há milênios e cuja moda fora reforçada por determinações petencostais, um chalé contra o frio enrodilhando o pescoço, uma mulher, em suma, de bem um metro e oitenta de altura, encurvada para frente de modo a dar apenas um traço vestigial ao pescoço, e os mesmos olhos atônitos que os velhos, principalmente as velhas, possuem, um atonicismo disfarçado, coberto pelo espanto da experiência acumulada com seu homem e os filhos que esses homens lhes engendraram e os netos que indireta mas espoliativamente os filhos de seu homem a fizeram ter. Um horror educado e perfeitamente absorvido pelos atos sociais, a ponto de ser carregado de mérito. Fiz com que ela entrasse, o que ela fez com uma energia e falta de frescura exemplares, sentando-se na cadeira de espaldar à moda vitoriana que tenho para uso dos clientes, e que havia limpado essa tarde por puro costume sanitário e sem qualquer premeditação. Chamava-se Eugânida, e não Gênova ou Geneva, como soara a voz narcoléptica do locatário, e queria por que queria que eu aceitasse uma nota de cinco já de saída, sem explicar por quê. Aceitei-a, não sem alertar que o fazia para agradecer a confiança que ela demonstrava em minha capacidade de ajudá-la. Mas enfim ela pareceu não ter nada dessa confiança, porque precisaria retirá-la dela à força ao longo de outras consultas, o que indicava com mais primor o quanto os ventos da sorte haviam mudado para mim. Li sua mão, disse-lhe que sua áurea estava púrpura com algumas resplandecências rosa em torno, o que indicava estabilidade espiritual e força intelectual. Havia tanto que não me pediam para ler a áurea, área da percepção extra-sensorial que até se encontra obsoleta e sem uso, que estive para recitar a velha cartilha empregada nessas horas e quase disse que o púrpura indicava que ela estava por encontrar um grande amor, uma paixão tórrida e fervorosa. Acho que na verdade cheguei a dizer, tamanha a felicidade que o retorno do dinheiro havia me dado, ao que a senhora soltara um risinho tímido de filme da terceira idade e me olhava como uma garotinha do alto de sua postura de jogadora de basquete enfunada na cadeira. Era uma boa senhora, cordata, educada, mas quase explodindo de vontade de contar alguma coisa, alguma coisa que não era um desabafo, porque seu sorriso faceiro demonstrava isso, mas algo alegre, uma descoberta importante que dava novas cores ao seu dia. Era mais uma fofoca que queria me contar, essa senhora incrivelmente incongruente por ser tão feliz mesmo na solidão sem amigos e parentes que precisa recorrer a um médium profissional para ser ouvida. Deixei-a à vontade para que viesse disposta a jorrar o seu segredo quando quisesse. 

Nesse meio tempo, consultava a carta do arlequim em miniatura sempre que me dava por desocupado. Tomava banhos intensos no banheiro do quarto, que graças aos céus é o benefício do qual ainda estou em condições de não dispensar, evitando as filas dos inquilinos de olhos inchados e gargantas congestionadas nos banheiros do corredor. Esfregava minha pele com a carcaça de uma esponja que trazia na mala, herança de um cliente que me convenceu que o instrumento dado pela natureza era o único realmente capaz de assepciar a pele, querendo com isso como que me exorcizar desses dois anos de penúria e incertezas. Esfregava-me com uma determinação furiosa, falando baixinho que não queria isso mais para mim, que o mundo espiritual e os promotores do lado de lá me deviam uma vida com o mínimo de conforto e estabilidade, tantos trabalhos havia realizado para eles. Deixava a ducha escorrer sem culpa por sobre meu corpo, e ficava olhando num desamparo a sujeira sendo deglutida pelo ralo. E assim, como se ainda que não me retornassem o diálogo mas que não tinham como deixarem de ouvir aquelas minhas súplicas, os espíritos foram me trazendo mais clientes, de todo tipo, num ritmo e quantidade surpreendentes. Ouvia o bater na porta, atravessava do sofá deixando a carta por sobre o console da penteadeira, e abria a sala para alguma moça que queria saber se o homem que amava era o homem certo, ou outra que queria dos espíritos o encantamento para fazer que se apaixonasse por ela o homem já comprometido, ou que lhe voltasse o amor desaparecido, e não eram apenas clientes do sexo feminino ou os viados eventuais que vinham tanto pela precisão dos conselhos do outro mundo quanto só para confirmar o que haviam lhes dito que eu era aquele tipo de viado reservado e estritamente profissional, mas vinham machos com um pouquinho de lapsos educacionais suficientes para considerarem hipóteses menos materialistas, perguntando se iriam ficar ricos, se havia como algum espírito soprar em seus ouvidos (sem que passasse pelos meus) o número que iria dar no sorteio da loteria de sábado.

domingo, 10 de julho de 2011

Um Livrinho Pra Lá de Envolvente

Faço bem em seguir as recomendações dos melhores livros lidos por alguns escritores. Li os dez livros imprescindíveis para quem deseja ser um escritor, no parecer de Hemingway, e foi graças a ele que cheguei a um dos mais deliciosos livros de memórias, Longe, e Há Muito Tempo, do Hudson. Depois da dupla de coleções célebres de contos de Borges, os outros livros desse grande argentino que mais visito, são suas concisas e magníficas resenhas e prólogos, da Biblioteca Pessoal, Textos Cativos e Prólogos com Prólogo de Prólogos. Recentemente o Joca Terron referiu-se, no blog da Companhia das Letras, a um Borges educado por um pai adepto de herméticas leituras de anglo-saxônicos medievais. Na verdade Borges foi um devorador de literatura de gênero que pouco se encontra entre escritores que admitam seu apreço pelo que taxou-se como subliteratura. E Borges faz questão de mencionar um a um desses escritores dissolutos nos títulos acima mencionados. Ellery Queen, S. S. Van Dine, George Simenon, Olaf Stapleton e uma série de autores policiais e de ficção científica, que dividem espaço na cabeçeira de Borges com Faulkner, Rudyard Kipling, Dante e Shakespeare.

Baseado nesse senso de leitura em que Borges assumiu como única disciplina ler o que lhe dava prazer, é atribuído ao autor de O Aleph o mérito de ter tirado do esquecimento o autor inglês G. K. Chesterton. Graças a Borges, as reedições da obra de Chesterton se perpetuam felizmente pelo mercado editorial brasileiro. Em cada volume vem o aval do apadrinhamento de Borges. Nesse que está aí acima, reproduz-se na contra-capa a sua frase certeira: "A literatura é uma das formas de felicidade; talvez nenhum outro escritor tenha me proporcionado tantas horas felizes como Chesterton." Realmente, ler esse volume de contos policiais protagonizados pelo inconspícuo e improvável detetive Padre Brown é não só uma maravilha, mas um descongestionante para esses tempos cíclicos em que mais uma vez se escolhe ficcionistas "geniais" para salvar a narrativa.

Nesses dozes contos encontra-se todo o complemento para noites chuvosas recolhido debaixo do edredon na cama, e para leituras em campos verdes sossegados escorado a uma árvore de copa espalhada. A Londres neblinosa, com suas ruas soturnas e frias, assim como as mansões e reuniões de secretos grupos fechados, recheiam o livro de alto a baixo, junto aos assassinatos sensacionais e roubos implausíveis. Mas o melhor não é o afeiçoamento a essa sublevação da realidade, mas o estilo sarcástico, engraçado e afiado de Chesterton. Vejam só ao que Borges se referia, no explícito excerto abaixo:

Se você encontrasse um membro daquele clube seleto, "Os Doze Pescadores Verdadeiros", entrando no Hotel Vernon para o jantar anual do clube, observaria, quando ele tirasse o sobretudo, que o casaco dele é verde e não preto. Se (supondo que tivesse a audácia e a petulancia de dirigir a palavra a tal pessoa) você lhe perguntasse o porquê, é provável que ele respondesse que faz isso para não ser confundido com um garçom. Então você se afastaria com um rabo entre as pernas. Mas deixaria para trás um mistério ainda não solucionado e uma história que vale a pena contar.

Se (para insistir no mesmo filão de improváveis conjeturas) você topasse com um pequeno padre meigo e incansável, chamado Padre Brown, e lhe perguntasse qual ele julgava ter sido o lance de sorte mais singular de sua vida, a resposta mais provável seria que de modo geral o seu melhor lance de sorte acontecera no Hotel Vernon, onde ele havia impedido um crime, e, talvez, salvo uma alma, apenas por escutar passos no corredor. Talvez ele tenha certo orgulho desse palpite surpreendente e maravilhoso, e é possível que o mencione. Mas como não é nada provável que um dia você suba na escala social o suficiente para se encontrar com Os Doze Pescadores Verdadeiros nem que um dia você desça baixo o suficiente entre criminosos e cortiços para conhecer Padre Brown, receio que acabe ficando sem saber da história, a menos que seja por meu intermédio.

domingo, 3 de julho de 2011

Distraídos da Distração pela Distração # 1

 
Há duas semanas descobri por meios fortuitos onde anda um velho amigo dos tempos do colégio e da faculdade. Liguei para o número conseguido de uma secretaria de educação de uma cidadezinha do interior de Goiás, e para a mulher de pontos de exclamação compreensivos aleguei a verdade de que há vinte anos procurava o professor de história de sua instituição, Marlon Christian, hoje pai de dois filhos e que então, pelo que tudo indicava, estabelecido em um terceiro casamento cujos dez anos de duração predigalizavam permanência. A mulher me passou o número do celular do Marlon, e de imediato liguei para ele. Senti a carga de adrenalina ascender-se pelo meu corpo enquanto o celular chamava, e, quando a voz reconhecível atendeu do outro lado, me vi tomado por um ciclo de lembranças que se estivessemos cara a cara resultaria em um abraço apertado. Em vez do abraço, fiz a brincadeira usual de chamá-lo de "malandro", de "canalha", e enrolar na xaropada de "ah, mas você não sabe quem está falando?", até quase o limite de tirá-lo do sério, quando então eu disse: "aqui é o Charlles, porra!". Não senti o mesmo entusiasmo da parte dele, que se reduziu a uma recepção fria e polida com os atos de ofício das frases feitas para nunca se converterem em realidade: "nas férias você vem passar aqui em casa", "precisamos sair qualquer dia desses". Mas era o velho Marlon, eu senti. Tive a certeza por duas razões lógicas: eram duas horas da tarde de uma quarta feira e ele deveria estar no alvoroço marcial dos serviços de professor, e...falávamo-nos como se não houvessem passado 20 anos, como é característica das verdadeiras amizades que não se decompoem com os anos. Mesmo por detrás de sua frieza, havia ali o Marlon disciplinado que relia os textos da faculdade e os copiava dogmaticamente no caderno, até saber as datas e os locais de batalhas de cór, enquanto eu zombava de seu positivismo lançando-lhe minha benfazeja liberdade de poder transitar mais desapegado pelos meus autores do curso de jornalismo.

Mas houve outra coisa que me chamou a atenção em nossa conversa. Quando lhe perguntei se podíamos nos falar por algumas das redes sociais, ele me encheu de orgulho ao dizer não fazer parte de nenhuma delas. Eu estaria disposto a me filiar ao Facebook e ao Orkut, por causa dele, mas a sua negação trazia a dedução tácita de que tais instrumentos lhe eram tão indiferentes quantos os livrinhos didáticos dos anos 70 sobre Moral e Cívica. Nossas semelhanças sempre haviam sido no campo ideológico mais profundo, embora tudo acima das críticas políticas e do enorme desejo de esclarecimento fosse de um descompasso combativo digno dos piores inimigos. Mas o fato de sempre sermos avessos ao mundo_ ao "mundo que se exibe", no conceito de Whitman_, era um dos solidificantes para que pudessemos passar tardes inteiras debatendo entre nós, sem papas na lingua e sem sistematismos. O próprio celular no qual nos falávamos já era um elemento jocoso, senão pelo nonsense final de rendermo-nos a ele, pela maravilha de sermos de um tempo recente em que por cinco anos de amizade física e proximativa nunca termos nos falado nem pelo velho telefone fixo. Aquela antiga contactibilidade sem rédeas tornava automaticamente toda forma de comunicação virtual uma coisa ridícula, coisa que eu deveria ter tido a delicadeza de saber antes de perguntar-lhe sobre as redes sociais. De repente estava ali um dos simulacros da idade contra os quais venho combatendo com um relativismo veemente de antepor ao lugar comum do populacho de que "estamos ficando velhos", a visão mais coerente de que as tramas do mercado é que avançam sem consideração às delicadezas necessárias da passagem do tempo; havia algo de Buck Rogers na minha reaproximação com o Marlon: fomos congelados por duas décadas e descongelados numa época em que a adaptação aos fogos fátuos da tecnologia nos dava uma aparência de seres atrasados, risíveis e envelhecidos antes de chegarmos efetivamente à meia idade. A resposta franca do Marlon sobre sua espontânea exclusão às redes socias (coisa que eu já sabia, por tê-lo procurado pela internet) mostrava o quanto seria loucura o alarde de alguma utopia do passado em viver num mundo próprio, desconectado;ele tem sua internet para pesquisas e diversão solitária, assim como eu tenho esse blog e os sites de música esporádicos da madrugada. Era uma reação sem nenhuma coerência, mas no fundo conservávamos a séria intuição de que tudo era uma imensa bobagem, um enorme engabelamento. 
 
                                             _______________________________________
 
Ontem assisti ao filme sobre o Mark Zuckerberg e como não havia ninguém ao meu lado para poder medir o efeito da obra nas reações do rosto, fiquei com a forte certeza de que David Fincher usara nesse filme os recursos de mensagem subliminar que ele já havia anunciado em O Clube da Luta. Numa das cenas, o Zuckerberg sai no meio de uma aula respondendo ao pé da letra a uma questão que o professor anuncia ser indevassável até aos maiores gênios da informática. Lá para o final, o diretor usa uma versão do coro das peças elisabetanas na forma de uma das funcionárias do Facebook para fazer Zuckerberg compreender pacificamente que deve capitular um meio termo com os colegas de Harvard que se dizem roubados por ele. Na última cena, Zuckerberg, após repudiar a seu sócio-mentor por ter expulso da companhia o único amigo que tinha ( o seu famoso "amigo brasileiro"), é focado pela câmera na solidão do escritório fechado, diante à tela do notebook ligado no Facebook, tentando restabelecer um contato sempre negado com sua ex-namorada, uma espécie de rosebud perdido que não justifica espiritualmente a sua glória vazia. O Fincher que traduziu excepcionalmente bem o anarquismo terrorista dos personagens de Chuck Palahniuk na cena final de Clube da Luta em que o centro financeiro de Nova York é implodido; que criou um filme longuíssimo sobre o assassino do zodíaco cujo motivo do anticlímax e da falta de sangue foi propositalmente  desmistificar a mídia expoliativa que constrói a heroística do criminoso cerebral em cima da franca mediocridade; que, por final, fez uma outra versão chorosa de Forrest Gump na fábula do velho que é consumido em si mesmo pelo retorno paulatina à juventude, à infancia, e ao desaparecimento; esse Fincher, que, como todo grande diretor hollywoodiano, tem que se render à roupagem hollywoodiana (assim como Shakespeare tinha que se render às exigências de hegemonismo inglês e carnificina ao gosto da plebe, dos magnatas financiadores de seu Globo Theatre), não deixa com isso de fazer um grande filme, parece trazer para o Rede Social um tanto desse estenuamento diante as novas formas de comunicação prestadas ao consumo hiper-exponenciado que acabresta todo mundo e tem a leveza de descartar a mínima reação contra sua imposição generalizada. Assim parece haver uma progenitura de concordância em que o olhar dos das gerações anteriores às da moderníssima e sacramentada geração atual (ou menos de meia-geração, já que a força das redes socias tem menos que dez anos de idade), vê um que de conversa fiada e farsa num projeto de um clube global de intimidade simulada criado por um pós-adolescente universitário cuja personalidade é um exemplo da atmosfera solitária e onanista do meio do qual ele deriva. Um filme com cenas engraçadinhas cheias de trivialidades redentoras, típicas das produções norte-americanas, do rock celebracionista que endossa as festas acadêmicas e o sexo dos casais de alunos no banheiro da boate, e o tema musical de encerramento com Baby You´re a Rich Man, dos Beatles, para dar à suavidade onipresente requerida pelas pesquisas de gosto e capacidade de atenção do público alvo, a impressão de que tudo, afinal, se redime por fazer parte de uma távula da moda em que o consumo é o direito democrático e impostergável de todos; mas por detrás disso há o enfado e o sentimento de que as telinhas coloridas e as amizades legalmente sem compromissos e contatos humanos são os espelhinhos e pentes que esses novos colonizadores aportados em nossa ingenuidade famélica pelo novo nos ludibriam atrás de nossos tesouros escondidos. E o que eles pedem, e o que temos a oferecer, afinal, é sincronicamente tão pouco e tão pobre, que não merece mesmo que nos cobremos uma lucidez combativa. A arte do cinema daqui para frente se alimentará muito dessa subliminaridade. Fincher adota o conceito de inteligencia de Faulkner, que disse que cavalo inteligente é aquele que se submete aos mandos do dono, mas conserva sempre um limite de liberdade além da qual ninguém lhe contorna a vontade.

                                                       _________________________________

Slavoj Zizek, em seu Em Defesa das Causas Perdidas, livro em que ele reivindica o retorno depurado das velhas ideias de igualitarismo social e compreensão psicanalítica das mazelas humanas, inicia seu amplo estudo com uma análise da recente forma de niilismo moderno assinalada pelo mundo virtual. Ele salienta a precocidade de julgamentos, a superficialidade como condição inerente de qualquer debate, e a total falta de coerência que impera com uma ironia inconsciente no ciber-espaço. Como exemplos, ele cita várias ações atuais colhidas na net que, desvirtuadas da postulação de normalidade desse meio, soam estapafúrdias quando vistas sob o olhar minimamente critico fora das telas. Um dos casos de campo analisados foi a da reconciliação entre Mel Gibson e o presidente da Associação Judaica dos EUA, após o incidente em que o ator foi detido por dirigir bêbado e ter comportamento antissemita com o guarda que o prendeu. Através das mídias da internet e da televisão, os dois debatedores acabam se reconciliando, num misto de preconceitos mútuos e aberrações de supremacia racial que, na aparência requerida para a concordância e perdão, acabam sendo bem pior na desqualificação de uma etnia do que as palavras alcoolizadas do diretor de Apocalipto. Afora uma classe cada vez menos justificável de leitores capazes de interação inteligente com sentidos textuais terciários e quartenários, esse agravamento, através da trivialidade, de uma questão fundamental herdada do século passado genocida, passou batido entre a maioria que viu no gesto a boa intenção de pessoas retomadas pela coerência. Zizek também cita a incapacidade de auto-crítica do mundo atonal (o mundo já sem matizes e variações, politicamente correto a aberto a todas as acepções), que não enxerga o grotesco não espantoso mas apiedantemente sem propósito das organizações de amigos virtuais que ensejam coisas como o "masturbate-a-thon", uma maratona de masturbação com fins beneficentes que angaria verbas para "entidades destinadas à saúde sexual e reprodutiva e, como explicam os organizadores, aumentando a consciência e dissipando a vergonha e os tabus que persistem em torno dessa forma de atividade sexual tão comum, natural e segura." Esses são, no dizer de Zizek, os "últimos rebentos da liberdade sexual", a repaginação dos jovens que saíam nas praças dos grandes centros urbanos na década de 60 e confrontavam a pudicícia hipócrita da sociedade com a propagação do amor livre. O contato corporal com o outro transformado no isolamento individual diante a tela do computador e a assepcia do manejo restrito a seu próprio órgão sexual. O prazer rápido e sem externalização. Uma nova geração, pois, sem a sede por experiências vívidas e o conhecimento prático com a alteridade, mas confortavelmente instalados na alienação para dentro do virtual. Solitários ególatras que, contudo, são capazes ainda do humor totalmente involuntário de se organizarem em uma associação com fins beneficentes.