sábado, 10 de dezembro de 2022

Pés de Barro



 Estreou na Paramount um documentário que vale muito não pelo que ele diz, mas pelo que está nas entrelinhas. É o documentário cinicamente hagiográfico que conta como Liam Gallagher, o vocalista da extinta banda Oasis e um dos seres humanos mais antipáticos que existe, conseguiu o feito inacreditável de lotar uma das maiores arenas do mundo, Knebworth, na Inglaterra, em abril de 2022. No início do vídeo, com sua imodesta característica, Liam diz que nem Bono, nem Mick Jagger, ou Freddy Mercury, conseguiriam esse feito, em carreira solo. E é algo realmente espantoso! E é esse mistério, que não é desvendado senão de forma velada, que faz essa obra imperdível. Eu gostava de Oasis quando eu tinha vinte e poucos anos. Ainda tenho uns 5 cds deles, mas há muito tempo não tenho interesse em ouvir. Creio que Oasis é uma das bandas que mais envelheceu mal da história do rock, com sua fatídica parede de som rebuscado, sem riff, sustentada em plágios feitos sem a mínima vergonha, e com canções que não se firmaram na mentalidade musical (a gente não vê a obra deles em filmes, ou citadas pelo mundo midiático, como vemos direto os Beatles, ou mesmo bandas mais recentes como Radiohead). Isso, contudo, se você não for da classe média britânica arruinada, tornada órfâ pelo Brexit, sem dinheiro, sem perspectivas, pouco instruída, terceiromundizada e louca para desabafar tudo isso acrescido à quarentena aprisionante de uma pandemia mundial. No vídeo vemos que, pelo menos, um representativo montante de 80 mil pessoas (o público que foi ver Liam em Knebworth), adora Liam Gallagher. Há o depoimento acompanhado de vários fãs durante sete dias antes do show até o momento do show, e gente diversa que tem o traço comum de idolatrar o roqueiro. Tem um pastor evangélico que diz que Liam é tão importante quanto a Bíblia. Tem uma maravilhosamente extrovertida garotinha de 10 anos que, se sugere, se curou do câncer graças ao apoio mental unidirecionado do músico. Há uma moça que teve de faltar à prova final da faculdade porque era no mesmo dia do show. Etc. E isso tudo entremeado com depoimentos do próprio Liam tentando se fazer de menos arrogante, ele que é um cara espertíssimo e sabe vender como ninguém uma imagem de pop star perigoso e egocentricamente desbocado (o que acho que ele faz bem isso, pois entre essa pose de marginal social de boutique e o bom mocismo xaroposo de gente como o Dave Grohl, a primeira leva a melhor e desperta mais fetichismo). Mas aí vem o suprassumo da coisa, as imagens surpreendentes para um programa de rock autobajulador de uma Grâ Bretanha à beira da falência, a enorme pobreza, a rasteirice de um povo que resolveu emburrecidamente pela diáspora étnica em vez da união. Os próprios testemunhos colhidos revelam desesperança e medo, batendo na tecla repetitiva de que o show de um astro obsoleto, que o resto do mundo não está nem aí mais para ele, é um escape, uma fuga momentânea. O clima do filme é de tristeza, nitidamente. A cena final, das pessoas se retirando do campo após a catarse extinguida do espetáculo, cabisbaixas, de volta para suas vidas medíocres, é de enorme desalento. Os apartamentos apresentados de cada fã são em periferias mal cuidadas, cômodos minúsculos, semelhantes aos que pululam na imprensa sobre as condições de moradia atrozes da Coréia do Sul e da China. Por detrás dessa panfletagem, a câmera mostra que nada está bem no capitalismo desmedido, na proliferação da mentira cibernética que alimenta imbecis, na falta de consciência, na alienação profunda. As pessoas andam tão à míngua diante uma vida desespiritualizada pela subserviência total ao mercado, que até os ídolos de pés de barro são úteis para o alívio instantâneo. E Liam Gallagher soube lucrar como ninguém com isso.