sexta-feira, 25 de março de 2016

A solidão inviolável da mente_ "Eichmann em Jerusalém", de Hannah Arendt




Hannah Arendt, assim como Walter Benjamin, faz parte do gênero raro de pensadores inclassificáveis. Quando tentam fazer um retrato aproximado do que tais pensadores foram, o retrato torna-se capenga, sisudo, frágil ou descomedidamente forte, esquemático, falso, bastante distante da realidade. Mesmo um artista tão capacitado como J. M. Coetzee, ao escrever um ensaio sobre Walter Benjamin, apequena e brutaliza tudo o que Benjamin tinha de riqueza interpretativa e capacidade infinita de ver além das coisas. Assim é com Arendt, quando tentam dramatizar sua vida em um filme: a urbanidade cotidiana é alçada a um primeiro plano e o universo que se abria no gabinete da autora, em seus papéis de altíssima qualidade estética e investigativa da alma, se torna mero adorno, mero acidente colateral das paixões de cama e curiosidades de jornal que são os propósitos únicos dos grandes veículos de entretenimento em massa. É um tanto histriônico pensar que, com o eventual sucesso do filme, Hannah Arendt possa fazer parte dos twitter e facebook e redes sociais como um novo ícone de consumo para uma juvenilidade descolada e pretensamente culta, posicionando-a no mesmo nível de qualquer outra figura do show-business; seria de se perguntar se a linguagem cifrada do ciber espaço consegue perceber a ironia autofágica de aclamar como modelo venerável de lucidez uma autora que cunhou o conceito de alienação e dos seguidores marciais de clichês da metade final do século passado, que elevou a expressão da mente humana a um patamar de clareza e percepção de zonas sutis da verdade pouco alcançado nos milênios da escrita, e que por isso, para um entendedor medianamente arguto, é um tanto absurdo que ela seja consumida por essa gente que escreve em caracteres limitados e palavras mutiladas e que ela seria a primeira a classificá-la, como bem o fez quanto a seus antecessores de gênero em seu livro sobre o totalitarismo, como a ralé. Nada é mais avesso a Arendt do que a tentativa da sua reprodução padronizada, à lá Marilyn Monroe de várias cores de Warhol, do que sua assentada no gosto do senso comum da geração mais propícia à aquiescência descerebrada do domínio totalitário surgida depois da segunda guerra, como o é a geração de amigos e mútuos seguidores da realidade virtual de hoje; seria o equivalente ao Vaticano estampar imagens de Tolstói em camisetas oficiais e exportá-las para a igreja ortodoxa russa, ou alguém abrir uma fundação para a proteção dos leões africanos com o nome de Ernest Hemingway, ou a Nike eleger Stephen Hawking como garoto propaganda para seu novo modelo de tênis. Como o poema de Whitman, a juventude nada tem a ver com Arendt, os domínios de sua linguagem estão inalcançavelmente distantes do bairrismo cool dos que irão comprar seu livro sobre Eichmann e lê-lo talvez só até a metade porque alguém tuitou que ele é o máximo, deu a ele uma carinha amarela de aprovado na classificação junto ao novo vídeo de música lançado na rede. Para se avizinhar da compreensão de Walter Benjamin, tem-se que, ao menos, ler como Benjamin consegue escrever sobre alguém da estatura inclassificável de Proust, Kafka e Baudelaire, entrando em seus mundos, não sentenciando ou dando valorizações, mas aceitando o modo de visão desses artistas no que eles tem de combatividade independente na procura da verdade_ por isso o ensaio de Coetzee é um exemplo de escrita sistematicamente superior vazia e vaidosa, pois pega Benjamin por sua obra mais excêntrica, o Passagens, e faz uma esquematização do fracasso pessoal e das tantas insuficiências de alguém que, em vez disso, tem tantas qualidades esotéricas para oferecer.

É por essa suspeita fundamentada de que Arendt só é alcançável através do que ela escreveu que eu não vi o filme sobre ela lançado ano passado e nem pretendo ver. Me afasto desse tipo de interpretação. Supondo que tal filme tenha, ao menos, uma reavaliação histórica premonitória, no mesmo nível de A fita branca, com aquela apresentação paulatina e assustadora do mal acordando entre os moradores de um povoado alemão instigados a se assimilarem às exigências normativas de uma nova realidade nacional, ainda assim me vem à memória a redução à simples imagem de algo que está além da imagem. Me vem à memória a atriz que interpretou a Rosa Luxemburgo manquejando pela prisão: a vítima martirizada que fica na retina do espectador de cinema como uma coisa já definida, já tornado ela no momento em que sua corporificação se extinguiu no tempo: algo em que esvaiu por completo a transcendência. Faço uma digressão antes de entrar no livro da Arendt: há um conto de Don Delillo que se intitula Baader-Meinhof, na coletânea O anjo Esmeralda. Neste conto, uma moça e um rapaz se conhecem por acaso em uma exposição das pinturas sobre os últimos dias dos participantes do grupo terrorista Baader-Meinhof; de modo vago, eles vão interpretando o que as figuras sobrepostas a fotografias do corpo enforcado da mulher lhes provocam, sobre o aparente sorriso de um dos sentenciados, sobre uma árvore ao fundo que, no entendimento da moça, é o símbolo de que mesmo para o que fizeram há o perdão da sombra da cruz; daí, por uma inércia a que nenhum dos dois impõe resistência, eles vão até o apartamento da moça e, sentados à mesa diante um copo de água com gás com fatias de limão, prosseguem a discussão sobre os quadros, de forma desapaixonada, desconcentrada, com se atendendo a uma exigência protocolar que esperam que eles cumpram. E é reivindicando essa exigência que o rapaz tenta estuprar a moça, alegando que se eles estavam ali sozinhos, eles tinham que, necessariamente, perfazerem os mesmos passos da intuição do ato social firmada quando um homem e uma mulher estão em um apartamento silencioso, gastando conversa fiada como precondição do coito. A moça se refugia no banheiro; o rapaz, aparentemente, se masturba no quarto e, cumprido deste modo os movimentos da relojoaria, ele se desculpa através da porta e vai embora. No outro dia, retornando à exposição, a moça encontra o rapaz sozinho, sentado diante uma outra obra do ciclo, "de longe a maior e talvez a mais impressionante, a dos caixões e da cruz, chamada Funeral". Aqui nós temos, através do impressionante olhar visionário de Delillo, todo o diagnóstico da rarefação mental da conduta institucionalizada diante o assombro da história, toda a propensão inexorável que o indivíduo agregado à coletividade tem de filtrar a percepção de uma realidade de camadas e subníveis infinitos para um modo seletivo de entendimento; aqui, Delillo reconstrói a observação de impacto retardatário sobre a banalidade do mal feita por Arendt, retardatário porque intuitivamente sempre sabemos que o mal não é uma entidade, não é um demônio inteligente que conspira contra nossa espécie, lançando crias de cruel determinação e precisão letal, mas circunstâncias acumuladas por um corriqueiro estômago social que vai apascentando todo o contraditório incômodo até que o conforto de uma unanimidade desespiritualizada tome conta e coordene tudo_ mas que, ainda assim, quando nos deparamos com a vocalização de nosso estado de domínio, a reação que temos é de assombro, de vermos-nos como de uma posição alheia alienígena; como se o espírito, retirado do sono por um momento, mostrasse um fibrilar de indignação que comprova a sua existência. Nosso assombro parece confirmar o gene vestigial de que, no final das contas, lá no fundo, ainda temos uma boa visão elogiável sobre nós debaixo dessa escumalha toda de mediocridades e medianismos. Esse assombro é a pauta sobre a qual escreve Delillo em seu conto e Arendt em todos os seus grandes e fundamentais livros. No conto de Delillo, os personagens se veem no desamparo que oferece a exuberância de interpretação dos quadros, diante a qual eles tem que, combativamente, rejeitar para uma aquisição saudável, sanitizada, inofensiva em sua emoção regulada, de forma que não se percam da trilha usual que tem que seguir no ordenamento do mundo. Ambos estão desempregados, ambos são adventistas de um pragmatismo civilizado maturado em parte pelos arroubos de violência de refugos do alinhamento legal como os terroristas do Baader-Meinhof, e ambos se veem diante as possibilidades que essa norma poderia chegar para cobrar deles o sacrifício de sua humanidades em nome da regulação e da manutenção da ordem. A conversa entre os dois comporta a enunciação de seus possíveis planos para o futuro_ possíveis pois eles sempre estão nessa narcolepsia juvenil de viverem apenas no presente, nessa inconsequência de se julgarem inquestionavelmente imortais_, e o rapaz diz que pretende ter um emprego e uma "criaturinha pequena e macia" para criar. Por detrás dessas linhas aparentemente inofensivas, aterrorizantemente comezinhas, vemos a distorção à espera, a dissonância, o ruído surdo por cima dos escombros, as possibilidades nefastas: o quanto a história, assim como o deus bíblico fez com Jó, estaria disposta a testar a eficiência do pedantismo dessas pessoas até um nível extremo, ou não tão extremo visto que elas talvez se vergariam o mais rápido possível. Aqui nos remetemos a Eichmann em Jerusalém: "No entender de Eichmann, ninguém protestou, ninguém se recusou a cooperar. (Dia após dia, as pessoas aqui partem para seu próprio funeral), como disse um observador judeu em Berlin, em 1943".

São notórias as circunstâncias históricas que engendraram e direcionaram a escrita de Eichmann em Jerusalém; tudo o mais fora delas é a mais autêntica liberdade de pensamento e atrevimento por parte de Hannah Arendt. Os fatos são facilmente colhidos em uma pesquisa no Google: uma comitiva de agentes secretos israelense sequestraram Adolf Eichmann de seu esconderijo na Argentina, em 1960; Eichmann era apontado como carrasco nazista responsável pela morte de milhares de judeus durante a Solução Final promovida pelo Terceiro Reich; Eichmann foi julgado por um tribunal montado e mantido em Jerusalém, praticamente à revelia de todas as leis e tratados internacionais; Eichmann é condenado à morte e enforcado por seus crimes contra o povo judeu; a assim chamada filósofa e teórica política Hannah Arendt, já mundialmente conhecida por sua obra sobre as origens do totalitarismo e sua análise sobre a Condição Humana, é enviada pela New Yorker para cobrir passo a passo do processo do julgamento, afim de escrever uma espécie de coleção de peças de jornalismo literário com inédita fundamentação filosófica a serem publicadas paulatinamente pelo periódico. O que Arendt faz, o que não deveria ser em absoluto causa de surpresa por parte de seus contratantes, é o mais fantástico, profundo e pouco laudatório retrato da alienação humana e propensão do indivíduo permeabilizado nas massas em seguir cegamente líderes e doutrinas. Arendt compõe uma obra que não deixa nenhum ídolo em pé, a começar por sua polêmica condenação das atitudes de Israel em passar por cima das leis internacionais com a promoção do crime de sequestro em nome da penalização de um crime de genocídio que os líderes judaicos identificavam não como um crime contra a humanidade, mas como um ataque específico que dava a legitimidade aos judeus para a vingança, não considerando, em um racismo exclusivista que Arendt apontava ser tão descomedido quanto o dos nazistas, os outros povos que sofreram dizimação pelos exércitos de Hitler, como os ciganos, os romenos e outras etnias médio-européias. Para um judeu com certa intimidade com os escritos de Arendt, que uma vez respondeu a um jornalista não ter nenhum apreço pelo povo judeu, mas por amigos judeus, essa visão de seu novo trabalho não deveria ter causado impacto algum: já em Origens do Totalitarismo ela destina várias páginas em reportar a intransponível distância que os judeus ricos impunham entre eles e os judeus pobres, ou nascidos em famílias sem distinção social, assinalando o anti-semitismo que sempre existiu entre os judeus. Para qualquer outro leitor que conhecesse o trabalho da autora, também seria sem razão o choque pela sua honestidade intelectual diante as evidências anteriores de falta total de comprometimento da escritora com órgãos de ofício ou linhas de pensamento estigmatizado: Arendt, judia, era especialista em santo Agostinho e Kierkegaard, tendo escrito um ensaio sobre o pensamento do filósofo católico direcionado ao público protestante, e tendo escrito um belíssimo texto sobre o papa Angelo Giuseppe Roncalli, que bem poderia ter colocado a igreja católica de cabelo em pé ao colocar como título a ironia fina de "Um cristão no trono de São Pedro". A alta cúpula israelita, ao ver que a autora não admitia a cartilha da vitimização e da fácil alcunha de Eichmann como monstro, põe-se imediatamente a retalhá-la na imprensa mundial, cobrando da New Yorker a rejeição e recusa do restante dos textos sobre o julgamento. Como não deixaria de ser, Arendt passa a ser associada ao anti-semitismo e à traição ao povo judeu, o que seria alimentado mais ainda pelas relações mútuas de afeto e admiração entre ela e o filósofo Heidegger, tido como anti-semita aguerrido.

Saul Bellow escreveu que mantinha com Arendt longas conversas informais por restaurantes e bares destinados a escritores, em Nova York, em que Arendt lhe esclarecia tudo sobre a obra de William Faulkner. Sendo admiradora de Faulkner, não é para menos notar que as páginas iniciais de Eichmann em Jerusalém se assemelham no tom recolhido diante o opressor gigantismo ortodoxo dos tribunais às primeiras páginas do romance A Mansão, de FaulkneNesta última parte da trilogia dos Snopes, começa com o assassino de Flem Snopes sendo admitido pela corte de julgamento que o sentenciará; a madeira da bancada do juiz, as cadeiras de escoro alto empoeiradas de distinção, as batas dos oficiais da lei e a atmosfera hermética de respeito sagrado se encaixam com a descrição detalhada da sala de julgamento de Eichmann, em que os vários juízes se posicionam uma bancada acima do público, e onde à esquerda deles fica o reservado protegido com vidro reforçado em que o réu, de cara insofismavelmente cordial e disciplinada, espera sentado. Nessas duas obras vemos as motivações mais profundas que levaram ao crime, e aqui se trata da escrita sublime de dois gigantes das letras: Faulkner descrevendo que o mal é consuetudinário, ligado aos deveres do sangue, da família e da honra, que nasce junto ao desbravamento das terras e na construção da sociedade por sobre a selva incorruptível, que é fruto de desrespeitos sucessivos nunca digeridos mas alimentados no silêncio, e que muitas vezes aplaca o alvo que o originou quando este, pela velhice ou por uma calejada e involuntária sabedoria, já por si mesmo se penitenciou da maldade. Arendt conduz essa linha faulkneriana para uma interpretação universal da história, embasando todos os sinais apontados por Faulkner com a raiz unívoca da imensa capacidade humana pela veneração e pelo escamoteamento da verdade. Arendt diz, em seu revelador e desnudo ensaio sobre Heidegger, em Homens em tempos sombrios, que "a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant é a grande exceção)". E por isso abjura que a única forma de se manter íntegro e lúcido no confrontamento com o mal é através da solidão inviolável do pensamento, a não-coaptação a nenhuma forma ou modelo ou moda ou tendência, a não aceitação de heróis, a não se ajoelhar diante os ditos grandes e poderosos, mesmos esses tendo o poder intelectual de um Heidegger ou a mansidão de um papa morto prematuramente, ou diante as idiossincrasias auto-protetoras de um povo ressabiado que sempre foi perseguido. Não se envergar diante santidades ou sistemas. O retrato que Arendt faz de Eichmann é sinistramente natural e límpido, esse pai de família exemplar, esse homem que em toda a vida leu apenas dois livros e por isso se via mais capacitado que os demais das facções hitleristas que não haviam lido nenhum, esse homem que, no início, se prontificou a ir contra o extermínio e fez esforços que resultou na salvação de várias vidas de judeus, mas que depois, pelo estado, pelo eufemismo da ordem social, pela visão acabestrada de um destino histórico nacional que só os muito enredados não viam se direcionar para a ruína, se transformou no mais exemplar funcionário do sistema. Eichmann, esse gênio do clichê, esse homem impoluto que nada tinha de monstruoso, esse reflexo preciso de qualquer um de nós quando pressionado pelos nós das forças da manutenção.

"Adolf Eichmann foi para o cadafalso com grande dignidade. Pediu uma garrafa de vinho tinto e bebeu metade dela. Recusou a ajuda do ministro protestante, reverendo William Hull, que se ofereceu para ler a Bíblia com ele: tinha apenas mais duas horas e para viver, e portanto nenhum 'tempo a perder'. Ele transpôs os quarenta metros que separavam sua cela da câmara de execução andando calmo e ereto, com as mãos amarradas nas costas. Quando os guardas amarraram seus tornozelos e joelhos, pediu que afrouxassem as cordas para que pudesse ficar de pé. 'Não preciso disso', declarou quando lhe ofereceram o capuz preto. Estava perfeitamente controlado. Não, mais do que isso: estava completamente ele mesmo. Nada poderia demonstrá-lo mais convincentemente do que a grotesca tolice de suas últimas palavras. Começou dizendo enfaticamente que era um Gottgläubiger, expressando assim da maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida após a morte. E continuou: 'Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei'. Diante da morte, encontrou o clichê usado na oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele estava 'animado', esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral.

Foi como se naqueles últimos minutos estivesse resumindo a lição que este longo curso de maldade humana nos ensinou_ a lição da temível banalidade do mal, que desafia as palavras e os pensamentos." (Hannah ArendtEichmann em Jerusalém, p. 274, tradução José Rubens Siqueira, Companhia das Letras)

Mais sobre Arendt, aqui.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Há sempre um lugar



Estou no período da minha vida em que, posso finalmente dizer, adquiri uma compulsão pela escrita. Desisti de vez de algumas coisas que julgava indispensáveis, como o teclado e a internet. Comprei cadernos escolares básicos, de capa vermelha lisa, e canetas de pontas flexíveis de cor preta, e fico horas de intenso deleite escrevendo e escrevendo. A internet, por enquanto, como se pode constatar, ainda não me é completamente descartável. A idiotice assumiu uma onisciência plena na internet, o que me deixa bastante desmotivado. Não vou falar mais sobre isso. Voltemos à escrita. É espantoso como a escrita nessa fase da minha vida é profundamente perturbadora, me deixando nu e na condição de não saber nada. Estou mais cuidadoso e exigente, mas, ao mesmo tempo, livre e feliz ao escrever. O fato de usar a caneta remete à total absorção de quando eu escrevia na minha juventude. É, literalmente, assim como disse Walter Benjamin, a maior de todas as drogas. Atingi o estágio em que nada me é mais prazeroso que a escrita. Por anos e anos achava que jamais atingiria esse estágio, suspeitava que ele não existisse, ou, pior, que eu não era digno o bastante para ele. E agora, poxa!, eu me tranco em minha biblioteca, pego o caderno, elevo-me a uma concentração rigorosa, e escrevo. Stendhal tem muito a ver com isso. Não é possível que só ele poderia escrever um romance como o Cartuxa em 53 dias. Não pretendo escrever meu romance em 53 dias, mas em 3 anos. O importante de tal exemplo é para me exorcizar do medo, o medo feroz e prostrante de escrever. E eu perco esse medo cada vez mais. É a descoberta de que a palavra gênio e a palavra talento são muito peculiares. O gênio pode estar na imersão absoluta, feito por um homem comum, e não na determinação meritocrática dos genes. Eu não me julgo um gênio, nunca tive essa dose de espetacularismo virtuoso; mas me julgo um cara extremamente capaz de escrever o que eu pretendo escrever. A preguiça e, principalmente, o cansaço ditado pela realidade cultural nacional, sempre me fizeram crer, contudo, que a escrita não era para mim. Estou a escrever o mesmo livro que me pus a escrever 20 anos atrás. E agora, com essa entrega, esse direcionamento disciplinado e um tanto anárquico para a escrita séria, muitas descobertas me chegam durante o exercício. Uma nova voz domina minha mente, uma voz que tenta se firmar mas, por enquanto, está quebrada e tosca. Eu releio as 5 ou 10 páginas que escrevi durante o dia, em uma atenção que me abduz do mundo, e já não tenho aquele incognoscível nojo que eu sentia pelo que escrevia. Eu vejo todos os defeitos, as palavras repetidas, os momentos em que de imediato devem ser reescritos de outra forma, e sei que a coisa final não será assim, mas..., me sinto muitíssimo orgulhoso. Para mim, de forma verdadeira, nada melhor e mais importante está sendo escrito na língua portuguesa do que esse livro que eu estou escrevendo. Só essa atitude é passível de estar no espírito de um escritor que se preze. Eu não sou escritor de livros que preenchem catálogos e a vaidade unitária do autor; ou vai ser tudo ou nada. E o mais: minha alegria é tanta, e a escrita é suficiente como saúde para a existência, que eu não me preocupo uma fagulha em publicar. Nunca pensei na fama, isso é absolutamente irrelevante. Tenho muito de Robert Walser e Kafka, que escreviam com um egoísmo divino, com uma independência que seguia adiante sem se importar por todos os atos sociais de reconhecimento. Eu quero atingir aquele núcleo selvagem da minha juventude de quando eu escrevia minhas redações no quarto, em abandono nirvânico. Retornar infância adentro, como disse o Schulz. E isso, para meu enorme agradecimento, está acontecendo. Há parágrafos e parágrafos desencontrados, em que o excesso de palavras erradas imitam uma forma e suplantam a cor da vida necessária, mas aí, pimba, aparece aquela cena, aquela interação entre a certeza de se estar escrevendo algo digno e humano com a percepção de que aquilo é a minha verdade, e que justifica o ofício. Minha mão não dói ao usar a caneta, tenho a hipertrofia dos músculos necessários para esse exercício, enquanto a digitação me exaure e me dá câimbras. E como eu acho meus garranchos bonitos, como eles se parecem com um trabalho árduo, como os sacos de cimento bem postos no caminhão carregado. Eu, há alguns anos, trabalhava em uma cooperativa veterinária, um trabalho pesado, que me deixava imensamente feliz. Eu devia perder uns dois quilos por dia com esse trabalho, e voltava sujo de lama, bosta e sangue para casa, e tomava uma dose de pinga para abrir já o nababesco apetite e em seguida jantava dois pratos vultosos. Essa escrita me deixa com a mesma sensação. Pela segunda vez na vida, a primeira sendo esse ano na cooperativa, eu sinto que estou trabalhando. Eu me sento com minha esposa e meus filhos e tenho um ar agraciado, uma sensação de plenitude e segurança. É isso! Finalmente consegui! Finalmente eu tenho a literatura como algo particular, inviolável, espiritual e despojado, e para a qual eu me sinto progressivamente apto. Compreendo o que é deixar grandes empregos e a vida confortável pelo trabalho espiritual que lhe salva, que justifica a vida. Essa noite mesmo, com insônia, eu continuei a escrever, e me veio a vontade estranha de extrair manualmente o cansaço e a necessidade de repouso para poder escrever mais. Não estou nem aí se isso não vai dar em nada; acredito que vai, sim. Nunca me lamuriei por achar que a literatura deveria me receber em algum lugar digno de sua casa. Isso é mitologia e não existe. O que você escreve com a alma sempre vai ser lido; há sempre um lugar.

domingo, 6 de março de 2016

Moral em pareidolia



O texto que se segue não contém uma linha sequer de ironia. Na sexta-feira me emocionei com o discurso do Lula, transmitido ao vivo pela internet e pela Globo News. Ficou incontestável para mim que o Lula é um gênio. Que birra é os que dizem que ele é analfabeto, etc, etc. Sua retórica é inigualável, seu nível de cultura é evidente através da força_e da beleza_ de suas palavras. Não detectei nenhuma palavra errada, nenhuma sintaxe incoesa em seu pronunciamento de ontem. Embora sua versatilidade no uso da palavra tenha essa tranquilidade dos extremamente habilidosos que dispensa o melindre e a vaidade. FHC e tantas e tantas outras companhias são crianças balbuciadoras perto dele; e o que dizer dos comentaristas facebookianos que faltam babar de tanta insolvência intelectual? Ninguém é páreo para ele. Gravei o vídeo e o re-assisti duas vezes. Como Lula é cativante; não há ninguém no Brasil hoje que sequer chegue perto do fascínio despertado por suas palavras. A magia era tanta que, assim que a Globo parou de transmitir, as duas repórteres que apresentavam o programa purgaram um silêncio impactual de um longo segundo, como ocorre quando algo incrível se encerra com seu efeito suspensivo da realidade e o tempo volta com sua tristeza gravitacional. As duas mulheres tiveram que se haver com a indevida grossura de suas vozes e a total sensaboria de seus assuntos. O discurso do Lula foi tão belo que me lembrou daqueles velhos generais de Garcia Marquez que, de uma hora para outra, são redespertados pela fúria do Espírito Santo e voltam rejuvenescidos para a batalha, como se seus setenta anos fossem a marcação etária mediana de uma existência de longevidade bíblica. Aliás é isso: Lula é bíblico, faulkneriano. Vou dizer a verdade, pode ser síndrome de meus 40 anos, pode ser a nostalgia infernal da leitura dos tempos elétricos de fé da biografia de 3500 páginas que estou atravessando de Dostoiévski, pode ser a reavaliação de tudo que eu sempre faço em que tudo que acredito passa a bambolear seriamente sob o peso da consciência do quanto pouco eu sei, mas,... eu me vi dando um voto de confiança para o Lula. Liguei, assim que o pronunciamento dele a acabou, para um amigo, e lhe perguntei, em voz baixa e com a euforia do que tinha visto: "Será que o cara é inocente?". Meu amigo, um professor em Tocantins de férias por aqui, que me brindou com uma conversa magnânima de duas horas sobre Thomas Piketty, respirou aliviado, vendo que enfim surgia uma brecha para que também ele parasse de fingir e pusesse a falar a verdade, me respondeu tudo o que minha esperança queria ouvir. E o que ele falou foi muito pessoal e relativo, e não repetirei aqui. O que sei é: eu sou pobre. Sempre fui pobre. Aliás, esses dias fui levado a pensar, vendo o quanto as pessoas que me cercam, colegas e conhecidos, vivem obcecados por dinheiro e preocupados até à exaustão em se enriquecerem: eu nunca me preocupei com dinheiro.  Nunca perdi um minuto de meu sono pensando em dívidas ou do que planejava comprar para mim. Nem depois de ter a primeira filha, nem depois de ter um segundo filho. Minhas roupas são as mais funcionais possíveis: tênis, jeans e camiseta, sempre e invariavelmente (algumas vezes uma camisa social, o que me deixa aflito). Vivi anos sem carro, e não tenho a mínima ideia de como se dirige uma moto. Minha esposa me conheceu assim: íamos à pé para tudo quanto é canto, andávamos abraçados de madrugada voltando para casa, quando namorados. O dia em que comprei um carro, a esperei na rodoviária onde ela desceria do ônibus para passar o fim de semana aqui em casa, e quis surpreendê-la mostrando o veículo, a Dani expressou uma total decepção. Disse-me na bucha que não estava feliz. Semana passada ela se lembrou das vezes em que andávamos por toda a cidade em sua bicicleta, ela na garupa e eu pilotando, e me disse aquela frase chavão de "o quanto éramos felizes naquela época", ao que eu consertei: "ainda somos imensamente felizes hoje", ao que ela concordou. Pois bem, sou pobre, sempre ganhei dinheiro por conta própria, sem bajular ninguém, sem passar a perna em ninguém, e com boa dose de participação de minha atividade mental. Nunca passei necessidades, comemos do bom e do melhor, como dizem, e temos todo o conforto possível, além do indispensável: todos os livros que queremos, toda a música que queremos. Isso posto,

devo dizer, sem refinamentos e empolação, que gostaria muito que o Lula estivesse certo, pois jamais votaria em alguém da oposição a seu governo. Jamais votaria em Aécios e o escambau, que são muito, muito, muito piores que o Lula. Sou demasiadamente inteligente para não ver o caráter idílico dessas minhas esperanças, mas não sou um otário útil, não sou um pertencente ao rebanho do Facebook. Como pobre, tenho que defender meus interesses. Como disse alguém, devemos ter cuidado com essa coisa de condução coercitiva de um líder político de alta envergadura, pois em 500 anos de história, nunca tivemos 20 anos seguido de liberdade democrática. Por mais que pareçam lindas as indignações pelas redes sociais, somos uma nação de semi-escravos e de mão-de-obra barata. Antes do Lula no poder, não havia nem 5% dessa capacidade de pleno consumo que o brasileiro padrão tem hoje, mesmo nesses anos de recessão econômica. Há uma frase no Facebook que vou citar sem oferecer a fonte, pois não me lembro do autor, mas que é genial: "O Brasil tem cinco presidentes vivos. Quatro deles são investigados pela polícia federal. O outro é o Sarney". É uma radiografia perfeita da nossa situação. Tirei isso do Facebook do Idelber Avelar, mas a frase não é dele. Há uma verdade profunda, disforme e nada dada a formalizações moralizantes nessa aceitação de que todos os políticos roubam no Brasil, todos os políticos são uns corruptos, e por isso devemos ser o povo mais pragmático em vermos o que é de nosso interesse. Não há bandidos maiores e mais nefastos do que os do partido cuja sigla se pronuncia PSDB. Se o PT fracassou com extrema desfaçatez na condução moral na política, o PSDB é o suprassumo da maldade e da indiferença quanto a pessoas pobres como eu. Lembro de que na minha juventude, havia 4 marcas de carros, duas marcas de chiclete (Ploc e Ping-Pong), uma marca de palha de aço para lavar panelas, três ou quatro marcas de televisores..., havia uma profusão de tubaínas de fundo de quintal..., havia, em minha juventude (que não faz tanto tempo assim, mas apenas 20 anos), um clima soviético; supermercados desabastecidos, uma economia que não foi feita, deliberadamente, para comportar consumidores, mas de uma massa de assalariados dirigidos compulsoriamente a prestarem reverência a algumas poucas indústrias internacionais. Lembro o quanto eram caros coisas como chocolates suíços; eram tão caros, que era um sarcasmo os supermercados os mostrarem em suas estantes especializadas em importados; os azeites espanhóis, os vinhos portugueses, coisas que eram inadmissíveis para uma sociedade planificada como era o Brasil de fins dos anos 1980 e começo e meados dos anos 1990. O Brasil era a união soviética. Minha mãe, advogada, funcionária pública, só conseguiu comprar um carro há dez anos. Carro era algo que se via nos filmes americanos e parecia coisa de ficção científica. Não, não o foi o FHC; isso é o mais rasteiro clichê. A economia melhorou exponencialmente com ele, mas para nós, os pobres, ainda permanecia solenemente fechada, com um salário mínimo que não chegava a 100 dólares. (Alguém aí sabe o que é um salário mínimo não chegar a cem dólares, e os economistas, os catedráticos altamente graduados da direita, sempre aparecerem na tv, pomposos e com papadas que eram o início exposto ao vivo de seus excelentes e calmos sistemas digestivos, sentenciarem que era o sonho do governante, mas uma impossibilidade quântica que faria explodir a sociedade, se os salários fossem para cem dólares? Alguém concebe tal realidade?) O grande FHC, o cara que é um dos 4 investigados pela PF, que recentemente falou em um programa de televisão fechada que tem essa vitalidade e essa saúde mental por causa da genética (gente assim não consegue esconder a eugenia e a seletividade classista nos meandros de seus mais triviais discursos), melhorou a economia, mas nos deixou de fora. Carros ainda seriam, por um bom tempo, belezas esmaltadas usados em rachas mortais dos filmes baseados na obra de Stephen King que servia a nós vermos o quanto eram felizes os jovens norte-americanos revoltados. Lembro bem a tristeza resignada que me despertava o filme De volta ao futuro, com aqueles bairros populares arborizados com esses carros esmaltados estacionados na garagem, a tv imensa, os aparelhos de som, até as luminárias dos tetos diferentes, que mostravam o quanto eram coisas alienígenas para nossa economia planificada, o nosso grande gueto de classe segregada da minoria que tinha crédito bancário, salários altos, e supermercados inteiros diferenciados que vendiam de tudo que havia de maravilhoso para consumir no mundo lá fora, até chicletes de banana com figurinhas do Capitão Gancho.

Foi o Lula que fez isso, não foi o FHC. Em 500 anos de história, só nos foi dado o papel básico de uma sociedade democrática, o direito óbvio, de sermos consumidores, no governo Lula. Não me venham contestando isso. Só um louco ou um cara muito depravado iria contestar isso. A direita no Brasil é a pior direita do mundo. A mais radical, nefasta, com um organismo acostumado com o funcionamento pleno que basta lances imediatos e espontâneos para se organizar com incrível coesão e efetividade. É uma direita extremamente perigosa, com a qual não se pode brincar nem se distrair. Tenho um casal de sobrinhos, irmãos, que se formaram recentemente em medicina, graças a benefícios do governo e ao suor de seu pai (simples eletricista de aparelhos domésticos que mora em uma cidade de 10 mil habitantes), que, em seus Facebooks não param de arremedar a cantilena depreciativa de Fora Dilma, de que Lula isso, Lula aquilo, de que PT isso e aquilo. Dois otários que não sabem nada de história, descerebrados ávidos por se tornarem milionários e se inserirem no processo confortável de macaquearem clichês.

O Brasil sempre foi um país privado para o uso de uma minoria. Cuidado com isso. A moral professada nesse país sempre foi, citando as palavras do Lula, pirotécnica, como não deveria de ser para um povo ególatra e alienado, burro ao extremo, conduzido. Uma moral em pareidolia, como o efeito das nuvens que parecem dinossauros e amazonas montadas; como a figura de um fantasma que se vê na névoa de madrugada, ou a cara de Cristo na mostarda passada na bolacha. A moral que se vê no ataque ao Lula, o cara que subiu o salário mínimo a patamares nunca imaginados pelos sisudos economistas da direita, o cara que deu ao brasileiro padrão o direito a conta no banco e o crédito fácil (enriqueceu sobremaneira mais ainda os banqueiros, como deve ser no xadrez da vida real), é uma confluência de jogatinas da mídia, do judiciário, da policia e de diversos outros setores do país, tendo no centro, o peão do idiota útil das redes sociais. Uma confluência que não significa uma moral unitária e calculadamente programada, nunca significou, mas que forma na névoa das ganâncias pelo poder e por retornar a imobilidade de classes como era há 20 anos uma aparência de moral.