tag:blogger.com,1999:blog-42884300656300878602024-03-18T22:55:47.646-03:00charlles camposcharlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.comBlogger715125tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-39278057864017564712024-02-16T09:38:00.005-03:002024-02-21T15:54:38.354-03:00Uma distante rua em Omsk<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"> </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: medium;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-1Od6jFP-5yF2If88vcQWVme4WhUp76AmvJMyJmXudR871W3vHWEhjN1rK_V14rb7MpihaWzWopkbva8FhxtWlUBlvS6HvM_6QLJ_80m1BmtasD5BxCUXmXH5lkNxjTAcGZYsJqYHXJt9V2_iMh7W7Ui4tQKF-_XRa9tDewkRvktZNmBsW5ly69dh0SU/s1280/sombreiro2.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1280" data-original-width="1280" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg-1Od6jFP-5yF2If88vcQWVme4WhUp76AmvJMyJmXudR871W3vHWEhjN1rK_V14rb7MpihaWzWopkbva8FhxtWlUBlvS6HvM_6QLJ_80m1BmtasD5BxCUXmXH5lkNxjTAcGZYsJqYHXJt9V2_iMh7W7Ui4tQKF-_XRa9tDewkRvktZNmBsW5ly69dh0SU/w400-h400/sombreiro2.jpg" width="400" /></a></span></div><span style="font-size: medium;"><br /><span style="white-space-collapse: preserve;"><br /></span></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span><span style="white-space-collapse: preserve;">Minha vida em busca do esclarecimento me mantém fora das formas pré fabricadas de pensamento, e eu sempre segui no sentido contrário do senso comum e do padrão instituído, seja da sociedade, da ciência, da filosofia, etc. Eu não digo que creio e nem que não creio. Eu posso afirmar apenas que me foi dado o sistema sensorial mais sofisticado do universo, com meu cérebro humano e toda a mágica intuitiva que ele me proporciona. Esses dias eu falava a uma amiga que ela, que tem 41 anos, é ainda muito jovem, pois não perdeu ninguém. Eu, quando tinha essa idade, era cercado por todos que ainda estavam vivos. Hoje, meus principais amigos já morreram, e eu sinto o estranho epíteto tardio de ser órfão. Era algo inimaginável essa solidão. Minha cunhada passou mal ontem em seu trabalho, e quando estava sendo socorrida viu entre seus colegas o seu pai, parado a observando. Seu pai que morreu faz dez anos. Meu melhor amigo, Galeb, que era um profundo espiritualista de enorme cultura, me disse, duas semanas antes de morrer: "você aciona o gravador em sua biblioteca silenciosa e pergunta por mim. Eu virei te dar a prova". Minha mãe morreu, eu visitei pela última vez seu apartamento desolado, um local que me trazia tantas e tantas lembranças. No quarto escuro, com aquele vazio duplamente profundo dos ambientes deserdados, eu forcei para ver o vulto dela sentado. Lembrei de Houldini, que procurou em vão pela mãe morta em invocações rituais. Tirei fotos, para ver mais tarde. Quem sabe algo pudesse ser flagrado, nebulosidades sutis, luminescências evasivas. Uma manhã, semana passada, eu acordei com a certeza de ter sonhado a noite inteira com o Galeb. Não me lembrava de nada, só de que fora uma das nossas conversas iluminadas e arrebatadoras. Será que é assim? Será que o espírito é mais sutil? De minha mãe eu sonhei não com ela, mas com sua ausência. Uma viagem que ela demorava por voltar. Uma tarde, estando sozinho em casa, ainda inconsolável, eu peguei enfim o gravador do celular. "Galeb, você está aí?". Deixei gravar cinco minutos. Ouvi e reouvi, no computador e na tv. Chiados, a estática que lembra o som residual da criação do universo e o som das nebulosas. Mas isso não quer dizer nada. Se ele respondesse prontamente, esse sacana inveterado, aí sim eu não iria acreditar. Iria achar que era uma distorção do meu anseio por ouví-lo.</span></span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-40449123521175738292024-01-30T10:01:00.005-03:002024-01-30T10:03:33.287-03:00Resto<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-gjZBjkGec0N2w3Y46vBsFMgTsrrHEoKY5_oN8ibAH6kHpIQ2WGyFrtZs4d7X3LZ9q4M_5Vz9RyxkB7h51BzFkAP-NW_t6LmbPjBW4MV2I8aEVdnlG5jog0TaH6uvzJxaMSCMOFg30BUy-P8s9nJQkcKI4hHm5TeteGPdRcHKCWgtfcUUWcSA8u_Fh_E/s225/images.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="225" data-original-width="225" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh-gjZBjkGec0N2w3Y46vBsFMgTsrrHEoKY5_oN8ibAH6kHpIQ2WGyFrtZs4d7X3LZ9q4M_5Vz9RyxkB7h51BzFkAP-NW_t6LmbPjBW4MV2I8aEVdnlG5jog0TaH6uvzJxaMSCMOFg30BUy-P8s9nJQkcKI4hHm5TeteGPdRcHKCWgtfcUUWcSA8u_Fh_E/w320-h320/images.jpg" width="320" /></a></div><br /><div><br /></div><p style="text-align: justify;"></p><br /><div style="text-align: justify;"> <span style="text-align: justify;"> </span><span style="text-align: justify;">Quando ela voltou da cozinha com as chaves, tendo corrido a cortina da janela para que também ali o sol não entrasse, encontrou-o onde o havia deixado um pouco mais cedo, sentado em sua poltrona de couro. Como todos os anos, naquele dia, ele em nada mudava seu itinerário pela casa, apenas exercendo com mais peso a sua inércia astuciosa, acordando de madrugada, vestindo-se com menos apuro do que antigamente mas ainda assim a camisa velha e as calças de brim lhe dando um ar perfeitamente composto e sóbrio. Dormia_ o que ela sabia por conhecê-lo tão bem, por ser por cinco décadas a receptora atenta de todos seus gestos e manhas, de toda a ordem marcial que desde o primeiro dia em que ele a pusera para viver naquela casa ela pressentira que aquilo se tornaria com a velhice um decálogo de preconceitos e ódios por tudo que lhe fosse diferente. Seus braços não se descontraíam no sono, mesmo pousados cada um no espaldar da poltrona mantinham uma atitude belicosa, os dedos artríticos encrespados segurando-se na borda do couro como se temesse uma repentina ruptura na constância de sua falta de sonhos; seu rosto como uma máscara mortuária, ela não sabendo dizer o quanto era desesperadamente inexpressivo com aquele crânio querendo se libertar da pele, as sobrancelhas sempre contraídas como se _ela pensou_ no fundo nunca tivesse feito outra coisa além de repudiar violentamente a si mesmo. Quando ela se aproximou mais, um tremor descomunal a fez se segurar na mesa da sala. Meu Deus, pensou, como ele sempre fora apiedante e solitário. Não um demônio, mas um ser muito mais baixo e sem legitimidade, a verdadeira vítima. Só uma mulher como ela poderia amá-lo como ela o amava, e só uma velha como ela poderia perceber o desassombro e a extensão desse amor. Não havia muito o que amar naquele corpo. Era tão insubstancial como um bebê que tivesse-lhe saído inteiro e com toda impossibilidade de esperança de dentro dela. Como se pudesse substituir o que se fora por aquele e tal substituição só agora fosse concluída, só agora quando não mais lhe serviria a proteção que ela lhe daria e pelo pouco tempo que lhes restava. Quando ela passou por ele sabia que o despertaria de seu tênue sono. Estava preparada para se deixar segurar pelo seu olhar irredutível, e como se a compaixão tivesse extravasado e contaminado o ambiente, percebeu um tom novo nos olhos dele. Como se lhe comunicasse que estava disposto a ceder dessa vez, se ela não lhe pedisse, se, nesse ano, ela não lhe pedisse, o isentasse de ter de proibi-la, se soubesse agir por conta própria. Sem fazer questão de esconder as chaves, ficou mantendo o olhar no dele, como se tivessem a nítida consciência de que se seguravam um no outro por aquela delicada fimbria de sanidade. Então ela não perdeu mais tempo. Avançou escada acima com determinação, com todas as suas forças, ouvindo-o dizer pelas suas costas com sua voz cinzenta de barítono aposentado:”ele nunca precisou de nós”, contra o que ela lhe devolveu a frase que havia segurado por tanto tempo “como não se ele está me chamando, será possível que não o escuta chamando pela casa toda”, mas não lhe saindo nada senão um esgar cansado e agudo e firme. Depois de subir as escadas, colocou a chave na fechadura, sentindo uma alegria selvagem que devia lhe acentuar ainda mais o ar de doida varrida, e destrancou a porta. Riu ao imaginar a possibilidade daquele velho dar um pulo da poltrona e escalar as escadas de três em três degraus para impedi-la. Empurrou a maçaneta e a porta se abriu lugubremente. Ele estava deitado na cama na mesma posição que o deixara. Estava acordado e a olhava com serenidade, não parecia ter duvidado que ela lhe responderia ao chamado. Ela avançou com um sorriso trêmulo, não acreditando mas sabendo que era verdade. Sua percepção de dona de casa admirando que os móveis estivessem tão limpos, e lençol e o cobertor tão brancos que podia-se percebê-los na penumbra. Caminhou com cautela até a cama, sentou-se a seu lado ao mesmo tempo em que ele se levantava das cobertas. Conteve-o carinhosamente com seus velhos braços, impondo a força necessária para mantê-lo abraçado. Sentiu o hálito característico de quando acordava pela manhã mas dessa vez não lhe lembraria de escovar os dentes ao se levantar. Queria apenas continuar a tê-lo nos braços, não o soltaria dessa vez por nada e estava determinada a esquecer de tudo, de avisar ao velho o quanto ele estava enganado esses anos todos, abraçá-lo firme e esquecer de dar asas àquela observação involuntária de como as cicatrizes no corpo dele haviam se reduzido a linhas delgadas, que haviam tornadas imperceptíveis até quase desaparecerem por completo. </span></div><p></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-14922783774410624312023-12-05T19:17:00.003-03:002024-01-30T12:28:26.971-03:00Ioan<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2a3LchkqftF4-huvl-QLI8wjSaxY0rjt5nB85-qlEeTm4bXeVNHkA6N3UErv8HKJOiINORL1hcdE3RJ4ArJGfs8qYTsOy63_23npfwdT7RDSDGGwrwjakURD-ILuc8Jgj4p7oMJX1CuxZD0L6Nrfhyphenhyphen6YzkOvAAVS5Z27eOoix2LJaztePO3rMPLt2VyU/s1113/pexels-photo-7785175.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="750" data-original-width="1113" height="270" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi2a3LchkqftF4-huvl-QLI8wjSaxY0rjt5nB85-qlEeTm4bXeVNHkA6N3UErv8HKJOiINORL1hcdE3RJ4ArJGfs8qYTsOy63_23npfwdT7RDSDGGwrwjakURD-ILuc8Jgj4p7oMJX1CuxZD0L6Nrfhyphenhyphen6YzkOvAAVS5Z27eOoix2LJaztePO3rMPLt2VyU/w400-h270/pexels-photo-7785175.jpeg" width="400" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"> <span color="var(--primary-text)" style="font-family: inherit; font-size: 0.9375rem; white-space-collapse: preserve;">Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha </span><span color="var(--primary-text)" style="font-family: inherit; font-size: 0.9375rem; white-space-collapse: preserve;"><a style="color: #385898; cursor: pointer; font-family: inherit;" tabindex="-1"></a></span><span color="var(--primary-text)" style="font-family: inherit; font-size: 0.9375rem; white-space-collapse: preserve;">nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.</span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-33012418138120745392023-11-24T11:36:00.004-03:002023-11-24T11:36:27.378-03:00A chegada dos hunos<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizSrqvaLGZP9xZo3JDRWrQSxRf9WUoSfoAKbe9brJ1JXFS2zIDO1tTpFQLmepJj17toRaQJG1wAspa_3XzH3PnvcU2lPZfNxdhUh3x1ps6USn9s488GiMLUwOhPpzzDuhzDBczwbNoOy2YA5j1YHS24RwuxEA9LNKUkDMoi9nQV9pC_YshX8OYx1abGqw/s557/natureza-morta-com-vidro-sobre-a-lampada-de-pablo-picasso.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="467" data-original-width="557" height="335" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEizSrqvaLGZP9xZo3JDRWrQSxRf9WUoSfoAKbe9brJ1JXFS2zIDO1tTpFQLmepJj17toRaQJG1wAspa_3XzH3PnvcU2lPZfNxdhUh3x1ps6USn9s488GiMLUwOhPpzzDuhzDBczwbNoOy2YA5j1YHS24RwuxEA9LNKUkDMoi9nQV9pC_YshX8OYx1abGqw/w400-h335/natureza-morta-com-vidro-sobre-a-lampada-de-pablo-picasso.jpg" width="400" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"> <span style="text-align: justify;">Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia</span><span style="text-align: justify;"> </span><i style="text-align: justify;">"Valentina"</i><span style="text-align: justify;">", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico,</span><span style="text-align: justify;"> </span><i style="text-align: justify;">"Mais valia".</i><span style="text-align: justify;"> Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer</span><span style="text-align: justify;"> </span><i style="text-align: justify;">"Mais valia"</i><span style="text-align: justify;">. Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?</span></p><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Daí foi que notou que uma voz próxima à cabeça era talvez mais aflitivo a longo prazo do que a visão de luzes. Se deu por isso quando estava sentado no sofá com Eike, assistindo à final do campeonato Macarrões <i>Tornytonny </i>de perguntas e respostas na televisão, um programa com índices de audiência devastadores para a economia do país que tinha que parar e fechar as portas dos comércios mais cedo, e que a secretaria de transportes públicos tinha que espremer todas as cartilhas de gestão de riscos para fazer os metrôs e ônibus chegarem com a frota aumentada em seus devidos pontos e estações meia hora antes dos horários costumeiros e assim antes do espetáculo começar afim de evitar qualquer comoção social, qualquer guerrilha ativada pela astúcia da história, e que só os macarrões <i>Tornytonny </i>era quem lucravam com essa bem arranjada estratégica das agências da mídia. A massiva exposição das embalagens coloridas do macarrão instantâneo, que obedecia à ordem do prisma de degradação da luz branca assim como cada luz correspondia a uma foto suculenta de sabor_ vermelho para camarão, amarelo para frango caipira, verde para molho de verduras, marrom para picanha_, fazia com que os receptores neuroniais que se desembocavam nas papilas gustativas ficassem em estado de frenesi paranoico pavloviano. Eike estava devorando seu prato de macarrões <i>Tornytonny </i>sabor pimenta dedo-de-moça, os filetes helicoidais tensionados no alto do garfo próximo à boca descendo por trinta centímetros de rastafári de materialização química suculenta, enquanto à sua frente descansava no colo uma massa quatro-queijos de macarrão <i>Tornytonny </i>cujo abandono paulatino de vapor o transformava em algo próximo à condição sintética, quando a voz voltou com tudo. Tinham passado a tarde daquele primeiro dia (ele e a voz), em estática entrevista sensual de namoro, sentado sozinho no apartamento competindo com as palmeiras quem simulava com mais sucesso indiferença ao ruído dos carros que passavam na rua abaixo, <i>ela </i>lhe contando sobre as regiões de pura eternidade que deixara para estar ali com ele, e ele às vezes pontilhando a sinfonia sincopada com monossílabos de inadvertência que deveriam reforçar a simbiose inter-genérica que se formava entre eles. Estava mesmo ficando louco, pensava, enquanto balançava a cabeça afirmativamente para não ser indelicado em deixar a voz pensar que falava sozinha. Seu sistema mental estava em franco erodimento, agora de uma vez por todas e sem desculpa. Suava frio e agradecia por estar sozinho para suportar aquilo: o dia em que o cérebro de Eme Skhole enfim se transformou em geleia. Talvez por o medo ter se acentuado demais nele, a voz por <i>finesse </i>resolveu dar um tempo, como uma dama que percebe que os coquetéis que tomou a mais começam a abalar as boas maneiras exigidas pelo anfitrião da casa. Ele pôde restaurar a fundação sobre a qual se equilibrava o antropológico aparato de suas certezas motivadoras básicas, e prosseguiu. Até o momento em que o apresentador do perguntas e respostas do Macarrões <i>Tornytonny </i>fez a sua primeira pergunta para os dois participantes, aqueles dois hunos apostólicos que impiedosamente escalpelara mais que metaforicamente todos seus adversários em dez semanas cruentsa até chegarem ali em glória diante toda a nação para concorrerem ao prêmio de meio milhão. As perguntas começaram com pouca dificuldade, referentes a ciclos geodésicos e estações do ano. Para um cidadão comum eram algo impossível para seus cérebros mutilados pela passagem por um rápido e circunstancial sistema de ensino responderem, e que tinham uma poesia embotante tecida propositalmente para levemente insinuar acolhedoras situações para se comer o Macarrão <i>Tornytonny</i>. Até que Eme deu-se por vencido de que ele próprio, saído de um ciclo nababesco de carros de motores injetados e sexo nos banheiros da escola com meninas destinadas a integrarem o exército do assistencialismo público, não poderia saber as respostas às perguntas mais complicadas dos últimos blocos do programa. Mas mesmo assim, as respostas lhe vinham assopradas no ouvido: <i>u`+ u3 - u, Zona de Convergência Intertropical, Kaminaljuyú, Soledad Orozco, Plutão, nó de escota, Marlene Dietrich e não Karoline Herfurth. </i>Repetia baixinho somente para si mesmo, para confirmar a cola soprada pela entidade imaterial, sem que Eike ouvisse, e segundos depois a mesma resposta aparecia sendo dita na tv. Foi para o quarto antes da pergunta final e se olhou no espelho, tampou os ouvidos com força até que só pôde notar a retumbância do zunido pulsando nas têmporas, e bem na superfície daquele isolamento de músculos e nervos contraídos escutou com cinzelada nitidez a voz lhe sussurrar uma palavra. <i>Maersalalhasbas</i>. Voltou para a sala enquanto os confetes e serpentinas caíam por sobre o ganhador, um rapaz de óculos com uma camisa negra de mangas compridas dos cortadores de pulso fracassados que permanecia congelado em incrédulo contentamento no meio da euforia caótica de plateia e apresentador estridentes, e fez a pergunta mais angustiante de seus treze anos de casamento por ela não ter nenhuma salvaguarda de trivialidade que deveria ter, ao que Eike lhe respondeu sorridente, se afundando de alívio no sofá junto com 40 milhões de outros espectadores pelo país: <i>qual o nome do filho de Isaías?, dá para acreditar que perguntaram isso? quem iria saber?</i><br /></div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-3834273618236009162023-11-15T21:25:00.008-03:002024-02-17T10:29:04.552-03:00A perrenga entre o Bom Samaritano e o Falo Ancestral (curtas sobre sexo)<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://2.bp.blogspot.com/-DN3AjoIvtmk/V2P2VSBPy-I/AAAAAAAAF9M/DSrz7DERHFYiOs4PrhAXWeR7NjQrCfvwwCLcB/s1600/images%2B%25284%2529.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img border="0" height="380" src="https://2.bp.blogspot.com/-DN3AjoIvtmk/V2P2VSBPy-I/AAAAAAAAF9M/DSrz7DERHFYiOs4PrhAXWeR7NjQrCfvwwCLcB/s400/images%2B%25284%2529.jpg" width="400" /></a></div><p></p><p><br /></p><p style="text-align: justify;"> <span style="text-align: justify;">Sem exceções, todos os homens da família da minha mãe, uma ora ou outra na vida, já destruíram suas vidas por conta de sexo. Há inúmeras histórias sobre esses homens que começam nelas como desbravadores incautos, animais superiores com amplos recursos de competição, e terminam em camas de hospitais, no bilhete não escrito do suicídio tentado, na bancarrota financeira, na separação de filhos e esposas. Entre eles, literalmente, dois ficaram loucos: um deles deixou tudo que tinha e sumiu no mapa, tendo-se notícias não confiáveis de que vaga pelo sul do país, em estado de semi-indigência; o outro ficou em coma por dois meses, depois da surra do marido da amante, e quando acordou a primeira coisa que disse, ainda entubado, era que precisava sair dali para ir atrás daquela que era o amor da sua vida.</span></p><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> _____________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Todos eles, uma ora e outra, confessaram sem mistérios para mim que o sentido de suas vidas era "a buceta".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> ______________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Um desses tios, quando se deparou com uma namorada minha saindo da casa da minha mãe, me chamou de lado com a cara séria de quem iria me dar um profundo conselho filosófico, e me disse: "Fica de olho nela, porque senão eu como".</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> _______________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Daí fica fácil entender que desde criança, despertada em mim a sexualidade, eu vi a obsessão sexual como uma sina a qual eu deveria combater. Senti o furor da co-sanguinidade avuncular tentar várias vezes me atirar no fundo desse poço. Todas as pessoas tem muitas histórias escusas para contar sobre sexo. Todas. Talvez seja o assunto mais rico para a literatura. Meu pai certo dia quis me ensinar sobre masturbação, enfiando a mão dentro de minha calça e me afagando com carinho didático. Eu fugi e encenei assombro sobre o que era já uma prática adquirida que eu conhecia há tempos. Muitas vezes na adolescência aquilo me cansava; eu repudiava sem nenhuma força de vontade o que eu sabia ser um fator fisiológico vazio, bestial, que a evolução havia exagerado demais em seus símbolos e seus terrores como se não confiasse nem um pouco que nossa espécie teria ensejo por conta própria para prosseguir se reproduzindo. Freud e todas as patologias mais grotescas surgidas por conta do sexo na verdade traz a assinatura paradoxal de que a evolução supervalorizou o fetiche do sexo temendo que as raízes perniciosas da filosofia ascética e da contemplação esotérica no homem o extinguisse pela ausência da libido. Sexo não traz redenção. É uma estupidez certos gurus, escritores e religiosos acreditarem que o sexo é divinatório. Sexo só é destruição e morte, escravização cultural e de gênero, infantiloidismo do envelhecimento que não se aceita.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> ____________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Minha primeira vez foi aos 15 anos, com uma prostituta grávida de seis meses que me convenceu facilmente a não usar camisinha. Estava eu na companhia de dois amigos, no puteiro histórico mais pérfido da capital, hoje fechado há muito tempo. Um amigo me aconselhou ficar roçando o bico do peito para facilitar a excitação. Todos nós estávamos ali para perdermos a tal virgindade. Eles foram primeiro, cada um de supetão, vencendo o enorme terror, e escolheram suas mulheres. Fiquei por último, pensei em fugir e mentir depois, já que não havia testemunhas. Mas fui. Cegamente. Ela estava escorada na parede, falando com um rapaz, e se surpreendeu quando lhe perguntei se ela poderia... Levou-me até a porta do quarto, e, com uma singeleza que denunciou que ela era também bastante infantil, perguntou se não se importaria com sua gravidez de seis meses. Aí que eu vi sua barriga. Eu me desculpei, disse que não tinha visto, que não dava, e já me afastava quando ela me segurou pelo braço e pediu um misericordioso "por favor". Fiquei com pena dela e de mim, e entrei no quarto, me despi, e ela pediu que fosse sem camisinha, pois a machucava. 1989, a AIDS em todo vigor, e eu aceitei. Talvez porque queria acabar logo com aquilo, talvez porque tinha absoluta certeza de que não teria uma ereção e isso me salvaria, talvez porque fosse uma das minhas táticas inconscientes para combater o Falo Ancestral assegurando que experiências realistas iria acabar com o fetiche exagerado do sexo. Mas consegui; não senti o mínimo prazer. Meu sucesso foi tanto contra o Falo Ancestral que passei a pensar que a evolução descartava sem muita atenção homens dispostos à assexualidade como eu; em sua eficiência de milhões de anos, o gene vestigial era desprezado com uma matemática facílima, com uma indiferença voraz.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> ____________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Demorei 4 anos para voltar a fazer sexo. Minha primeira namorada. Ambos virgens. As primeiras vezes foram catastróficas. Direcionamento manual, complacência, carinhos de consolo. Daí, como se o Falo Ancestral contra-atacasse, de madrugada no SBT vi um filme pornô. Uma suruba de mulheres loiras e homens com cara de eunucos atarefados com desconsolados pênis super-explorados no mercado de trabalho à custa de rebites. Essa namorada, uma loira de um metro e oitenta, se parecia com uma das atrizes. Daí foram 4 anos de sexo intenso com essa namorada. Aonde íamos tínhamos que transar. Uma vez fizemos num estúdio da faculdade de jornalismo. Outra vez na piscina do primo dela. Outra no quarto de um apartamento em uma festa de aniversário infantil de gente que mal conhecíamos. Fiquei tão obcecado que vendi livros do Garcia Márquez por conta de pagar simples três horas em um motel fuleiro. Sei que pouquíssimas pessoas tiveram experiência sexual tão plena quanto eu e essa namorada. Fiz uma sucessão de besteiras no término do namoro. Minha chance desperdiçada de honrar a estupidez dos machos da família. Quebrei o pé e fiquei meses encamado, até que a fúria se escoasse. Não sobrou nada. Fiquei novamente em paz, imunizado. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> __________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Eu tive uma vida sexual movimentada. Até os 35 anos fui um cara bonito. As mulheres que estiverem lendo isso, por favor, não caiam na besteira de me mandarem cantadas achando que sobrou alguma coisa. Hoje sou um senhor distinto, e indisposto a novas adolescências. Mas teve épocas em minha vida que se abriam para mim oportunidades tantas de cometer sandices e destruir-me por conta do sexo. Quando falo em minha luta contra isso, falo seriamente. Fui criado em meio de mulheres, o que me fazia mais consciencioso. Uma vez fui assediado por uma tia de um amigo, uma mulher que eu tinha absoluta certeza de que seria um erro fenomenal. Ela me daria aquilo que costumam chamar entre o credo maçônico de "chá de buceta", e eu me arrastaria a seus pés, venderia minha mãe para poder voltar a lamber os pés dela. Nos encontramos em uma festa, em que eu estava com esse meu amigo, ela me chamou para dançar, me levou a um canto e me beijou. Dessas mulheres em que o homem é que é a mulherzinha dominada. Era uma nêmesis, linda até o podre da alma. Ela me ligava, falava coisas que me deixavam ainda mais recolhido em minha mulherice ameaçada. Marcamos um encontro na porta do apartamento que um outro amigo me emprestara para a consumação de meu defloramento, ela dizendo que seria possível pois seu marido, um policial militar, estaria viajando. Eu esperei ansiosamente uma semana por esse dia e, pausa, não fui. Isso eu tinha 25 anos. Esses dias a encontrei pelo Facebook. Ela estava inchada, com outro marido. Pelo que li de alguns posts, em que agradecia a deus, ela sobrevivera a alguma doença séria.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> ______________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não gosto de pornografia. Não sou desses que olham a bunda de mulheres na rua. Não olho sequer para mulheres na rua. Não gosto de sexo na literatura. Acho chatíssimo sexo na literatura. Como se, existindo literatura entre as abelhas, a experiência estetizada da cópula do zangão antes de ser deportado para morrer fora da colmeia fosse algo passível de significados profundos. O único sexo que dá certo na literatura é a sua contestação, assim Philip Roth, assim Nabokov, assim Houellebecq; o sexo fisiológico, simples e besta, tipo Henry Miller, é descartável, ainda mais na época em que o sexo é escrachadamente visual e gratuito como hoje.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> ___________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Teve aquela vez também, em que o Falo Ancestral fez com que eu seguisse o carro de um colega até que ele deixasse sua namorada, que havia me passado um sinal no barzinho que acabávamos de deixar, em casa. O colega assim que dobrara a esquina, ela veio na surdina e entrou em meu carro. Ficamos no agarro várias horas, mas ela disse que só iríamos transar no próximo encontro, afinal toda imoralidade é relativa. Esperei em febre os dias passarem até o domingo marcado, em que eu iria na hora marcada em sua casa. Eu voltava da capital, sob uma chuva violenta, e estava em cima da hora, mas daria tempo. Daí, no caminho, entre duas cidades que ficam num localização anterior à cidade onde eu moro, me deparo com um acidente de carro. Uma caminhoneta capotara. Paro no acostamento e presto socorro ao casal de senhores que estava no veículo. A mulher com escoriações que não pareciam graves pelo corpo, e o homem com a articulação do úmero na escápula aparecendo bem pelo buraco da carne como em um filme de terror. Levo-os para a cidade mais próxima, quase uma aldeia, sem atendimento médico, postos de saúde fechados. Encontramos o médico em sua casa, ele examina, diz que se o homem não obter tratamento imediato poderá perder o braço. Não há ambulâncias na cidade, eu teria que levá-los até a cidade mais próxima. Eu faço isso, mais 120 quilômetros contando ida e volta. Chego em casa quatro horas depois, já noite alta. Ela sequer atende o telefone. Meses depois o casal encontra minha casa e me leva uma cesta de queijos, e quando eu digo que qualquer um teria feito o que eu fiz, o homem terminantemente diz que não, vários carros tinham passado e ninguém tinha parado. Filme do mês: A Batalha Final Entre o Bom Samaritano E o Falo Ancestral.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> _____________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Existem as nêmesis. Para cada homem existe um número regrado delas. Em minha vida encontrei uma, uma veterinária com quem me envolvi por oito meses, e que tudo acabou em desgraça. As nêmesis só trazem desgraça, como paga pelo sexo mais infernal e demoníaco que existe. Eu viajava por três horas para me encontrar com essa nêmesis, com uma ereção contínua. Transávamos por horas seguidas, e nunca era o bastante para mim. Lembrava-me daquela piada em que alguém chama o outro de piolho, e apanha sordidamente; o outro pede para ele o chamar de piolho novamente, e ele o chama; volta a apanhar; e assim vai, até que o cara está todo destruído no chão de tanto apanhar, não conseguindo falar mais, e o outro fala: "me chama de piolho agora, me chama", e o cara no chão faz aquele gesto de unha contra unha que as mães fazem quando esmagam os piolhos retirados da cabeça dos filhos. Assim era eu com a nêmesis. Fiquei de olhos fundos, apoplético. Assim vivem continuamente meus tios. Foi a lição de misericórdia que o Falo Ancestral me concedeu, em nosso último combate. Tudo acabou em desgraça, eu quebrei de novo meu pé, como uma tradição de expurgo, e fiquei dois meses acamado até que a compulsão se esvaísse. A gente sabe que foi uma coisa vazia, um estrondo cujo terror demonstra seu histrionismo diabólico justamente por se revelar sem conteúdo depois que passa, pois a nêmesis é plenamente esquecida. Eu nunca penso nela, não sinto mais a mínima atração por ela. Ela é esvaziada tão profundamente no sobrevivente que, entre todas as mulheres, ela é a última que despertaria atração.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"> _________________________________</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Mês passado eu vi uma outra nêmesis. Assim que entrei nos correios e me sentei esperando ser chamado o número da minha senha, a vi em pé diante o caixa. Uma moça morena, de short, que era invisível para todos os demais, mas que eu não consegui despregar os olhos dela. Retrospectivamente percebi que desde a entrada eu sentira o poder dela, mesmo sem a ver. Eu não me movi, deixei que ela fosse embora, montasse na moto, e sumisse. Não haveria continuação à perrenga do cordel do Bom Samaritano Contra O Falo Ancestral.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">(2016)</div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-54348126672966592802023-10-18T14:42:00.001-03:002023-10-18T14:42:25.935-03:00Assim<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6cKL68sE83yXWonrCGWi0CahanaJfFb0ZcLDj4risMqC18dCrS6WtnXB27KsvEJrGte8RixDMRwQm3IP5V7VcHzkHsc6cstgG1MUvP4_QwRcRZ3Aky7DKsc6L13xKnURWVKikFNYUeNrCC7TT3CQW5ODr_wKCM1XZbK9wKcT6XwbjohvGIbud-MXpqAE/s740/trava-na-porta_163782-6004.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="493" data-original-width="740" height="266" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6cKL68sE83yXWonrCGWi0CahanaJfFb0ZcLDj4risMqC18dCrS6WtnXB27KsvEJrGte8RixDMRwQm3IP5V7VcHzkHsc6cstgG1MUvP4_QwRcRZ3Aky7DKsc6L13xKnURWVKikFNYUeNrCC7TT3CQW5ODr_wKCM1XZbK9wKcT6XwbjohvGIbud-MXpqAE/w400-h266/trava-na-porta_163782-6004.jpg" width="400" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"> <span style="white-space-collapse: preserve;">É costume aqui onde eu moro as pessoas que sentem a patológica necessidade de passarem a ilusão de serem ricas comprarem Hilux. Ontem ouvi uma dessas pessoas, no círculo de iguais, dizendo que está procurando uma Hilux para comprar. A reação foi como uma festa viking: todos a congratulando, dizendo "nossa, agora você vai ficar metida, hein!", e gritinhos eufóricos. O segredo é comprar uma caminhonete dessas com dez anos de uso, pois a lei diz que são isentas de imposto. Como uma nova custa 300, esses testes de laboratório do vazio cósmico as compram por 190: uma economia de uma vida para isso. Daí esse cidadão-cidadã médio sai com seu belo tanque cromado, com pneus altos para dar-lhe a sensação de ser um faraó agraciado pelo deus sol, vendo o restante do populacho de cima, com a cabeça erguida dizendo de toda forma metafórica possível: "Viram? Eu sou Elite! Sou superior e detentor de toda glória eterna e divina!". E etc, etc. Há dois anos, duas dessas Hilux foram roubadas na mesma noite de domingo. Uma delas, seu dono estava na Assembléia de Deus agradecendo por ser um Escolhido. Como esses macacos de realejo não tem mais grana alguma para pagar o seguro astronômico desses veículos, um roubo significa um prejuízo imenso, lembrado por anos quando todo mês tem que pagar a parcela do financiamento. Daí eu faço igual o Hermann Hesse, me aprofundo na carência regressiva que fez surgir esse sujeito espiritualmente mutilado até achar a criança primeva que me possibilite ter alguma empatia, e penso na minha vida. Eu só não suicidei porque tive filhos. Não é uma frase de impacto. Eu não teria me dado um tiro na cabeça nem saltado do décimo andar. Eu só teria bebido e comido até que meu corpo, um belo dia, bum!, explodisse. E teria sido, a seu modo, muito divertido: cada dose de scotch vislumbrando um cenário cifrado no rock inglês ouvido na acolhedora sombra noturna do quarto. Antes eles teriam que me aposentar, os amigos que resistiriam por alguma ameaça cristã de reciprocidade, e eu teria que fazer alguma memorabilia para ser cantada em odes menores nos primeiros dias de luto, depois que o IML me retirasse com a porta arrombada: eu teria que dar um piti numa festa de confraternização, quem sabe cantando a esposa do dono da casa, com meu pescoço gordo e meus olhos empapuçados, mijado na churrasqueira, abraçado cada um até cair no chão enquanto declamava Whitman ("Ah, como ele era culto e dizia coisas elevadas que ninguém entendia..."), e na certa nem teria sido expulso. Coitado, abandonado, sem filhos, sem esposa, um solteirão nerd cujo cérebro se liquefizera nos livros. Mas não choremos. Uma moça se grudou em mim por algum motivo e me passou o golpe da barriga (ela não lê isso aqui, portanto não precisamos usar esse tom sussurrado). Quando minha mãe soube que eu seria pai ela falou: "Meu Deus, o que vai ser da criança...!". Mas, contra todas as expectativas, inclusive as minhas_ eu odiava crianças!_, eu me mostrei um pai bem acima da média. Já escrevi vários textos chorosos sobre isso, mas é verdade mesmo, fazer o quê?, quando vi a Júlia ali na sala dos bebês, pela primeira vez, eu senti claramente que estava tocando o sol. Foi algo tão devastador que eu fui esfolado de dentro para fora e sofri uma mudança irreversível. Esses dias revi por acaso a primeira foto entusiasmada que tiramos da Júlia e dei um pulo de susto: era um ratinho indefeso e fragilíssimo que apresentei para todos como eu sempre a vi, desde aquele momento transfigurado, como o ser mais perfeito e poderoso que algum dia existiu. Há um poema de Brecht que diz que ele iria se conservar saudável e atento para não morrer prematuramente, assim não deixando abandonada a pessoa que ama. Demorou um pouco para que eu consertasse as coisas, mas então eu me mantive sóbrio e saudável, pesando o mesmo tanto de quando eu era um jovem Hércules de vinte anos. Eu não aconselho a ninguém que seja pai e mãe. Aconselho o contrário: fiquem de boa, sigam seus propósitos, não entulhem o mundo de lunáticos de coração triste, a não ser que VOCÊS TENHAM TALENTO E PREDISPOSIÇÃO E DEEM TODA A SUAS VIDAS PARA OS FILHOS (pronto, agora poderemos baixar o tom de voz e voltarmos para o nível elegante). Eu doo toda minha vida para meus filhos. Não cedo a extorsões sentimentais e sou grosseiro quando quero estar em silêncio e em paz, e muitas vezes meu carinho é brusco. E eu me esfoço para que o amor não me perca na missão de ensiná-los a serem seres humanos dignos. E blá, blá, blá, isso aqui não é texto motivacional. E o que essa coisa toda tem a ver com Hilux? Eu não poderia ser bom pai e ter Hilux? A resposta é não. Conhecimento de classe, psicopatologia cotidiana, honra ao Espírito, sentir lucidamente as emanações do apocalipse ecológico, dinheiro como liberdade educacional e não como impostura, não viver a vida que se exibe, não abrir tão ferrenhamente as portas para a depressão diante o vazio cultivado, não seguir o senso comum, não ser parte da manada, etc, etc, etc.</span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-58992861767424682452023-09-07T16:29:00.003-03:002023-09-07T16:29:59.935-03:00Fissuras<p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVSUa2MJUcIa0iwfKSalF8H_E25EYf476kYiZtQugocDmhwonkex9E3sH8H_ze_bM4zbzC4XBip03jWMQxCPGyilM-kF3EEdPrPB5Ivu3zQpQeOUfeCGCN1suvNX_X_couSFONo_a3BhEGyOY6-KNO0Es7NfkyKYSXOKlzmEYrscf202GlZuNmFW7Cv7A/s3426/9217.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="3426" data-original-width="2508" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVSUa2MJUcIa0iwfKSalF8H_E25EYf476kYiZtQugocDmhwonkex9E3sH8H_ze_bM4zbzC4XBip03jWMQxCPGyilM-kF3EEdPrPB5Ivu3zQpQeOUfeCGCN1suvNX_X_couSFONo_a3BhEGyOY6-KNO0Es7NfkyKYSXOKlzmEYrscf202GlZuNmFW7Cv7A/w293-h400/9217.jpg" width="293" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"> <span style="text-align: justify;">Tudo havia naquela manhã para fazer com que Natália Mendes não saísse de casa, o aguaceiro de proporções bíblicas que começara a cair do céu, a indisposição da vizinha em cuidar de sua filha doente, até mesmo a insurgência de um vírus que as autoridades sanitárias passavam a dar particular atenção; mesmo assim, Natália achou bastante justificável do ponto de vista da lógica passar por sobre essas circunstâncias e ir à agência de correios retirar uma fantasia de feiticeira que encomendara da China. Não lhe passava despercebido, porém, que essa teimosia disparatada escondia um indicativo de um transtorno mental. Em pé na fila de espera dos correios, após ter enfrentado um trânsito que o radialista pelo rádio do carro disse ser “uma troca de rancores não direcionados”, atrás de um senhor que era a metade de seu tamanho e seus olhos magneticamente se prendiam em sua tonsila avermelhada que em nada poderia produzir uma distração de melhor nível, Natália se fazia uma análise do que poderia ser os sintomas de que seu aparato interno estava por implodir, com um estrondo talvez semelhante ao da tromba d`água que se chocava do lado de fora da porta rotativa. Ela era uma mulher que certa vez um namorado casual lhe descrevera ter uma estética retilínea, coisa que ela tomara como retrato preciso de seu caráter. “Se fosse uma obra de arte”, o mesmo sujeito prosseguiu em sua piada de gosto duvidoso ou sua cantada ruim, “seria um Modigliani com a inovação de umas pinceladas sombrias”. Ela tinha sobrancelhas retas, o porte alto e esguio, o queixo mais pronunciado do que gostaria, os lábios finos e retos que tanto a incomodavam na adolescência (mas que agora, fruto dos efeitos da hidrostática, já lhe eram resignadamente indiferentes). Reconhecia que era uma pessoa com arestas, seca, monotemática, autodisciplinada em modo espartano para conter uma profusa rede de compulsões, sem simpatia e sem potencial para ser odiada, com a deferência sem vantagem da neutralidade deixada em paz das ferramentas altamente funcionais. Ela se fazia essas avaliações sem qualquer culpa ou necessidade de estorno emocional, como alguém que contempla um frio jardim de inverno observando com langor o traçado do vapor liquefazendo-se no vidro de proteção. A verdade era que ela daria tudo para sair daquele apartamento de capa de cd de música de câmara, com a meia luz descendente que vai enfraquecendo com uma errática impressão de charme assim que se saía da sala para o quarto. O quarto de tantos sonhos ruins, aplacados com dois comprimidos de Amitriptilina todas as noites. </span></div><p></p><div style="text-align: justify;"> Não era fácil ela dizer isso, mas ali naquele ambiente de pobreza protocolar e descaso, com uma estante tripla na parede atrás do balcão com as depressivas caixas de encomenda e um boneco em uma cadeira de rodas com o uniforme dos correios, ela sabia que fugia de sua filha Sofia. Aquele ambiente não oferecia nenhum escoro estético, nenhum refúgio para dissipativas ilusões sobre outros mundos possíveis que estivessem lá fora, além da tempestade, a aguardando. Se havia uma fixação na ausência de eufemismos, aquela sala seria a borboleta mais exemplar pregada no isopor, a amostra perfeita. Natália sentiu algo como os músculos da nuca se contraindo sob o poder daquele tédio em estado puro, de forma que não teve como conter um suspiro. O homem da tonsila se voltou para ela dando algo como um muxoxo de reconhecimento e movimentou as sobrancelhas, como a dizer “o que fazem a gente suportar, não é mesmo?”. Mensagens mal interpretadas e a fugacidade da simpatia urbana, é o epitáfio da sociedade do século XXI, ela pensou. Era uma frase típica de Thomas, o seu marido, o que ele diria para ela se estivesse ali, com a voz propositalmente entonada o tanto acima do sussurro para que o outro pudesse ouvir. A sua estranha necessidade de audiência, não para ter algum tipo de fetichismo tolo de reconhecimento por sua perspicácia afiada, mas porque era esse o atendimento a algum protocolo interno que nem chegava a ser manutenção do amor próprio, mas uma espécie de registros catalogados de seu estoicismo diante o mundo. Ela fechou, dessa vez, bem forte os olhos, para ao mesmo tempo expulsar e reter esse diagnóstico, queria desviar sua mente daquilo e ao mesmo tempo preservar a frase para quando chegasse o momento inevitável que teria que confrontar o tema. E nessa hora ela apenas pensaria, em silêncio consigo mesma, que também o século poderia ser definido pela empáfia das frases de efeito que para nada serviam vinda dos homens elevados. Elevação! Fez um esgar alto com a boca a ponto de temer que algumas gotas de saliva tivessem partido para a ilha na cabeça do baixinho à sua frente, e ficou retesa esperando que ele se virasse novamente, não mais tão estupidificado pela solicitude. </div><div style="text-align: justify;"> Mas não, tudo transcorrera mais uma vez em seus circuitos particulares, tudo estava em sua cabeça. Todas as dores, a solidão, a sensação de um abandono anestesiado e docemente dispensado de transcendência, aquele descuido com a alma que talvez fosse outra marca do século, apenas que ninguém mais aceitava tais palavras sem uma culpa diante a prepotência, tudo isso dentro fervilhando, aumentando a pressão e logo tendo sua defasagem calórica em alguma atenuante oferecida por outras sublimidades comezinhas do pensamento dentro dela, provocando ruído que não se excedia nem um milímetro para o ambiente atulhado de tédio e falta de misericórdia, ela e os demais sete ou outro pacientes da fila com suas torrentes de angústias e ânsias e severas distrações, viajando naquele mundo afundado em uma tempestade cuja mais benemérita era a que se ouvia lá fora, balançando a placa de proibido estacionar de frente ao prédio. Pois bem, que calma, apesar de tudo. Que silêncio. Nos jornais se parara de noticiar as tragédias entre vizinhos por causa desse direito salutar já desistido de se ter, não se computava mais os assassinatos, os crimes passionais, motivados pela cobrança de um instante só de silêncio, de sono regido pelo apagar profundo sem interrupção de fora, e ela entendia que não porque o ser humano houvesse tido algum istmo luminoso e repentino de evolução no sentido da cordialidade e do altruísmo, mas porque os medidores sistemáticos da loucura, a polícia, os médicos legistas, mudaram o procedimento, lançaram aquela realidade inexorável na fluidez das estatísticas gerais, talvez eles mesmos precisassem desse consolo, dessa ilusão.</div><div style="text-align: justify;"> E era em ambientes arruinados como aquele que ela conseguia esse silêncio. Aquele amarelo antigo, alguma tinta que apesar de tudo tinha sua qualidade primeva porque tantos anos e sob o ácido de tantos suores ela ainda resistia, como uma combalida vítima de radiação, mas resistia, conservando uma integridade de certa nobreza já que se via o efeito dessas fricções de décadas no esmorecimento de sua força mas não em descasques e fissuras. Será que eles repintavam aquilo?, ela pensou, com apreensão. Será que eles vinham com uma tinta cuja fórmula só eles detinham e repunham aquela tristeza fria, desprovida até o grau mais profundo de graça, em algum domingo em que a agência estivesse fechada e assim conservasse o teor secreto daquela secular conspiração. Ela sorriu, isso seria o tipo de observação que teria alegrado Thomas, o teria feito soltar seu sorriso residual da juventude, em que passavam tardes assistindo as cópias piratas do programa de televisão do Monty Python, o ministério dos passos idiotas, o papagaio morto, o futebol dos filósofos. </div><div style="text-align: justify;"> Ela pôde ouvi-lo, dessa vez falando baixinho apenas para que ela ouvisse, chegando a boca próximo ao seu ouvido não dispensando a insinuação sexual do arrepio, que ela não tinha jeito, que imagem de soberba leveza, era assim que ele falava, sempre colocando as grandes palavras esvaziadas para que elas voltassem a ter um sentido no anacronismo das ruas, soberbo. Natália olhou à frente e havia mais cinco pessoas, duas tinham sido dispensadas pela atendente. Ela recolheu seu queixo para dentro da gola do casaco de feltro, assegurou num lance rápido de olhar se não havia nenhum alguém pelos cantos que ela não tivesse visto anteriormente e que pudesse a molestar olhando-lhe naquela sua intimidade e não viu ninguém, assim pôde usar a mão enluvada para esconder do vazio o sorriso aberto que tais pensamentos lhe provocava. Tinham tido a sua porção de felicidade, era isso. A felicidade nesses termos pequenininhos, quase invisíveis, tracejado na nota de rodapé das situações bombásticas, era a mais democrática das sensações para todos. Tudo mais foi um grande mar de agruras e incomunicabilidade. Mas vamos lá, vamos fazer um diagnóstico, ela voltou a pensar. Seria a reinante depressive personality, a patologia com etiqueta, que enfim insistia para tomar rumos bem menos retóricos nela? Thomas fora acometido com isso, e como foi terrível seus últimos dias. Um filósofo catedrático, era esse o fim que sua mãe jamais suspeitara que o destino agiria com tanta desfaçatez para lhe oferecer, ele lhe dizia, um outro tipo de alacridade instalado em seu humor como aquelas usurpações corporais progressivas dos filmes de invasão alienígena. De tais ele não apreciava muito, o horror de uma ciência que não passava de crendice popular insuflada pela linguagem pomposa dos jornais. Toda a apreensão científica se deve à maquiagem das fotos, ao cinemascope. Quantas horas são precisas para filmar uma sequência em slow motion de um sapo projetando sua língua para pegar a pobre libélula, e era isso que ficava na mente das pessoas, essa fórmula fractal de uma perfeição de relojoaria suíça, escondendo a abjeção, as falhas, os acidentes de percurso, os dejetos biológicos, as chances minúsculas que a vida real tinha para se preservar. </div><div style="text-align: justify;"> Mas ela gostava desse tipo de entretenimento, a banalidade era uma salvaguarda, os efeitos especiais que a cada ano pareciam mais ridículos a adstringência ao requerimento de certezas e precisão. Thomas, Thomas, como ela gostaria que ele tivesse resistido um pouco mais, mais uns anos, camarada. Ela teria sido submissa a um nível humilhante, se ele precisasse isso, ele, tão loquaz e charmoso, tão na verdade cândido em sua aparente frieza, tão incapaz do mal em sua indiferença que muitas vezes a sufocava. Ele era um especialista excelso, doutor em história em um grau avançado o suficiente para que as pessoas sentissem aquela convecção de uma presença física de seu poder, sentiam que era alguém que elas não gostariam de imolar. Nos jantares oficiais que ela tinha que ir, sua arredia e silenciosa esposa, ela percebia numa observação perscrutadora o quanto o simples silêncio avaliativo dele entre uma fala e outra, ou quando se preparava para responder a uma pergunta, a mais trivial delas, todos ficavam em uma expectativa suspensiva, como se algum prejuízo pudesse sair daquele totem da sapiência que engendrava vários fios do futuro individual. Alunos, colegas, chefes em busca de votos para cargos da reitoria, as orelhas da imprensa nos informantes à caça do q eu pensam as mentes potentes sobre a situação mundial e as novas promessas da política. Natália era atrofiada nesse nível de influências, mas não era tola em não pensar que por sobre suas conexões obtusas a tensão sexual desses elos secretos e proibitivos pulsava entre mestre e alunas. Teria tolerado que ele tivesse um caso com algumas delas, se isso servisse para poupá-lo porá mais alguns anos, o suficiente para Sofia entrasse de vez dentro de uma maturidade que fosse razoável para ela. Talvez não fosse tão ruim se pensasse apenas pela ausência de competição animal visto que no departamento em que ele trabalhava todas as mulheres fossem iguais a ela mesma. Pare com isso, Natália, ela se admoestou, que infantilismo tolo. Teria doído muito, teria transfundido a depressão dele para ela com força total. Ela teria virado a histérica que sabia ser abaixo, bem abaixo, do seu autocontrole maciço. </div><div style="text-align: justify;"> A verdade é que ele desistira. Ela olhava agora um dos adolescentes se virando e saindo com os passos retesos, mascando um chiclete e esfregando o nariz com a mão, o moletom em cores escuras, vermelho e negro, má percepção da moda, ou será isso que os motoboys das empresas estão usando agora, um a menos na fila e um a mais no tumulto do trânsito lá fora. Estava próximo para ser atendida. Era uma tolice ficar na fila, já que alugava uma caixa postal e a atendente lhe ter dito várias vezes que o contrato reza a preferência, só entregar a notificação de chegada e assinar o documento de recebimento. Mas Natália gostava de seguir o modo operante básico. Não saberia o que responder se alguém a cobrasse de furar a fila. Suas arestas ficariam boiando na liquidez de suas estampa cubista e sua presença estudada sofreria um severo prejuízo. Quem sabe não era isso que estava dentro dela à espera para colocar os monstros para fora? Quem sabe ela não recorreria a uma fragilidade que tentaria fugir na surdina e seria uma forte candidata a aparecer nos vídeos de fúria da internet. Eram assim as pessoas ponderadas descobertas em seus redutos mais secretos, explosivas, surpreendentes, subitamente se vendo dominadas em seus atos libertários por eros e pela ira. Baseado nessa precaução de reconhecer que o animal antropológico não resolvido, provocado nessa prisão urbana opressiva em todo seu medo assassino, que existe dentro dela, era que a fazia esperar cordatamente a sua vez.</div><div style="text-align: justify;"> Ela olhou à sua frente. Havia sete pessoas na fila, duas delas senhoras com casacos compridos e que, olhando-as pelo ângulo das costas, os ombros encolhidos e as perninhas com meias abertas a uma distância condizente com o nível seguro de equilíbrio da idade (um tanto comicamente afastadas uma das outras), podia-se saber que já passavam dos setenta. Os outros cinco se dividiam na malta de jovens ouvindo música por fones de ouvido, um rapaz muito magro de olhar nervoso que uma vez se virou para trás para trocar como ela um contato precognitivo, e o senhor calvo de baixa estatura com o desenho geográfico-cubista no alto da cabeça. Além delas, havia a moça que os atenderia, claro, que Natália conhecia e, em ampliadas perspectivas, poderia dizer que era amiga. Sopesou essa palavra, “amiga”; não era uma pessoa sentimental e se dava demasiadamente bem com sua solidão para se deixar aventurar por tais conceitos muito desgastados, mas olhando-a dali, no momento em que seu pensamento pareceu ter-lhe tocado em uma outra comunicação metafísica mais consistente, de modos que a moça parou o que estava fazendo e ergueu a cabeça do prontuário que preenchia de um cliente, devolveu-lhe o olhar e sorriu, Natália sentiu com uma acalorada certeza de que eram amigas. Uma ternura agradecida fê-la sentir o que havia por detrás dessa palavra, amigo, e porque de certo modo as pessoas que levavam tal palavra a sério destinavam-lhe tamanha importância. Talvez seu problema seja, afinal de contas, só a velha carência, a patologia social moderna do século XXI, ela pensou, com os olhos brilhantes voltando a averiguar a atendente em busca de um outro contato. (Contudo, ela se lançara em uma atarefada ocupação de digitar algum formulário no computador.) </div><div style="text-align: justify;"> Natália tinha dificuldade em lembrar-lhe o nome, um de seus defeitos sociais mais angustiantes. Precisava chama-la pelo nome assim que chegasse a sua vez e ela se pusesse de frente ao balcão; viu que era de sumária importância fazer isso, de modos que estava decidida a virar as costas e sair dali se não tirasse o nome dela do inconsciente. Sua mente ainda era uma massa de conexões fresca e saudável, felizmente, apesar de às vezes achar que a aproximação dos cinquenta a deixasse um tanto retardada e amortecida. Pegando o rumo de uma série de sinapses que vieram-lhe em ajuda, ela se lembrou de quando a amizade surgira, o que se tratava de um acontecimento de certa forma memorável. Foi há dois anos. Um motorista incauto direcionou sua banheira sobre quatro rodas, um Ford Galaxy branco de mafioso italiano, para uma vaga de estacionamento de frente à agência. O carro dera uma estabanada bruta de ré em uma adolescente que estava sentada em sua bicicleta esperando na linha da calçada, e a menina foi lançada para debaixo da grande raia esmaltada do para-choque do veículo, o motorista, um velho marujo de bermudas cáqui e camisa entreaberta no peito, não tendo-lhe passado por cima porque as pessoas começaram a gritar. A balbúrdia chamara a atenção de Natália, que estava entrando na agência com seu olhar fermentado de íntimas distrações, se preparando para o arroubo de sinestesia entediante que o ambiente lhe oferecia. Nesse momento da lembrança, como num flash, o nome da atendente lhe surge: Erica. Como pudera esquecer? Natália levou Erica e sua filha para o pronto socorro. Olhava pelo retrovisor a cândida atendente chorando representando tudo o que ela demonstrava ser detrás do balcão, comedida, voz suave, uma batalhadora que sabe o quanto custa a vida. Alguém que deveria ter tido uma educação severa, uma mãe que agora ela lhe saíra uma cópia em termos de monasticismo e aflição. Mesmo tendo ficado evidente, ao longo do tempo em que conduzia o carro numa linha equilibrada entre cautela e urgência, que a menina estava bem, que fora só um susto, a pobre criatura parecia uma pietá com a cabeça da criança no colo, e era algo belo de se ver. Não pode espantar os indícios de que aquilo era uma mensagem direta para ela, que os arranjos da aleatoriedade disfarçada de sentido fizera para a educar. A pessoa podia ser educada pela ação das circunstâncias, não podia? Natália aceitava esse caridoso cuidado, seja de quem fosse, numa altura de sua convivência com sua filha em que ela tinha tudo para reparar nos seus desmazelos como mãe, em sua incapacidade de digerir as péssimas influências que recebeu no ciclo descendente de filiação. Sua mãe havia sido uma triste sofredora, sem canais comunicantes que dessem lugar ao terno reconhecimento da miséria mútua, que Erica parecia tão bem ter tido comunhão com sua mãe. Erica chorava, puxava a massa líquida que se produzira no nariz, depois apertava os lábios com uma lisura composta e, lá de trás em sua moldura renascentista, erguia a cabeça e olhava-a pelo retrovisor. </div><div style="text-align: justify;"> A amizade se firmava ali, naquela troca de olhares que Natália fingia não ter tempo para levar a sério porque não queria lhe afligir ainda mais a fazendo pensar que poderia ocorrer mais alguma agrura no trânsito, entre motoristas tão ofensivos. O médico examinara os tornozelos da garota, olhara o fundo dos olhos com uma luz estetoscópica, e educadamente retirara quaisquer dúvidas que pudessem ficar nas duas mães. Não havia nada, nenhum trauma além do trauma psicológico. Natália levou as duas para um prédio de lajota azul, de quatro andares e sacada pequena (o tipo de detalhe arquitetônico que evidenciava o tempo da república nova em que fora construído, sem funcionalidade que coubesse um ser humano ali em pé à frente da janela, apenas um adendo que só numa aposta muito particular se veria alguma preocupação estética em desafogar o olhar dos moradores dos espaços quadriculados em série que tendiam ao vazio de suas linhas amplas e sanitizadas de humanidade). Fora convidada a subir pelas duas, que mal lhe falavam no carro, mas que trocavam afagos em voz baixa, e ela, talvez numa falha de etiqueta que suportara por uma necessidade angustiante de manter contato mais aprofundado com aquela mulher, aceitou. Ela observou bem no rosto dela mas não viu nenhum repúdio, saiu do carro pela porta traseira segurando a filha e depois lhe dando uma espécie de concessão de toque no ombro que a autorizava a andar sozinha, embora ela tenha pego a sua bolsa e a pasta de materiais escolares da menina. Subiram as escadas escuras e comprensadas até o terceiro andar, Natália se sentindo uma prestidigitadora convidada em uma apresentação ao ver que sua estatura e seus traços singulares ganhavam uma estranha áurea de graça na espiral e na sobriedade anacrônica, como um ser vampírico que se equilibrava bem sem se apoiar nas paredes. Era apenas dois apartamentos por andar e o apartamento, ao contrário do que se via de fora, não era nada deprimente. As duas, talvez mais por empenho da mãe, gostavam de plantas, espalhadas em ângulos</div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-80384394596440178082023-09-04T11:40:00.005-03:002023-09-06T08:09:44.075-03:00Cary Grant<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZfwBtz-OISvl6srwj1zMM-D5r2TMycL-F5xZKnND07taSzYDWS28bXJMYDTyg747BtpQlt4sB_9ALirhTvRUF4pXOU3-lk2LWk3szTPTch2Ti5xiszQBVj7cbt8AZGfY3Zj7W-cB1vahzhFeiuDl872Dal-Opn8oBIfRIMnEj8igSlSrFdRZuRDjsFCY/s667/375016836_6261970330580850_1318480961478417476_n.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="460" data-original-width="667" height="276" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZfwBtz-OISvl6srwj1zMM-D5r2TMycL-F5xZKnND07taSzYDWS28bXJMYDTyg747BtpQlt4sB_9ALirhTvRUF4pXOU3-lk2LWk3szTPTch2Ti5xiszQBVj7cbt8AZGfY3Zj7W-cB1vahzhFeiuDl872Dal-Opn8oBIfRIMnEj8igSlSrFdRZuRDjsFCY/w400-h276/375016836_6261970330580850_1318480961478417476_n.jpg" width="400" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><p style="text-align: justify;"> A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.</p><div style="text-align: justify;">A mulher das fotos era simplesmente deslumbrante. Era perfeita! O rosto dela era tão cheio de detalhes significativos que era impossível ver tudo de uma vez. Era preciso fazer pausas e retornar à cartografia daquele terreno de altíssima octanagem um sem número de vezes. Era como o rosto do Cary Grant, se o Cary Grant fosse uma deusa loira dos olhos azuis. Eu pensei que era muito desprezo por parte da Dani pelo meu lado icognoscível e fiquei pensando se haveria na história matrimonial algum episódio de desavença por ciúme antecipado e criado pelo próprio acusado. Eu mesmo jamais, JAMAIS, deixaria que a Dani chegasse sequer perto de certo ortopedista de queixo quadrado e enfadado ar ibérico que mora na cidade.</div><div style="text-align: justify;">Mas tudo bem, vamos lá. Era uma incomodação ter que me haver de novo com já acomodadas áreas de uma antiga vaidade, e em vez de ir de bermudas e chinelas eu me vi com calças compridas novas e uma camisa social fina mas não o suficiente para mostrar premeditação.</div><div style="text-align: justify;">Estacionei o carro a uma certa distância, me admoestando por perceber que o fazia para não mostrar à deusa que eu não vinha com um Porsche 911 mas com um carro popular normal. Entrei na marcenaria, me dizendo que era uma atitude estúpida eu andar espichando a incipiente escoliose para ressaltar meus 1,90 metros, e perguntei pela mulher a um dos funcionários, citando o nome da beldade. Fui até onde ele me indicou e entrei no pequeno escritório. Bom dia, eu disse à moça, a senhora M. está? A moça sorriu de modo simpático e respondeu: "Sou eu, em que posso ajudar?"</div><div style="text-align: justify;">Comprei a mesa, efetuei o PIX, saí com os ombros relaxados e entrei em casa feliz. A Dani me esperava com seu sorriso sarcástico. Eu parei de frente a ela e suspirei aliviado. Não era um teste, era óbvio, mas ela contava muito com o pouco caso que eu dou às formas a que chegou o autoengano na era cibernética.</div><div style="text-align: justify;">"Você já tinha ido lá, né?", eu perguntei.</div><div style="text-align: justify;">"Não notou o tanto que a cadeira dela fica distorcida na região da cintura, nas fotos?", a Dani disse, rindo com um ar cheio de faceirice.</div><div style="text-align: justify;">"Será que não é um estratagema comercial? A pessoa chega lá apreensiva, e tem o choque de achar alguém igualmente consoladoramente humano?", eu ainda insisti.</div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-25570819660868458512023-09-04T11:19:00.002-03:002023-09-04T11:19:36.939-03:00Virtù<p style="text-align: justify;"> </p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4PT0KFJz1ghf1RnSrxAqVsjubplAQW06QiGi1edrGPjsflHKWBYlD4SqCb973f4rV2IGe7dLqlG-Yk29XLw-t_lYg_fDmf04t6Gq8Nr3ti--iJvGwHh5OyVTN9iVv525DgyWahSm8OSdWkRW5R6h6G1VDybE7bCsnTZ2vfqxiYB7Anui8tuIRJ_oz64o/s800/_123186283_b2f92c07-7fa7-4a29-a420-37004fff4f2c.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="800" data-original-width="640" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4PT0KFJz1ghf1RnSrxAqVsjubplAQW06QiGi1edrGPjsflHKWBYlD4SqCb973f4rV2IGe7dLqlG-Yk29XLw-t_lYg_fDmf04t6Gq8Nr3ti--iJvGwHh5OyVTN9iVv525DgyWahSm8OSdWkRW5R6h6G1VDybE7bCsnTZ2vfqxiYB7Anui8tuIRJ_oz64o/s320/_123186283_b2f92c07-7fa7-4a29-a420-37004fff4f2c.jpg" width="256" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;"><br /></p><p style="text-align: justify;">Ser filho de um casal que se divorciou quando eu tinha 8 anos desenvolveu bastante a noção do que meus pais temiam fracassar em mim. Os dois tinham pavores opostos. Meu pai, nos nossos encontros mensais, na certa passava noites sem dormir quando ouvia minha voz fina, o jeito sensível que um menino na ingenuidade do deserto hormonal tem de caminhar e de se portar. Minha mãe via em mim um pervertido, na linha contrária, que apesar da minha timidez patológica sempre dizia para eu ficar longe das primas. A natureza da supressão nos torna maquiavelicamente lúcidos, e eu recebia essas coisas com um ar terno, ainda não conseguindo verbalizar a verdade intuída do quanto eles, que eram pais tão jovens, se rendiam ao desamparo.</p><div style="text-align: justify;">Um dia eu saí do banheiro e minha mãe entrou, fazendo uma cara de nojo profundo, cheio de temor averiguativo, por ter pisado em uma gota fria.</div><div style="text-align: justify;">_ Calma, mãe!_ eu disse_ É só sabão.</div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-35120489565730889272023-09-04T10:57:00.001-03:002023-09-04T10:57:50.748-03:00A real<p style="text-align: justify;"> </p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQDsi89F3km7HqjKPruUwUUL2onqAJhXnanoQkD7yJ3rEjbinPgVF8WLqedms1SlVkEkayuBhp_2JU0tKbpvIyrRpZbVzyUi_wNkHtki6iouMEmVp60sstKoni8Sa34y_iwFbYFh0wnUbyb9K6wm3za2aezODDYEyO67Rwsa5yojXKBpFKaQlij8Zfhv4/s700/A-Novi%C3%A7a-Rebelde2.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="510" data-original-width="700" height="291" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiQDsi89F3km7HqjKPruUwUUL2onqAJhXnanoQkD7yJ3rEjbinPgVF8WLqedms1SlVkEkayuBhp_2JU0tKbpvIyrRpZbVzyUi_wNkHtki6iouMEmVp60sstKoni8Sa34y_iwFbYFh0wnUbyb9K6wm3za2aezODDYEyO67Rwsa5yojXKBpFKaQlij8Zfhv4/w400-h291/A-Novi%C3%A7a-Rebelde2.jpg" width="400" /></a></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Cheguei à meia idade com a descoberta que só tenho um talento. Eu assobio muito bem. Uma coisa que não serve para nada, não atesta superioridade em relação a nada, e que sempre incomoda. Ao longo da minha disciplina por não assobiar perto de outras pessoas eu venho percebendo que o assobiador equivale ao cara que tem suvaqueira da braba: todo mundo faz cara feia e repudia mas nunca faz o que deveria fazer, que é chamar o sujeito num canto e falar a real para ele. O assobiador e o suvaqueiro, por isso, podem levar toda uma vida de má fama e ser enterrado como uma lenda nefasta, na completa ignorância de seu problema.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">E, olha, não é por nada não, mas eu assobio que é uma beleza (aiiii!). Sei assobiar sonatas para flauta de Bach inteiras, assim como o concerto número cinco para flauta de Mozart (agora mesmo, enquanto escrevo, estou fazendo o bico). Esses dias, por uma grave falha, assobiei uma canção do George Gershwin, "There's a Boat That's Leaving Soon for New York ", no trabalho, e vi que alguém lá no fundo da sala assobiou em protesto, imitando, como um "cala a boca!", ou um "vá limpar esse suvaco!". É um dom que tenho que manter em segredo, sem nenhuma esperança de reconhecimento póstumo.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Pois bem, vou chegar onde quero. Não podendo exercer minha genialidade asquerosa senão em casa, aqui eu me dou a liberdade de ser uma Anne-Sophie Mutter dos beiços estendidos. Ando pela casa, que é grande, espaçosa, com quintal, me sentindo como se estivesse no Carnegie Hall, como se fosse uma noviça rebelde livre e solta, e só não estendo os braços para os passarinhos pois como bom conhecedor da minha arte sei que tal não é a posição propícia para o uso correto do diafragma para que ela se externize plenamente. Então assobio, assobio, assobio, até que...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">...até que a Dani se vira para mim de súbito e solta um: "Nossa, mas assim você vai ficar bicudo!". Assim mesmo, na lata! Quinze anos de casamento, e só agora, ela me joga essa sobriedade inesperada na cara. Eu disfarço, rio sem graça, recolho meu instrumento passando a língua para umedecê-lo: a umidade da vergonha. Vou para o quintal e me sento na cadeira para digerir aquela revelação. Então a Dani suportou isso por 15 anos. 20, se contarmos as vernissages que eu fazia nas nossas andanças apaixonadas de madrugada, quando éramos namorados, eu assobiando o Principe Kalender enquanto a levava na garupa da bicicleta. Fi fufi, fifufifu, fi fu fi fi fu fi fu fiiiiii...</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Eu ensaio ficar amuado, tentando acender um ressentimento manhoso. Penso em contra atacar mandando uma indireta no estilo "nossa, mas assim você vai virar uma Maria Callas", em referência à sua mania de cantar o dia inteiro. Mas, infelizmente, já passamos há anos por essa fase, e eu já me peguei deitando o livro no peito e cochilando embalado pela voz dela. A Dani canta muito mal, e ela mesma sabe disso, mas eu gosto de ouvir sua voz pela casa, cantando.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nem estou com vontade de me vingar. Só me vem na cabeça uma música. Também é de um álbum do Miles. Como é que é mesmo?</div><div style="text-align: justify;">A Don't Wanna Be Kissed (By Anyone But You). Firulivi fi, firulivifirí...</div></div><br /><div style="text-align: right;"><span style="text-align: justify;"><br /></span></div><div style="text-align: right;"><br /></div></div><p></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-69275061091564292982023-04-29T15:24:00.018-03:002024-02-16T15:15:20.533-03:00"Eu também não sei, sinto muito!"<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgHwvLm7zEz9Qkl_vJTVs-Cirihzbit9twmt8Dwhsu7_LiYSX4sAQA31Orr9FdpycwN_2O5DN3lOi6MkB-D53AYLIKeDZ0PZp_9-KEdOKJ5Gqper4p6FypTEggw3CbWazC2WmecYXY-DIDncXmLKVG9Ql0FV0ayE1iGuUszSI9IrH2mc91ZLtRGNhik" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="1383" data-original-width="1024" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgHwvLm7zEz9Qkl_vJTVs-Cirihzbit9twmt8Dwhsu7_LiYSX4sAQA31Orr9FdpycwN_2O5DN3lOi6MkB-D53AYLIKeDZ0PZp_9-KEdOKJ5Gqper4p6FypTEggw3CbWazC2WmecYXY-DIDncXmLKVG9Ql0FV0ayE1iGuUszSI9IrH2mc91ZLtRGNhik=w297-h400" width="297" /></a></div><br /> <span style="font-size: 16pt; text-align: justify;"> </span><p></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="font-size: 16pt;"> </span>_ Sr. Flibas, é o
senhor?_ uma voz denotando vir de alguém muito ocupado falou do outro lado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Sim, quem fala?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Aqui é Salmásio Allende, o detetive particular. Como vai o
senhor, sr. Flibas?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Senhor Allende. Não
esperava de maneira alguma que o senhor me ligasse. Pensei ter deixado claro da
última vez que não temos assunto nenhum em comum para continuar nos falando.
Como achou esse número? Aliás, que ingenuidade a minha. Deve ter conseguido
através do trabalho que tem em me seguir e pesquisar os detalhes mais
insignificantes da minha vida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Não diga isso, senhor Flibas. Nada é insignificante na vida de
ninguém. Creio que já mencionei a inclinação que tem se desenvolvido em mim nos
últimos anos para escrever minhas memórias profissionais, e o senhor se
assombraria em ver quanto material tenho colhido de tantos e tantos clientes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Senhor Allende, tenho certeza de que o senhor sabe o que está
dizendo mas não desejo e nem deixo de desejar que leve a diante esse seu plano
literário. Isso não me diz respeito e está longe da área de alcance de meus
interesses. O que eu reafirmo ao senhor é que nós não temos nada para
tratarmos. Isso posto, se o senhor me permitir interromper essa ligação por
agora, eu ficaria agradecido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Não, por favor, senhor Flibas, não desligue. Se não for para tratarmos
do assunto de interesse entre nós, que pelo menos essa conversa sirva para
abrir a possibilidade não de que sejamos amigo, mas, quem sabe, o senhor e eu pudéssemos
ao menos nos relacionarmos como uma consultoria. O senhor é a pessoa mais culta
que eu tive o privilégio de conhecer. Como eu já disse antes, o sr. Vergue me
contou coisas muito profundas a respeito do senhor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Peço que pare com essa bajulação, senhor Allende. Não vamos
chegar a lugar nenhum com isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Não chegaríamos pela ótica do senhor. Ao porto que cheguei os
passarinhos cantam e as aves marulham com louvor_ ele disse, falando
dissimuladamente para si, em voz um pouco mais baixa, mas que não passava
despercebido que o senhor Flibas ouvisse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O senhor Flibas ficou
estático, ainda em pé, pensando na caçarola com água que colocara na boca do
fogão elétrico. Havia aprendido lendo o manual da máquina sobre os detalhes de
seu funcionamento e nisso se ocupara por um bom tempo daquela manhã, totalmente
absorto. Como o silêncio por parte do detetive continuava, por um momento ele
cogitou, assustado, que a ligação houvesse sido interrompida por ele.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mas de súbito, a voz
intromissa, um tanto indecente, do detetive, retornou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O senhor precisa me
ouvir com atenção. O menestrel urbano tem algo muito interessante para lhe
falar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas começou a ter
a certeza de que a capacidade de irritar daquele sujeito era de um nível
profissional. Talvez ele estivesse usando com ele técnicas cênicas de
convencimento, como os detetives dos filmes antigos. Uma bem engendrada
ciência para tirar do sério e levar qualquer um a aceitar o grau de irrealidade
da situação. Era o tipo de expediente que não tinha outro recursos senão
desligar abruptamente o fone, mas uma polidez e uma curiosidade remanescente
faziam com que isso fosse impossível para o sr. Flibas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O detetive havia
pronunciado a frase cantando, como se fosse uma canção infantil. Ele cantava
mal, de forma que parecia um velho marinheiro sem jeito tentando parecer
divertido.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Vamos dizer que eu tenha
tempo agora, coisa de alguns minutos, já que a água que eu coloquei para fazer
meu chá já se esfriou, e lhe pergunte o que seria de tão importante para que
nós tivéssemos de nos encontrar._ o sr. Flibas disse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O homem pareceu se ajeitar
na posição em que estava_ novamente a capacidade expressiva de seus menores
movimentos era algo que se fazia totalmente assimilável pelo sr. Flibas. E
começou a falar em outro tom, se sentindo autorizado a colocar toda sua perícia
técnica para fora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O homem que é objeto de
nosso interesse. Sr. Flibas. O nômade cujo nome é Eustáquio Bavilacque.
Julgávamos que ele fosse alguém solitário, vindo de uma família destruída,
tendo problemas sociais severos vindos do que ao tratados de direitos humanos
dizem ser a desigualdade social e bla bla bla. Virou moda afirmar esse álibi
antecipado a todo criminoso sem dinheiro hoje em dia. Eu não caio nessa, mas levo
em consideração a força retórica desse tipo de discurso. Mas esse sujeito tem
uma filha. Isso o senhor na certa não sabia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas sentiu o
impacto de ouvir aquele nome, que ele se proibiu de pensar por duas décadas, e
por um momento ficou atordoado tentando se lembrar quem era. Ele se acostumara
a se dirigir mentalmente ao homem com um sinal gráfico, um pequeno e conciso
hieróglifo mental que era inverbalizável mesmo para ele. O ato em volta do
homem o havia reduzido a algo animalesco, as tantas palavras para nomeá-lo
pareciam impróprias. Se bem que os micróbios tinham nomes longos e intrincados.
O detetive, o sr Allende, fazia o sr. Flibas transcender além do ponto de
conforto. O sr. Flibas, por inércia, pôr o apartamento estar escuro e a áurea
de isolamento ter se mostrado totalmente fantasiosa, resolveu esticar um pouco
só a corda.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Uma filha. E essa
mulher sabe que virou alvo de um detetive por causa dos pecados do pai?_ sua
ironia era uma via de mão dupla, ele sabia, que iria mais autorizar do que
coibir que o detetive seguisse em frente naquele assunto delirante.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Disso eu tenho certeza que
ela não sabe. Eu cheguei a vê-la com atenção para os mínimos detalhes físicos e
alguns traços de seu caráter em uma lanchonete. Uma dessas vezes ela estava na
companhia do pai. Mas ela acha válido atribuir parte da responsabilidade pelo
pecado do pai ao estado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele devolvia a artimanha
ao senhor Flibas, fingindo às vezes ser detentor de uma pureza ocupacional que
o impedia de captar as nuances semânticas da conversa. Talvez ele fosse mais
uma personalidade literária das tantas que rondavam Vergue, homens do livro,
sujeitos nascidos para o quarto semiescuro, vivendo com seus pensamentos
peculiares, tentando driblar suas imperícias no trato com o mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Ela está processando o
estado?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O rapaz sofreu uma lesão
irreversível na cabeça e não consegue andar como antes de ser preso. Parece que
a coisa envolve a antipatia que ele criou entre seus colegas de cela, que lhe
deram uma surra violenta. Ele ficou no ambulatório da prisão por dois meses.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele talvez quisesse
despertar algum sentimento de desforra no sr. Flibas, que achou que seria uma
concordância esperada entre os dois do que ele estaria autorizado a sentir sem
peso de consciência.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu sinto muito por ela.
Pelo que me lembro do processo judicial e do tribunal de júri não havia a
informação de que ele tivesse algum membro familiar. O advogado constituído que
o estado lhe destinou para a defesa alegou esse fato para solicitar uma redução
da pena. Um total abandono do estado, de forma que não se deveria punir com
rigor exagerado alguém que desde o início não fazia parte do contrato social.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ De toda forma não é conveniente
que tenhamos essa conversa pelo telefone. Preste atenção nos ruídos de fundo,
está ouvindo?_ ele ficou em silêncio, sem que o sr. Flibas percebesse algum
propósito_ linhas cruzadas, conversas interceptadas. Hoje é muito mais fácil
fazer isso do que em nossa época, sr. Flibas. Eu também sou uma remanescente
dos velhos tempos, dos tempos românticos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Não estou ouvindo esses
ruídos. Quem se importaria em ouvir essa conversa? Algum centro de pesquisas
psiquiátricas?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Que maravilha o senso de humor aparecendo no senhor! Eu sabia
que por detrás dessa estampa altamente formal existia um fino humor britânico.
Groucho Marx era inglês? Mas não se adequa. Estaria mais para Evelyn Wright. O
senhor com certeza já o leu.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu não o tenho em má
conta, sr. Allende. Só tento me resguardar de uma dor que há muito aprendi a
conviver, e sei que o senhor tem se mostrado sensível o suficiente para
perceber isso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele fez uma pausa
considerando as palavras do sr. Flibas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Isso tudo pode parecer
parte da miséria do mundo, sr. Flibas. Eu ia desconsiderar esse trabalho depois
da nossa última conversa, mas analisei bem a informação da existência da
menina. Eu costumo guardar essas cartas na manga, talvez para usar como
conteúdo exclusivo na possibilidade de escrever aquele livro. O senhor já deve
ter ouvido sobre o coração terno. Creio que foi Tchecov que disse isso. E há
muito coração terno nessa reviravolta de Eustáquio Bavilacqua ter uma filha.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O senhor estava guardando
para si essa informação? Não a contou para Vergue?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Bem. Eu não poderia escondê-la de Vergue. Sou um dos mais
confiáveis e seguros profissionais da cidade, sr. Flibas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Ah, então Vergue sabe.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Como não saberia? Ele se deliciou com isso. Ele faltou pular de
sua cama e dançar pelo quarto.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ O senhor comunica pessoalmente suas descobertas para Vergue?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Isso é o que me estranha no senhor, que é tão similar ao meu
contratante. Ele odeia a comunicação por telefone. Por celular é algo
descartável, se chegar a mencionar isso ele é capaz de rasgar o contrato de
serviço e chamar uma junta advocatícia para que a outra parte não receba nenhum
tipo de acordo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas ficou
pensando em Vergue, no pouco tempo que lhe restava e como parecia que aquela
alegria esfuziante diante os mexericos vinham de outra pessoa. Não faria parte
do jogo, fazê-lo se sentir menos vivo por não compactuar com tal frenetismo diante
as ricas fraquezas morais da humanidade expressas nas delícias de sua comédia
patética? Allende era cheio de armadilhas, um homem bastante sagaz. Talvez ele
devesse vê-lo, o sr. Flibas pensou. Um cérebro desses, nesse canto da sarjeta
onde estava, não era para se desperdiçar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Vou poupar o nosso
tempo, sr. Allende. Me diga seu endereço que vou aí numa hora combinada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O homem pareceu ter sido
pego de surpresa. Não esperava que além do humor aquele idoso de faculdades
intelectuais elevadas o suficiente para alimentar certa misantropia também
fosse aberto à experimentação. Para um homem que se gabava de conhecer a fundo
a natureza humana, ter suas expectativas confrontadas era um presente para o
dia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu posso poupar todo
esforço para o senhor e aparecer aí mesmo em sua casa hoje ainda. A sua
inquilina só volta daqui seis horas e, a propósito, me encontro a exatas três
esquinas daí.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O senhor é um tipo
bastante pitoresco, sr. Allende. Falava de ruídos, e não ouço nenhum ruído de
buzinas e de conversa para alguém que deve estar num orelhão no centro de uma
das maiores cidades do mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_Oh, me fiz entender
erroneamente, sr. Flibas_ ele sorriu. Um sorriso cascateado, como sílabas
interrompidas e encavaladas, como alguém com uma modéstia suficiente para rir
afim de amenizar um elogio que achasse ser desproposital. O sr. Flibas imaginou
uma papada se balançando sob a força daquela alacridade._ eu não me encontro
numa calçada, à mercê de carros e passantes apressados, sr. Flibas. Quando o
senhor me ver pessoalmente vai entender que seria o mais arriscado e
contraproducente dos artifícios para alguém do meu ofício. Minha aparência é
totalmente conspícua e, infelizmente, eu chamo atenção de longe pelos fatores
mais prosaicos. Sou excessivamente alto e minha cara exala prisões e mandatos
de prisão. Uma vez um foragido da justiça se entregou para o primeiro policial
que se encontrou ao sair de uma boate julgando que eu estivesse em seu encalce,
e eu estava num outro caso, de fraude de seguro. Não é uma qualidade boa para
se ter. Como o diabo diz, sua maior força vem de sua aparência de bom cordeiro.
Eu falo de uma lanchonete. A garçonete daqui é um affair que eu tive há algum
tempo, e ela me concede essa regalia no furo de suas desassistência das leis
trabalhistas, se é que me entende. A gente vive sobre a opressão do capital mas
se diverte o máximo que pode. Os prazeres da falta de altas expectativas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele sorriu do mesmo modo,
como se fosse uma fita gravada que rebobinasse a bel prazer.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas cogitou a
possibilidade de receber aquele homem incomum no apartamento da sra. Adele. Não
havia nada que o proibisse disso, e se Adele visse o detetive iria até sentir
um interesse pela absoluta incorreção da coisa. Uma cozinheira não se abstrairia
do prazer de mexericos picantes. Ela tinha algo do barbeiro da aldeia, mas era
elegantemente dissimulada em controlar as palavras para não soar impertinente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas contorceu o
corpo, erguendo-se sobre os solados dos pés, para ver como estava o céu pela
janela. A faixa do canto da cortina se balançava levemente devido a uma
corrente de ar que entrava pela janela semiaberta, e o escuro que seus olhos se
apercebiam agora em toda sua intensidade não podia proceder do horário. Deveria
ser três horas da tarde, um pouco mais tarde talvez, e o ar elétrico que se
sentia por alguma percepção antropológica naqueles prédios que pareciam grandes
grutas agrupadas confirmava que viria chuva.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Estarei esperando pelo
senhor. É no terceiro andar._ ele sorriu, desconcertado, e finalizou a
conversa_ como se fosse preciso lhe dizer isso, sr. Allende.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Colocou o fone no gancho
não sem antes ouvir o detetive tentar dizer alguma coisa em sua defesa, aquelas
considerações modestas cheias de um humor viril defasado e obsoleto. O sr.
Flibas ficou parado por alguns segundos, esperando que sua consciência emitisse
o sinal de alerta por ter agido com desfaçatez. Não sentiu nada, só um sossego
brando que bem podia ser efeito da inesperabilidade daquilo tudo, detetive, o
assassino de sua esposa, a filha bastarda reaparecida. Ao organizar o
pensamento dessa forma o alerta enfim veio, diminuído, como se acionado em
zonas distantes de sua mente. Como uma chama num monte crepuscular longínquo,
visto de quilômetros. Era nisso que ele iria entrar, nesse <i style="mso-bidi-font-style: normal;">revival</i> de antigas desgraças, esse remoer de traumas à custas, pelo
visto, da vontade de Vergue e da admissão de que sua velhice era uma
planificação insossa e tediosa, que necessitava do velho teatro de sangue e
criminalidade para lhe dar um sentido significativo. Ele bem poderia
colar sua presença na de Toledo e preencher suas horas vazias com aquelas
preocupações pueris mas carregadas de frescor do velho cunhado de sua inquilina.
Ele o admitiria com agradecido prazer em suas engenharias caseiras. Toledo sim
sabia envelhecer, tinha a sabedoria de conhecer os limites de sua maturidade
para reduzir aquelas escatologias urbanas para suas dimensões particulares. Os
cupins da estante de livros do professor de letras tinham o mesmo valor que o
novo assassinato da vizinhança. Como era verdadeira as acepções mística sobre
os loucos de deus, os santos russos que vagavam em suas absolutas simplicidades
por todo império. Toledo lhe parecia um monge de um mosteiro medieval perdido
nas pradarias de Katchkanar, com seu pomar e suas orações madrugadinas. Era
mais uma das confirmações do grande dispêndio inútil de energia em dedicar a
vida para os livros. O entretenimento eterno para distrair-se da distração pela
distração. Já não tinha nenhum apetite e pegou a caçarola de cima do fogão
jogando a água na pia. Analisou sua estrutura fisiológica maquinalmente, como
se fosse um perito observando as reentrâncias de um motor, e não percebeu
nenhum traço de fome. Alexandra lhe disse para sempre ficar atento à afasia,
que para alguém com a carga de debilidades pela qual passara recentemente seria
perigoso cair num quadro de desnutrição. Tentou pensar em algum substituto
ligeiro para o chá, querendo ganhar tempo para se trocar e esperar que Allende
fosse anunciado por Toledo pelo interfone. Daí se lembrou que, se Toledo lhe
batera à porta, era porque o interfone deveria estar novamente quebrado. Abriu
o armário embutido e deu de cara com os pratos. De súbito notou que havia
esquecido onde estavam as bolachas. Ficou imóvel, os braços espichados, ainda
segurando com as mãos os puxadores prateados das portinholas, imergindo sua
mente para dentro de si mesma na tentativa de decifrar aquele minúsculo
mistério essencial. Estava numa tendência à neurastenia nesses últimos dias, e
o Alzheimer era o terror pulsante e onisciente escondido por detrás daquelas
suas falhas de localização. Mas Adele guardava bolachas de água e sal e
maizenas ali, justamente por serem os locais mais fáceis de se alcançar. A
realidade era que não estavam, não iriam aparecer por mágica no simples intento
de lhe aliviar, e fechou as portas de uma vez, quase com violência. Como era
cansativo o fardo da carne. Talvez o que estivesse ocorrendo fosse uma
revolução de seu espírito, tão ocupado em ser levado pela transcendência se
sobrepujando ao corpo nos mínimos arrebatamentos dos ornamentos cotidianos, que
resultava naquelas surpresas desconcertantes, naqueles mal funcionamentos pelo
pouco uso. Daí se lembrou, como se por resposta imediata de um cérebro
ofendido, e se inclinou dando dois passos e viu as bolachas no balcão próximo
ao chão, pelo vidro transparente perfurado. A coisa toda voltou em sua mente
como se fosse a mais poderosa lembrança que tinha, dando-lhe explicações
lógicas de que ali era o melhor local para que as bolachas não se oxidassem e
se tornassem murchas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Pegou um pacote aberto de
biscoitos de maisena, cuja ponta estava amarrada pela fita vermelha adesiva
retirada quando aberta, e devorou cinco unidades. Era uma enganação de seu
corpo a aparente falta de fome, pois foi colocar aquelas linguetas de farinha
compactada na boca ele foi tomado por uma compulsão que revelava uma fome
vigorosa. Fechou os olhos, com o pacote nas mãos, mastigando os biscoitos que
estalavam e emitiam sons de uma secura quebradiça agradáveis de se ouvir e
sentir, sentindo o prazer que elas lhe davam. Abriu a geladeira, indo contra
sua indisposição a bebidas geladas no café da manhã, mas enfiou seu extenso
braço até o fundo da prateleira média e pegou uma garrafa pela metade de leite.
Como só tinha uma pequena quantidade, duzentos mililitros talvez, ele sorveu o
leite pelo bico da garrafa, dois fios descendo rápida e inesperadamente pelas
laterais de seu queixo e caindo numa velocidade selvagem pela blusa do pijama.
Estava fresco ainda, o que lhe causou surpresa pois ele mesmo havia aberto a
garrafa e tomado dela há uns bons quatro dias, o que seria natural que o
paladar do líquido estivesse comprometido. Seria parte de seu rol de doenças se
aquele deleite vindo do leite fosse imaginário, as papilas gustativas
enlouquecidas produzindo reações que não comportavam a ativação apropriada
gerada pelo material biológico putrefato e em decomposição, e o sr. Flibas
deixava essas suspeitas penetrarem nele como parte da incorreção em que se
lançara de diversas e variadas maneiras desde que acordou.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Enxaguou a garrafa na
torneira da pia, balançou com determinação a água no interior para que todos os
resíduos translúcidos fossem colhidos pelo verte do pequeno furacão, e despejou
o líquido remanescente no ralo. Fez mais duas vezes o mesmo procedimento, usando
um fio do detergente que retirou do suporte de plástico ao lado da pia, e
depois enxugou a garrafa e a colocou com cuidado e ordem no aparador já cheio
de pratos e copos. Provavelmente a garrafa era descartável e melhor teria sido
se a tivesse jogado no cesto de lixo na porta dos fundos da cozinha, mas ficou
um longo tempo apreciando a garrafa deitada junto às colheres e garfos,
ensombrada pelo exército em descanso dos copos de cabeça para baixo em seus
ganchos. Era uma bela garrafa, ele pensou, e um enternecimento poderoso vindo
de raízes obscuras o fez encher os olhos de lágrimas. Alguma coisa muito
potente acabara de passar no substrato de suas emoções naquele momento e ele a
respeitou, aceitando seu lugar de revelação. Talvez dissesse respeito às tantas
garrafas de leite que seus olhos emancipados pela leveza de tantas manhãs de
divagações haviam apreendido, e por um momento o sr. Flibas achou uma síntese
perfeita, a mais preciosa das invocações do pensamento: tudo o que sobrava eram
invólucros de calor sensorial. Estava tratando sobre assuntos terríveis, cheios
de incorreções malucas e distorções, e o sentido disso era para que o calor
sensorial de experiências primordiais fossem resgatadas, lhe voltassem como
iluminações repentinas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele foi para o quarto,
olhando por impulso o inútil relógio de ponteiros sem pilha parado nas dez para
as dez, e retirou o pijama, descendo as calças com as pernas. Entrou debaixo do
chuveiro do quarto e ligou a ducha, se colocando bem no centro de sua boca de
múltiplos furos. Nunca urinava no piso do banheiro, para que a água do chuveiro
debandasse a urina pelo ralo. Uma antiga pressuposição vinda dos tempos de
casado indicava não ser uma atitude respeitável do ponto de vista higiênico, e
sempre satisfazia essas exigências biológicas no vaso. Desse modo, ainda com o
corpo por sob a ducha, se declinou um pouco para o lado até alcançar o vaso e
descarregou um jato de urina para o interior da porcelana. Deu descarga antes
de terminar o procedimento, admitindo a crença fajuta e autocontestada de que
assim a bexiga se obrigava a se esvaziar mais rapidamente, e depois que acabou
de tomar o banho, lavando os cabelos com shampoo e condicionador e esfregando
as costas com uma bucha orgânica, desligou o chuveiro e escovou os dentes,
olhando-se pelo espelho. Esfregou a toalha para desembaçar o espelho e se viu,
os cabelos molhados, o ar de desamparo mortuário do seu rosto devolvendo-lhe o
olhar. Com a voz baixa, um pouco acima do sussurro, respondeu à imagem: “eu
também não sei, sinto muito”. Abriu a porta que ficava por detrás do espelho e
guardou a escova de dentes e o creme dental. De todo modo era motivo de sorte
que não tivesse um espelho de corpo inteiro, não saberia qual resposta dar.
Voltou para o quarto depois de ter se enxugado e pendurado a toalha no cilindro
de plástico fixado na parede. Se comportava como se tivesse um encontro sério,
o que ele delimitava o contorno do conceito sem ter material memorialístico
para abalizá-lo. A suspensão de sentido era moldável à ideia de um encontro
profissional, pois não era amigo do sr. Allende. Balançou a cabeça e sentiu o
sorriso amargo daquela fase da ironia que ia além da simples constatação de que
atendia a alguns passos de uma comédia abstrata que, de alguma forma,
satisfazia-o como único observador. Até mesmo essa maneira de se referendar no
centro da questão perdera muito de sentido com a velhice, pois ele não tinha um
ouvinte hipotético para quem contar. Ele simulava entender a graça um tanto
chocha de que a história não era isenta de certa relevância se a contasse num
jantar, ou numa reunião do clube do livro, ou, quem sabe, numa sessão de
terapia (o terapeuta tendo angariado uma intimidade após longos anos de
esforços mútuos de entendimento), mas não lhe restara nenhuma outro amigo. Não
um amigo com quem pudesse dividir a total falta de razoabilidade que
compreenderia com simpatia aquela insensatez.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas colocou a
roupa íntima, vestiu as calças compridas de brim. Vestiu uma camisa branca de
botão e um casaco de feltro leve. Penteou os cabelos, usando uma escova de mão
que tinha uma alça compacta por dentro da qual enfiou a mão. Foi para a sala e
esperou. Lembrou, um tanto encabulado, que não havia fixado um horário para o
homem chegar, o que achou ridículo. Isso o colocava à mercê do sujeito de uma
forma que pareceu ser mais uma das astúcias maquiavélicas dele para se
sobrepor. Não era mais hora de sentir ódio e se punir por essa fraqueza, mas
sabia que sua falta de tato nesse joguinho com um homem como o detetive ainda
traria um comportamento melindrado e auto defensivo de sua parte. E Allende é
quem, para piorar a situação, lhe parecia ter maior traquejo para colocar panos
frios e socializar o ambiente. Não estava querendo ler, cruzando as mãos na
altura do rosto. Ficou um longo momento assim, mergulhado em reflexões, até
que, com um suspiro, pegou o jornal soviético e ficou folheando, sem ânimo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Estava quase se deixando
render por uma crítica cinematográfica sobre um filme indonésio_ sobre uma mãe
camponesa que luta pela sobrevivência do filho sem pai em uma sociedade machista_,
quando foi retirado de volta à realidade com o som de passos vindos da porta do
apartamento. Dobrou o jornal, pôs os óculos no rosto e ficou com a boca
fechada, relaxada, antecipando sons presumíveis que deveriam continuar o
movimento do corredor de fora. Enfim bateram na porta, um toque decidido mas
não exorbitante. Se levantou a andou com os passos firmes. Abriu a porta e lá
estava o sr. Amásio Allende.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele lhe sorriu, meio
inclinado, e se desvencilhou a mão direita do guarda-chuva que lhe custava certo
esforço em operar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Oh, Oh, eis o homem
culto! Deixe-me observá-lo para ver com detalhes como ele é. Brincadeiras à
parte, é um prazer finalmente te conhecer, sr. Flibas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas pegou a
grande mão dele na sua e sentiu um aperto cortês, que ele de imediato
identificou como uma estratégia calculada de estender suas credenciais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Sou eu, sr. Allende.
Queira entrar, por favor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O rosto dele era grande,
imponente, espichado para baixo. Parecia um rosto inglês, desenhado usando uma
régua genética de antigos provincianos insularmente isolados com suas noções
servis mas participativas da aristocracia. Um rosto que denunciava sua
inclinação à ordem, ao fuxico e à manufatura artesã. Indicava que na
estratificação profissional a que rendia fidelidade ele poderia ser com igual
proficiência um barbeiro, um açougueiro, um sapateiro ou um jardineiro. O fato
de ter sido um detetive, porém, parecia não ter sido aleatório, porque nele
havia uma confiabilidade que o teria tornado um destaque em todas as áreas
anunciadas, o que evidenciava ao sr. Flibas que não se tratava pois de um mero
improvisador. Era um homem deveras um tanto alto, como ele mesmo havia alertado
pelo telefone, mas talvez bem menos factível de ser evidenciado no meio de uma
multidão quanto pretendia. Seus olhos tinham o recurso inconsciente de serem
generosos e mansos, o que não eram atributos que chamassem a atenção do vulgo
por muito tempo. Talvez ao ter querido passar a impressão de certa imponência
ao sr. Flibas houvesse nele uma vaidade em driblar o selo de barbeiro de aldeia
que sabia possuir e talvez colocasse em dúvida a sagacidade que se espera de um
homem que transita no submundo do crime. Talvez sua aparência dúbia de homem
grande mas com ar prosaico atendesse à verdade de que fosse apenas um detetive
de temas irrisórios, traições de esposas cansadas, perseguições na surdina de
antigos sentenciados cujo único motivo fosse atender à curiosidade de idosos
entediados. Idosos ricos entediados, o sr. Flibas se corrigiu, pensando em
Vergue. O detetive tinha um bigode muito fino, mal composto, com fios grossos
entortados e com as beiradas de baixo formando um cômico montinho com falhas.
Ele entrou e ficou parado à porta, sem graça, ainda repetindo o risinho cortês
que não escondia que avaliava avidamente o apartamento. Ele estava tão embrenhado
em não disfarçar que o ambiente lhe provocava uma profunda curiosidade que
virava o pescoço, arregalava os olhos e depois se virava para o outro lado,
como para obter alguma comprovação de uma suspeita. Vendo que o sr. Flibas o
olhava, ele se calou, ainda com o sorriso na boca (a ponta da língua se
pronunciando ligeiramente como se tivesse um tique nervoso de a mastigar em
momentos dispersivos).<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Bem, bem, bem, hehehe_
ele estacou os braços.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Era como o senhor havia
suposto?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Ah, o apartamento? Eu não
imaginava que fosse tão soturno. A sua inquilina me parece alguém com um senso feminil
de organização muito desenvolvido, de modo que esse ar circunspecto, que remete
muito mais ao senhor do que a ela, me cause certo assombro.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas seguiu em frente para levá-lo ao
sofá na sala, não querendo demonstrar que caía no conto da carochinha de que
ele era um gigante ingênuo que não percebia uma caçoada. Não lhe pegou o casaco
amarelo que usava e que estava molhado, ainda que não muito, não o suficiente,
pelo menos, para que ele se preocupasse com o tapete e os móveis. Allende não
parecia ser susceptível a esses cuidados profiláticos, nesse ponto ele parecia
ter uma distração sincera. Pensando assim, o sr. Flibas achou por bem se virar
e pedir seu casaco, para evitar danos maiores, ao que o homem o passou (não sem
antes fingir surpresa mais uma vez, uma tática que servia como um
agradecimento). Não haviam porta casacos no apartamento, e o sr. Flibas levou a
peça até a mesa e a colocou no encosto de uma cadeira. De todo modo reconhecia
que era quase tão displicente com esses detalhes caseiros quanto aquele
gigante, o que o sr. Flibas ficou consternado, lamentando não ter a percepção
certa para ver se estava cometendo algum deslize que chamaria a atenção de sua
inquilina. Bom, o que fazer, deixa pra lá, ele deu de ombros e voltou para a
sala.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O homem já havia se
sentado. Sem o casaco sua barriga era visível, pronunciada mas não
patologicamente chamativa. Não parecia que vivia para os prazeres da mesa, mas
ser o efeito colateral de uma vida ocupada, um cotidiano do monastério da
profissão que o fazia desleixado com a dieta. Um regime alimentar fomentado em
bares e sanduíches comidos dentro do carro. Quando viu o sr. Flibas entrando na
sala ele deu outro de seus sorrisos, havia um grande cabedal deles, pelo que o
sr. Flibas suspeitava, cada um querendo emitir partes peculiares do discurso. O
sr. Flibas se sentou de frente a ele e o observou, com as mãos unidas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Bem, aqui está o
senhor._ o sr. Flibas disse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O homem parou de sorrir,
deu uma volta de olhos mais uma vez pelo apartamento, como se tivesse em um
local cuja excepcionalidade faltava na percepção acostumada do sr. Flibas, e
olhando novamente seu anfitrião, ele disse:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ É um ambiente fabuloso,
sr. Flibas! Confesso ao senhor que me escapava a intuição de como seria. Eu sou
amante de habitats íntimos, principalmente aqueles que ficam intocados à mercê
dos mesmos moradores por anos, como este. Impregna como o quê a personalidade
dos que vivem nele de modos que parecem extensões, como novos braços e pernas.
Não estou me expressando bem e não queria manter essa imagem equivocada cheia
de fisiologia. É mais algo puramente espiritual.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas o olhava
impressionado, mas continha qualquer emissão sensorial. Não eram matérias a
serem trabalhadas instantaneamente aquilo que o homem dizia. No fundo de sua
canastrice havia um conteúdo legítimo, não sabia ainda se derivado de algum
poder de percepção saudável da mente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Como o sujeito ficou calado
em evidente espera de que ele lhe completasse com alguma resposta aquela
observação, o sr. Flibas disse:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Esses traços de
personalidade são puramente de minha inquilina, a sra. Adele_ olhou em volta
por inércia, atendendo ao que os dois esperavam que se fizesse_ Acho
interessante que o senhor tenha tantos dons de um bom observador. Mas, se não
for desrespeitoso, gostaria que iniciássemos o que estamos aqui para conversar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Sem nenhuma outra
solução de continuidade, dispensando trejeitos, o sr. Allende abriu o grande
envelope branco que trazia ao entrar e retirou documentos dele. Não havia
mesinha de centro naquela disposição do prolongamento da personalidade da sra.
Adele, o que o sr. Flibas percebia ser uma falta_ ou resultado do fato de que
ela não recebia visitas que lhe traziam dossiês de vidas alheias. As folhas que
saíam como da cartola de um mágico, lisas e foscas, um momento de cada vez
captado por aquele homem cuja única ocupação era esperar e colher pelas
beiradas os pequenos despojos de um conjunto de crimes maiores, aquilo que as
pessoas que eram seu alvo deixavam sobressair pela distração ou pelo
automatismo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu gostaria que me
explicasse primeiro o que o senhor vem descobrindo sobre o rapaz. Mostrar
registros sem fazer esse apodo não melhorará meu parco entendimento a respeito.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Pois não. O senhor está
certo._ ele procurou em torno algum local onde deixar os papéis, mas não achou.
Segurou-os desajeitadamente por sobre o peito, olhando-o como uma criança
crescida que tem brinquedos importantes que não podem cair na sensaboria do
mundo dos adultos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Em nossa conversa eu
disse ao senhor que ele tem uma filha. A moça tem 19 anos. Foi concebida na
cadeia, no período de vinte anos que ele ficou preso. O senhor sabe, talvez,
que ele cometeu outro assassinato no presídio. Por este, ele foi condenado e
sua pena se elevou em mais nove anos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu não acompanho a
vida dele, sr. Allende. Por algumas vezes Vergue queria me informar sobre o que
acontecia com ele nesses anos, baseado em sua aplicação sempre para mim
misteriosa e incompreensível por se manter a par de tais coisas, mas eu
reiterava minha total falta de interesse no assunto. Como o senhor conhece Vergue,
sabe que nada o demove a realizar suas obsessões, de forma que ele me contava
mesmo assim. Não adianta muito se zangar com alguém que é acometido desde de
sempre por compulsões peculiares. Vergue não é bem um maníaco, mas alguém
movido por hobbies íntimos específicos não pautados pela conveniência.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O sr. Vergue é um homem
que conserva dentro de si uma criança que nunca cresceu. Ele tem essa chama
científica que está por detrás dos grandes avanços da humanidade. O que parece
ao senhor um comportamento intransigente, na verdade é a teimosia muitas vezes
não politicamente correta dos ímpetos geniais. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele falava sério agora.
Seus olhos ficavam cheios de uma severidade trágica. Era um mal ator quando
tinha que demonstrar dramaticidade menos rasa do que o âmbito de suas ações.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Bom, deixemos Vergue de
lado por um momento. Queira continuar sua exposição, por favor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele se achegou para frente
na poltrona, de modos que os intervalos entre os botões em sua camisa deixavam
entrever os pelos de sua barriga. Não tinha retirado o chapéu, uma peça que
lembrava o que os atores que interpretavam Sherlock Holmes usavam nos filmes,
embora isso devesse ser um elemento fortuito pois ele parecia a atender outros
exemplos menos cerebrais. Era um homem de ação, de se deslocar por vários
pontos da cidade. Revelava um entusiasmo difícil de disfarçar por ter vindo
ali.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ A menina se chama
Janete, e cursa História na universidade federal. É uma espécie de militante de
direitos humanos, uma persona dos livros e das causas dos degradados e
minorias, se é que os degradados podem ser vistos como minorias nesse mundo,
não é, sr. Flibas. Ela obtêm as mais altas notas. Isso eu não soube por nenhum
técnica de investigação mais aprimorada, mas por as notas das provas serem
fixadas em murais específicos no prédio da faculdade. Ela tem uma espécie de
veneração pelo pai. É estranho que uma estudante de elevados dons críticos
tenha esse tipo de abstração suficiente para não cogitar o assassino que a
engendrou. Se eu fosse leviano explicaria tal coisa no fato dela ser um ente do
sistema prisional, seus genes terem sido concebidos numa cela apertada com
vários outros casais copulando ao mesmo tempo. Mas isso não é nem um pouco
científico_ ele ergueu seus olhos de ternura canina para o sr. Flibas, uma
prega palpebral semifechava o ângulo que os olhos formavam com o nariz
realçando algo de buldogue amistoso_ e não falo isso senão como elemento para
que o senhor facilite a composição do enredo em sua mente aprimorada, sr.
Flibas. Uma menina filha de um assassino reincidente, e de uma mãe adolescente
cujo grau de desabrigo familiar e deficiência educacional a fez se apaixonar
por um criminoso a ponto de se casar com ele enquanto esteva preso. É uma
desrazão tratar o amor de uma filha como um simples componente genético, o pai
queiramos ou não, não parece ser um mal pai, mas a fúria que ela demonstra
contra o sistema é uma característica nutrida nesse meio. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ A mãe dessa menina, o
que aconteceu com ela?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Ela está viva. Mora com
outro homem, um dono de um restaurante dez anos mais velho e que não quer saber
de nada desse submundo. Janete é independente. Trabalha numa loja de roupas
durante o dia e cursa o curso de noite. Ela e a mãe se dão muito pouco, em
encontros esporádicos. Mas não há nenhuma rixa entre as duas. A garota teve uma
educação católica clássica nesse aspecto, embora só na estrutura patriarcal de
respeito da grande figura patriarcal que governa a família.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ O senhor está falando de
heranças genéticas, mas pelo visto essa menina está desenvolvendo qualidades
que não haviam no pai.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ É justo esse o ponto
chave da questão, sr. Flibas. Olhando-a à distância, como me limitei a fazer
durante os primeiros meses, ela correspondia com uma precisão suspeita a todas
as expectativas da visão progressista sobre os benefícios redentoras da
educação. Imagine sair da linha esperada da criminalidade, ou das paixões
baixas que levaram seu genitor à criminalidade, e antes dos vinte anos ter a
potência intelectual de uma...bem, não tenho a erudição do senhor e me falta
algum nome da intelectualidade feminina. Mas eu queria completar essa imagem
com o nome daquela escritora judia,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>a que
falou sobre o mal ser coisa de gente comum submetida a lavagem cerebral, e não
uma característica pré definida.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Creio que o senhor está
se referindo à Hannah Arendt, que cunhou o termo “a banalidade do mal”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O detetive o olhou com os
olhos concentrados, prenhes de uma simulada admiração. Na hora o sr. Flibas
percebeu que havia caído em outras das estratégias de relações públicas dele. O
sr. Flibas parecia estar ali em parte para atender a algum arquétipo que aquele
homem alto e inteligentemente maleável havia feito para moldar a realidade
dentro do factoide que criara sobre o assassino redimido e sua filha
anarquista. Era ao mesmo tempo de uma ingenuidade desconfortante e de uma
astúcia da qual o detetive angariava alguns pontos para sua premissa técnica.
Queria passar para si mesmo, mais uma vez, numa eterna alimentação de sua
autoestima, que era altamente articulado e com certo domínio sobre o ambiente,
e tinha algo que deveria deixar o sr. Flibas congratulado por tais joguinhos no
modo como o sujeito se sentia realizado por ser ele, o sr. Flibas, um homem de
elevados dons intelectuais.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Isso, Hannah Arendt,
aquela senhora com o cigarro que mantinha intercurso com o Heidegger e seguiu
passo a passo o julgamento do Heichmann.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Olha que prodigiosa a sua
memória, sr. Adelle. Um nome apenas e toda uma sequência de fatos é acionada!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele sorriu ao ver que
havia sido pego em seu estratagema, mas emitira seu sorriso de menino faceiro.
Talvez fosse parte também da jogada a hora certa em mostrar sua modéstia.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eu li o livro dela, devo
confessar. É que eu fico um tanto desconcertado diante de um homem como o
senhor, sr. Flibas. É um livro interessantíssimo. Creio que todo pai deveria
passar esse livro para que os filhos lessem antes de completarem 13 anos, que é
a idade onde o cérebro está ainda bem receptivo mas começa a dar seus primeiros
passos à rigidez da aceitação e do comportamento repetitivo. Eu não tenho filhos,
mas se os tivesse passaria esse livro e O Castelo, de Kafka, como instrumentos
indispensáveis para a formação do caráter.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas cogitou
haver uma lógica íntima que sustentava essas duas escolhas, e sabia que se
tocasse no assunto estaria mais uma vez cedendo às intenções dele. Como um
estudante de livros e um interessado na condição humana, era uma tentação muito
grande saber o que um homem como aquele teria a dizer. Mas antes que ele
abrisse a boca, o detetive se antecipara.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eichmann, após ser
sequestrado pelo Mossad e quando estava no corredor da morte em Nuremberg,
recusou um livro que lhe foi ofertado por um dos carcereiros. Ele o devolveu
por atentar contra os bons costumes e ao fato dele ser casado e pai. Era o
Lolita, aquele romance pornógrafo tão cheio de refinamento e elevação moral. Já
notou que os únicos livros sobre sexo que importam sobre os que tratam de tudo,
menos de sexo? Tratam de doenças e compulsões, mas não sobre essa sensação
soberana de felicidade e autoestima infinita que o verdadeiro sexo dado por
deus promove. Mas a questão é que a alta literatura era algo muito impertinente
para esse senhor fino e condoído do exemplo moral para seus filhos que
organizou a estrutura dos campos de concentração e da solução final.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Eichmann, pelo que me
lembro desse livro, se achava superior a seus comandados por, durante toda a
vida, ter lido dois livros, enquanto eles não haviam lido livro algum. E esses
dois eram dentro do estilo de aventuras exemplares para jovens patriotas, como
os livros de Kay May que Hitler era louco por eles.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Isso, senhor Flibas! Meu
Deus, como é um presente altamente vantajoso poder falar com o senhor. A gente
tem sempre uma resposta sintonizada com as mais altas expectativas, sempre
podemos esperar por uma resposta atenta e circunstancial. Nada de assuntos
sobre carros, mulheres e programas estúpidos de televisão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Mas o senhor estava dizendo sobre Janete. O senhor a está
relacionando à Hannah Arendt.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Foi apenas uma maneira de fazer uma introdução auspiciosa ao
assunto. Mas eu não a subestimo, nem um pouco, senhor Flibas. Eu trouxe aqui
alguns artigos que ela escreveu para o jornal da faculdade, e a garota está
francamente incendiada.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele procurou entre os
papéis e, erguendo as sobrancelhas e molhando as pontas dos dedos, puxou
algumas folhas de cópias de xerox grampeadas no canto superior. O sr. Flibas
leu uma tarja adesiva amarela grudada em que estava escrito o seu nome.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ É para o senhor. São três
artigos. Um deles ela trata do pai, de forma velada e culta, em que só
iniciados como eu e o senhor poderemos reconhecer a estratégia de falar de
forma abrangente sobre as injustiças do sistema carcerário e a realidade vivida
pelo pai. Os outros artigos são sobre temas pontuais, uma sobre racismo em grandes
empresas e a outra sobre a real emancipação do poder feminino que é toldado
pelos grandes esquemas de marqueting contrário das mídias dos países
periféricos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas estendeu o
braço e pegou as páginas. Não seria muito diferente do material que lia
avidamente na Sentinela Progressista. Ele observou as folhas e a tintura estava
fraca, com alguns pontos de impressão tênues e mal visíveis. Abriu as folhas
debaixo e viu que problema estava na máquina que a reproduzira, que deveria ser
do escritório do detetive. Mas estavam num limite de suficiência que não
atrapalharia o resultado, embora exigissem uma certa aplicação da parte dele.
Para um bibliotecário aposentado, era um aspecto que não causava muitos problemas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Ela é como dinamite.
Escreve muito bem. Tem um talento enorme, embora se soubesse converter boa
parte de sua indignação em estratégias eloquentes evitaria o tom enfadonho
típico da adolescência. Por mais que tenha sofrido, ela acredita piamente na
capacidade do cidadão engajado em mudar o mundo. É de partir o coração, senhor
Flibas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas lia por alto
os títulos dos artigos. Não confiava muito em excessos de indignação e o
detetive conceituava bem usando o termo enfadonho. Os jovens tinham uma
percepção biologicamente distorcida sobre a longevidade da vida e muitas vezes
suplantavam a coerência temporal das apostas. Era uma impressão equivocada,
promovida por um instinto muito bem arraigado da continuação da espécie, de
imortalidade. Não conseguia mais se enternecer com esses inúteis dispêndios de
energia, essa balbúrdia mascarada de ideologia, que todas as vezes descambavam
em extenuações profundas. Se o experimento social que Vergue queria propor com
isso tudo_ porque era certo que ele sabia da existência dessa garota_, era que
a escuridão do conformismo lipídico que engloba tudo e todos não poderia
decretar suas vitórias de forma tão incontestável. Ele gostaria de ver o rosto
dessa menina, diferir a independência e a herança do assassino no contorno de
seu rosto_ alguma mácula era deveria ter da intransigente seriedade dele no
tribunal, sua empáfia da invisibilidade, sua vontade proclamada pelos músculos
faciais _aquela rede ultra calibrada de violência e temor_ de que desprezava
profundamente tudo em volta. No assassino aquela fúria havia resultado num ato
bárbaro sem razão alguma, uma admoestação vazia contra a materialização errada
da padronização que tanto o afligia. Naquela moça, algo substancial havia
ocorrido na grandeza do mistério evolutivo em curta escala insuflando um prisma
de propósito. O sr. Flibas não podia negar que enfim Vergue havia composto um
enredo interessante, hipnoticamente estimulante a um nível que ele não podia
mais dispensar.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele ergueu os olhos,
saindo de suas divagações, e viu o detetive lhe examinando com o máximo de
atenção, como se estivesse suspeitando dos intrínsecos pensamentos passando por
sua cabeça. O homem não temia o silêncio, e quando isso acontecia num servidor
da lei_ mesmo um mambembe investigador de divórcios sem altas credenciais como
ele_ era algo que fazia aflorar um sentimento de apreensão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O senhor Flibas se limitou
a devolver o olhar, resignado em não ficar na defensiva. O sujeito sabia bem
impregnar de tensão as diversas linhas discursivas, como um bom narrador
polifônico. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Creio que a história
sobre a moça não terminou. Como a história de Kafka, o enigma do que está no
castelo é a parte fundamental do que traz o senhor aqui._ o sr. Flibas disse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Lamentavelmente isso é
verdade, senhor Flibas. A parte principal o senhor ainda não sabe.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Pois sou todo ouvidos, sr. Allende.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Allende se mexeu na
poltrona, achegando seu corpo para a frente. O que tinha por dizer parecia ter
um peso circunstancial alto, e ele queria que as palavras recebessem a
delicadeza possível. Era algo curioso e nitidamente empolgante, visto seu ar
disfarçado de deleite, autorizado a não mais ter que ostentar um falso ar de
abjeção. Sua barriga se encolheu ou foi escondida pelos panos de um número a
mais de sua camisa que sobressaiam na área da cintura, e o branco lhe dava um
ar higiênico, o que deveria ter a ver com a impressão que o senhor Flibas
tinha_ um pré-conceito_ de que os artesãos dedicados tem uma assepsia natural,
como se a dedicação lhes conferisse uma incorporeidade.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Essa menina. Hum-hum...,
essa moça, é o termo. Entrou numa grande roubada. É uma dessas histórias a
quais podemos definir como zeigeist, como vindas do espírito do século. Tem a
ver com cibernética, correção política, apologia à liberdade de gêneros, etc.
Tantas e tantas coisas que afloram em ritmo bastante violento nessa Babel em
que todo mundo é o algoz e o elogiador de todo mundo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Sou todo ouvidos, sr.
Allende. Continue, por favor.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Um colega de aula de
Janete, chamado Nestor Tostes, foi injuriado por uma professora em sala de
aula. A mulher é uma nazista sem tirar nem pôr, uma dessas criaturas sórdidas
que algum evento que deve ser estudado retirou de debaixo da pedra onde viveu
escondida por décadas. Um desses seres cheios de rancor e esbravejando direito
por legitimidade que os tempos atuais tem feito surgir. Os que ficaram
silenciados nas épocas passadas, quando eu e o senhor éramos homens de meia
idade usufruindo da última ingenuidade reinante, que se lamuriavam diante as
injustiças e rejeições pelas quais passavam. É estranho que na faculdade tenha
muitos desses tipos, mais do que a análise lógica sobre a inclinação desses
ambientes para a esquerda crítica leva a pensar. Essa professora é uma senhora
que ela mesma teria motivos para não cair tão achincalhadamente contra as minorias
representativas. Ela tem, bem, como vou dizer, não quero incorrer em nenhum dos
deméritos que estou criticando, mas não tem outra forma de dizer senão com a palavra
direta. Ela sofre de obesidade. Ela tem uma rotundez corpórea além de qualquer
eufemismo. Mesmo assim, numa sala de aula, durante uma discussão que tomou
proporções descontroladas, ela perguntou a esse rapaz o que ele acharia se os
“dos tipos dele” começassem a ser mortos em via pública. É algo realmente
espantoso de se ouvir, ainda mais em uma sala de aula. Os tipos dele ela queria
se referir aos trejeitos do rapaz, que o vulgo costuma chamar de afeminados.
Que conversa espantosa essa nossa, aparece com todo o poder os limites do
idioma. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ A mulher inquiriu o
aluno sobre se ele se sentiria confortável se o suposto nicho sexual a que ele
pertence sofresse um pogrom?_ o sr. Flibas perguntou espantado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Com palavras muito mais claras do que as que poderíamos usar sob
a égide de nosso senso moral, sr. Flibas. Perguntou na cara dura.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Eu não tenho requintes de exclusividade em achar que estou sendo
poupado de uma atualização absolutamente distorcida das forças da história, sr.
Allende, mas isso é uma amostragem pura demais do que minha idade me agracia em
evitar. Meu Deus! Essa jovem, Janete, sair em defesa do rapaz é algo
obrigatório. Ela tem um grande mérito por não calar, por não se recolher em um
canto de observador omisso das derrocadas do mundo, mas ela está provando
apenas que é alguém digno que respeita o contrato social.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ É o que escreveu aquele
poeta alemão, levaram meu vizinho, mas como eu não gosto do meu vizinho, eu não
me importei, etc, etc, até que chegaram nele e o levaram e qualquer reação dele
já estava atrasada demais. A professora estava usando crachás e adesivos do
candidato da extrema direita à presidência, o que é terminantemente proibido em
uma repartição pública. Seu objetivo era afrontar, já que toda a classe segue o
que ela conceitua como doutrinação da esquerda. Faltou por pouco ela estender o
braço e fazer a saudação nazista. Janete se levantou e começou a falar sobre os
direitos humanos, a comissão de Genebra, sobre Chomsky, o mundo líquido, o fim
das afetividades, a menina é uma fera e sabe conversar como ninguém. Ela
apontava o dedo e gritava, mas sem perder a firmeza da voz, apenas para que a
mulher gorda perdesse um pouco da progenitura do discurso e falasse menos
bobagens. O rapaz, Manuel Tostes, não conseguiu falar nada, estava em choque,
encolhido num canto da sala.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Como senhor sabe desses
pormenores, sr. Allende? Tem informantes dentro da faculdade também?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O detetive, ainda sentado
com o corpo projetado para a frente, deixando um largo espaço entre suas costas
e o escoro da poltrona, olhou para os dois lados, como se tivesse esquecido
onde estava, e continuou:<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Eu tenho o vídeo feito por um aluno, sr. Flibas. Eu o obtive com
o dinheiro do sr. Vergue. Não quero entrar nessa parte da história agora, mas o
senhor não vai ficar sem conhecer tudo. Apenas me eximo de tratar desse quesito
agora por uma questão de respeitar a linearidade da narrativa. Só antecipo que
ninguém tem esse vídeo, não está nas redes sociais, está bem guardado em meus
arquivos e segurado num site privado de memórias digitais. A professora não se
calou. Ela chamou Janete de sapatão, de experimento sociológico de uma filha
bastarda de um criminoso que comprova a teoria de que a prole de desvirtuados
geram desvirtuados. Essa foi a gota d’água para a Janete, que jogou um livro na
cabeça da professora. O livro nocauteou a mulher, que ficou com um galo
horrível e com um corte na bochecha. Ao cair ela quicou o rosto no chão e por
pouco não teve uma lesão craniana. Janete foi segurada para não desferir chutes
na mulher, segurada com veemência por três alunos. Essa parte da gravação
começa a perder o foco devido ao caos implantado por esse final inesperado. O
diretor e os bedéis entraram na sala e a gravação acabou por aí. A professora
foi levada para a sala da diretoria e quando acordou reivindicou a presença da
polícia para fazer um inquérito. Ela disse que os adesivos haviam sido grudados
nela quando ela estava desacordada, no intuito de cavar uma demissão.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Isso é muito grave.
Janete usou de boas intenções cívicas, mas uma vez caído na violência ela
perdeu qualquer margem para defesa.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Há uma questão que podemos classificar como de uma má escolha
exegética para experimentar a força de um livro na prática. O volume que Janete
acertou a professora é uma edição traduzida da Plêiade de Leviatã, com
oitocentas páginas em capa dura e de quase cinco quilos. Se a sorte tivesse
montado esse incidente duas semanas atrás, quando eles estudavam o Contrato
Social, as possibilidades de se acertar um livro três vezes menos volumoso
seriam menores. Se a mulher não tivesse negado a cabeça num desvio instintivo
para o lado, o velho Hobbes mesmo assim não teria feito grande estrago. O lobo
do homem acarreta uma áurea involuntária de selvageria maior que o romantismo
sem violência de todo homem nasce bom.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas sorriu
diante a pilhéria. Era um insight realmente primoroso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ O senhor consegue ver toda a graça por detrás dessas bravatas
ferozes. Não deixa de estar certo, pois todo mal é ridículo. Essa cena seria
pavorosa em um prostíbulo, quanto mais em um local teoricamente destinado ao
fomento do saber e da cultura. Mas a diretoria acreditou na mulher, diante
tantas testemunhas?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Não só acreditou como abriu um processo de expulsão da Janete. A
professora é filha de um desembargador, tem tios influentes nas empresas da
mídia. Um irmão de sua mãe tem um canal famoso, de milhões de seguidores, no
Youtube, destinado aos mais atrozes delírios da extrema direita. Descobriu-se
depois que o diretor da unidade foi compactuado com os movimentos de extrema
direita para não perder o cargo e a escolha da professora foi algo planejado,
para conter a onda progressista da maioria absoluta dos alunos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Isso é um absurdo!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ O curso é praticamente tudo que uma menina vinda de uma família derruída
e sem muitas expectativas de ascensão social tem. Retirá-la dos bancos
acadêmicos seria um grande acidente na vida dela, um acidente irretornável.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Eu lamento muito. A situação da cultura e do pensamento crítico
independente no país é catastrófica. Toda essa trama só mostra isso. Não se
pode fazer nada para reparar as tantas injustiças nessa história. O rapaz
ofendido em sua sexualidade, a menina levada a cometer um ato bárbaro pela
falta intencional de controle por parte de sua professora. E o fato de se fazer
propagandas desse teor em um local destinado à educação.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Mas não acaba por aí. Aconteceu algo muito pior. O rapaz foi até
a sala da professora, uma semana depois, desfivelou a calça e lhe mostrou o
pênis. Ele não havia sofrido nenhuma sanção até o momento, em que a reitoria
não viu outro recurso senão o suspender das aulas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Ele simplesmente entrou na sala dela e fez isso? Sem nenhum
conteúdo entre a briga na sala de aula e esse momento?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Nenhum. A professora disse que, enquanto ele lhe mostrava as
partes íntimas ele falava num som libidinoso “isso aqui está bem para você? É
disso aqui que você precisa para virar uma mulher de verdade?”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Meu deus!<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ O rapaz quis se aproximar dela sabe-se lá para quê. Se o senhor
o visse saberia que isso atentaria mais contra ele mesmo do que contra a
mulher, pois ele é um terço do tamanho dela e uns 50 quilos mais magro. Se ela
quisesse, simplesmente o destroçaria. A mulher é algo equivalente a uma modelo
ocidental vestido e feminino de um lutador de sumô.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ E o que aconteceu com o rapaz?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ A mulher se sentiu agraciada por tamanha sorte. Não poderia ter
acontecido algo melhor para lhe dar legitimidade em todos seus discursos e essa
cena acabou de vez com as mínimas chances que Janete e seu movimento progressista
teria. Os policiais levaram o rapaz e ele ficou três dias na cadeia. O
judiciário parece ter feito corpo mole para deixar para soltá-lo depois desse
tempo todo, como uma lição moral sugerida. O judiciário nacional não difere
muito da atmosfera metafórica que a professora representa com suas suásticas
disfarçadas e sua paixão pelo candidato extremista.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ E o vídeo de toda a ação? Isso deve valer muito, considerando o
quanto o universo de vídeos da internet se alimenta de material escabroso. Isso
foi divulgado?<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Ah, senhor Flibas! Reconheço que o senhor viva num isolamento
saudável quanto a todas essas emanações doentias do mundo lá de fora, e por
isso compreendo que não esteja com isso colocando minha perspicácia
profissional em dúvida. Foi uma colega de Janete que filmou tudo com seu
celular e ela não queria se expor se publicasse esse conteúdo em canais
virtuais e nem tão pouco queria jogar isso levianamente nas redes. Eu já a
havia entrevistado alguns dias antes sobre o caráter de Janete, e ela me
telefonou me oferecendo o vídeo por um preço proibitivo. Ela é duro na queda e
foi irredutível, mas sem fazer chantagens. Deixou no começo a insinuação de que
se eu não o comprasse ela não teria nada a fazer com ele senão atender ao apelo
instintivo da consciência virtual uniforme de jogá-lo para os leões da crítica
incessante. Eu fiz uma ligação rápida para nosso contratante e ele topou pagar
o preço. De modos que eu adquiri o vídeo e ele é a peça chave tanto para
inocentar quanto para condenar Janete.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;">_ Suponho que tenha o registro por inteiro do episódio, de modos
que mostra a propaganda ostensiva no corpo da professora como também,
lamentavelmente, o desfecho do ato de violência.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A conversa não poderia
continuar mais. Ainda ficara uma estrutura suspensiva no ar sobre o propósito daquilo
tudo sendo levado para o senhor Flibas, o que ele poderia fazer em sua profunda
insuficiência em um sentido ou em outro para socorrer aquelas pessoas. Aquela
moça desesperada pelo excessivo apelo moral e o rapaz homossexual cujo
desenvolvimento do enredo se jogara a uma ponto morto de autodestruição. E a
professora, que talvez fosse o elemento mais sensível disso tudo, pelo que
representava na contramão de qualquer esperança de redenção nesse quadro de
almas em turbulência. Era a violência pela violência, o arquétipo puro de
emanações sensoriais vazias de propósito a não ser a imolação mútua. Como uma
pira de sacrifícios conjuntos em nome de um deus amparado no ódio. Mexer com objetos tão venenosos não se obtinha nenhum seguro de se
sair ileso. A conduta forçada em retorno ao andar da trivialidade fez com que o
sr. Flibas interrompesse a conversa e levasse o detetive para a porta de saída.
A desculpa verdadeira era que a inquilina estava por chegar e prometera trazer
visitas, e não seria bom para ninguém que houvesse testemunhas daquele acordo
tácito mas ainda indeterminado que se fazia entre os dois. O detetive mesmo
concordava, achando de uma indispensável prudência que ele saísse naquela hora,
obtendo do sr. Flibas a promessa de que matéria segredo sobre todas as
revelações. O sr. Flibas conteve um sorriso diante essa definição, mas chegou à
conclusão de que o homem estava certo, eram revelações poderosas. Não era por
serem desse grau de escatologia que não envolvesse sentimentos humanos que
deveriam ser considerados de forma séria.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Allende disse que
iria manter o sr. Flibas informado. Ele se vestira o casaco e descera com vagar
as escadas, olhando os ângulos de cima com uma atenção de entendido. Quem sabe
se ele não teria alguma solução milagrosa a apresentar ao Toledo sobre controle
de pragas? Na certa os dois iriam se encontrar na portaria e aquele mundos
eloquentes não resistiriam a uma pausa para conversarem.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A sra Adele chegou meia
hora depois. A chuva havia parado e um sol manso, preparado para reaver seu
direito de progenitura pelo menos por algumas horas, incidira um calor sobre-humano
cujo recurso imediato foi abrir as janelas e correr as cortinas. Olhando para a
rua de frente, se via as pessoas aparecendo novamente em suas qualidades de
transeuntes apressados atinados com outros aspectos da realidade que não fosse
a pressa desviante contra a tormenta. O céu se esvaziara de nuvens, emitindo um
azul esbranquiçado, ainda inseguro se devia cobrar para si toda a manifestação
sub-equatoriana dos longos meses de calor intenso, e uma ponderação esotérica,
uma espécie de convalescência ainda longe por terminar, deixava claro que as
sombras só estavam em algum lugar resolvendo outras tarefas de urgência
intermitente que, logo cumpridas, voltaria a estender o longo manto de
escuridão e assobios por sobre a geografia visível.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>As crianças estavam com
seus uniformes oficiais do colégio. Consistia de uma camiseta polo branca com a
gola azul, com uma insígnia no peito, e a menina usava uma saia até os joelhos
e o menino uma bermuda, ambas azuis. Evocava uma atmosfera regencial cara,
línguas estrangeiras e algum código de ética centenário. A escola era de
período integral, e o fato das crianças estarem ali era algo que despertava
curiosidade no sr. Flibas. A sra. Adele leu isso no rosto do inquilino quando
colocou os dois sentados na sala de estar, e com uma voz firme, característico
dela, lhe contou que os pais haviam pedido que ela os buscasse antes do almoço
no colégio. Ela falava no mesmo tom inalterável que usava para todas as coisas,
mas tinha uma técnica própria de estabelecer o alcance para cara frase de forma
que os que não deviam ouvir ficavam de fora. O sr. Flibas testou mais uma vez
esse poder dela observando as crianças ilesas à fala de sua cuidadora, a menina
folheando um livro que retirou da mochila e o menino, gordinho, com ar de
enfado educado, olhando algum ponto neutro que era importante justamente por
isentá-lo de participar do ambiente.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Os pais se julgam
observados, e ainda não estão em condições suficientes de admitirem uma
situação de risco_ ela disse, enquanto pegava uma panela de aço nova de dentro
do armário de cima.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ela já o havia deixado a
par da disputa na justiça pela parte do hospital que os Neville haviam
acionado. O grande hospital da Anunciação, onde a sra. Adele era cozinheira
chefe e onde Alexandra trabalhara quando exercia a medicina. Era uma causa que
se revelava complicada, cheia de embargos e audiências adiadas ou promovidas
apenas para que os advogados lessem frases de retificação. Tudo para estender a
resolução o máximo possível até que o cansaço físico ou institucional desse o
ganho para os sócios majoritários. A sra Adele havia constituído um grau de
confiança com o casal que se transformou em uma espécie de vínculo familiar,
cheio de respeito e consideração. Foi o casal que lhe dera a promoção de chefia
e supervisionara mesmo o espólio do apartamento de seu viúvo através dos
advogados da família, e Adele lhes dava em troca a persona de cuidadora extra
expediente das crianças, cujo vínculo admitia ser chamada em qualquer hora. Ela
cobria esses adendos do contrato de amizade com uma dedicação sagrada, sendo
que nutria um amor incondicional pelas crianças. E a menina e o menino viam
nela uma sucedâneo autorizados dos pais, atribuindo a ela as características
sobressalentes de carinho que o casal enredado em questões de um mundo de
ocupações restritas não tinha tempo para dar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A menina era alta, de
quinze anos, e o menino era rotundo, com um ar inalienável do privilégio de
casta, de doze anos. Sentados à mesa pareciam seres tirados de uma cena
vitoriana, um pouco só modernizada por novas adaptações de jovialidade no coque
e nas meias (com marcas da Nike), e colocados ali para comporem um quadro de
uma suave comicidade anacrônica. Fernanda_ era o nome da menina_, havia lido o
livro do sr. Flibas e conhecia aspectos relacionados à literatura juvenil
mundial que rendera uma conversa cheia de felicidade imodéstia para o sr.
Flibas. Ter seu herói menino assimilado a Kim, do Kipling, era algo óbvio,
visto o substrato da cultura subdesenvolvida não poder escapar desses moldes de
referência, mas as considerações saíam com uma inteligência sem misericórdia,
com a precisão condigna da visão aristocrática da garota. “Ele só é enfático
demais em sua recusa do mundo, como se sentisse a necessidade de ser elogiado
continuamente por esse esforço sobre-humano que faz”, ela dissera a respeito do
Pequeno Nero, o herói do livro do sr. Flibas que, em certa época da infância e
por pura voluntariedade, resolvera abrir mão de sua beleza e se tornar um ser
deformado, um pequeno corcunda. “Mas isso não faz com que ele perca sua
verossimilhança, isso, pelo contrário, reforça que ele é um personagem humano
cheio de falhas e inconsistências”.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas ficava em um
silêncio meditativo diante essa leitura tão inesperadamente próxima das coisas
que ele escrevera há tantas décadas. Talvez se não fosse aquela capacidade
corajosa dela em não ter papas na língua, e conservando ainda por cima um
respeito e uma quase polida adoração pelo livro do sr. Flibas, ele a teria
visto com a misantropia que ele tanto tentava combater mas que se acentuava
mais com a idade. As olheiras cinzas, debaixo e seus olhos concentrados,
intensamente ternos, o enchiam de uma admiração pelo futuro que ela tinha pela
frente, aquela promessa vigorosa que a juventude bem situada,
questionativamente incansável, provoca nos velhos. O sr. Flibas gostava de
falar com ela mas eram poucas as vezes que tinha tal oportunidade. Via as
aparições dela no apartamento como momentos valiosos mas que intuíam sempre um
fator indeterminado de risco, o que não ficava de todo claro mas que Adele e os
meninos emitiam tal suspeita nos rostos. Principalmente o menino, que, sem aos
atributos intelectuais desenvolvidos da irmã, era susceptível a mostrar a
intensidade de seus sentimentos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Ele parecem ao senhor
mal nutridos?_ um dia a sra Adele lhe perguntou.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele não saberia responder
com precisão a pergunta, as exigências cosméticas do mundo moderno_ com suas
exibições excêntricas do que considerava-se hoje em dia belo ou socialmente
aceitável_ mudavam numa rapidez que ele não era capaz de acompanhar. Seu padrão
estético elementar se relacionava com alguma insinuação famélica de escassez,
mas ele procurou levar ao pé da letra a pergunta e disse que os achavam bem
nutridos. O menino era algo que não se podia relativizar, embora ele não
tivesse exposto a questão nestes termos para Adele, mas a menina tinha uma
esqualidez que, em sua teoria, favorecia a clareza mental. E esse atributo era
o mais requisitável para a sobrevivência num mundo de simulacros e imposturas
como aquele. Ele sentiu necessidade de ir mais longe na resposta e disse à
Adele que Fernanda lhe parecia capaz de se defender em seus próprios termos
contra a realidade inóspita, o que, para sua surpresa, não foi recebido como
esperava. Adele suspirara de preocupação, e depois de um instante lhe disse que
era isso o que temia. Eram situações nunca explicadas e o sr. Flibas continha a
tendência dos mobiliários do apartamento e das sombras ecoando o vazio das
horas em atiçar a voz do futrico dentro dele. Não queria nessa altura bancar o
velho xereta, atrás de picuinhas para ocupar suas longas horas, se retirava
para seu quarto ou se mantinha no limiar da cordura do bom anfitrião coetâneo quando
eles estavam lá.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Como falar sobre
literatura o desgastava, pois sempre achava que era mais autorreferente do que
seu senso de autocrítica requisitava, ele se mantinha num oneroso silêncio. As
crianças, por mais que disfarçassem, não conseguiam deixar de demonstrar o
quanto se sentiam estranhas diante um velho calado, que ficava sentado sem
fazer absolutamente nada na sala diante eles. Tudo que ele tinha ele levava na
consciência, suas imagens reservadas, suas sensações acolhidas, seus temores
amortizados pela certeza do cumprimento da ampulheta dos anos, e o que era
intensidade auto avaliativa era natural que eles vissem um sucedâneo nada convidativo
para tão elevadas expectativas: lembranças do que seus livros avançados de
biologia daquela escola cara informavam sobre as doenças da senilidade. Ou quem
sabe suas fantasias soltas iam além, no terreno desabrigado das insinuações
criminosas, alimentadas por alguma insuspeita expressão a mais surgida em seu
rosto pela secura da idade. Na internet deveria haver monstros urbanos em que a
sua aparência alquebrada, obsoleta, sem lugar efetivo na região saudável das
aspirações indenitárias, deveriam se encaixar com perfeição.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Como o segredo do que
havia entre os três e aqueles pais corporativos sempre leais às finanças e ao
deus do capital era inatingível para ele, o sr. Flibas pegou seu casaco e pediu
licença. Pensou em almoçar no restaurante italiano a duas quadras abaixo e
pegar o metrô para a biblioteca municipal, onde tinha de entregar um livro e
escolher um outro. A sra Adele ficou consternada, e ele viu que havia sido
abrupto demais em sua evasão, se virando para ela e dando um sorriso de
desculpa. Era fácil mostrar que não era um ser de artimanhas, embora essa fosse
uma das características que<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>a
psicopatologia social reiterava ter de ser afirmada todos os dias. A sra Adele
aceitou suas desculpas e perguntou se as crianças lhe incomodavam (sempre
mantendo a voz audível fora da frequência de outro modo bastante assimilável
dos ouvidos deles na sala), e o sr. Flibas foi veemente, com toda a justeza de
seu caráter. Estava precisando colocar os pés para fora do apartamento e pegar
um pouco de sol, afinal de contas.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Toledo não estava à vista
na portaria. Não teria sido de todo incomodo perder um pouco de seu tempo
ouvindo a epopeia nova dos isópteros, e na certa ele lhe perguntaria se falara
com o Allende. Mas segurou seu chapéu na cabeça, o ajustando mais na linha dos
seus cabelos, e ganhou a calçada. Não havia sombra de água da chuva recente, o
sol cáustico evaporara todos os sinais deixados pela madrugada e pela manhã. O
calor acentuado reforçava a intuição de que para mais tarde tudo aquilo se
converteria em uma tormenta poderosa, como um processo alquímico inevitável. Se
lamentou em não ter pego o guarda-chuva, que estupidez ser levado pela
aparência superficial do tempo. Saíra com pressa para não ter de dar mais
explicações sobre não estar incomodado e acabara se sujeitando àquela distração
inconveniente. Na certa encontraria Filogônio, o bibliotecário que o substituíra
na biblioteca, e se lançariam em longas conversas que extrapolariam o prazo
mental afixado de modo estapafúrdio da hora de ir embora.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Não iria se apressar.
Tinha muitas coisas para pensar. Havia um substrato de diversos assuntos nos
escaninhos mentais da repartição íntima em sua cabeça. Os reis africanos lhe
pareceram convidativos, como se fosse uma missão em favor da defesa da
racionalidade ocidental catalogar aqueles déspotas de mil serviçais negros em
seu lugar na sociologia primitiva. Antepassados distantes tanto dele, através
de sua cor atenuada, quanto daqueles outros sul americanos que passavam por
ele, atarefados, incapazes, a não ser se instigados por alguma fixação
inapropriada, de perceberem os genes de assassinos cerimonias trafegando dentro
deles. Era um alento sentir aquela hordas ocultas de selvagens desaparecidos
adormecidos na multidão com seus celulares nas mãos e suas roupas ajustadas, de
tecido sintético e lanhos vegetais trazidos do outro lado do mundo. Havia algo
de belo no morticínio, na deformação espiritual da extrema violência, era uma
certeza irredutível pouco produtiva em sua desmentida progenitura. Era uma
fantasia utópica da vida mental achar que se poderia viver apartado treinando o
espírito para só se ater aos propósitos capitais, os mais importantes e
elevados. Ele mesmo fazia seus esforços nesse sentido, alimentando essa
impossibilidade abstrata, dirigindo seus circuitos cerebrais para a origem das
nebulosas e os buracos negros. Repetir com autonomia os aforismos da ortodoxia
científica moderna. Se o universo é infinito, não existe metade do infinito, ou
um terço do infinito. Essas fabulações grandiosas para a qual o instrumento
humano não era feito. Esses enormes cristais de elucidação sobre um princípio
que tanto o método quanto o objeto eram abrangentes demais, ou por demais
diminutos, para que o cérebro os comportassem. Era como um conhecimento
sustentado puramente pela semântica, e a prática estivesse inalcançável, o que
era de comum acordo não mencioná-la. O que havia de verdadeiro, terreno,
próximo, carinhosamente atencioso num eterno respeito à nossa dimensão prosaica
eram essas amostras da ferocidade e da intolerância. Ainda se podia deleitar
com a metáfora por detrás do enigma insondável da condição humana: uma
professora e uma aluna se matando numa sala de aula. Seria muito perguntar se
no quadro negro havia alguma coisa escrita? No alcance simbólico de nossa
autorreferente inteligência isso não seria de extrema importância? Como Jesus
desenhando com o dedo sabe-se o quê na areia enquanto a multidão se arregimenta
para apedrejar uma prostituta. Ah, que esplêndida consideração a uma coerência
interna da espécie acharem que ele desenhava a cadeia cromossômica. É aqui que
estará a prova de vossa suficiência e sua redenção. Na ciência libertadora, na
constância cosmológica que separa os atos brutos e os assassinatos, os rancores
e as maldades. O espaço entre essas coisas sendo a Promessa, o
fins constitutivos que vão justificar os meios.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas fazia
pequenas gesticulações, nada comprometedoras, embora tivesse consciência de se
beneficiar com o fato de que ninguém incomoda um velho. Que rissem, nessa
altura da grande história do despautério qualquer tipo de humor, mesmo o
alimentado em fontes vexatórias, era bem quisto. Às vezes ele percebia que
havia expressado alguma frase em voz alta, o que levava a alguém naquela turba
anônima a olhá-lo. Era uma região selvagem apenas aprimorada com cimento e
detalhes de antigas e sobressalentes tecnologias, um letreiro que se aprimorou
ao longo dos últimos anos, com a letra “N” queimada. LA_CHONETE. Lojas de
celulares com grandes símbolos de uma maçã mordida, ondas termais congeladas em
um azul translúcido em frente a uma loja de calçados. A grande savana do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">homo</i> <i style="mso-bidi-font-style: normal;">civilitations</i>,
em que os leões passavam em uma observância dissimulada, as hienas se
escoravam nos cantos atrás de despojos possíveis. Nessa linha simbólica ele
poderia se considerar alguma presa de certa elevação na base da pirâmide
competitiva, um animal velho. Pelo que ele lia nos jornais, os velhos haviam
aberto uma categoria nova de vítimas e não eram poupados. Esperavam-nos na
porta de bancos, sentavam-se com eles nos bancos das praças, se achegavam por
detrás quando eles caminhavam para lhe surrupiarem a carteira. Era uma arma
involuntária o ar de doidivanas, de alguém que debate com a própria demência, e
ele não desconsiderava as possíveis atrações que isso podia exercer nos predadores
apressados. De toda forma ele estava tão embrenhado nesses pensamentos que se
deu conta que já estava dentro do metrô, em pé se segurando na barra vertical
de aço galvanizado, em sentido centro. Esquecera-se de que seu destino quando
saiu era a biblioteca, mas também não havia pego o livro que tinha que
devolver. A Evolução Criadora, de Henri Bergson. Suspirou sentindo
estranhamente sem nenhum traço de apreensão por aquela sublevação total à
gravidade. Isso seria uma demonstração indubitável de seu estado de progressiva
debilidade fisiológica ou um resultado de ter saído às pressas do apartamento,
para deixar a sra Adele e as crianças à vontade? Ele não se importava. Na base
de todas essas reflexões estava a filha do assassino de sua esposa, que ele a
partir de agora resolvera mencionar pelo nome, Janete, era o que devia a ela
essa humanização, dar-lhe o direito justo de sua individualidade. Pensava na
grande professora, que ele a imaginara com poucas possibilidades de sua
imaginação estar exagerando. Essas figuras abjetas proto-nazistas,
absolutamente ignorantes</span>, eram fáceis de serem dimensionadas. A
rigidez muscular apropriada à certeza que levavam davam-lhes uma
aparência extenuante. Bastava pensar em Goebbels, em Eichmann, em Mengele, em
Demjanjuk. Ele mesmo já vira essa máscara um sem número de vezes, não admitindo
que a cromossomia tivesse-lhe feito com aquela cor e postado ali em frente a
eles, como uma afronta a seus altos regimes aristocráticos. Era uma eterna
repetição, uma reformulação que parecia gastar pouca energia para retirar esses
mostruários seculares do sótão da história, pois eles por si mesmos já se
regeneravam. A propulsão que os faziam ganhar uma estatura
perigosa era a matéria fétida que habitava o coração humano. Talvez a perda de
força desse clichê desse ainda mais poder àquele símio que se acreditava
superior até mesmo por reconhecer a pobreza gramatical das frentes de oposição.
Essa professora se julgava a mais inteligente, a mais bela em sua gordura
exagerada, a mais bem nascida. Ou alguma armadilha linguística muito bem elaborada,
despejada em conta-gotas, a fazia achar que detinha uma
verdade desconhecida, que só os adeptos de um secreto merecimento angariavam.
Uma verdade que se tinha que honrar pela escolha defendendo-a da abjeção da
ralé, da bestialidade do populacho. Mas o sr. Flibas
conservava seu conceito de que a ralé estava na medida do espírito, e não na
impostura do vestuário que enganava nos dois sentidos. Já vira senhores que
pareciam velhos sábios judaicos, secos e gnomizados na aparência, que
estupraram as netas. E já vira janotas de terno que participavam ativamente de
salvamentos em desastres naturais. E tal professora, o que a fazia se julgar um
ente isolado num panteão genético? O salário de professora? Ah, ela era de uma
família da mídia, alto poder financeiro. Lênin falando que o homem do campo era
um ser bestializado, que tinha que ser contido pela patrola da história. Ellison
no início de seu romance sobre o homem invisível falando da pobreza espiritual
profunda, cheia de vícios e crimes, das famílias negras famélicas do sul dos
Estados Unidos.</p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O metrô parou na estação
de C. e o sr. Flibas se firmou atrás das pessoas na porta de saída e desceu.
Sabia onde estava mas resolveu não pensar nisso, embora uma presciência de seus
passos lhe revelasse que já não tinha nenhum destino, nenhum local para onde ir
que configurasse um álibi a seu flaneurismo. Era um personagem de alguma
expressão clássica do pensamento comum do homem urbano, da mesma vertente de
Raskólnikov ou Stephen Dedalus, apenas que a cidade que o acaso lhe determinara
vagar era de uma feiura insubmissa, de uma falta de transcendência impiedosa.
Ele requeria para si um pouco de estética para orlar com algum grau de isenção
aqueles seus pensamentos sem esperança, aquela sua ausência já avançada de fé.
Era algo do qual ele sempre se lamentou os cenários daquele país serem tão
organicamente desprovidos de relevância, aquelas pessoas serem tão
inexoravelmente presas em seus estágios de entes efetivos da vida prática. Um
país que nunca teve uma capitulação séria, envolvida por demais com sua
lisergia primordial. O sr. Flibas resolveu prestar atenção por um instante o
que seus passos faziam e se direcionou para um sebo de livros usados que ele
sabia existir a uns três quarteirões. Na mesma hora voltou seus pensamentos
para o assunto que explorava, a sensaboria da raça sub-equatoriana. Por que
eram tão manipuláveis, tão afáveis, tão intocáveis pela história? Essa afasia
fez com que todos os impulsos não digeridos dos anos ficassem estancados dentro
daquele espécime pacífico de olhos esbugalhados. Todas as emanações poderosas
dos vícios da história passando diante dele e ele se sentindo intocado apenas
porque algum sistema de retenção lhe dava a sensação de anestesiamento.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Lá estava o pequeno sebo.
Uma porta entre dois comércios. De um lado uma corretora de seguros, do outro
uma sala de advocacia. O sr. Flibas entrou pela porta envidraçada e deu de cara
com o corredor estreito cheio de livros. Duas estantes longilíneas forradas de
volumes notavelmente muito velhos. Capas soltas, páginas amarelas. Um cheiro de
pó e obscuridade, como se o tempo houvesse se condensado em matéria. Só foi
encontrar alguém na sala de entrada, onde alguns homens taciturnos e
comprometidos estavam de frente as outras estantes, vasculhando o conteúdo
delas. Era um velho armênio que tomava conta do comércio, um homem de barba em
ponta e que usava uma bandana de tons africanos, sempre coloridas. Sua intenção
era se meter num canto de sombras e continuar embrenhado em pensamentos. Uma
janela a dois metros emanava a luz exterior. Estava fechada e o calor ali era
confortável, pelo menos para aqueles tipos de homens. Tinha-se que ter alguma
propensão oriental a um espírito de religiosidade, o que não envolvia a noção
de deus mas sim da agrura da geografia. Como se a percepção dos livros se
vinculasse ao o conhecimento de que o princípio daquelas encadernações e
daqueles pensamentos registrados em tinta impressa viessem de ambientes
cáusticos. Ali dentro a insubmissão do espírito humano era o que estava por detrás
daqueles semblantes calmos, conformados, já isentos de grandes planejamentos e
grandes esperanças.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas catou de uma
estante um volume da Ética, de Spinoza. Folheou-o e voltou à primeira página,
pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes
de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por
muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma
como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse
por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr.
Flçibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escrevera os prefácio e
as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o
mestre. Eles e deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca
muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento superior. Isento de
dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um
quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o
mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se
separara o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria
a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem em maiores
do que o infinito em si. Pequenas piadas que engrandeciam a alma do leitor,
essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável,
sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que
extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais
cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de
exclusivismos humanos em posicionar o homem<span style="mso-spacerun: yes;">
</span>como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas
tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram
Spinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o
cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160
livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o
afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre
dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte
prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num
mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Spinoza morreu de solidão
inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade
racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que
o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que
tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um
niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas
metafísicos sagrados.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Espinoza fundou toda uma
corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado
de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em
seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem
sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente
da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo
a que Spinoza atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o
que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o
sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com
os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à
espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo
consentidos, sem essa vida vicejantes, corrupta, escatológica, visceral e
mesquinha, a humanidade não teria do muito além dos limites da caverna. Só um Spinoza
fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e
apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que
repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só
ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções,
livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com
seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles
mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia
absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar,
intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar
depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um
só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de
sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era isso que o velho
Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não
ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres
humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria
mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos
cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da
obsolescência aceita. Spinoza teria adiantado em três séculos o nazismo e a
sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma
humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da
ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a
lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais
atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do
fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Era para confirmar essa
sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas
gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos
ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima,
o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso
procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o
vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas.
Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez
aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de
seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que
Cristo falou aos apóstolos. E Spinoza traduziu essa frase dessarroada por nós
vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e
descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um
apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso
justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse
novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das
drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinoza não
diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia.
Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas,
de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que
nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas
que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se
situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes
esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para
vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que
estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os
velhos êxitos alienantes.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O sr. Flibas resolveu
comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de são
Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor
em quatro volumes. Estava livre de Espinoza, o que queria dizer que não tinha
muita cosia a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as
estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos
e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo.
Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma
escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto
baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por
uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo
que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando
alguém aparecer. Olhou em torno e s[o agora viu que havia mais pessoas que
teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Haviam
duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível
jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Spinoza por aquela cena, de
duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o
sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo
sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria
morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono
irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse
para o sono_, mas se ele nãos e sentisse tão fisiologicamente isolado em suas
resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e
emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar
aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a
comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade
conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio
padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda
insistisse em durar, o propulsor da vida estria sempre do lado de fora de Spinoza
e absolutamente alheio aquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si
como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório
de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="color: black; line-height: 107%;"> O armênio havia aparecido
do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr.
Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu
semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes
tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem
ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio
de grandes fogueiras para queimar livros.</span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-31162854011676141982023-01-30T11:10:00.000-03:002023-01-30T11:10:20.563-03:00Insignificâncias<div style="font-family: inherit;"><div dir="auto" style="font-family: inherit;"><div class="x1iorvi4 x1pi30zi x1swvt13 xjkvuk6" data-ad-comet-preview="message" data-ad-preview="message" id="jsc_c_xp" style="font-family: inherit; padding: 4px 16px;"><div class="x78zum5 xdt5ytf xz62fqu x16ldp7u" style="display: flex; flex-direction: column; font-family: inherit; margin-bottom: -5px; margin-top: -5px;"><div class="xu06os2 x1ok221b" style="font-family: inherit; margin-bottom: 5px; margin-top: 5px;"><span class="x193iq5w xeuugli x13faqbe x1vvkbs x1xmvt09 x1lliihq x1s928wv xhkezso x1gmr53x x1cpjm7i x1fgarty x1943h6x xudqn12 x3x7a5m x6prxxf xvq8zen xo1l8bm xzsf02u x1yc453h" color="var(--primary-text)" dir="auto" style="display: block; font-family: inherit; font-size: 0.9375rem; line-height: 1.3333; max-width: 100%; min-width: 0px; overflow-wrap: break-word; word-break: break-word;"><div class="x11i5rnm xat24cr x1mh8g0r x1vvkbs xdj266r x126k92a" style="font-family: inherit; margin: 0px; overflow-wrap: break-word; white-space: pre-wrap;"><div style="font-family: inherit; text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5UdFbMRP3tWowgdjFE9-qPVfv5NSxfWGPWy5l_S8Uo9SrwSBstPv_VjKJCRWnuD9YJu7m1mmLYCe4xBGjgeyLY8ZZvwasHEX3a0ktHjdqsBM7USf4YixZbNwK5ktSKEQ0h_tuLV_IW46524fl9mp3zXp3Fp6cgBaloxBttbgCpRjK444I7ZOR7JGQ/s400/Em-segredo-quase-de-sonho_obra-de-Olivia-Viana_Piccola-Galleria-da-Casa-Fiat-de-Cultura-400x280.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="280" data-original-width="400" height="280" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh5UdFbMRP3tWowgdjFE9-qPVfv5NSxfWGPWy5l_S8Uo9SrwSBstPv_VjKJCRWnuD9YJu7m1mmLYCe4xBGjgeyLY8ZZvwasHEX3a0ktHjdqsBM7USf4YixZbNwK5ktSKEQ0h_tuLV_IW46524fl9mp3zXp3Fp6cgBaloxBttbgCpRjK444I7ZOR7JGQ/w400-h280/Em-segredo-quase-de-sonho_obra-de-Olivia-Viana_Piccola-Galleria-da-Casa-Fiat-de-Cultura-400x280.jpg" width="400" /></a></div><br /><div style="font-family: inherit; text-align: justify;"><br /></div><div style="font-family: inherit; text-align: justify;">Eu antes desprezava psiquiatras. Achava que era coisa de rico vazio, etc, essas coisas. Daí com a pós-covid eu tive um quadro de depressão preocupante e minha irmã ligou para um amiga dela, psiquiatra em Brasília, e uma antiga amiga minha também de quando eu era estudante. Essa amiga me mandou um email marcando a data de uma consulta pelo zoom, em caráter de urgência e que ela não receberia um não como resposta. Isso me deixou com noites sem sono atormentado por aquela <span style="font-family: inherit;"><a style="color: #385898; cursor: pointer; font-family: inherit;" tabindex="-1"></a></span>imposição ridícula e pelo desconforto de ter de ficar de frente a ela pelo computador falando o quê? Eu não sabia como deveria me comportar. Daí aconteceu, chegou o dia. Uma hora de consulta e eu tinha chorado e revelado coisas que nem eu sabia que tinha guardadas lá no fundo. Eu até brinquei dizendo que ela tinha que trabalhar era para a PF. Ela me passou a quetiapina, e mais um outro remédio para loucos brandos. Esse segundo remédio eu tomei por um mês e não senti efeito nenhum, a não ser a mudança da percepção das cores de algumas flores no quintal e a tendência de ficar falando para a Dani como a vida era maravilhosa. Olhei na bula para ver se tudo lá estava legalizado, vai se saber! A mulher era uma das minhas amigas da juventude! Eu fiquei satisfeito e feliz por me desobrigar daquilo com dignidade: eu havia chorado e tal mas havia a ética profissional, ela não iria me sacanear. Daí ela me manda um email por mês avisando que seria consultas mensais. Eu passo por todas, choro sempre, e descubro o quanto o ser humano é frágil. Cada movimento que fazemos, cada pensamento, está alicerçado numa coisa ruim por qual passamos. Eu pude falar da morte do meu melhor amigo de covid, que eu, numa reação estupidamente condicionada, fazia esforço por não me atingir tanto porque, afinal, eu era Homem (sim, se vocês caíram nessa balela de me acharem um sujeito culto, eis aí a matéria da qual eu sou feito). No final de cada sessão eu estava quase em posição fetal, entrado numa zona proibida tensa e sombria do meu espírito atormentado. Eu fui ficando liberto, sentava na mesa do café da manhã e falava com a Dani como nunca tinha falado antes, sem proteção, sem a crítica exagerada que eu colocava sobre mim mesmo. E tem o lance dos pesadelos: eu recorrentemente tenho um pesadelo horrível, de que estou só, absolutamente só, como se eu fosse um fantasma em vida. Neles, eu ando sem rumo pela grande cidade, à noite, sem nenhuma pessoa com quem conversar. Eu jamais imaginava possível confessar esse medo para alguém, e lá estava eu o destrinchando para a médica. Lembrei de escrever sobre isso nesse post hoje porque, depois de quase um ano de tratamento, voltei a ter esse pesadelo essa noite. Acordei angustiado, fui de cama em cama beijando a Dani (dormimos no mesmo quarto mas em camas separadas), a Júlia e a o Eric, para ter certeza de que eles estavam lá. Faz dois meses que não falo com minha médica. Cada consulta dela é o olho da cara, que ela se recusou terminantemente a cobrar. Pelo terceiro mês eu disse que não poderia continuar se ela não cobrasse, que isso seria motivo de um outro trauma e só ficaria pior pois eu teria que passar uma sessão inteira chorando para ela me livrar daquilo também, e só teria um jeito, se ela me cobrasse. Ela disse então que cobraria metade, o que, não tendo outro jeito, topei. Ela estava grávida e, durante uma das sessões, ela deu um gritinho porque a menininha havia lhe dado um chute por dentro. Nós rimos bastante e eu contei como havia sido maravilhoso quando a Júlia e o Eric faziam isso na barriga da Dani. Era a primeira gravidez dela. Há dois meses ela perdeu o pai e, há um mês, no último ultrassom que ela realizou para ver como estava o bebê, os médicos espantados demoraram nos exames recorrendo a todos os recursos e disseram a ela que sua menininha não tinha nenhum sinal vital, que eles teriam que fazer uma cesariana naquele exato momento. Ela estava no nono mês de gestação. Desde então ela desmarcou toda sua agenda profissional e está incomunicável. Não há como mandar nenhuma recado de pesar, e nem sei como seria isso, para alguém com quem eu descrevi com detalhes todos meus mais profundos horrores.</div></div></span></div></div></div></div></div><div style="font-family: inherit;"><div class="x168nmei x13lgxp2 x30kzoy x9jhf4c x6ikm8r x10wlt62" data-visualcompletion="ignore-dynamic" style="border-radius: 0px 0px 8px 8px; font-family: inherit; overflow: hidden;"><div style="font-family: inherit;"><div style="font-family: inherit;"><div style="font-family: inherit;"><div class="x1n2onr6" style="font-family: inherit; position: relative;"><div class="x6s0dn4 xi81zsa x78zum5 x6prxxf x13a6bvl xvq8zen xdj266r xktsk01 xat24cr x1d52u69 x889kno x4uap5 x1a8lsjc xkhd6sd xdppsyt" style="align-items: center; border-bottom: 1px solid var(--divider); color: var(--secondary-text); display: flex; font-family: inherit; font-size: 0.9375rem; justify-content: flex-end; line-height: 1.3333; margin: 0px 16px; padding: 10px 0px;"><div class="x6s0dn4 x78zum5 x1iyjqo2 x6ikm8r x10wlt62" style="align-items: center; background-color: white; color: #65676b; display: flex; flex-grow: 1; font-family: "Segoe UI Historic", "Segoe UI", Helvetica, Arial, sans-serif; overflow: hidden;"><div style="font-family: inherit;"><span class="x4k7w5x x1h91t0o x1h9r5lt xv2umb2 x1beo9mf xaigb6o x12ejxvf x3igimt xarpa2k xedcshv x1lytzrv x1t2pt76 x7ja8zs x1qrby5j x1jfb8zj" style="align-items: inherit; align-self: inherit; display: inherit; flex-direction: inherit; flex: inherit; font-family: inherit; height: inherit; max-height: inherit; max-width: inherit; min-height: inherit; min-width: inherit; place-content: inherit; width: inherit;"><div class="x1i10hfl xjbqb8w x6umtig x1b1mbwd xaqea5y xav7gou x9f619 x1ypdohk xe8uvvx xdj266r x11i5rnm xat24cr x1mh8g0r xexx8yu x4uap5 x18d9i69 xkhd6sd x16tdsg8 x1hl2dhg xggy1nq x1o1ewxj x3x9cwd x1e5q0jg x13rtm0m x1n2onr6 x87ps6o x1lku1pv x1a2a7pz x1heor9g xnl1qt8 x6ikm8r x10wlt62 x1vjfegm x1lliihq" role="button" style="-webkit-tap-highlight-color: transparent; background-color: transparent; border-color: initial; border-radius: inherit; border-style: initial; border-width: 0px; box-sizing: border-box; color: inherit; cursor: pointer; font-family: inherit; list-style: none; margin: 0px; max-height: 1.3333em; outline: none; overflow: hidden; padding: 0px; position: relative; text-align: inherit; touch-action: manipulation; user-select: none; z-index: 1;" tabindex="0"><div class="x9f619 x1ja2u2z xzpqnlu x1hyvwdk xjm9jq1 x6ikm8r x10wlt62 x10l6tqk x1i1rx1s" style="box-sizing: border-box; clip-path: inset(50%); clip: rect(0px, 0px, 0px, 0px); font-family: inherit; height: 1px; overflow: hidden; position: absolute; width: 1px; z-index: 0;">Todas a</div></div></span></div></div><div class="x9f619 x1n2onr6 x1ja2u2z x78zum5 x2lah0s x1qughib x1qjc9v5 xozqiw3 x1q0g3np xykv574 xbmpl8g x4cne27 xifccgj" style="align-items: stretch; background-color: white; box-sizing: border-box; color: #65676b; display: flex; flex-flow: row nowrap; flex-shrink: 0; font-family: "Segoe UI Historic", "Segoe UI", Helvetica, Arial, sans-serif; justify-content: space-between; margin: -6px; position: relative; z-index: 0;"></div></div></div></div></div></div></div></div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-49249040221210588142023-01-06T14:51:00.002-03:002023-01-06T14:51:32.674-03:00Miriam<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjw9MEdQdnniosuBYMvIo9RTgJksJxoSQg3I75KaOeBgMTT6eOIbJdYeoXrk1ypJt-xy4kqEtFtZkRGF3lg-Sr0AYKjGmt-rlxrV4rFMOKmAj1qnqtBivMOlqXOG8qC68Zv6K9UB9XlOgtX3ozgSurx0JQVA_ixr_JKujLuHIXRcXrGY6amiZH2o1kJ/s600/Maria_Pardos_-_Jornaleiro.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="600" data-original-width="300" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjw9MEdQdnniosuBYMvIo9RTgJksJxoSQg3I75KaOeBgMTT6eOIbJdYeoXrk1ypJt-xy4kqEtFtZkRGF3lg-Sr0AYKjGmt-rlxrV4rFMOKmAj1qnqtBivMOlqXOG8qC68Zv6K9UB9XlOgtX3ozgSurx0JQVA_ixr_JKujLuHIXRcXrGY6amiZH2o1kJ/s320/Maria_Pardos_-_Jornaleiro.jpg" width="160" /></a></div><br /><p style="text-align: justify;">Ontem me lembrei com certo saudosismo da Miriam. Há mais de vinte anos eu fiquei desempregado e resolvi atacar os bancos. Saquei toda a grana que tinha no meu limite e gastei toda a margem do cartão de crédito. Não tinha com o que pagar e não estava nem lixando para isso. Vivi um ano de uma renda de poupança que eu tinha e desse dinheiro do banco e do cartão. Ficava em casa, dormia bêbado de madrugada e acordava todo dia depois do meio dia. Era solteiro, vivia sozinho e não tinha que prestar contas a ninguém. Daí apareceu a Miriam. Não, não era uma mulher fatal que apareceu para complicar ainda mais minha vida, mas uma funcionária da seção de cobranças do banco. Era uma terrorista esquizofrênica, para resumir. A primeira vez ela me ligou, a voz aguda, parecendo de uma das irmãs da Marge Simpson, e já direto me disse que eu era um miserável de um vagabundo e que tinha que arcar com minha dívida no banco. Eu fiquei sem resposta diante essa técnica crua de convencimento, e confesso que, pelo estágio psicológico em que estava, quase chorei. Desliguei na cara dela. Ela ligou de novo, cheia da alegria da vitória por ver que eu era um bunda mole sensível, e me disse: "E além do mais é um viadinho chupa rola de um derrotado que não aguenta a verdade na cara. Paga o banco, sua bicha!". Vi que eu tinha que adotar outro método de reação e tentei argumentar, perguntando porque ela agia assim, que não precisava me ofender. Ouvi um suspiro do outro lado, e um silêncio, crente que a havia enternecido, mas então ela disse: "Eu não sou sua mãe, seu retardado, pra ficar com pena de você. Eu não tenho nenhum filho bandido estelionatário e ladrão que dá cano em banco. É graças a merdas como você que as taxas estão tão altas nesse país, para compensar a cara de pau". E ela dizia essas coisas todas com fúria, mas sem perder a compostura. Parecia que fazia as unhas ou dava o peito para um filho (aquele que jamais seria como eu), enquanto me descascava todo. Eu é que comecei a ficar puto com aquilo, e quando devolvi na mesma moeda ela recorreu a um nível de profissionalismo tão elevado que se eu reproduzir no Facebook eu seria bloqueado por um semestre. Eu não deixava por menos, chamava ela de puth4, bisch4te, mandava ela lavar a bwc3tt4, coisas que eu nunca disse a ninguém mas um desempregado não é um ser humano então que tudo fosse para a pqp. Ela deveria ganhar muito bem ou tremendamente mal, porque me ligava todo o dia ou por excesso de eficiência reconhecida ou para descontar em mim a vida dura que tinha. Eu esperava o telefone tocar, sabendo que só podia ser ela, porque com o desemprego eu me tornei invisível e muitas pessoas só foram saber que eu não tinha morrido quando ressurgi, um ano depois, concursado. Então, paradoxalmente, eu só tinha a Miriam. Uma vez a gente estava gritando um com o outro (ela já estava apaixonada, já levava a coisa para o nível pessoal, já tinha jogado o bebê para o berço e esbravejava com aquele seio pingando leite para fora do vestido), e ela disse algo de um grau de escatologia tão abjeta, tão impossível de ser colocada no limite do verbo, que ambos paramos para reavaliar aquela joia nascida do nada e começamos a rir. Ela ria que quase chorava. Ela disse: "depois dessa não dá, eu te ligo amanhã". Eu disse: "então tá, tchau". Passaram três dias e nada dela ligar. Eu fiquei ressentido por ter talvez dito algo inconveniente, que não tivesse sido demasiadamente ofensivo, que a tivesse feito desistir de mim. Mas eis que o telefone tocou, de noite, quando eu preparava uma linguiça para comer com um pão, enquanto ouvia um cd do Doves que eu havia comprado com o dinheiro roubado do banco. "O pilantra tá aí ouvindo musiquinha de marica. Vai pagar o que você deve ao banco, seu travesti de esquina". Eu corri para abaixar o som, feliz da vida, e devolvi o xingamento colocando a moral dela em dúvida e definindo certas partes de sua fisiologia de maneira nada meritosa. Recordo que bebi as quatro doses de Caninha da Roça com Coca-Cola, me sentindo cheio de animação por ter "falado" com a Miriam, e desmaiei. Acordei no outro dia com a Ana Maria Braga narrando os atentados às Torres Gêmeas, ao vivo, e vi que o resto de esperança que eu tinha se desmoronava, o que me causou muito alívio. Eu estava com o passaporte pronto para ir aos EUA trabalhar numa empresa de distribuição de propaganda em sinal de trânsito de um tio meu, mas o Osama bin Laden havia mudado meus planos. Mesmo novamente empregado, eu nunca paguei as contas do bando e do cartão. Fiquei cinco anos livre da escravidão do crédito, até que um dia o Serasa me mandou um comunicado, dizendo que minha dívida havia expirado. E ontem, não sei por quais razões psicológicas, assistindo à série Caleidoscópio, me retornou a Miriam à memória. Vai ver porque é uma história que trata de assaltantes de banco.</p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-31661338662275268852022-12-10T19:06:00.002-03:002022-12-10T20:37:38.673-03:00Pés de Barro<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh_0GeTk9DkeEkr6tFzNf_akJ5eH8FCr9jhGLZzjqdgQTPhrMrKNVp486jmzFXxY3MZuwlXGrkGh2OxyFTsZBcQ2aDXV1Rr-G6mg3277z2jspluKydHK4od0ElEBLvZSi7TV3LNjc6_DVI-n8yD2oSICAss-jM1Hp-WUaZrIOHvpqz1m536DTfHO9Zs" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="700" data-original-width="1005" height="223" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEh_0GeTk9DkeEkr6tFzNf_akJ5eH8FCr9jhGLZzjqdgQTPhrMrKNVp486jmzFXxY3MZuwlXGrkGh2OxyFTsZBcQ2aDXV1Rr-G6mg3277z2jspluKydHK4od0ElEBLvZSi7TV3LNjc6_DVI-n8yD2oSICAss-jM1Hp-WUaZrIOHvpqz1m536DTfHO9Zs=w320-h223" width="320" /></a></div><br /><br /><p></p><p style="text-align: justify;"> Estreou na Paramount um documentário que vale muito não pelo que ele diz, mas pelo que está nas entrelinhas. É o documentário cinicamente hagiográfico que conta como Liam Gallagher, o vocalista da extinta banda Oasis e um dos seres humanos mais antipáticos que existe, conseguiu o feito inacreditável de lotar uma das maiores arenas do mundo, Knebworth, na Inglaterra, em abril de 2022. No início do vídeo, com sua imodesta característica, Liam diz que nem Bono, nem Mick Jagger, ou Freddy Mercury, conseguiriam esse feito, em carreira solo. E é algo realmente espantoso! E é esse mistério, que não é desvendado senão de forma velada, que faz essa obra imperdível. Eu gostava de Oasis quando eu tinha vinte e poucos anos. Ainda tenho uns 5 cds deles, mas há muito tempo não tenho interesse em ouvir. Creio que Oasis é uma das bandas que mais envelheceu mal da história do rock, com sua fatídica parede de som rebuscado, sem riff, sustentada em plágios feitos sem a mínima vergonha, e com canções que não se firmaram na mentalidade musical (a gente não vê a obra deles em filmes, ou citadas pelo mundo midiático, como vemos direto os Beatles, ou mesmo bandas mais recentes como Radiohead). Isso, contudo, se você não for da classe média britânica arruinada, tornada órfâ pelo Brexit, sem dinheiro, sem perspectivas, pouco instruída, terceiromundizada e louca para desabafar tudo isso acrescido à quarentena aprisionante de uma pandemia mundial. No vídeo vemos que, pelo menos, um representativo montante de 80 mil pessoas (o público que foi ver Liam em Knebworth), adora Liam Gallagher. Há o depoimento acompanhado de vários fãs durante sete dias antes do show até o momento do show, e gente diversa que tem o traço comum de idolatrar o roqueiro. Tem um pastor evangélico que diz que Liam é tão importante quanto a Bíblia. Tem uma maravilhosamente extrovertida garotinha de 10 anos que, se sugere, se curou do câncer graças ao apoio mental unidirecionado do músico. Há uma moça que teve de faltar à prova final da faculdade porque era no mesmo dia do show. Etc. E isso tudo entremeado com depoimentos do próprio Liam tentando se fazer de menos arrogante, ele que é um cara espertíssimo e sabe vender como ninguém uma imagem de pop star perigoso e egocentricamente desbocado (o que acho que ele faz bem isso, pois entre essa pose de marginal social de boutique e o bom mocismo xaroposo de gente como o Dave Grohl, a primeira leva a melhor e desperta mais fetichismo). Mas aí vem o suprassumo da coisa, as imagens surpreendentes para um programa de rock autobajulador de uma Grâ Bretanha à beira da falência, a enorme pobreza, a rasteirice de um povo que resolveu emburrecidamente pela diáspora étnica em vez da união. Os próprios testemunhos colhidos revelam desesperança e medo, batendo na tecla repetitiva de que o show de um astro obsoleto, que o resto do mundo não está nem aí mais para ele, é um escape, uma fuga momentânea. O clima do filme é de tristeza, nitidamente. A cena final, das pessoas se retirando do campo após a catarse extinguida do espetáculo, cabisbaixas, de volta para suas vidas medíocres, é de enorme desalento. Os apartamentos apresentados de cada fã são em periferias mal cuidadas, cômodos minúsculos, semelhantes aos que pululam na imprensa sobre as condições de moradia atrozes da Coréia do Sul e da China. Por detrás dessa panfletagem, a câmera mostra que nada está bem no capitalismo desmedido, na proliferação da mentira cibernética que alimenta imbecis, na falta de consciência, na alienação profunda. As pessoas andam tão à míngua diante uma vida desespiritualizada pela subserviência total ao mercado, que até os ídolos de pés de barro são úteis para o alívio instantâneo. E Liam Gallagher soube lucrar como ninguém com isso.</p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-38609549830798177132022-02-27T20:34:00.004-03:002023-01-06T14:54:27.636-03:00O Bistrô Chinês_ Um Conto<p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: 16pt; line-height: 115%;"><br /></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiMWHatI2RakaiEOGGBgxxzgDkCicwNNySvurhQDYFuZBTtmZ2Zm3lypaQS2IZZ2tEMaVUvoERPTruEvtlEjXwYd05quiqYpcsAh-Ukdle64L5VYcrdUamAUmTJdw4VSDyka_Kfx0e0NhBcGbvfeN5N2S63GMoPqMeC8xEtJBmcXes0N1Leuu_q-LXG=s964" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="964" data-original-width="769" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiMWHatI2RakaiEOGGBgxxzgDkCicwNNySvurhQDYFuZBTtmZ2Zm3lypaQS2IZZ2tEMaVUvoERPTruEvtlEjXwYd05quiqYpcsAh-Ukdle64L5VYcrdUamAUmTJdw4VSDyka_Kfx0e0NhBcGbvfeN5N2S63GMoPqMeC8xEtJBmcXes0N1Leuu_q-LXG=w319-h400" width="319" /></a></div><br /><span style="font-size: 16pt; line-height: 115%;"><br /></span><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;">Foi uma jornada da imolação e a pior demonstração de abandono
que Timos teve. Nem antes nem depois sentira-se tão alvo do desinteresse do
mundo, com todas as suas antigas sensações de insegurança despertadas. Sabia
que seria assim e antes de se dispor a ir poderia ter escutado sua consciência
e abandonado o plano. Em seu apartamento solitário, onde o frio já não lhe
provocava temor e a chuva de contra a janela se tornara uma forma de paraíso,
lembrava-se desse ano e sentia a tendência de se lamentar por ter sido tão
burro, por tudo estar na sua cara, por ter caído naquela armadilha da aflição
que o destino armara para ele. Mas o Timos de agora, vinte anos mais velho,
seguro de suas faculdade mentais e conhecedor de tudo que o mundo permitia que a
instável inteligência humana conhecesse, sabe que é inútil analisar desse ponto
de salvaguarda a sua história. Sabia que era impossível não ir. Teria que
passar por aquilo. Não deixaria Assia ir sozinha, não se pouparia de que ele
fosse testemunha da vingança cuja estrutura já estava montada contra ele.
Partiram da capital, 12 horas de voo sobre o Atlântico, luzes internas de
luminária de escritório de mogno, como do escritório do tio, amareladas, exalando
a ausência de ternura que marcaria aquelas duas semanas cheias de ruídos. Toda
a conversa, desde que os 3 ocuparam suas poltronas, se afunilara, se tornando
em murmúrios, onomatopeias, resmungos citadinos de raiva e tolerância mal
feita. Não havia voado antes e um pavor vindo de uma inapropriada lucidez por
se reconhecer entregue à sorte de um cilindro que testava pela milionésima vez
o absurdo de afrontar a um deus que havia produzido sem retóricas um bípede
terrestre tomou-lhe conta. Ele sabia que sua situação era desafortunada demais
depois das tantas brigas pra cobrar algum consolo a Assia sobre esse pavor, era
inimaginável que demonstrasse o pouco que fosse que alguma coisa em seu
organismo não estava nada bem. A imagem do violinista, com seu onipresente
cabelo de crina selvagem, não lhe saía da cabeça; um músico de orquestra deve
pegar um avião como aquele por semana, e ele ali em sua desproteção pueril.
Assia iria confirmar que era um frouxo, se para tal ela ainda precisasse de
confirmações. A questão era apenas essa: a tábula onde se auferia a sua vocação
pelo fracasso em tudo que fazia, sendo que o rancor surgido em seu peito não
passava de uma variante do tema. Kiria apareceu para lhe dar uma esmola de
piedade ao ver que ele suava em bicas e tinha uma cor nada boa. Chamou a
aeromoça, e ele não a impediu. Quem sabe poderia render uma cena a seu favor,
uma moça de pernas longas, o rosto de uma niilista sexual que dispensava provar
para algum deus que a vaidade humana realizara a contento aquilo que a falta
das asas de sua miserável condição havia lhe privado e aquele cilindro podia
investir contra céus e tempestades sem dramas metafísicos e com a pureza sem
moção da ciência; quem sabe surgisse entre esse quadro ilógico uma insinuação
de interesse dessa bela mulher por ele, uma vez ele entregue em seu colo para
algum processo de cura que iria muito além dos males do enjoo. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mas essa
forma de provocar ciúmes em Assia se mostrou mais uma vez falha. A aeromoça mal
lhe destinara um olhar, disse-lhe algumas palavras cordiais, alguns vaticínios
militares da profissão, explicando-lhe a função do saco de vômito, que na
verdade se revelara algo não tão óbvio de se usar, as posições necessárias de
se ficar no caso de um ataque de ânsia, e lhe passou dois comprimidos não propriamente
especificados a não ser que “o senhor vai ficar muito melhor depois de tomá-los”.
E Timos não teve tempo de examinar se se tratava de uma beldade e não lhe
pareceu que a maneira como ela lhe enfiara os comprimidos na boca tivesse
alguma mensagem subliminar sobre libido. Tudo em sua cabeça se atentava à
absoluta falta de conhecimento de como um objeto tão pesado e de geometria
ridiculamente não natural poderia estar levando todos eles a onze quilômetros
acima do mar escuro e frio. Esqueceu-se de Assia, refugiou-se em seu canto
esperando que as drogas fizessem efeito e duvidando que o fariam, e chorou, não
sabe se baixinho, algo lhe dizia que o fez em um volume inapropriado para
aquele ambiente de eclético silêncio zimbório que reinava.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A primeira
cidade que conheceram foi Paris. Na imaginação dos três a única forma válida
emocionalmente de abordarem uma cidade como aquela era através de hotéis
baratos e viagens de carona. Não tinham contratado guias turísticos e nem
tinham qualquer contato na cidade, apenas a proficiência em francês das duas
irmãs e seu poder de comunicação aprendido em uma maçonaria acadêmica em que se
pesava a frieza exigida pelos parisienses e uma limítrofe simpatia em que
ninguém desprezaria duas mulheres com tal transbordamento de saúde juvenil.
Timos tinha um domínio do francês bem peculiar, tinha lido Lacan e Foucault, e
descobrira que não havia se atribuído tempo de ver que não entendia nada quando
a comunicação era falada. Dormiram no mesmo quarto, um pequeno cômodo charmoso
na Gare de l´Est, com sacada para um cinema desvalido e uma parede dupla de
prédios populares do tempo antes da revolução, e que eles juraram que tinha
sido alvo de registro das fotos de Charles Marville. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Tudo melhorou
substancialmente com o frio primaveril; por um longo momento Timos aceitou que
a cultura e a radiância da liberdade eram verdades eternas maiores que os
banais trambiques da paixão, a viagem era uma reeducação de tudo que ele lia nos
livros e nisso o automatismo da juventude em conhecer o mundo antes de se
entregarem de vez ao aborto da idade madura estava certo. Se pensasse muito
enquanto andavam juntos pela cidade, veria a melancolia daquela ação, a triste
aceitação de que aqueles dias eram tudo que restava de uma vida realmente feliz
que a efemeridade de suas obrigações sem sentido com o obituário cotidiano os
esperavam quando voltassem, era uma lucidez que sua própria razão de ser era se
entregar ao engano, que aquele sorriso convulsivo mas natural dividido entre
eles, na bagunça do quarto e no senso de adversidade ainda latente de seus
meros problemas de casal. Era a última instância tardia de uma icônica beleza
da infância. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Haviam aqueles
momentos proporcionados pelo esclarecimento do álcool, sentado à uma das mesas
diante as fontes e a matéria humana inexaurível dos casais e crianças e
artistas solitários, em que o olhar dos três se cruzavam em silêncio e a
consciência de que aquilo não iria durar, estava com seu efêmero tempo contado,
e que eles saboreavam juntos os efeitos colaterais dessa amarga descoberta que
era que nenhuma dor que eles tinham até ali era válida, todas eram risíveis,
pueris, fruto de alguma distorcida má criação mimada da classe que eles
advinham (qualquer delas, isso não era marxismo, mas a existência pura). Na
certa havia muitos gêneros de olhares silenciosos como esse, mas nenhum deles
com uma ação tão aliviante. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Nessa
noite aconteceu algo que ele poderia colocar a culpa no cabernet, todos estavam
altos pelas garrafas de vinho e sucumbiram a um desmaio paulatino,
contraditoriamente que os levavam a profundas instâncias de sono ao mesmo tempo
em que os sentidos vindos das paixões mais à flor da pele e nascidas do moto
contínuo da exortação sensorial das propagandas e do romantismo residual
continuavam rumorejando uma letargia quebradiça e prontificada para a autoafirmação
desses pequenos demônios. De forma que Timos sentiu a pele fresca, aquecida
pelos cobertores roçando-lhe a região do ventre, sentindo primeiro aquele
chamado distante, agindo como por um misto de movimento infantil e resposta
pessoal a algum sonho, e depois os sinais se firmando, verbalizando-se com
irrecusável nitidez na mensagem progressiva, e ele ciente de que era inevitável
ceder à sua exigência, na névoa do cansaço, do álcool e das fragmentadas
iluminações que tiveram durante o dia, e ele abaixou sua calça e consumiu o ato
com vagareza, sentindo o calor de uma atmosfera muito conhecida mas
surpreendentemente nova o acolhendo da desproteção daquele quarto em uma
capital com sua incisividade suplantando todos os artifícios da civilidade.
Quando acabou, parecia que o ato tinha vindo como complemento lógico à intuição
filosófica que Assia demonstrara que compreendera muito acima da fragmentação
que as emoções de Timos conseguira vislumbra-la, e Timos caiu em uma paz
profunda embalada por esse perdão que ela lhe dava sobre todas as brutalidades
que ele havia cometido contra ela. Mais tarde, em uma frequência horária que
ele não poderia medir naquela noite que parecia ser uma abdução suspensiva na
eternidade, ele sentiu o mesmo aceno vindo de uma farol longínquo, do meio do
oceano negro e impalpável, mas que seus instintos de libido e prazer, menos que
o de ser autorizado por um novo conhecimento, responderam com prontificação,
agora com mais empenho muscular, com o animal liberado de dentro dele, um
animal que passara pelas provas de toda racionalização e se provara com direito
de se externar sem qualquer peso de consciência ou culpa ou teorizações. Mais
tarde, na infinita noite, ele quem procurou, enviando aquela ordem dominante e
sendo respondido da mesma forma. Sempre novos aprendizados. Quando acordaram,
em uma manhã radiante, com a luz do sol instalada por entre as cortinas beges,
a translúcida impressão de que a vida estava zerada para um novo começo em que
haveria um novo mundo de coisas inéditas a explorar lá fora, as circunstâncias
daquele despertar para um novo dia trouxe uma certeza muda entre os três. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Era notório a
descomplicação dos bretões quanto aos corpos, como eles haviam resolvido em
alguma imprecisa época histórica de luta contra carências reais aquela vergonha
ignóbil de seus corpos nus que tanto fazia perder tempo com restolhos inúteis o
resto do mundo. Pois eles estavam assim, a atmosfera de liberdade os havia
contaminado. No uso coletivo do banheiro para as abluções da manhã, enquanto
escovava os dentes e Assia se sentava na privada para esvaziar um tanto
soniferamente sua bexiga_ e Kiria escolhia uma nova calcinha com a porta aberta
do banheiro_, Timos deixou que a certeza do que havia acontecido à noite
alargasse o ponto em seu cérebro e tomasse-lhe conta por inteiro. Enquanto
cuspia a espuma da pasta dental na pia, sorvendo entre os incisivos o gosto
mentolado que tão bem condizia com aquele céu pleno de riquezas que por um luxo
adâmico ele atrasava de propósito para se deleitar, o discurso que estava
pronto lá no fundo o interpolava sobre a necessidade de que ainda tivesse
validade, e a resposta que a nova instância de um Timos aquilino e alegremente
pouco cerebral era de que aquela voz podia se calar para sempre, numa
seguridade de que o silêncio era a única solução que se poderia dar para ela
que seria feito sem rancor, sem medo, sem ecos das agora antigas abstrações.
Ele havia sim dormido com as duas, biblicamente, sorriu ao usar essa palavra
tosca que lembrava-lhe da fonte de repressão sexual que cobria todos os
assuntos cotidianos. Assia deu um muxoxo distraído carregado de uma preguiça
infantil cheia de incognoscível energia, puxou um pedaço de papel higiênico e
limpou sua vagina com uma falta de pudor ainda mais rusticamente brilhante, e
lhe perguntou de que ele ria. Seria o primeiro assunto do dia, e ele balançou a
cabeça e disse que não era nada, uma das piadas vestigiais que nos assolam
quando a mente é deixada por si mesma para realizar os movimentos maquinais de
sobrevivência e um pensamento ou outro escondido por alguma misteriosa
assimilação no sistema de acondicionamentos aflora, ele não tendo dito isso, ou
antes o fato de tê-lo pensado servindo como frequência para o diálogo de que
ele estava protegido por uma banalidade, que estava longe e imune ao tipo de
dúvidas que poderia tê-lo assaltado se aquela luz parisiense cheia de presenças
dos grandes libertadores amorais não o tivesse resgatado.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Timos cogitava,
anos depois, que se tivessem se despedido naquela tarde, aquilo faria parte das
memórias não protocolares de sua vida, aquelas que a maturidade da fisiologia
da mente iria duvidar se teria mesmo acontecido, se não fora uma ilusão criada
por uma costura de múltiplas experiências, sonhos, distrações, a forma como a
alma exsuda o tóxico de sentimentos represados e sem utilidade. Ele tinha
algumas lembranças assim, que por mais que se esforçasse jamais saberia se eram
registros de acontecimentos reais ou meras alucinações. Havia uma, a de uma
mulher simplória, uma morena calipigiana, faxineira, cabelos crespos pela
cintura, um sorriso afável, uma espécie de sacerdotisa recém-liberta, que um
antigo patrão lhe comprara a liberdade e a partir de então ela se assumira
livre diante o mundo, e que ele, Timos, havia tido uma série de encontros em um
albergue em uma das ruas no centro da cidade. Ele se lembrava com impactante
lucidez do quarto, detalhes da rua de frente, e tinha uma recordação de como
eles se consumiram um ao outro durante horas, mas era-lhe impossível saber se
aquilo realmente ocorrera. Talvez o aspecto de que havia um limite a que seu
esforço por averiguar se batia e insuflava, para se tornar apenas um adiamento,
fosse parte do recurso sináptico, que talvez já houvesse sido catalogado pela
neurologia_ ou pelo esoterismo, ou pela ciência dos sonhos e das lembranças das
vidas passadas, ou pela intersecção de ondas de dimensões alternativas
paralelas_, ou um dia seria, quem sabe. Assia seria mais uma “morena de frente
ao mundo”, ela e sua irmã, se eles não tivessem mais duas semanas pela frente,
só que a liberdade comprada dessa vez apareceria como tendo sido a dele. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Foram para Madri,
para Bruxelas, para as ilhas gregas, conheceram inúmeras pessoas, a maioria
jovens mas tendo também aventureiros de meia idade e senhores e senhoras que
faziam aquele percurso de autodescoberta pela duodécima vez, confrontadas pela
finalização dos anos que a suavidade do olhar adquiria um agradecimento
ancestral, uma melancolia que emitia uma crisálida na forma de seus corpos
enrugados, os ombros enlanguescidos pelas sucessivas despedidas da juventude em
todos seus variados graus, e que se justificava por ser o rastro que deixava do
retorno ao cosmo em suas matérias finitas. Depois daquela noite ele transara
com Assia em locais reservados, ou que era possível que soubesse que Kiria não
estava presente. Mas havia acabado. Em Creta, diante os campos decíduos onde
Odisseu a Eros revoluteavam nas pupilas ébrias, ele se sentara ao lado dela, na
comunidade de viajantes sentada em seus mantos e toalhas e com suas cestas de piquenique,
e a olhou longamente, abaixando os olhos não por timidez, enquanto aqueles
olhos dela, que antes lhe inspiravam noções mefistofélicas suspeitas, o viam da
mesma maneira com ela o vira desde que se conheceram no restaurante da
faculdade. Um casal muito velho estava sentados no declínio um pouco abaixo
deles, ele com uma camisa com uma estampa de uma cerveja black ale onde se via
um hippie octogenário sorrindo em cima de uma Harley Davidson, e com uma
bermuda folgada com bolsos laterais muito amarrotada, e ela com um vestido
floral que não se cansava em emitir uma cauda lateral expandida pelo vento, e
um chapéu de palha que ela segurava toda vez que a faceirice do vento serrano
tentava como uma cãozinho lhe arrematá-lo de cima dos cabelos, se olhavam
conversavam molemente, com muita atenção recíproca, como se um histórico de
sobrevivência individual que trançava-se em um muito vigiado sistema de cuidados
recíprocos lhes mostrassem que precisavam ser plenamente cordiais e cuidadosos
um com o outro. E Timos e Assia os olhavam, mudos, sorriam depois um encarando
o outro, como se a dizerem o que as palavras que se lhes aumentava no
vocabulário nas experiências daquele momento ainda não lhes autorizassem a
matizarem a apreensão do inefável que exigia silêncio. Quantas lembranças o
casal de idosos teria, que espécie terrível de felicidade que suplantara tanta
imaginável corrupção e acusações recíprocas havia enterrado abaixo de toda
aquela leveza. Não era para eles, nunca seria para eles.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Não
voltaram a ser ver, além dos cruzamentos rotineiros de dois ex-conhecidos pelos
corredores da faculdade. Timos se demitira do estágio, voltara às suas aulas
(por muito pouco tempo, porque pedira demissão delas também quando concluíra a
grade no final do ano). Estudara com moderado afinco sobre política e
filosofia, o brilhantismo de seu regime mental sendo transparente mesmo com
todo o muro anárquico de sua dissenção natural. Anos depois, vinte anos para
ser exato, Timos e Assia voltaram a se encontrar.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ela tinha se tornado funcionária pública do
ministério de agricultura, sua paixão pela China a alçara do doutorado para o
comércio mundial e ela se estabelecera como uma senhora redimida com a solidão,
morando agora em um apartamento despretensioso de alto nível numa rua que
atendia a todas suas necessidades perfeitamente acomodadas de divorciada que
come croque monsieur à noite com uma taça de vinho assistindo algum talk-show
em que presta atenção como uma criança hipnotizada por uma versão atual dos
Muppets. Um casamento com um colega de trabalho que não durou um ano e que não
gerara filhos ficara pelo meio. Três lances de escadas era a distância que
tinha que atravessar para chegar à rosa dos ventos de sua independência
estabelecida, com uma praça com bistrô e quatro postes de luz de sódio e alguns
bancos de ferro ornado sobre os quais não era uma mera casualidade do destino
que a fizessem lembrar-se de Paris, de certo ar em que transitavam em suas
acomodações mnemônicas um quarto pequeno diante um cinema desvalido, porque sua
fixações da juventude a fizeram ter pleno domínio de sua vida para ter
escolhido aquele local para morar, a China e as noites de leitura sobre o
costume da obscura geração Mu Guiying a fizeram senhora de si, gestora de seu
dinheiro, dona de seus sentidos, de suas manhas, de seus pequenos e
incontornáveis vícios advindos de pertencer à espécie humana; a banca de
jornais onde um senhor magro, de bigode que lembrava um teutônico de alguma
imprecisa e para sempre inatingível suspeita de que era uma estampa em algum
cartaz de festa da cerveja que vira em alguma representação de um povoado na
Baviera, e até ele poderia ser um detalhe que ela quis que estivesse ali, para
que, na volta do prédio do ministério, que ficava a cinquenta passos de sua
casa, pudesse fazer um cafuné em suas vistas observá-lo com seus suspensórios
perfazendo o enfeixe sensorial devido do clichê de sua boina xadreza limpa e
perfumada arrumados os jornais do mundo todo nas estantes da banca de paredes
de treliças e flores em vasos na entrada. Timos a encontrara na padaria em que
ela comprava seu brie, ele tendo ido ali por alguma distração, pois sua vida
não tinha ganho a áurea de ser perfeitamente manejável por uma vontade pessoal.
Ela quem o reconhecera, embora ele mais tarde pensasse sobre isso e achasse que
era mais uma manifestação de sua profunda inteligência tê-lo escavado de todo
aquele inchamento e maceramento corporal. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ela fez uma
festa, o abraçou, falava alto o deixando sem jeito diante o assombro inesperado
daquilo, chamando os funcionários do local pelo nome e o apresentando como se
ele fosse alguém cuja importância em sua vida era restaurada naquele momento de
extrema felicidade. Em seu modo de existência no exílio qualquer mudança no
termômetro emotivo, vinda com a quebra da harmonia de decibéis, deixava-o muito
incomodado, o equilíbrio de sua percepção racional ficava em frangalhos e era
substituído por uma excessiva misoginia. Por isso achou que aquela garota
estabelecida em sua história, em um local glorioso, ressurgira como uma mulher
de meia idade louca e histérica para destruir a honrada herança da outra. Ela
tinha perdido a beleza, era óbvio, uma beleza fulgurante como a que havia tido
era um milagre que só se perpetuaria se a Assia tivesse sido devolvida ao
princípio criador junto a ela numa morte na juventude. Ela fez questão de
leva-lo a seu apartamento, preparou-lhe um chá de ervas que correspondia
milimetricamente com o avatar de velha solitária com deliciosas manias
domésticas remetendo à jovem que era tão afeita a seus cheiros pessoais e à
suas umidades quando a tirania de Timos a fazia chorar. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Enquanto
tomavam vinho, ela lhe perguntou se achava que tinha realmente transado com Kiria
em Paris, naquela noite. Ele lhe olhara firmemente, um meio sorriso surgindo, à
procura de onde estava a artimanha na pergunta. Depois, como se um pensamento
muito antigo, cujo adiamento distante por analisa-lo despertasse um sentimento
de ameaça, disse que achava que sim. Assia tombara a cabeça por sobre o escoro
do sofá, suas pernas cobertas por uma calça comprida que lembrava vagamente uma
influência chinesa dobradas na almofada e a taça sustentada por sua mão
equilibrista dançando de frente ao seu rosto, abriu a boca mostrando os dentes
fortes e brancos, com o rosáceo da mucosa úmida pelo vinho aparecendo num gesto
sem alacridade ou crítica, apenas que ela reavaliava uma verdade sempre renitente
mas também adiada. Era como se, naquele mundo simplificado e sem gastos
desnecessários de energia, aquela questão tivesse um exotismo estimulante de
uma era que se perdeu no passado; como se descobrisse em um manual de uso de um
brinquedo, subitamente reencontrado, uma finalidade do brinquedo desaparecido
que ela talvez um dia tivesse intuído mas que não levara a sério.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Até o momento
eu achava que isso fosse uma das poucas certezas da minha vida_ Timos
respondeu, com a presença espiritual de não deixar que o humor do encontro se desfizesse.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ela se voltou
para ele e o observou com uma seriedade que realmente nada tinha muito a ver
com a seriedade taciturna e intelectualmente fanatizada de quando era uma
garota. Timos notou através do novo movimento calmo e descontraído dela para
mudar as pernas de posição os tornozelos roliços, imaginou ou viu uma pintas
negras do pelo depilado crescendo novamente. Seria mesmo a piada das piadas se
um tom sexual surgisse de um portal que os ligassem a duas décadas atrás, ela
tinha a faceirice agora da terna mulher que já alcançara a plenitude de toda a
sua confiança feminina. Não desmereceu sua ilusão, não zombou dele_ se o
fizesse, teriam ido de maneira mais fácil para o nível que a conversa exigia,
mas existia uma educação superior naquele avatar dela.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Você não a
viu mais, não é? Nunca mais depois que chegamos de Paris. Ela foi para as
Filipinas, quis se formar em administração de empresas depois que conhecesse o
mercado por dentro, era avessa a teorizações, tinha energia demais para ficar
apenas com os estudos.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Atendendo a
certa premonição, ele ficou em silêncio, mas ela percebeu a delicadeza da
suspeita e negou: Não, não. Não foi isso, ela ficou bem por vários anos e ainda
está viva. Chegamos a uma idade em que se tem que apontar esse detalhes
primeiro no discurso.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>_ Mas então, transei
com ela ou não?_ Timos perguntou, sorrindo.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;">_ Naquela noite fomos apenas nós dois. Ela nem sequer estava
na sala. Foi para o quarto do lado, deitou-se em um sofá ferrugem tipicamente
francês, retirado de um filme de Agnès Varda.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;">_ Eu me lembro do sofá_ Timos respondeu, querendo disfarçar
que não sentia uma perda com o fato daquela experiência ter-lhe sido retirada.
Quando se importava com essas caras tolices da vaidade, saber que tinha tido Kiria
em suas mãos era uma de suas lembranças mais valiosas. Sentiu a masculinidade
viciada em quantificações totêmicas, as tantas cabeças de mulheres dependuradas
na sala de coleção de sua mansão interna. Mas Kiria era diferente; não só pela
aventura lubricamente incorreta, mas pela beleza inalcançável dela, sua força
afiada como um machado, o modo de sua inteligência em ser cruamente direta, sem
os subterfúgios das reflexões e das pausas metafísicas. Não era a mulher
perfeita; aliás, quem tivesse se casado com ela deveria ter sofrido, não era
feita para esse tipo de união normativa.</span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-44388793602529273132021-12-16T12:45:00.007-03:002023-01-06T14:55:39.464-03:00Volta à Ítaca<p style="text-align: left;"><span style="font-size: 16pt; text-align: justify;"> </span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: 16pt; text-align: justify;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgUDM_bLXfwWDGvbYJRyJOM0WLg5aA3UpiidtBzoX8i_gR-CvQTamo8h_stYGnrktye8pm5FT-n2jh4SnH0T9-MJIev0zQ8S0RiLr602_JlcYvMzP6383iedPxuSuyEcbq5YP275wFMgqQS3R4XteOK6Xwv3lGCANBAjcv0iWU67R9SnYCLF-orOwUt=s1733" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1300" data-original-width="1733" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgUDM_bLXfwWDGvbYJRyJOM0WLg5aA3UpiidtBzoX8i_gR-CvQTamo8h_stYGnrktye8pm5FT-n2jh4SnH0T9-MJIev0zQ8S0RiLr602_JlcYvMzP6383iedPxuSuyEcbq5YP275wFMgqQS3R4XteOK6Xwv3lGCANBAjcv0iWU67R9SnYCLF-orOwUt=w400-h300" width="400" /></a></span></div><span style="font-size: 16pt; text-align: justify;"><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div></span><span face="Calibri, "sans-serif"" style="line-height: 115%;"><span>
<p class="MsoNormal" style="font-size: large; text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="font-size: large; line-height: 115%;"><o:p> </o:p></span><span>Creio que nunca ficou sabendo, as fontes da onisciência que
rondavam a faculdade nunca lhe disseram isso, mas eu fui atrás de você naqueles
dias. Assim que chegamos da Europa eu testei minhas novas apreensões sobre a
vida, a maleabilidade de humor a que a tradição homérica do jovem ocidental de
classe média diz que a volta a Ítaca deve suscitar, e não sentia nenhuma
mudança. Eu olhava para o silêncio do meu quarto no pavilhão das linguistas e
não via nada do que deveria ver; havia uma grande deficiência no sentir daquela
minha pessoa que retornara, algo que me angustiava. Era uma porta para o
retorno revigorado de todos os traumas da minha não-aceitação e de meus complexos
de inferioridade, que eram o que me movera a fazer um deslocamento tão radical
não só na minha geografia como no ambiente da minha alma, e eu não poderia
deixar que essas coisas voltassem, pelo menos sem antes exigir delas respeito ao
prazo para que ao menos me fosse concedido o direito a algum espanto. Mas lá
estava aquilo tudo batendo à minha porta, não sendo esse o termo correto,
bater, já que a ausência de ruídos era uma característica nova, a planificação
da qualquer dialética que envolvesse contestação fazia com que essas coisas me
esperassem pacificadas, como se eu fosse o império britânico naqueles raios de
parâmetros metafóricos e meus antigos medos fossem os hindus famélicos de um
advogado raquítico professando a não-resistência. Eu me lembro que anos antes,
quando eu era ainda mais nova, o que pode parecer uma redundância dizer isso
porque não há como não sermos outra coisa além de mais novos quando dizemos
“anos antes”, mas a incorreção serve para retirar um lastro de expressividade
que as palavras em suas ordens regimentar às vezes não tem, pois só quando meu
corpo começou a se tornar independentemente aviltante, arranjando por si novos
contornos expansivos, por mais que minha vaidade tivesse ensejo em conter essas
novas perspectivas com exercícios e dietas, só quando a energia se dissipou
dele, do meu corpo, e ficar à frente da tv começou a ser uma nova forma
eufemística de tentar pegar a redenção pelas bordas, essa redenção que vai ver
estão muito certos os que desde sempre afirmaram que ela não existe, só quando
essas coisas passaram a ocorrer é que me dei conta do quanto eu era nova, o
quanto o tempo foi sarcasticamente generoso na porção de juventude que coube me
dar, por amplas partes da memória que eu recorra eu encontrarei faces diferentes
de minha juventude que chegam a ser incongruentes, será que era mesmo eu, será
que eu fui mesmo assim tão afortunadamente jovem em um mundo e em uma biologia
que só me faz perceber o tesouro disso de forma retrospectiva, quando já não
posso mais ver e agir dentro desse avatar sabendo estar nele no momento
contínuo do presente, mas observando de um futuro em que tudo isso virou vapor,
sumiu, evanesceu-se.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> A odisseia fizera bem para Kyria_ que profunda inocência a
minha, que falta sagrada de premonição para ter achado isso, diante tudo o que
ela viria a sofrer_, fizera bem para meu pobre e errático Timos, mas não para
mim, que continuava como era antes, acrescentada apenas com a frágil lembrança
do ar da França e da vertigem dos alpes suíços, uma quantas geometrias velhas e
umas cornijas eônicas apelando para alguma indevassável nostalgia da espécie.
Eu sabia que tudo havia acabado entre nós dois, de forma beatífica, ambos
deveríamos apresentar um sorriso letárgico, falar sobre nossos antigos
problemas como velhos octogenários falam de seus brinquedos de madeira sumidos
no parque da mansão desaparecida. Ah, dizermos como é inefável a vida e essas
porcarias abstratas a que estão cheios os jovens, sempre achando que estão
passando de uma revolução mental e uma subversão do olhar intermitentes. Daí eu
fui ao seu dormitório, creio que duas semanas depois; fui na cara dura, sem ter
inventado nenhuma desculpa para justificar um ato tão anacrônica naquela nova
fase de nossas vidas, mas não o encontrei. Seus antigos colegas me disseram que
você havia sumido, pago a parte do aluguel correspondente e se mudado para a
casa de alguém, não me lembro, de uma tia que voltara de Albuquerque, não sei.
Passei dias desesperada diante o aborto da lógica de saber que te amava, que
tudo o que eu havia passado para exorcizá-lo tinha sido um esforço vão, que
enfim você com seu rancor invencível pela estrutura do mundo, suas fobias sobre
a dominação e seu ódio ao poder estavam certos, o que acabava o transfigurando
como um super-homem para mim, olhe só o quanto eu estava perdida e o quanto eu
precisava de ajuda a ponto de cair no erro de supor que ela deveria vir de
você. (Não se magoe ao ouvir isso, foram duas décadas e meia atrás e eu analiso
aquela que eu fui com o destemor amoral de saber que eu estava enfunado em um
estágio muito para trás de todos os passos evolutivos que você com certeza deu
para frente, no caminho da luz, ou, sem sarcasmo, no caminho pelo menos do
distanciamento daquelas sombras que já não tinham capacidade de te assustar.)</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> Caí em um catastrófico mau humor; as espinhas pulularam meu rosto de forma que
se não fique desfigurada foi porque a compadecida piedade do tempo ajudou
enchendo minha pele de camadas extras de gordura, estufando a maioria dos
buracos das cicatrizes das espinhas para fora. Fiquei emporcalhada, não tomava
banho, vestia as mesmas roupas, aproveitando aqueles dias finais antes das
aulas, imaginando onde estaria você, se você retornaria para seu curso, o mais
natural seria que você fizessem como Ivan Karamázov e assumisse sua falta de
teto, seu magistral desvinculo a todas as instituições terrenas, seu
peripatetismo por entre as dores do mundo para colhê-las e as reportar para seu
núcleo espiritual conservado. Então eu fui justamente recorrer à maior e a mais
simbólica das falácias de nosso namoro, o violinista. Não soube porque, vai ver
se eu fosse até onde estivera a possiblidade de nossa mais abrupta desavença eu
cambiasse algo que ficou para trás indigerível e isso pudesse me trazer uma transformação
empobrecida e de segundo nível que eu teria direito já que minha odisseia foi
inaproveitada. Oskar Liebeumicth, era o nome dele, ainda me lembro. Nascera em
Principado de Mônaco, essa exoticidade ajudara que eu memorizasse alguns
pormenores literários de sua personalidade. Encontrei-o nos ensaios de um
quarteto de Schubert, no centro cultural da faculdade de música. Para o
desagrado dos seus temores profundos, ele havia cortado o feixe de crina
equina, fazendo um topete que lhe conferia um substituto burguês e bem menos
proteinizado da áurea de macho dionisíaco de antes. Assisti ao ensaio e depois
fui falar com ele. Na verdade me ofereci explicitamente a ele. Sem nenhum
pudor, ou ao menos eu imagino que fora assim, nessa altura da observação
oracular em que a velha narradora em seu sofá de couro italiano com o terceiro
cálice de camembert na mão supõe interpretar essas fraquezas tremeluzentes e
profundamente aterrorizadas transfiguradas em ousadia. Agora pensando bem creio
que, se Oskar Liebeumich, o paganini das terras lendárias da lavagem de
dinheiro e do paraíso dos magnatas bancários, me viu naquela noite com os olhos
enfeitiçados pela minha graça feminil despertadora de libido as circunstâncias
da imprevisibilidade como eu me apresentei deve ter colocado um filtro de aparo
diante seus sensores corporais para que ele se apresentasse muito polido, muito
distanciado, muito cavaleiril. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> Eu estava quase chorando, de pé entre os poucos
senhores e algumas senhoras prussianas em seu camarim para lhe dar os
cumprimentos, minhas pernas mal me sustinham por cima dos sapatos marrons
estornil que eu comprara em uma loja chique da cidade grande em uma das minhas
andanças solitárias; eu sentia a meia calça que lhe acompanhavam, silentemente
desconjuntada nas pontas dos dedos dos pés que ficavam massacrados no bico
fino, e que mais acima enlaçavam minhas belas pernas de então até se findarem
no início representado pela liga da cintura, esquentando minha virilha seca
tornada desesperadoramente dessexualizada embrulhada na calcinha depois desse
exorcismo que nós três buscamos encontrar a dez mil quilômetros e só você e
Kyria haviam encontrado. Eu estava para chorar, parada na porta daquela salinha
onde os grandes astros do futuro se maquiam e respiram a solidão efêmera de
antes da apresentação, e que naquele momento tudo eram apenas promessas, Oskar
Liebeumich ainda estava um ou dois anos longe de ser famoso como um dos
violinistas mais jovens e talentosos, assim como as mulheres não eram
prussianas um milímetro na realidade afora na minha imaginação exercida em
romances de exilados russos, talvez donas de casa, estudantes de arte em cursos
vendidos em apostilas e em encontros quinzenais, sem reconhecimento pelo
ministério da educação, assim como os magnatas não deveriam ser nada senão velhos
donos de livrarias cults da parte mais arborizada da cidade. Eu também era uma
formação insurgente do que alguns anos depois eu viria a ser, a solteirona
convicta, mesmo que entre a verdade e o conceito houvesse um marido despachado sem
cerimônia e com mútuo compadecimento pela erraticidade humana, parada ali
olhando o ás do instrumento com os olhos de uma vampira exangue, uma noive do
Drácula que algum van Helsin distraído arrancada com a estaca sua morticidade
sem fazê-la soltar o grito de terror secular antes de a pele se dissolver com
os ossos e sobrar apenas uma múmia de duzentos anos, sobrando por misericórdia
uma dama sem charme e com os olhos e boca borrados e já escoada de qualquer
conteúdo peçonhento. Oskar sorria e beijava os visitantes e foi aí que me viu;
o tempo ficou suspenso, como se a natureza tivesse feito um foco em seu belo
rosto de queixo viril e nariz insuportavelmente aquilino para mostrar que eu
lhe causara uma apreensão suficiente para ter-lhe cortado o sorriso_ o sorriso
que, junto a tudo o mais daquela perfeição adâmica o deixava perdido de ódio e
medo, o medo macho santificado por todas as biologias de que o padrão genético
angariado em algum mapa de superioridade quantitativa haveria de fazê-lo
destruído e humilhado, castrado e vituperado. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> Ele se lembrava de mim, claro.
Ássia, uma das poucas vantagens de ter um nome subalternamente midiático, uma
propaganda que toda pessoa culta quer se reconhecer no entendimento consagrado.
Engraçado que se passaram oito meses, não havia nenhuma história, só havia em
sua cabeça, Timos, em sua cabeça e posteriormente na minha, por tanta
insistência sua. É para rir mesmo, temos que rir disso. Nós fizemos se abdicar
todas as arraigadas narrativas de nossos pesadelos e de nossas cismas imaturas,
e tínhamos agora o direito de sermos livres, de termos nascidos de novo, e era
isso que eu sabia que você e Kyria estariam fazendo, de olhar radiante e claro,
de pés firmes e cheios de vigor, desbravando a vida salutar, que não se exibe,
a vida filosófica e carregada de fé sublime, e eu estava tão atrasada e caída
em fracasso e havia traído tão profundamente o propósito que eu revertera meu
curso e decidira voltar a uma dessas histórias, a mais banal e contraproducente
delas. A história com Oskar Liebeumich, o violinista do País de Gales que
fizeram meu ex-namorado ficar enlouquecido de ciúmes. Por que você teve a
audácia de achar que poderia remover essa fantasma pesado de um Oskar
Liebeumich de sua vida? Por que você tinha a petulância de achar que seria
assim tão fácil? O que um mês nos Alpes, e uma noite em Paris onde se achara
merecedor de um bacanal íntimo com duas irmãs, haviam feito de legítimo para te
dar a certeza de uma experiência libertadora genuína? Isso não existia, meu
caro! Foi isso que eu tinha descoberto no trâmite daquela ilusão toda. Não
existem arrebatamentos, ou se existem não são concedidos assim tão levianamente
para jovens cheios de empáfia como éramos nós. Um sono, um langor de eras e
gerações, passados pelo sangue apaziguado até um incrível grau de indolência de
nossos avós boçais, para nossos pais boçais, e inoculados com extrema confiança
em nossos avatares juvenis boçais, olheiras, odor rançoso piorado com perfumes
caros, e com nossos buracos e falos tesos e sem graça de tanta manipulação sem
nenhum pingo de sagrado.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> Por que Kyria iria realizar de forma tão escorregadia
e pacificada sua vocação ao comando mundial, sua imersão ao mundo empresarial,
apenas porque ela atingira uma </span><i>certa
disposição interpretativa auto-convincente de ter esquecido o que deveria ser
esquecido</i><span>? </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span> Por que você, Timos, iria atingir o próximo passo natural de ser
um Ivan Karamázov ou o que é que diabos você gostaria de ser afinal das contas
após tanta trama deixada pelo meio e tanta paixão intelectual cujo fim lógico era
sempre escamotear o objeto visível para que ele continuasse não-visível e
suficientemente obnubilado, para assim dar ensejo maior ao que você não queria
ser? E por que apenas eu dessa tríade havia feito o trajeto santificado, a via
sacra transformadora, tendo caído na armadilha de abrir os olhos antes da coisa
ter se completada e assim visto os mecanismos expostos que não deveriam ter
sido vistos, contemplado a farsa de tudo?</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Quando Oskar
Liebeumich dispensara as visitas, tendo me agarrado pela mão na frente dos
olhares questionativos, bocas arreganhadas querendo perguntar se a grande
promessa musical afinal tinha uma namorada mas sem a coragem para o fazer, me
levando para o carro tendo retirado o casaco do terno e envolvido meus ombros
com ele, eu fiz o que não poderia fazer na situação, chorei, em silêncio mas
bombasticamente, você sabe que eu não tinha esse talento que algumas mulheres
frágeis e belas tem de se tornaram exponencialmente ainda mais frágeis e belas
quando choram, a ponto de se tornarem insuportavelmente hipnóticas para os
homens; os homens, pelo contrário, estavam passivos a se desinteressarem de vez
ao me verem chorar, fico vermelha em excesso, músculos até então relegados a um
sono eterno eram chamados a darem sua contração máxima em meu rosto, de forma
que se via algo do que havia reservado para o sortudo detrás daquela beleza
prometêica dali a umas boas décadas, quando nem o rímel sutil nem a hena
indiana mais cara poderiam esconder a velha murcha que eu estava destinada a
ser. Mas mesmo assim, Oskar Liebeumich estava suficientemente interessado para
que me colocasse no carro minúsculo, francês, estilo como é aquele do Mr. Bean
da séria de televisão, e me levasse até seu apartamento. Ele só me dizia que
estava tudo bem, me olhava com surpresa enquanto girava o volante dirigindo sua
máquina enxuta e prosaicamente funcional até sua moradia querendo saber mas não
perguntando o que havia acontecido. Subimos, não tinha porteiro no prédio, um
prédio escuro de paredes descascadas, de certa forma tendo algo a ver com a
disciplina ilesa de desejos desviantes dele, serviria para o deixar mais
concentrado, me fascinava com algumas pinceladas de sombra a capacidade dessas
pessoas de transportar toda sua necessidade estética para um mundo inoculável e
hermeticamente privado apesar do cimento horroroso e do cinza prostrante. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Ah,
Timos, o violinista era o oposto de todos nossos temores_ meus e seus. Onde
estava meu pensamento, em que substrato do hades ele titubeava as pernas para
me fazer enxergar toda a situação como a de uma mulher fragilizada que estava
prestes a ser sodomizada pelo seu protetor ocasional, que tanto seria uma sodomização
passível da mais purgativa critica bíblica pelo agente infrigidor ser um
violinista, um ser devoto à arte, devoto do silêncio. Eu não seria puta nas
mãos dele. Ele me cedeu sua cama, eu já não chorava mas mantinha-me calada. No
rol das vergonhas aquela era até uma espécime pouco vistosa, com sua
desprovidão de brio e sem desenhos peculiares nas secas asas presas ao corpo
cravado na placa. Era como se minha derrota me devesse aquela pausa em todos os
processos cerebrais e preconceitos civilizatórios, me dando o direito de ser
estúpida, sem entraves do que eu julgava ter criado de socialmente importante
em minha personalidade. Que se danasse meu academicismo, minha cultura, os
tantos livros que eu li, os idiomas que eu aprendi, que se fodesse eu saber as
trintas aulas avançadas do diagrama chinês. Eu tinha o direito de me livrar
daquela entidade em que eu me encarnei de uma menina ocidental predestinada. Eu
não era nada, e como era bom ser nada em um apartamento pequeno, iluminado como
uma caverna tangida de amarelo cheio de calor e recolhimento, com os objetos
aparecendo apenas o suficiente para o olhar apontar sua existência sem intuir
suas funções e seus significados, uma moradia povoada na discreta medida certa
de totens, amuletos, pequenos quadros paisagísticos, uma mesa com livros que eram
tão sofisticados que prescindiam da necessidade de serem lidos, estavam ali
porque tudo ali tinha apenas essa exigência descomplicada: existirem sem
justificativa, ou então com uma justificativa que o estágio em que elas e eu
estávamos na ocupação do espaço e do tempo não precisava ser adquirida agora.
Um sursis. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Eu dormi com uma alegria que eu não sentia desde que era criança,
desde que meu pai me vinha à noite da loja de armarinhos que tinha e me dava um
beijo, cheirando a cola e a raspas de madeira, os talos do bigode se dobrando
com uma incrível maciez contra meu rosto me enchendo da sensação de que tudo
tem sua plenitude no universo, tudo tem sua tenridez e delicadeza, tudo está
moldado em uma escala do sagrado e talvez o drama nessa terra fosse apenas um
incidente involuntário resultado de nossa procuração não permitida em tentarmos
achar o nível de calibragem certo, o peculiar e ultra-fino tom que nos dê o
indicativo da posição correspondente de cada nota nessa melodia imorredoura e
perene e eterna. Meu pai que era dono de uma loja de antiguidades e que
trabalhara por 30 anos como professor de mecânica quântica na universidade
central, e junto ao qual eu aprendera tanta coisa que não vem ao caso falar
agora. Será que Freud e Lacan, ou a revista de psicologia, ou os anais de
psiquiatria tem que ser codificadas com a mesma leveza que eu senti naquele
apartamento? A nostalgia do pai. Descubra o perfume que o pai usava a você vai
fazer com ela o que quiser. Mas que merda, será que foi realmente a isso que
nossa pífia capacidade de transcendência nos levou? É disso que nós fugimos,
abraçando essas experiências forjadas com unhas e dentes e querendo receber o
arrebatamento pelas beiradas, por dedução, atingir o reino perdido com a
indolência da sensação do choque do acidente que é querer obtê-lo e não pela
limpidez impossível de um pouso seguro. Não há pouso seguro. Lembra daqueles
reis todos das dinastias chinesas, e os vinte czares Románov. Eles enforcavam
bebês e evisceravam mulheres grávidas, empalava embaixadores e samurais
titubeantes, desmembravam irmãos, envenenavam mães, mandava para o exílio no
ártico como gratidão as noivas rejeitadas. Tudo no mundo é um choque contínuo e
de energia inesgotável em que a mínima percepção do inominável é um efeito
colateral não estabelecido nas leis desse lado de cá, o que torna a fagulha de
obtenção um milagre. Você estava certo mais uma vez, como sempre esteve certo e
eu me recusava a sequer levar a sério essa sua lacônica cosmogonia. Não podia
ser tão simples, minha vaidade intelectual prenhe de vitalidade não podia
admitir que a aspiração ampla para uma multifacetada dialética fosse
acondicionada em uma teoria tão sem graça e coesa, sem reverberação e
perfeitamente prática. Sua teoria do segredo da existência era uma fórmula de
bakara infalível. <o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Tudo era
vão, o ser humano era inconfiável e em última instância tendente ao morticínio,
e a paz poderia ser simulada através do isolamento. Você era o santo da não-coaptação,
o São Francisco cínico da negação. De uma forma diferente na finalidade das
sombras, Kyria era semelhante a você. Ela chegara à mesma apreensão da verdade
por caminhos próprios, com uma capacidade mais sólida que a sua, com um
ingrediente feminino não-filosófico que era mais avançado e menos tediosamente
amparado em uma melancolia heroica que a sua. Não há personagens femininos
relevantes nos Irmãos Karamázov; ela não poderia nem ser associada àquela que
mais pareceria com ela no panteão de mulheres melífluas e fortes de
Dostoievski, a M..., pois Kyria era impermeável à maldade, e a bondade e os
infernos das dúvidas espirituais estavam longe a uma distância impossível dela.
Uma vez você me disse que sua vida poderia ser, na melhor das hipóteses, a
continuação nunca escrita dos Karamázov, realizada no século posterior e em uma
sociedade material outra que não a Rússia de aldeias de estradas de terra
enlameadas do romance original.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Algumas vezes você me dizia que sua história
alternativa pretendida não giravam em torno das grandes questões humanas, não
queria saber o que seria do mundo se Hitler tivesse ganho a guerra, ou se Lênin
não tivesse morrido, ou melhor ainda, se Tesla não tivesse sido destruído pela
campanha difamatória dos magnatas que não queriam que os automóveis fossem
movidos a eletromagnetismo e nem que a energia elétrica fosse distribuída de
graça. Você gostaria muito de ver a história alternativa em que o velho
Dostoiévski tivesse vivido mais uns bons 5 anos para que escrevesse a
continuação daquela inusitada jornada de dois irmãos cujas opções já haviam
sido extintas no primeiro livro. Aliosha Karamázov e Ivan Karamázov_ já que a
terceira perna desse painel metafísico, o hedonista Dmitri, fora
suficientemente coerente para morrer dentro da capacidade cumulativa de
transtornos que a quantidade de anos que sua faixa etária lhe deu sobre essa
terra. Aliosha era o santo, o homem que alcançara toda pureza e visão leve e
compadecida, e Ivan era o filósofo, o errante questionativo e a mente que não
para. Dois espíritos muito antigos, forjados talvez não no início do cosmos,
como aquele outro mais sagaz e transposto em definitivo para outro planto que
está nas escrituras, mas no princípio computável das mazelas e dos horrores que
tão bem se serviu a mente que os inventara, mil anos talvez, ou talvez no
início dos Románov, 1613, ou talvez eles fossem reencarnações assustadas pela
imprevisibilidade do relógio teológico de samurais ninjins, que traíram a
coligação por não verem mais razão na morte, nem que fosse o assassinato
autorizado pelo qjin e por deus de seus inimigos. Eu também gostaria que algo
do que seria esse livro viesse a tona, contanto que minha curiosidade seja
menos predisposta que a sua por me entregar a enredos que me destituísse da
narrativa convencional dessa realidade_ levei tanto tempo para me acondicionar
a ela, me desviando o máximo possível dos seus percalços, que não iria querer
me abster do animal semi-domado (ou do animal que presume ter nos esquecido por
um tempo, em nossa idade avançada e já não despertadora de seu interesse). Mas
você quis saber como seria fazendo-se de si mesmo a reencarnação da trama
inexistente.</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> O fato de não ter um cérebro megatômico de tal potência por
detrás, regendo seus destino e seus pensamentos_ estar livre de um Dostoiévski
como um deus, o mais dicotômico e dual dos deuses, espargindo ternura e
estridente loucura e eventuais mortes estapafúrdias pelo caminho, talvez como
seja o próprio deus ortodoxo que, mudando-se aqui e ali em detalhes de somenos
importância e tangidos de cores diferentes, é o deus de todas as religiões
desde o começo do mundo. Estando livre de um deus assim, você pode ser um herói
adâmico com uma liberdade ainda mais insuportável e extasiante do que a do Ivan
Karamázov. Ivan se escandalizava de deus permitir a morte de uma criança, o que
Timos Karamázov não poderia enriquecer essa incongruência brutal com tudo que
ele sabe do século XX que Ivan não soube? Se Ivan não suportava a complacência
de um deus que permitia que os cães de um nobre da corte czarista trucidasse o
filho pequeno de uma das servas da propriedade, ou que a menina morresse de
frio no porão da casa no inverno cumprindo o castigo do pai de se sentar sobre
o barril de água, o que ele pensaria das tantas e tantas filhinhas desse mesmo
deus que morreram nas desapropriações de terra dos kolkhozes, vítimas da fome,
do canibalismo das próprias mães; o que Ivan pensaria dos fornos crematórios de
Auschwitz e Treblinka, dos massacres de Ruanda, das crianças prostitutas das
beiras do asfalto no Brasil, das crianças índias albinas caçadas e massacradas
e tantas tantas e tantas outras. Eu havia lido Tolstói e Turgueniev quando
estava no colegial e alguns anos antes, meu pai e minha mãe revezavam na
leitura de Gógol, A dama do cachorrinho e tudo que fosse publicados nas línguas
que eles conheciam do áspero e desestabilizador e comovente Checov, mas do
dostoiévski eu confesso que nunca me atraia muito, eu tinha com ele uma ligação
pouco venal e determinantemente respeitosa em que eu lhe dava a concessão de
aceitar sua grandeza sem precisar comprová-la. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Creio que tinha lido a história
do Ralkolnikov, que todo mundo minimamente declarado pensante havia lido, e só.
Peguei os Karamázov na biblioteca da universidade antes do feriado da páscoa,
motivada pelas tantas referências que você fazia da obra, e o li uma sentada,
como dizem, li dividindo o livro com tudo que me estivesse pela frente, comida,
lavar as louças, atender o telefone com a ligação de algumas das meninas que
foram para a casa dos pais, com a ida ao supermercado para comprar gorgonzola,
e finalmente na cama, com o cobertor puxado até o queixo com um cuidado
redobrado pois eu entrava na aldeia invernal em que Dmitri Karamázov estava
amarrado pelos mujiques para passar pelo seu destino definido do julgamento de
assassinato. Talvez seja mesmo o maior romance já escrito. Ele me envolveu
tanto que após ler, após passar pelos meninos que bateram no pai do pequeno D.,
depois pelo Grande Inquisidor (recebendo o sopro de tudo o que eu havia lido do
existencialismo), e sobre o monólogo do Ivan e do stárets Józima, após fechar o
livro em sua última página foi que percebi que a experiência havia sido tão
cativante que nem cheguei a pensar nos ganhos que sua leitura teria em nosso
namoro. O quanto eu estava inconscientemente me preparando para chegar mais
próxima a você, meu pequeno Ivan, para onde mais o Ivan libertado dos grilhões
da moral e do pensamento iria após ter enxergado tão longe senão para uma
clínica de abortos?</span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Naquela época você era uma promessa, como Oskar Liebeumich,
a seu modo turvo e impactante. Eu passava horas de adolescente apaixonada
tentando imaginar o que você estava destinado a se tornar, mas sua completa
deflação a tudo não permitia ver o que seria. Um escritor, um ensaísta, era a
aproximação mais cabal a que eu chegava. Mas para isso eu cogitava que seria
necessário um certo empenho, e sua extraterrenidade não era compatível com uma
carreira acadêmica ou com os processos bajulatórios para angariar uma bolsa de
doutorado. Você brigava com todo mundo, era algo que me afligia no que eu tinha
de mais feminino e pragmático. Eu confesso que pensava que nosso namoro poderia
dar em algo maior, mais duradouro, eu era uma moça esperançosa por debaixo de
minhas ambições pessoais irrestritas, eu chegava a acalentar um andamento
temporal em que nós sobrevivêssemos ao enfado e à necessidade de conhecer novos
amores e alcançássemos vitoriosos um patamar depois de realizadas nossas
ambições profissionais pessoais, e viéssemos a nos unir em um desses casamentos
metalinguísticos e elegantemente possíveis a toda contradição em que se lançam
escritores, cientistas e importantes sumidades mundiais. </span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Não vai rir de mim
agora se eu disser que meus moldes eram ternamente ambiciosos, a nível de uma
Angel e Marie Curie e Sartre e Bouviar. Eles não podiam ser tão infelizes como
aparentam nas fotos e nas fofocas oficiais, tão estranhos, reptilínicos,
doentes e obcecados na promoção do sofrimento mútuo; não podia ser que alguma
missão outorgada nesse mundo viesse com o adendo perverso de que os
super-homens e as super-mulheres devessem se comportar no refúgio do lar como
cobras peçonhentas; deveria ser a imprensa específica para esse tipo de gente
ousada e rara que não sabe que não se tece sobre ela as mesmas aberrações que
se tece sobre as pessoas comuns, as que morrem de sífilis e que introduzem nos
canais vaginais das esposas objetos impossíveis. Eu pensava que duraríamos, mas
o que você poderia ser? Desde o começo eu soube meu lugar, o que eu seria, mas
e você? Ivan karamázov não podia se casar, levar uma vida comum, suburbana. O
grande vazio era seu único deus, e sua existência, atravessando gerações e
cláusulas atemporais no registro das encarnações sucessivas só se presta ao
eterno diálogo com esse deus silencioso, imóvel e mimado, que quer tudo de seu
servo para si. Uma relação bem mais doentia que a das sumidades artísticas
dessa terra; você já tinha o seu Angel Curie e seu James Joyce; seu deus era
quem te mandava torpedos com uma letra concupiscente trêmula no papel
amarfanhado te pedindo obscenidades para mais tarde.<o:p></o:p></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"> Desculpe, fui
longe demais. Sobre o violinista? Não, mais uma vez eu tenho que ser</span><span> </span></p></span></span>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-6812526586395928512021-06-04T20:54:00.002-03:002021-06-04T20:55:12.217-03:00Emerson<p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh3.googleusercontent.com/-rirBlQ8BtXo/YLq8i8aohfI/AAAAAAAAGxY/ONAHSPe7g0ceN4ctn4TcIEJlwjjmMsV2wCLcBGAsYHQ/sand-loneliness-man-headless-moments-tree-fantasy.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="880" data-original-width="880" height="400" src="https://lh3.googleusercontent.com/-rirBlQ8BtXo/YLq8i8aohfI/AAAAAAAAGxY/ONAHSPe7g0ceN4ctn4TcIEJlwjjmMsV2wCLcBGAsYHQ/w400-h400/sand-loneliness-man-headless-moments-tree-fantasy.jpg" width="400" /></a></div><p style="text-align: justify;">Uma das mais tocantes cenas da literatura está em Dia de Finados, de Cees Nooteboom. Um amigo dança para outro amigo enfermo em seu quarto de hospital, após este ter se recobrado de seu estado de quase morte. Sem dizer uma palavra, ele entra no quarto e, sem música, executa com extrema seriedade os passos desengonçados da dança. Dia de Finados foi um dos tantos livros que eu dei de presente para meu amigo Emerson. Semana passada, ao ouvir que Emerson tinha saído do estado grave para estável, eu fiz o plano de que, assim que ele voltasse para casa e estivesse apto a receber visita, eu iria colocar "O Pulso", dos Titãs, no meu celular, e iria dançar para ele. Eu sou um péssimo dançarino e profundamente tímido para esses arroubos, mas eu estava convicto. Imaginei algo tão ridículo quanto aquele vídeo do Houellebcq dançando no deserto. Algo me dizia que quanto mais ridículo, maior seria a catarse. Não importa quem estivesse presente, todos iriam ver o sujeito com cara de idiota, de quase dois metros de altura e 110 quilos pulando e agitando os braços enquanto a voz imponderável da música fosse elencando cada uma das doenças que teriam feito a fatal diferença se o pulso ainda não pulsasse. Eu manifestei os sintomas da covid no primeiro dia desse ano, fiquei muito, mas muito mal, a ponto de pensar mesmo que iria para a UTI. Essa é outra história e só serve aqui para dizer que, quando enfim eu pude andar mais que dez passos, eu coloquei em volume máximo "O Pulso", e ouvi umas três vezes, junto com "Todo mundo quer amor". Eu que sou paranoico em jamais perturbar os vizinhos; eu que sequer gostava dos Titãs. Andei em torno da casa chorando, e ouvindo essas músicas, que eu senti uma necessidade inexorável de escutar, sabe-se lá por quê. Eu contei isso ao Emerson, antes dele mesmo se contaminar, e aconselhei: se você pegar, se tranque em casa, tome anti-inflamatório, se alimente bem, tome muita água, e só. Mas não; sem apresentar sintomas sérios, ele ia todos os dias ao médico e, num ato colossal de desespero, ele voluntariamente se internou em um hospital a 400 quilômetros de sua casa. Ficou três dias na enfermaria, sem propósito algum e, depressivo, muito assustado, e vendo o terror de perto de um pronto-socorro em época de pandemia, a doença tomou total frente nele e o levou à UTI, à intubação. Hoje o celular me acorda com a informação de uma amiga de que o pulso do Emerson parou de pulsar. Estou todo o dia sentindo o quanto eu o amava e nem sabia, e tremo a cada vez que sinto o quanto ele me fará falta. Com quem conversar agora? Parte da minha alegria com os livros e com a música se devia a ele, à ânsia de lhe apresentar aquilo nesses campos que eu acabara de descobrir. Suas últimas palavras para a esposa, antes de ser intubado, pelo vídeo do whatsapp, foram: "Eu devia ter aproveitado melhor a vida". Suas últimas palavras para mim, na fila do banco, quando comentávamos sobre o boato de alguns dias atrás sobre ele estar mal com a covid, foram: "Mas quem sabe eu não venha a pegar? Eu vou deixar um testamento doando meus livros para você". Eu respondi: "Eu tenho todos os livros que você tem". Ele retrucou: "Tem alguns escondidos que você não tem". Respondi: "Esses não me interessam".</p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-62293041814877042262021-05-21T20:28:00.006-03:002021-06-17T17:15:28.796-03:00Um dia mais e me expulsarás, talvez com zanga<div class="separator"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-sko9VeIhWOM/YKhB5FGPTpI/AAAAAAAAGwo/qb3hgrjBLak0Eo_Uw3BV86p-AHDLhQkpQCLcBGAsYHQ/s960/565976_487117881325605_1439183972_n.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="960" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-sko9VeIhWOM/YKhB5FGPTpI/AAAAAAAAGwo/qb3hgrjBLak0Eo_Uw3BV86p-AHDLhQkpQCLcBGAsYHQ/w400-h400/565976_487117881325605_1439183972_n.jpg" width="400" /></a></div><p style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;"><br /></p></div><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;"><span>Antes, como todo mundo, eu andava atrás de meus antigos e desaparecidos amigos pela net. Por ter obtido sucesso na procura eu parei com isso. Tenho uns 5 amigos que me eram fundamentais, provado isso pelos sonhos estranhos que eu passava a ter ansiando abraçá-los. Amigos que éramos tão gêmeos no humor, nos gostos, nas angústias, nas promessas, que minha alma sofria muito diante a nostalgia da juventude extraordinária que eles me proporcionaram. Com eles eu tive uma banda de rock, as mais pynchonianas aventuras de viagens e bebedeiras (e passa por aí minha paixão por Pynchon), os amores platônicos em que o bom era quebrarmos as caras para suportá-los mais intensos, as longas e madrugadinas conversas, os projetos mirabolantes, o deslumbre com a literatura. Tive uma juventude plenamente feliz com esses caras; eu tenho a sorte de ter uma estrela imantada que atrai esse tipo de gente. Um deles, desses meus amigos imortais, eu conheci quando pegava o ônibus para o colégio Objetivo; todo dia eu encontrava com seu sorriso ultra-simpático que me causava nojo e sua aproximação para conversarmos, e eu sempre fugia dele até que ele me conquistou. Esse aí é o Marlon, que, há dois anos, achei seu telefone e liguei para ele, com meu coração saindo pela boca, e quando ele atendeu eu fui tão irreverente, tentado recriar nosso ambiente, xingando-o de filho da puta por que sumiu de mim, e ele do outro lado em uma frieza monumental, quase me tratando por senhor. Despedi com um fiapo de voz e considerei que nossa amizade acabara, ou eu continuaria me referindo a ela no passado. Ele mora em uma cidade próxima daqui, algumas vezes pensei em ir lá de surpresa, mas eu tive tantos assombros diante o que o tempo e a vida comezinha fizera com esses meus antes radiantes amigos que desisti. Desses 5 amigos, apenas um conserva uma reserva suficiente do que era antes para que nós ainda possamos nos falar, o Fernando, que veio aqui em casa jantar conosco ontem. Os outros vou falar: encontrei com um no shopping há uns oito anos, e o cara tinha o olhar cheio de um espantoso rancor, o que percebi que ele tinha uma medo pavoroso de descobrir que eu me dera bem na vida, estava melhor que ele; quando nos despedimos no estacionamento, eu vi que ele desmoronava e me odiava para sempre ao ver o carro em que eu estava, e só não falei para ele não se preocupar porque era o carro da minha mãe porque eu estava em estado de choque. Eu fui embora remoendo o pensamento de se eu também me tornara tão babaca e previsível, se em mim todo o frescor e a poesia e a infantilidade de outrora havia sido exter</span>minada e, diante os olhos dele, eu era um ser de uma boçalidade pesada.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;">Os outros: um virara um comerciante que o riso superficial que ele achara para suplantar o escândalo glótico que era antes sua demonstração diante o espetáculo incerto da vida me deixara em depressão por um bom tempo, reforçado pelo tapinha nas costas e pelo "vamos nos falar hein?, não vamos nos distanciar mais não, meu caro", que me deixou numa imensa broxada (e esse, porra, esse era o que eu mais amava). O outro, o outro apenas virou um pai de família, apenas murchou em seu nicho, com conforto se esvaziou de tudo, esvaziou-se tão hereticamente de toda e qualquer loucura, que me oferecia em sua sempre sinceridade descansada as opções progressivas de conversar sobre comida e o que se poderia fazer a níveis médicos para reduzir essa comida do calibre das veias. (Há dois outros: o Safatle, que me chamou para jantarmos juntos, e que um dia eu irei, e a Inamar, uma amiga minha com o qual eu dividia natais nos quais eu não tinha lugar para ir e passava em sua casa acolhedora, e que eu contava sobre meus planos de virar missionário na África, e ela me contava sobre seu sonho absurdo e meio ridículo, mas que eu a amava demais para nunca ser honesto com ela sobre isso, de ser apresentadora de um programa infantil televisivo. Depois de uns cinco anos a reencontro, quando eu passava minhas tardes de desempregado nos tristes cinemas do centro da cidade, e ela me chega pelas costas falando ortodoxamente (como se ela na época já soubesse de antemão o que o tempo destrói nas pessoas, e agisse com delicadeza comigo): oi, sou a Inamar, se lembra?; nós fomos sem graça tomar um açaí, nós que éramos os seres mais desbocados do mundo, e depois subimos uns quarteirões até sua casa nova, e ela me apresentou para sua irmã, o que foi uma apresentação estranha porque eu conhecia sua irmã mas sua irmã e eu, talvez fingindo, encenamos que não nos conhecíamos (você precisava ver o Charlles quando era novo, era o menino mais lindo que eu já vira, a Inamar disse, atirando tudo na minha cara barbada e meu cansaço de peregrino que me destruía; aí eu me acendeu que isso poderia ser uma vingança, porque lembrei com um renovado constrangimento a vez em que ela me beijara inesperadamente na floresta do campus universitário e eu tive o descabimento de lhe dizer que foi como beijar minha irmã). E aí ela me pergunta se eu fui para a África e eu respondo que não, e ela se levanta, demora uns 3 minutos procurando uma caixa no raque da televisão, ergue a caixa com sofreguidão e leva para o sofá, e de dentro dela retira umas fitas VHS que ela põe para tocar no videocassete e eu vejo a coisa mais terna e assombrosa que me reabilita da tristeza, vejo ela vestida com roupas de homem, camisa bege e calças de brim largas, com um microfone na mão aparecendo na tela do televisor, apresentando um programa de televisão em que aparece cercada de crianças, um programa de extrema pobreza visual e orçamentária, e eu olho para ela com os olhos arregalados e já com a boca escancarada para morrer de rir e cair nos braços dela e ela me devolve um olhar de mãe diante seu filho mais querido, seu filho enjeitado com lábio leporino que ela mostra com orgulho e distribui fotos dele por toda a sala para que todos vejam, e daí aparece nas imagens a sua irmã, a irmã que eu conheço mas nós simulamos que não nos conhecíamos, vestida como o Xuxa, loura e desengonçada, que é a estrela da coisa, e nós rimos desbragadamente, na verdade isso me enche de uma adstringência que eu não consigo explicar, as gincanas, as músicas que elas mesmas compuseram e gravaram. Foram dez programas, ela me disse, com direito no último deles à despedida com choro. Ficamos até tarde da noite assistindo a todos eles.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;">E ontem o Fernando, o médico pediatra, com sua esposa, veio jantar conosco. Encontramo-nos há cerca de cinco anos, em um supermercado, ele que me gritou na fila, veio até mim e me deu um puta abraço, ele de branco e eu de jaleco todo cagado de bosta de vaca e sangue porque acabara de fazer uma cesariana numa vaca. Passamos meses só nos falando por telefone, querendo saber onde o outro morava, e nos encontrando esporadicamente em padarias e no hospital onde ele trabalha; como ele era novo na cidade, ele não sabia dizer com precisão seu endereço e, passado um tempo, por ironia, a Dani descobre que ele era nosso vizinho de esquina. Ele desistira da vida na capital, que estava acabando com sua saúde, e fizera o concurso público para médico da prefeitura da minha cidade, candidato único. Desistira de uma vida ensandecida que lhe dava 50 mil por mês, para passar com os 9 mil e quinhentos de seu cargo concursado mais uns atendimentos que ele faz em outra cidade vizinha. Era um leitor voraz e um poeta artesanal rigoroso na nossa juventude, e disso sobrou pouca coisa. Mas nossa conversa sempre é recheada de nonsense e desenvoltura. Ele, assim como todos os outro 4, eram convidados todos os anos, por minha mãe, para meu aniversário, como um ritual. Era sempre surpresa, mas todos nós já estávamos fartos de saber sobre a festa. Minha mãe encomendava o bolo, as comidas, os enfeites, no intuito explícito de me constranger, o cavalão de espinhas na cara e pêlos na mão com chapeuzinho de aniversário, o filhinho da mamãe. E todos davam corda para minha mãe curtindo ainda mais com a minha cara, exigindo que se cantasse a musiquinha e que eu soprasse a porra da vela do bolo, e minha mãe coroava a sangria me dando um beijo na frente de todos e me chamando pelo apelido de infância que ela nunca usava a não ser nessas ocasiões, Naninho isso, Naninho aquilo, e fazia parte da sagração todos se calarem para que ela recontasse os eventos mais diabólicos que o Naninho teve o descomedimento de cometer, a vez em que Naninho entrou no caminhão do pai, o acionou e o grande Mercedes Benz varou a cerca da casa lá embaixo da baixada, tendo-se a sorte de não ter matado e nem ferido ninguém, inclusive o próprio demônio porque Naninha havia pulado assim que percebera a miséria que estava fazendo, e todos caindo na gargalhada olhando para mim; a vez em que Naninho sumira da avó na catedral e fora descoberto na sacristia com o saco de hóstias na mão mandando um a um do corpo de Crista para a boca; a vez em que Naninho subira no sofá, retirara a sua porcaria para fora das calças e mijara na boca de seu tio Pedrinho que estava desmaiado deitado no sofá, e como a sua tia Tânia o protegera da sova da sua vida ao escondê-lo atrás dela para que o tio Pedrinho não o pegasse pela moleira. E assim ia, todas essas coisas relembradas pelo Fernando ontem, para uma Dani deliciada mas para a qual minha própria mãe já havia contado essas e outras histórias.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: medium;">Daí que depois da janta o Fernando me fala da nova séria de Globo, Justiça, que ele e sua esposa vinham acompanhando, e eu me entusiasmo, visto conhecer o gosto do Fernando para as coisas, mas isso é tema para um próximo post.</span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-27105406816708375122021-04-21T11:25:00.005-03:002023-07-26T11:59:36.174-03:00O primeiro contato com o medo<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh3.googleusercontent.com/-E0L7CwjUox8/YIA1aDpkTBI/AAAAAAAAGv4/Ehlz5gj3R74tgBgrMAJ2b2g9H_9f8y_8ACLcBGAsYHQ/97a41e306d3b5cd62a84a2fe3884fc25.jpg" style="font-size: large; margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><img alt="" data-original-height="805" data-original-width="640" height="400" src="https://lh3.googleusercontent.com/-E0L7CwjUox8/YIA1aDpkTBI/AAAAAAAAGv4/Ehlz5gj3R74tgBgrMAJ2b2g9H_9f8y_8ACLcBGAsYHQ/w318-h400/97a41e306d3b5cd62a84a2fe3884fc25.jpg" width="318" /></a></div><p> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;">Ao voltar para casa, Timos passou na banca e comprou o jornal
da tarde. A chuva dera uma trégua e um sol<o:p></o:p></span></span><span style="font-size: large;">, </span><span style="font-size: medium;">depois de horas
desaparecido atrás das nuvens turbulentas, oferecia um distraído panorama
outonal para as pessoas apressadas do fim do expediente. Se analisasse retrospectivamente
o humor daquela amostra de vida citadina antes de se refugiar em seu
apartamento, teria notado uma tensão mesmo que imaginária refletindo a manchete
do jornal que o confrontaria assim que fizesse o chá preto e se sentasse na
poltrona. Notaria-se muito cansado para ter atravessado aqueles sete
quilômetros entre a banca e seu apartamento sem ter dado uma única espiada nas
notícias, levando as páginas enroladas debaixo do braço, parecendo com o antigo
fantasma de Edgar Allan Poe na multidão. Como havia telefonado para a clínica e
dado uma desculpa para não ir trabalhar (ajudar um velho amigo não teria
parecido convincente ao casal de patrões, tão acostumado com suas mentiras
descuidadas), andava por entre as pessoas sem o elo de ligação de quem faz o
último passo da engrenagem cotidiana, a volta do triste e irrelevante Odisseu
para sua ilha de concreto particular isolada do mundo. Seus pensamentos se
afundavam nos temas que P vasculhara na fila à espera pelo atendimento da
funcionária da previdência. Para se distraírem da insípida burocracia (toda
burocracia era insípida, ora bolas, lhe dizia por detrás do cansaço sua voz mental),
falaram sobre os grandes temas, a imortalidade da alma, a impossibilidade da
matéria, a energia que domina tudo do mais alto ao mais baixo, os universos
paralelos. Lembrava-se de quando criança um menino um pouco mais velho,
atrasado nos anos escolares por uma sucessão de reprovações, lhe contava sobre
geografias mirabolantes, histórias de reis nunca antes ouvidos, misturando
nomes reais apreendidos em conversas entre adultos e contrabandeados para o
assunto para dar-lhes autenticidade. Só depois de anos Timos confirmou a
suspeita de que o amigo inventara tudo, fruto de sua potente imaginação, e que
os cossacos não eram gladiadores da rainha da Inglaterra e nem os kolkhozes a
raça de cão imperial que trucidava crianças perdidas na floresta. Era
inevitável pensar que uma maturidade vinda sabe-se lá como ao longo dos anos
que tinha pela frente poderia dar a devida dimensão daquilo que P. falava,
assim como lhe dera a juventude sobre as mentiras criativas daquele moleque.
Andando entre as pessoas, sem muito ímpeto, Timos ia passando de um pensamento a
outro, não predisposto a fazer uma crítica racional. Talvez tudo fosse verdade,
talvez eles estivessem amaldiçoados a viver eternamente, talvez o tédio não
fosse uma presença subjetivamente tão forte naquelas instâncias do espírito,
talvez as atribulações nessa dimensão, que servem para dar sentido a essa vida
estúpida, sejam substituídas por uma contemplação possível, como se vivêssemos
em uma música de Arvo Part.</span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Chegou em
casa, trancou a porta, jogou o jornal na mesinha de canto da sala, e se dirigiu
para preparar o chá preto na cozinha. A caçarola estava atirada na pia, entre
um monte de pratos e panelas, uma borra de erva fria consumida há dias embutida
no fundo. Não havia outra caçarola, de modos que a pegou com uma atenção avaliativa
sobre qual melhor caminho sem sofrimento para vencer aquele desafio; bateu-lhe
com a mão no fundo acima da cestinha de lixo ao lado do escorredor de pratos.
Para seu alivio, todo o corpo da borra se soltou e caiu, e ele pôde jogar um jato da torneira para que as pequenas
interferências das folhas e talos restantes fossem retiradas em um redemoinho
de água. Encheu o utensílio de água e a pôs para ferver, demorando alguns
segundos para descobrir onde colocara a caixa de fósforos, localizando-a no
mesmo lugar de sempre no meio dos potes de condimentos da estante. Era alguém
que tinha a sua própria organização, porque os objetos sempre estavam onde ele
programara ser o local de os deixarem estar. Só as chaves, por uma subversão de
algum eu intrínseco, é que relutavam em se adequarem a esse regimento e
trafegavam a cada dia pelos lugares mais improváveis. Quando ficou pronta a
infusão, serviu-se com uma caneca, adoçou com o açúcar mascavo que restava e
diante o qual repetiu algumas vezes para gravar que deveria comprar outro
pacote o mais rápido possível, a vida sendo impossível sem que pudesse usar
aquela preciosidade marrom rescendente para obter alguns minutos de dissipação
meditativa.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Afastou as
roupas amarrotadas, que ele não iria se dedicar em saber quais estariam sujas e
quais estariam limpas, e se sentou na poltrona. Soprou o chá sentindo o odor
sóbrio da erva, o que o fez lembrar que já fazia horas que estava sem comer, e
se lembrou de que havia um pacote de bolachas de aveia e mel pela metade na
estante; mas resolveu beber primeiro. Foi então que abriu o jornal e viu o que
o mundo todo já sabia: o candidato da extrema direita havia sofrido um
atentado. Claro que a imprensa, em seu falso rigorismo em se mostrar isenta,
não se expressara nesses termos, substituindo a situação partidária por seu
nome popular: A. Timos sentiu uma violenta perda de forças, algo em seu sistema
circulatório sofrera um curso gelado de aflição, ele se levantou rapidamente e
passou as mãos pelos cabelos, sem saber o que pensar. Uma felicidade radiante e
infantil passara rapidamente por ele, ele sorriu e deu pulos pelo quarto, sem
gritar, e parou de frente ao escuro preenchido de vultos indefinidos com uma
cara de louco, sobrancelhas erguidas. Será que a história decidiu enfiar sua
mão imaculada na matéria suja dessa dimensão para facilitar as coisas? Quando
isso tinha ocorrido antes, em quais lugares, o que trouxe de realmente bom? Ou
seria então aquela plenipotência a que P. sempre se referia, se refugiando em
uma confiança nela, que intercederia contra o mal? Precisava ler o restante da
matéria. Estava agarrado em sua exultação sem saber ao certo o que acontecera,
na esperança de que alguém finalmente resolvera dar fim àquela loucura, aquela
distorção brutal do bom senso. Talvez o fascista ainda estivesse vivo. Não
tinha coragem de continuar a ler. Em pé, no silêncio cada vez mais
intensificado, ouvia a pulsão do seu sangue nos ouvidos, e não queria sair
daquele momento. E se lera errado? Não, pelo menos isso, para calibrar na
medida certa o nível de sua exultação, lera várias vezes. Voltar a se sentar
era incorrer na enorme possibilidade de ver que não fora a redenção que
acontecera, mas o eterno sarcasmo, pois a hipótese de que o mal ainda estivesse
vivo era maior que a contrária. Se o houvessem matado haveria carros nas ruas,
multidões ensandecidas dos dois lados, festejos e lágrimas da parte dos
rebanhos manipulados desses mesmos jornalões. Foi então que repassou seu
trajeto da banca para casa e percebeu ser impossível uma engrenagem da história
ter se movido em seu favor, lhe dando a graça da economia em mirar em
propósitos mais humanitários. Sem aquele mal, aquela vertente medíocre de mal
que a estupidificação lhes enviara, seria enfim possível que eles passassem
agora a usar a força utilitária, sem distrações provocadas pela ralé auto
vitimada dos não esclarecidos. Sentou-se vagarosamente e, suspirando, voltou ao
jornal. Com a respiração suspensa, retornando com pesar a cada instante em que
se deixava se inteirar da situação, logo dobrou o impresso e o ficou segurando
próximo aos calcanhares, o olhar absorvido no estudo das consequências advindas
de mais uma barbaridade. A. estava vivo. No meio de uma passeata, em que o
herói ia sentado no ombro de um de seus correligionários, em meio a uma centena
de adoradores, alguém furou o bloqueio da polícia federal, dos músculos
anabolizados de sua guarda pretoriana, e deferira-lhe uma facada no fígado. A. fora
transportado às pressas para uma ambulância e, no hospital, pelo menos no
momento em que o jornal saíra dos fornos rotatórios, passava por uma cirurgia
de emergência.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Se
perguntassem a Timos o que ele pensava disso, ele diria sem relutar: quisera
que estivesse morto. Quisera que esse homem, esse que agora sabe-se lá onde
esteja ou se está ele mesmo vivo, que perpetrou o ataque, tenha tido um
treinamento rigoroso e seja uma virtuose do assassinato programado. Que seja um
soldado, seja de qual frente for, se do lado dos progressistas ou uma
dissidência paga por alguma orquestração traidora do fascismo (porque isso
deveria estar sendo cogitado nas esferas não oficiais dos formadores de
opinião), pois assim ele não daria sua vida para errar um golpe desses. Para
quem sentia que o único céu privado entre os distúrbios do mundo era trabalhar
em uma clínica de abortos, que a única paz compatível com sua deterioração
lenta e irrevogável era o silêncio de expectativas das mulheres que iam lá para
que vasculhassem assepticamente seus úteros, desejar assim a morte de um
desafeto era por demais humano. Não poderiam culpa-lo mencionando o humanismo.
Mesmo porque, além dessa fraca anedota retórica, um homem como aquele que
estava agora sedado e respirando através de máquinas, em uma mesa de cirurgia,
tinha tudo para decretar a morte de um sem número de pessoas. Sua presença em
um eventual governo à frente do país seria a autorização de que as comportas de
um ódio acumulado em centenas de anos pudessem ser abertas, um ódio aderido ao
dna de todo um povo e que há anos, desde que A. surgira nas televisões e nos
jornais, estava se enfileirando e se organizando para buscar suas compensações
sanguinárias. O que o isolamento tinha-lhe feito, pensou Timos. Condensara-se
na respiração de seus próprios pensamentos, sem que ninguém de fora viesse lhe
trazer algum refresco, e se tornara tão preconceituoso e cheio de ira assassina
quanto os adeptos daquele sujeito. Foi até a geladeira à caça de alguma coisa
para comer. Um suco de tomate em médias condições de aproveitamento, com o
adesivo de plástico mostrando rubros frutos de uma fazenda solar se
desprendendo pelas beiradas e com bolhas longitudinais indicando que até a cola
da embalagem vencera. Pelo cheiro, não lhe faria mais mal do que vinha tomando
nos últimos dias e, <u>ao provar, o gosto lhe caiu bem, um tanto salgado e com a
oleosidade artificial denunciatória que os conservantes escamoteados no produto
passam a ter para sobrepujar de vez ao sabor quando não são tomados
imediatamente</u>. Um pedaço de gorgonzola também pode ser resgatado do fundo,
talvez foi Amanda que enfiara aquele bloco triangular de fungo e manteiga de
leite encostado nos canos refrigeratórios da parede para que se conservassem
mais. Tinha sido ela que trouxera o gorgonzola, há alguns meses, junto a
diversos tipos de carne processada e queijos que preenchiam todo o espectro de
cores entre o branco e o amarelo. Um gorgonzola podia perder o prazo de
validade? Era como se perguntar se um raticida fica melhor se estiver com o
prazo de validade vencido. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Timos pega
essas coisas, essas sobras do seu passado recente, e prepara um lanche. Pega
duas fatias de pão preto de um saco milagrosamente fechado que encontrou atrás
dos pratos da estante, besunta-lhes com uma camada grossa do queijo azul,
despeja o suco de tomate em um copo limpo da pia aprovado pelo teste do olfato.
Se senta à mesa na cozinha, arrastando a cadeira para a frente para que as
migalhas que lhe cairão não lhe sujem a roupa. Come pausadamente, sem sentir o
gosto, apesar do quê os condimentos do queijo deixam suas papilas
enlouquecidas, um jorro vindo das glândulas salivares simula dor nos músculos
maxilares. Há tempos não tem uma alimentação decente; sobrevive com aquelas
improvisações encontradas como um tesouro sem glamour deixadas por uma sucessão
de sua personalidade em diversas aventuras da solidão. Tirando o queijo, que
evidenciava a presença de alguém (e lembrou-se do nome dela, Saula, como se a
festa de picardia em sua boca acionasse-lhe então a memória), os biscoitos, o
pote de iogurte natural na porta da geladeira, a manteiga de leite pela metade
e com raspas enegrecidas nas funduras deixadas pela colher, eram testemunhos do
que sua mãe um dia chamara de “suprimentos infantis”, uma total ausência de
qualquer sacralidade pela comida. Sua mãe ria com pesar ao ver aquele monturo
de carboidratos e proteínas de baixa qualidade, o olhava de um avançado estágio
da compaixão em que o objeto da piedade assume um foco realista e
desesperançoso, forçando novas atuações. Algumas vezes ela lhe mandava uma
cesta de alimentos, entregue por uma grande cadeia de supermercados em que se
arranjava tudo por um telefonema em que reportava didaticamente a um
funcionário o que lembrava dos gostos de quando ele era um menino, e
improvisava o restante baseado em suas prevenções sobre uma dieta saudável. Mas
Timos não pensava nisso nesse momento, isso são apenas reflexões nossas que nos
distraímos de reparar com mais aproximação sua pose desabrigada diante o
sanduíche de gorgonzola que apara na mão diante o nariz. Ou talvez relacioná-lo
a uma criança e pensarmos em sua mãe seja por estarmos, ao contrário do que
acabamos de dizer, justamente inteirados em observa-lo. Ele dá mais uma mordida
e mastiga com vagareza, contemplando algum lugar sem foco diante si. Não pensa
no ataque que o fascista sofreu. Deixa a mente divagar pelo nada sob a
ressonância leve e dispersa do fato, se abstêm de usar a racionalidade para
montar o quebra-cabeça que a situação exige inexoravelmente que se junte, peça
por peça, e tem a esperança de que elas se encaixem por uma atração natural
automática.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span><o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>É o medo, as peças moventes, relutantes em
mostrarem qualquer figura discernível, lhes diz. Naquele apartamento minúsculo
ele sente o medo incurável, obscenamente vergonhoso, tomar-lhe conta. Era o
mesmo medo sempiterno que sentia desde quando era criança, desde quando, numa
brincadeira cujas imagens difusas de um jardim e uma luz especular lhe indicava
ter sido seu primeiro contato com algo inominável sobressaindo-se das fantasias
de piratas e de ilhas distantes para fazer o mundo lá de fora insurgir em seu
refúgio. O primeiro contato com o mal, um roçagar inapreensível, isento de
minúscula emoção, mas que lhe deixara uma herança de certo calor. Alguns
psiquiatras do comportamento infantil relativizam a proteção exagerada da
criança quanto às manifestações do mundo adulto. Certa vez retirara risos
explosivos da mãe e de uma amiga dela quando, na mesa de café, lhes perguntara
o que significava a palavra “prostituta”. As duas deixaram-lhe assistir
televisão até tarde na noite anterior e ele vira um filme francês em
preto-e-branco, na tv cultura, em que uma das personagens atirara na cara de um
amante irresoluto a acusação de que ele a tratava como a uma prostituta. Em sua
cabeça o som da palavra remetia a alguma burocracia anacrônica, lhe provocou
imagens de depósitos de velharias e grandes caixas de papelão, fato que lhe
veio colado às impressões do que achava que um filme francês deveria despertar.
As duas riram, a mãe depositou a xícara de café no pires e lhe respondeu com
ternura: “Prostituta é o que se convenciona chamar de profissionais do sexo,
mulheres que se vendem para desconhecidos para que esses façam sexo com elas”.
Ele ruminou a informação sem espanto, como sua mãe tinha certeza que ele o
faria, e o termo se tornou um totem de referência de seu primeiro passo rumo à
erudição. Sempre que se deparava com a palavra, tal cena na mesa no café lhe
vinha como acionada por um dispositivo mecânico, uma série de engrenagens se
punha em movimento e se finalizavam com uma urgência instantânea a precisa
figura de uma mulher de terninho, culta e emancipada, como exigiam as regras da
polidez do cinema europeu dos anos 50. A assepsia resultada disso era tão
primorosa que cambiava uma inadaptabilidade semântica ao significado da palavra
“puta”, que era apenas a mesma mulher, com a mesma respeitabilidade e
distanciamento, adquirindo as cores do cinemascope. Já o contato com a verdade
que estava além das palavras era outra coisa. Subira do jardim do prédio onde
moravam ele e a mãe, naqueles anos em que os dois em intrínseco acordo
labutavam contra a derrota imposta pelo mundo, ela em sua faculdade de direito,
ele em seu suportar estoico das sombras silenciosas e opressivamente intranscendentes
do apartamento, com aquela revelação na cabeça. Aquela luz muito além de sua
compreensão, que entre as folhagens cortadas por sua espada de Capitão Green
Hollyday e a tribo canibal que teve que derrotar no centro das samambaias, viera
para plantar as primeiras sementes do que havia de real cercando aquelas suas
brincadeiras solitárias e pueris. Abrira a porta do apartamento, utilizando a
chave que guardava no fundo do bolso da bermuda, com todos os avisos
admonitórios da mãe para que não a sumisse e por isso ele sempre a apalpando
para certificar que cumpria sua missão seríssima com rigor, pois caso contrário
como eles iriam entrar em seu refúgio, e como com uma distração fatal a chave
poderia cair nas mãos de um facínora que entraria no reino deles e levaria
sabe-se lá o quê, suas preciosas miniaturas de soldados da Guerra de Secessão,
ou os livros da mãe, isso, o que havia de mais valioso para se levar que lhes
pertencia seriam os livros, e na sua cabeça os exemplos mais abjetos de bandidos
que rondavam aquela chave em seu bolso poderia levar os russos, os franceses,
os alemães, que a mãe venerava com recato mas ele lia com espanto e um tanto de
repúdio (o fascínio de tantas coisas por descobrir além daquele apartamento e
além do aconchego ambíguo debaixo das asas da coruja taciturna da mãe cujo
filos biológico não dava muito afinco à maternidade), como era vasta a
insegurança humana, como era infinita a dúvida e como estava pronto para se
firmar a implacável certeza da impermanência no reduto de sua alma. Ele abriu a
porta girando a chave e entrou, tornando a fazer o movimento giratório no miolo
da fechadura até que ficassem só ele e aquele sono velho silencioso,
rumorejando sons que o ouvido não era capaz de diferenciar dos ruídos urbanos
onipresentes que sempre atravessavam os vidros das janelas fechadas e a
espessura das paredes, o zum-zum delicadamente virtual do solenoide das
lâmpadas de sódio dos postes, a água tilintando suas bolhas metálicas de ar com
lapsos de certa alegria feminina pelos canos, respiros que surgiam do nada que
ele poderia acreditar vindos de um mundo dos mortos separado deste por alguma
artimanha de dar autoridade apenas aos que estavam do lado de lá em tocá-lo se
o quisessem, mas que sua mãe lhe reprimia concisamente sobre tais metafísicas e
tais assuntos primitivos que o pragmatismo e o cientificismo de suas vidas
ditaram não gastarem energias com elas, e os tantos sons de animais ou
autênticos apelos humanos dos solitários dos outros apartamentos que emitiam
suspiro para que esses de detrás do véu lhes ouvissem e que acabavam cambiando
para que uma criança no mesmo plano e na mesma impossibilidade de ajuda fosse o
único receptor. Ele tinha costume de falar abstrações sem sentido para a mãe,
que o ouvia com uma solicitude séria, os olhos dela por detrás dos óculos
analisando o que ouvia com uma persecução preocupada, pensando para onde tais
coisas iriam, arrebanhando tudo que anos de estudo e leituras concentradas
poderiam servir para saber algo desobstrutor sobre a loucura da infância. Mas
ele teria que esperar ainda 3 longas horas antes que sua mãe retornasse da
universidade, 3 eternidades contadas no oval do relógio da sala enquanto ele
permanecia sentado na poltrona arrastada para de frente a janela olhando os
carros passando lá embaixo, se permitindo uma esperança artificial de
aprumar-se com o desenho de um sorriso nos lábios para cada carro que parava junto
à portaria, com o motor ligado, e cuja pessoa do lado do passageiro fazia
suspense antes de descer para que ele testemunhasse com a tristeza
restabelecida de que não era um dos colegas da mãe a trazendo de carona, o
professor de jurisprudência, um velho juiz aposentado que vinha com as regalias
dispendiosas pagas pelo estado de uma cidade há 150 quilômetros todos os dias
para administrar uma aula chata e arrastada não tendo vindo e portanto ela
estava liberada mais cedo, para que ele utilizasse assim que abrisse a porta
seus ouvidos para despejar-lhe dentro aquele novo terror censciente que o
prenúncio da triste maturidade precoce lhe enviara no jardim da portaria.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Timos
analisava o por que o acaso achara que aos 8 anos ele estava apto para receber
essa inserção da verdade. Fora o ano em que seu pai se mandara. Aquela figura
intocável, que lhe deixara marcas mais que indeléveis pelo seu distanciamento,
pela elegância alienígena que ele usava sempre com Timos como se fosse o
atestado arranjado consigo mesmo para excluir aquele enigma de dedicação que a
paternidade romântica exigia que tivesse. Por um triz Timos quase o amara. Em
suas observações caladas, sentado no sofá, deitado na cama antes que todos
acordassem, estudando com franca admiração o rosto francês cruel e
abnegadamente animalesco em toda sua reivindicação de liberdade virado para
cima em entrega à sua paz natural, Timos o trazia para si, se moldava nele,
centrava-o no palco de suas emulações minuciosas, repetia seus trejeitos
alheios e ególatras, e ele, seu progenitor biológico, fizera-lhes o favor de
dizer adeus antes que todos esses estragos se completassem. Duvidava que
houvesse alguma previsão de danos calculado nessa despedida definitiva, pois
alguém que vivia apenas para si mesmo jamais teria a vocação para uma
alteridade dessa envergadura, mas o egoísmo dele acabou sendo um ato de misericórdia.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Timos virou
mais um copo do que restava do suco e observou que a chuva dos últimos dias
trouxera um áspero ar de fungo pelo apartamento. Ele gostava desse odor, um
cheiro de coisa se deteriorando às escondidas, como se requeresse a sua
distração para poder sobreviver. Estava bem debaixo do seu nariz, mas era
suficientemente inapreensível para que seus sensores corporais pusessem-no em dúvida,
colocando em xeque a capacidade de seu próprio funcionamento. As janelas
fechadas habituara a atmosfera de saturação a um meio promíscuo para o mofo, e
daí viera a humidade, reinante e florestal, e as forças da selvageria natural
insurgiram-se contra o concreto e o cimento, soprando o bafejo manhoso de
antigas doenças à espera do fim de suas abolições farmacêuticas. Era uma
batalha silenciosa e longuíssima, cujo tempo se media em módulos muito além da
duração de Timos para testemunhar (imaginou dali a décadas, quando os devaneios
no escuro de novos inquilinos na renovada versão das chuvas sepulcrais, iriam
identificar o limo se intensificando, concluindo mais uma frase meditada e
tranquila daquele seu argumento de invasão). Na última semana_ segundo ouvira
em um telejornal da clínica de abortos_, doze pessoas morreram de frio. Anabel
(a secretária) estava em um de seus solilóquios sigilosos com uma paciente e
ele não pôde aumentar o volume do aparelho na recepção. Eram anônimos, é claro.
O tipo de estatísticas que vem com cenas de fachadas de prédio, de rostos
indevassáveis de médicos falando como se não se tratasse de humanos. Timos
conservava certos ceticismos que ele sabia infundados, vindos de uma subliminar
adoração à ciência. Era-lhe difícil entender como alguém morria de frio.
Tirando os desalojados, os sem rumo, os suicidas das ruas que veem a
oportunidade de darem um basta no convite acolhedor que a chuva tem em toda sua
tenebrosidade cósmica, pensava nas senhoras em seus apartamentos com armários
antigos, os velhos que são descobertos cinco dias depois. Como essas pessoas
morriam de frio? Aqueles cansados médicos das entrevistas deveriam resumir tudo
como “hipotermia acentuada”, para poderem voltar para suas casas e acabarem
logo com aquilo, e ninguém iria perguntar, nem os parentes convocados, nem a
polícia, nem os vizinhos. Lembrou de um romance do Rabindranaph Tagore que lera
na adolescência, em que uma frase o tomara de jeito: “é muito difícil matar um
homem”. O escritor não falava de entidades, de ideias, mas do homem biológico,
falava do que estava por sob as estatísticas. Talvez esse assunto o tomasse
tanto tempo recorrente porque Timos se via como uma vítima potencial desse tipo
de morte. O que estava pensando, ele se perguntou, recolhendo um pedaço rançoso
de queijo no fundo da embalagem e o colocando na boca. Veio-lhe o professor
húngaro do segundo andar à cabeça, e o casal de velhos tão exageradamente
zelosos com a filha que morava no exterior. Eles estavam nesse exato instante
em um raio curto de distância dele. O professor deveria estar enfurnado em sua
poltrona, com um livro de filosofia alemã no colo_ ele imaginava sempre que o
estado de organização estivesse longe do caos do seu apartamento, o que era um
elogio involuntário ao vizinho. O casal deveria estar na cama, abraçados, quem
sabe depois de terem falado por telefone com a filha. Os seres humanos não
divergiam muito desses clichês, havia poucas opções dos quartos e salas
escuros. Talvez eles, os quatro, formassem uma chama de vida reflexiva em algum
ultrassom divinatório e suas mentes apareceriam como as únicas coisas acordadas
em todo universo. E talvez um meio termo entre a soturnidade desses seus
pensamentos e a comunhão ortodoxa que havia ao nível mais trivial possível
entre eles é que determinasse que não estivesse na hora do frio dar sua cartada
fatal. Todos aqueles protótipos e insinuações não tinham peso suficientemente
trágico para resistirem a um simples grito, ou a uma necessidade limítrofe de
abrir a porta, atravessar os degraus e bater na porta do outro, o triste e
nobre conde destituído de seu título dinástico aparecendo com sua cara
desesperada por algum apoio na soleira da porta. Ou ele bater à porta do casal
de senhores. Seja lá qual arranjo, quem procurasse quem. Aquele cheiro acre dos
fungos só se instalava em seu ambíguo prisma do que era agradável porque ele se
permitia ser superior a ele, ele se permitia a permanência, ele era ainda
inflado de orgulho, de vaidade, de egocentrismo, de apetites os mais diversos
(ainda que controlados), de forma que a doença que aquilo poderia pressagiar
era transformada em um atributo a um sommelier exótico. O medo era um anjo que
fulminava a todos do cavalo e enceguecia com sua potestade inverbalizável, com
seu terror infantil que se cola na idade adulta e na velhice, era o arauto
daquilo que estava acima da nossa compreensão, mas as histórias fabulosas que
ele contava era dever de cada um acreditar ou não, levar à frente e
alimentá-las ou não.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;"> Timos
imaginava as quantas histórias que estavam sendo fomentadas apaixonadamente
naquele mesmo instante sobre o atentado, na calada da noite, por fanáticos
insones. A estatura de A. estaria, na manhã cujas sete horas de escuridão fria
o separava, a níveis insuperáveis. Sua força e sua grandeza, que até então
podiam ser codificadas como imaginárias, acordaria naquele novo dia de sua
glória como capacidades incontestáveis de um líder predestinado. Timos já sabia
de tudo. Levantou-se, foi ao banheiro, abaixou suas calças e se sentou na laje
fria da privada, e urinou na pose feminil. Lavou as mãos, retirou a escova e o
creme dental da caixa da parede, e escovou os dentes demoradamente, olhando sem
se atentar para as fímbrias e desgastes de sua pele. Aquele povo que vivia sob
o medo se veria autorizado pelo destino a depositar nele todas suas esperanças
mais profundas. Seu rosto fino, de antiquada distinção nobiliárquica, que lhe
dava um acento de estupidez que ia de encontro à ternura errática dos broncos
que a multidão venerava, iria aparecer em todos os lugares. Ele não morreu.
Aquela vontade de viver que Timos identificava em si mesmo não permitia que o
frio viesse lhe observar na aposta por resoluções preguiçosas da história;
insistir na graça de um sujeito como aquele continuar com seu direito à vida,
mesmo indo de contra o que se movia na fáscia mais superficial de seu
pensamento, era parte em se manter vivo, pois viver sem sua humanidade não era
viver. Afora o seu apartamento caótico, Timos vivia. E ele conseguiu dormir
profundamente naquela noite, contrariando todas as suas estimativas. Outras
maneiras haveriam de surgir para combater. Sempre haveria outras maneiras.
Bastava foco. Bastava estar acima na escala biológica do limo e restituir com
uma concentração feérica a superioridade de sua espécie por sobre o frio.</span><span style="font-size: 16pt;"><o:p></o:p></span></span></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;">(Escrito no final da tarde de 6 de setembro de 2018.)</span></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><span style="font-size: medium;"><br /></span><p></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-60709094174833687032021-04-12T19:13:00.004-03:002021-04-12T19:15:27.913-03:00Trilhos<p></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://lh3.googleusercontent.com/-lUya-3EvXPc/YHTFlfxrQ6I/AAAAAAAAGuk/9QtS_KW8a6chd3kFoDXDZrdWUrHOdZjuACLcBGAsYHQ/5d699ea54d191a835cb5719e13710627--landscape-art-art-is.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img alt="" data-original-height="715" data-original-width="474" height="400" src="https://lh3.googleusercontent.com/-lUya-3EvXPc/YHTFlfxrQ6I/AAAAAAAAGuk/9QtS_KW8a6chd3kFoDXDZrdWUrHOdZjuACLcBGAsYHQ/w265-h400/5d699ea54d191a835cb5719e13710627--landscape-art-art-is.jpg" width="265" /></a></div><br /><span style="text-align: justify;"> </span><p></p><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">No trem para S., encostei-me à quina do banco com a janela, o rosto um pouco abaixado de encontro à gola da camisa do exército, com os olhos nivelados com a paisagem mutante lá fora. Os sons das rodas de ferro sendo alavancadas pelas barras de impulsão; a cabine cujos encaixes tremiam quando toda a máquina se recolhia em sua dimensão retilínea para poder passar pelas curvas dos trilhos; os vidros cedendo, de forma quase imperceptível, às leis da termodinâmica, sofrendo dentro das atribuições estudadas pelos engenheiros de construção a compressão dos encaixes metálicos_ tudo ia massageando meu ego destroçado, que só naqueles instantes de consciência que a brutalidade dos mecanismos do mundo envolvia tudo o mais que existia, as coisas delicadas e as coisas que respondiam às suas funções mais rígidas, compreendia que havia uma zona de equilíbrio para que a fragilidade pudesse sobreviver em relativa paz com a força absoluta. <i>Halperin, Halperin</i>_ uma voz dizia, balançando a cabeça sob a canção milenar da sabedoria expressa com resignação_ <i>a sua jornada, no fundo, olhando com uma capacidade mais restringida para a admiração, talvez possa ser interrompida num estágio mais precoce, a procura apaziguada pela aceitação de que seu lugar seja entre os que se silenciaram sem medo diante os grandes enigmas.</i> Talvez a nobreza verdadeira seja apenas o deixar-se ficar sonolentamente ao embalo das coisas milenares. Eu achava mesmo que essa voz agora dizia algo que enfim podia dar ouvidos, afinal o que diabos eu procurava? Não me pareceu que a revolução, nos moldes adotados pela turma de Ernesto e Libertad, justificasse a grande sede por propósitos que me dominava. Aliás, qualquer revolução, me parecia, era um enorme engodo, cujas motivações nunca eram as que propagavam nos ideários onde seus heroísmos de cartilha pensados sob eflúvios alcoólicos à noite eram impressos, mas suas turbinas se moviam por recalcadas ambições pessoais_ dominação, sexo (no caso de Libertad), falta do que fazer diante a pequenez do bípede a quem não foi dado a constituição própria para o vôo. Como estava cansado desses propósitos majestosos.</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> De frente a mim, com as cabecinhas apoiadas no encosto do banco, havia um menino de uns oito anos e uma menina mais velha, talvez uns treze, que desde que o trem se colocara em movimento me estudavam com atenção. Meu olho roxo e minha aparência geral de destruição os deixavam impressionados. Eram loiros, sardentos, e seus pais, parecia ter-lhes adotado o estilo de criação de os deixarem à mercê da sujeira saudável para reforçar seus sistemas de defesa. A menina, de imediato, só de olhá-la, já se podia perceber ser a antípoda ativa do rapazinho, de cujo rosto partia uma total dependência dos humores da irmã. Se a menina sorria por nenhum motivo, sua cópia masculina e mais nova estendia a face num sorriso também sem explicação; se ela, por sua vez, balançava a cabeça ao embalo de uma melodia secreta, ele também passava a cantar, repetindo o ar de alheamento, sua canção particular. A menina tinha um olhar diabólico, parecia conhecer profundamente o estágio de torpor exausto dos pais_ um homem e uma mulher mirradinhos, com uma perfeita máscara de estupidificação nas caras_, e aproveitava com astúcia a liberdade involuntária que tinha. Minha presença arranjada pela benemérita providência divina, logo atrás de seu banco, era uma ocasião deslumbrante da qual ela tinha de demonstrar com todo afinco estar à altura do merecimento. Um ser que transparecia conotações ainda distantes de sua experiência, de que se situava num impreciso limite com o invisível, mexia com as considerações sobre bondade e medo que aquele casal simplório havia lhe inculcado. Seus olhinhos perversos procuravam algum indício de que eu fosse culpado por minha aparência, para então desembaraçar-se de qualquer remorso e ser também um instrumento para acentuar meu expurgo. Fazia-me caretas discretas, que pareciam dizer “não, bobo, não tenho tempo para você”, e retornava a estudar a composição de sua proeza vocálica, que apenas fazia fundo sonoro à procura por novas curiosidades oferecidas pelo ambiente. E o pequeno ser que lhe arremedava fazia o mesmo, revirando o pescocinho, com uma segurança de que aquele era o caminho certo para novas diversões. Então ela mostrou toda a potência de seu conceito sobre estranhos, me crivando um olhar onde a graduação de sua certeza era expressa pelo movimento das pálpebras_ quando se semi-fechavam, que era o que fazia então para manter toda sua concentração sobre mim, estava deixando claro que sabia o que eu representava. Não era tola para cair nos arranjos que os adultos demonstravam criar para submetê-la; reconhecia que muita coisa lhe passava batido pela condição de ainda ser criança_ esse termo que limitava sua vontade e contra a qual destinava toda sua rebeldia, inclusive o seu desprezo pelo irmão cuja estupidez era ainda maior por adotá-la como modelo, mas tinha um confiança em si mesmo que a tornava militante contra essa estupidez que lhe chegava de todos os cantos.</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> Decidi confrontá-la, pois estas idéias todas aparecerem na minha mente e me vi tomado por uma súbita admiração por aquela menina. Oposição poderia ser verdadeira amizade, como já disse o velho Blake, e ela não iria querer que eu lhe viesse com a amolação de tratá-la como uma menina. Pus um ar de severidade nos olhos, resisti ao seu encaramento e disse, (não sei por que):</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> _ Essas feridas eu as ganhei numa briga de trem, semana passada.</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> Ela não mostrou nenhuma reação de empuxo contra ter-lhe dirigido a palavra. Seu olhar abrandou-se um pouco, não em sinal de começo de confiança, mas para avaliar o sentido daquilo. De súbito, passei a crer que ela fosse uma espécie de criança ultra precoce, que nada haveria de mais familiar a seu espírito centenário a realidade atroz dos trens, para a qual vagabundos e deserdados gerais faziam meio corrente para atravessar de canto a canto o país. Um traço de mulher madura, não de todo desprovido da feiúra temerosa das anormalidades, passava por seu rosto à medida que refletia. Então, ela recolocou os olhos em mim, carregados de faíscas opinativas como estavam há meio minuto, e me disse:</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> _ Nada incomoda mais aos punhos do senhor Santiago do que vagabundos feito você.</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> Sua voz era árida como cacos de vidro roçando uma parede, mas ainda assim bastante doce. Respirei aliviado. Não, não! Era uma criança como qualquer outra. Eu estava no planeta usual que a detivera de experiências alienígenas por esses anos todos. Olhei para ela por sobre o desnuviamento de meu sorriso, achando que se ela tivesse realmente os anos a mais que de primeiro achei ter, saberia que eu roubei a expressão de piedade terna pela arrogância inofensiva da inocência de algum filme americano de década de cinqüenta. Mas ela levava a coisa ainda bem a sério. Apostava nos protetores músculos desse seu herói das viagens, Santiago.</div><div class="MsoNormal" style="text-align: justify;"> _ Pois não foi Santiago que fez isso a você. Santiago não deixa sobreviventes._ daí ela pôs a língua para fora, uma língua rosada de algum produto dulcicorado de mercado que seus pais omissos deveriam achar ser parte da força imunizadora do mundo livre, e me virou as costas, pulando sentada sobre seu banco e saindo de vista. O protótipo masculino seguiu-lhe o exemplo, lanceando a língua, embora de forma sedutoramente desprovida de conotações políticas quanto a conhecidos poderosos do ramo da segurança de trens, mas permaneceu olhando para mim com os olhos cheios de hilaridade vazia, sentida apenas pelo fato maravilhoso de estar vivo.</div>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-17014524261276083822021-04-10T13:53:00.006-03:002021-04-11T15:12:51.449-03:00Incidentes Protocolares<p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://lh3.googleusercontent.com/-MPIkkKcYTdM/YHHXuhH-KtI/AAAAAAAAGtk/RBrAalP6yhMBIxD3Vn_g6ORYOnKhVwFEQCLcBGAsYHQ/Jose-Gutierrez-Solana-La-reuni-n-de-la-botica.jpg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img alt="" data-original-height="615" data-original-width="800" height="308" src="https://lh3.googleusercontent.com/-MPIkkKcYTdM/YHHXuhH-KtI/AAAAAAAAGtk/RBrAalP6yhMBIxD3Vn_g6ORYOnKhVwFEQCLcBGAsYHQ/w400-h308/Jose-Gutierrez-Solana-La-reuni-n-de-la-botica.jpg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"></td></tr></tbody></table><br /> </p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 115%;"><span style="font-size: medium;">O que permeava o mais profundo da mente do meu avô era sua
consciência de que fazia parte de alguma casta ainda não de toda determinada,
cujas raízes eram obscuras e os méritos não descobertos, mas que outorgava a
ele seu direito de pertencimento irrevogável. Naquela aldeiota perdida
no meio das serras, onde a lentidão era dominante e o tédio temperava os
humores e regia a filosofia resignada de alguns, ele se mostrava sempre altivo,
andando com seu passo galante por entre os jogadores de caixeta que promoviam
campeonatos particulares arrastados por epopeias semanais e que ele
premiava seus campeões alternantes com caixas de elixir paregórico e balas de
gengibre. Dormia ainda na pensão da velha Ofélia, uma senhora rude de feições
impenetráveis, que o surpreendia com algum vislumbre de que estivesse por
romper sua casca protetora com algum inesperado sorriso e com uma ainda mais
inesperada confissão de algum antigo amor nostálgico, mas que quando parecia
estar no limiar da revelação voltava a cair em seu fado eterno de lamúria
silenciosa e remoer de alguma dor encalacrada há muito tempo na alma. Já tinha
a farmácia estabelecida e os clientes fiéis que lhe permitiam comprar para si
uma casa própria, como soe ser a respeitabilidade esperada de um doutor, mas
ele insistia em permanecer no mesmo quartinho da pensão, um cubículo com uma
janela basculante e uma cama de solteiro que seus pés de vara pau ficavam para
fora na hora de dormir, e cujo teto de telhas sem forro distribuía com generosidade
democrática os sons das paixões não de todo sinceras das meretrizes no cio e
gatas pardas caçadas nas noites para sanar sua solidão, de modos que os
peregrinos, cuja sorte de suas erráticas aventuras os faziam parar ali,
podiam ouvir com um lastro de inveja suas performances sobre-humanas,
assombrados ao constatarem ao raiar do dia que tamanho prodígio vinha de um
homem de aparência tão impoluta que só uma mente doentia imaginaria ser o mesmo
animal desconsolável que os impossibilitara o sono, não se sentindo seguros de
reclamarem à inquilina. Se bem que, com o tempo, a velha Ofélia acabou ficando
cúmplice de suas lubricidades, de tal maneira que passara a facilitar suas
caçadas de uma forma que ele já não precisava sair pelas ruas, colocando as
vendedoras ou as professoras que vinham dar cursos de aperfeiçoamento para os funcionários municipais nos
quartos ao lado do dele, o que, as presas já amaciadas ao longo do dia com seus
sorrisos, sua polidez estudadamente distante e astutamente desinteressada, seu
cálculo preciso em tocar-lhes a mão na hora de se servirem no jantar como se
fossem inocentes acidentes, caíam desbaratadas na armadilha já pronta quando
ele as puxava para o cubículo e as faziam esquecer de suas promessas de
fidelidade feitas aos maridos e namorados com uma culpa que só lhes aumentava o
prazer de agirem como putas. </span><span style="font-size: 16pt;"><o:p></o:p></span></span></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-54358526069601701592021-02-28T17:28:00.002-03:002021-12-10T17:59:57.703-03:00Um Duelo<p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"> </span></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: medium;"><a href="https://1.bp.blogspot.com/-5Z_uo6CFC_o/YDv8lx-ZjlI/AAAAAAAAGsI/fYHGqpStLqwtBGPJp2IpTChZEp4EXAvhACLcBGAsYHQ/s400/001969013019.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="346" data-original-width="400" height="346" src="https://1.bp.blogspot.com/-5Z_uo6CFC_o/YDv8lx-ZjlI/AAAAAAAAGsI/fYHGqpStLqwtBGPJp2IpTChZEp4EXAvhACLcBGAsYHQ/w400-h346/001969013019.jpg" width="400" /></a></span></div><span style="font-size: medium;"><br /></span><p></p><p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"> Mamãe cortou o
cabelo. Era um feixe negro e liso que ia até sua cintura, um parasita de
vaidade ostensiva com o qual ela não tinha mais nada em comum. Não o enrolava e
o prendia em um coque arquitetônico de antigamente, cujo segredo para se chegar
à ciência de achar o ponto certo de amarra era algo tão cuidadosamente guardado
quando ela era uma garota da velha cidade interiorana, e agora, passados os
meses que pareciam anos de quando deixara tanto a cidade quanto aquele seu avatar
idílico, ela só o deixava ali, flanando em suas costas, se alteando à vontade
de uma brisa enfeitiçante que cativava olhares dos que lhe estivessem em volta.
Foi-se o tempo em que o tratava bem, o nutria com cremes de ervas e shampoos
delicados, que o escovava alegorizando uns trejeitos preguiçosos e
concentrados, as coisas que fazia quando morava em Altarosa e era uma donzela
destinada ao casamento com algum mandatário de terras. Agora que caíra no mundo
real, ela, como se de um dia para o outro abriu os olhos e deixou para trás
tudo que fosse daquele outro mundo distante. Seus cabelos foram perdendo o
viço, tornaram-se quebradiços, já era outro o vento desinteressado que vinha
soprar neles sem que seu propósito fosse o de conservar a mesma união e cada
qual ia para um lado e fazia estranhas figuras hieróglifas no ar. O que antes o
anarquismo capilar realçava a beleza do rosto de minha mãe, agora dava um tom
de velhice precoce na maneira em que o caos estabelecido sugeria um queixo mais
duro que o normal, ensombrecia os olhos, não cobria as pontas das orelhas. Não
precisava a avó pentecostal jogar uma de suas indiretas sarcásticas, nem as
filhas satélites fazerem craque de sorrisos falsamente silenciados, pois ela
sabia melhor que ninguém o que aquele corpo estranho e incongruente
representava. Ela desprezava tanto os cabelos que não tinha tempo de pensar
neles. Em sua cabeça a técnica para excisá-los consistia em ter que ir para uma
cabeleireira especializada e ficar horas sob uma atenção minuciosa, e isso já
não mais corroborava com seu espírito novo que lhe surgira com o êxodo. Se ela
não pegou a faca de cozinha amolada e deu ela mesmo um cabo ao problema foi
porque a violência do ato a desgastava, não entrava em seus arranjos domésticos
de mãe que tinha dois filhos para criar; era como se ela fizesse concessões ao
mundo no que ele tinha de pior e, apesar da pobreza que dava suas caras pela
nossa frente, ela nunca atingiria esse nível de abjeção. Os cabelos não mais
representavam o selo de que ela era uma dama; ser uma dona honrada tinha agora
a ver com seriedade e penitência.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>No nosso
prédio havia famílias de argelinos, franceses, senegaleses, árabes, armênios,
italianos, turcos; gente de todo tipo, cada qual promovendo seu nível de
barulho, cada qual com seu timbre linguístico aviário que, em determinadas
horas, formava uma tapeçaria sonora de múltiplas camadas, sendo impossível se
ater a uma linha de sentido. Nas horas do almoço, que era a hora universal em
que os rebentos dos deuses de infinitas caras e dos filhos de todas as idades
da diáspora tinham em comum para se quietarem e fartarem seus estômagos, era
possível ouvir um ruído uníssono, contínuo, concentradamente intenso e
libidinoso, que subia pelos conductos dos elevadores e pelos corredores das
escadas e ficava como uma energia étnica em pulsão perigosa, martelando os
ouvidos, fazendo fricções sutis nos pés através de sua propagação pelos
assoalhos; o organismo que respirava naqueles dez andares de quartos sombrios e
janelas flamejantes cujas lâmpadas econômicas entravam em um torpor meditativo,
um ronronar peristáltico. A uniformidade a que chegava o som nutria as formas de
como esse som se apresentava durante as outras horas menos sagradas do dia, de
maneiras que tudo ficava como se debaixo de uma redoma de vidro, os gritos das
crianças, a severidade da ordem dos velhos patriarcas para que as mulheres lhes
passassem a pasta, ou o baba ghanoush, ou o caldo de rins de cordeiro, ou o cevapi,
dependendo de qual parte do espectro geográfico eles vieram, removidos e
atirados no teatro caótico daquela babel de proporções reduzidas. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Mamãe parara
de escrever no caderno velho de espiral, rasgado nas beiradas e com páginas
transformadas em murais neolíticos com riscos de caneta sobrepostos; pousou a
caneta na mesa, se levantou, arrastando de debaixo da mesa as chinelas de taco
para que seus pés se posicionassem dentro delas e, sem dizer nenhuma palavra,
saiu pela porta do apartamento. Desceu os lances de escadas no escuro, porque a
lâmpada dali queimara há uma semana, se esbarrando com as outras pessoas que
faziam das suas na dormência do horário, e foi se postar em pé de frente à
porta do apartamento do térreo, do bósnio Shivídia Mensur. Todos conheciam
Shivídia Mensur, sua cara de ladrão de caravanas, seus longos bigodes de
embuchador, seu ar geral de grave perigo. Sentado na cadeira de madeira, ele passava
suas longas horas de ócio contemplando o regulamento de sua digestão,
mastigando um palito, de camiseta sem mangas branca e encardida, de calças
beges de cambraia folgadas e nunca passadas, e o boné de beisebol que um dia
fora azul céu mas que estava impregnado de gordura e descorado pelo álcool do
aspersor que usava para desinfetar a lâmina de barbear. Quando não analisava o
universo para ele sempre assombroso de si mesmo, Shivídia dedicava a ler um
jornal que algum conterrâneo deixara-lhe por agrado ou por inconsciente sadismo,
o mesmo número eterno de vinte anos atrás, em que as manchetes já não o deviam
fazer suspirar de nostalgia por narrar sempre e eternamente, enquanto durasse a
consistência já um tanto esgarçada do papel, a entrada do general com canhões
que determinara que ele e mais milhares de outros fugissem de um país que
passara a não mais existir, mas agora o motivando apenas a se recordar de
alguma faxineira de peitos vultosos ou uma bilheterista da estação de Medugorje
com as quais ele trocava olhares acalorados e que agora deveriam ambas estarem
longe, espalhadas pelo globo, rendidas como ele a uma velhice cujo conhecimento
das vanidades da existência não lhe sugeria mais nenhum suspiro. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Minha mãe deu um
pigarreio ligeiro mas determinado, suficiente para que Shivídia, que não estava
lendo o jornal, movesse lentamente seus olhos empapuçados da parede amarela e
os colocasse sobre ela. Minha mãe deveria ter sido afetada pela profunda
tristeza que aqueles olhos transmitiam, porque sua voz, que antes preparara
para ser a mais seca possível, se suavizara, como se subvertida a um tom mais
baixo. Shivídia a vislumbrou por detrás da nébula tremeluzente do passado e viu
ou a bilheterista ou a faxineira, mas como seu espírito era ineludível, tinha
plena consciência de não cair naquela ilusão sem mais consequências a não ser
pregar-lhe uma peça. Todos sabiam que não era um homem de muita conversa e
também de um nível de competência que ia até o simples exercício de aparar
cabelos e barbas; para isso bastava que se sentassem na cadeira de couro cinco
centímetros mais elevada que o habitual e, com os olhos em paciente observação
a si mesmo no espelho frontal, o cliente deixasse que ele fizesse o que tinha
que fazer para sobreviver. Haveria dezenas de senhores menos taciturnos e
amplos de simpatia que realizavam o trabalho de apara capilar melhor que ele,
mas aquele inferno que não angariava um pequeno minuto de silêncio e que estava
sempre na iminência de explodir era só aparente, as pessoas ainda eram pessoas
e tinham o coração da espécie aptos a se condoer mutuamente e a se sustentarem.
Como o desconsolado Shivídia Mensur compraria seus fumos aromáticos e suas
lascas de bastirma se os velhos, os funcionários das vendas locais, os
assaltantezinhos de feira, as mulheres que catavam lixo nas cercanias, não
fossem até ele para que ele despoluísse um pouco o tanto de selvageria que seus
corpos lutavam mês a mês para colocarem para fora?<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Então minha
mãe lhe diz, com um gesto, que era para Shivídia Mensur cortar o rabo negro,
seco e mal tratado, num movimento com a mão que simulava o golpe de uma faca. O
bósnio falava toscamente o português, com a incorrigível incapacidade de usar
de maneira certa os gêneros e os plurais que tem os homens de sua estirpe;
mesmo que se dedicasse anos a ouvir com extrema atenção como falavam os
nativos, se assim fosse possível furar o bloqueio de tantas línguas que corria
pelo prédio, ainda assim algo de dissoluto em seu espírito de segregado se
manteria indomável a se entregar às normas corretas de uma outra pátria. A
língua era o primeiro e último foco de resistência em se agarrar à nostalgia de
sua antiga e desaparecida nação, o único ponto de concordância mantida entre
ele e as mulheres cujas vidas de cachorro sem lar foram privadas de formarem
com ele seus direitos interrompidos do calor de uma família e uma linhagem
numerosa de descendentes. Mas entendeu que a moça lhe impunha uma complicação
sem igual que ele não merecia e nem estava apto para abraçar. Olhou estupefato
para o objeto negro que ela segurava pelo meio em uma das mãos, como se fosse
um tapete persa mal cuidado que estivesse lhe oferecendo para comprar, e piscou
duas vezes pensando em um gorgulho em voz alta que maldito esse dia por lhe
virem com enigmas que ele já se fizera pela idade e pelas amarguras sucessivas
sem a mínima obrigação de tomar conhecimento, sequer resolver. Minha mãe não se
deu por vencida, estava ali para arrancar aquele parasita e estava
suficientemente decidida a não se esmorecer pelo ar de afronta desdenhosa de um
iugoslavo barrigudo; já engolira o vestígio de educação que lhe viera por ter
visto alguma simpatia muito velada no barbeiro e sentia o frêmito de má
civilidade lhe subir pela garganta. Não era à toa que ela pairava no imaginário
daquelas pessoas atoladas em seus isolamentos gramaticais associada a uma leoa
que a ponderação aconselhava evitar. Ela entrou na saleta sem que o armênio
tivesse tempo de se levantar, e, num gesto desembaraçado e involuntariamente
feminino, se sentou na cadeira de couro. Shivídia, como se lhe tivessem
concluído o tapa em câmera lenta que ele esperava assim que a vira parada à
porta, balançou os braços e se levantou sem jeito da cadeira, quase caindo para
trás com o peso de sua pança enquanto repetia niet niet, mê senhora niet, no
no. Minha mãe se agarrou aos braços da cadeira e franziu as sobrancelhas num
gesto que, assim como a estival sombra juvenil do ato de se sentar, lhe dava
uma graça provocativa, rememorosa de sua antiga beleza provinciana, que vai ver
tais coisas não passaram despercebido pelo barbeiro por invocar agora com uma
voz de clemência que ele não estava apto a tratar de mulheres do porte de minha
mãe. Ele coçou a calva, esfregou as mãos nas frentes da calça, olhou no espelho
aquele quadro surrealístico que nem nas mais distorcidas realidades alternativas
seria idílica ao se ver em pé detrás de uma moça de rosto e corpo
esplendorosos, apesar das tantas tentativas dela em destruir quaisquer traços
de suavidade que tivesse os substituindo por expressões grosseiras; olhou para
fora em busca de um socorro que a indiferença coletiva sequer sabia o drama que
de súbito a potestade havia lhe enviado. Mudo, parou os movimentos de aflição e
olhou minha mãe pelo espelho, com tudo o que lhe conferira o terror de
embuchador vindo à míngua, estando no lugar a cara de um gordo e velho que lhe
pedia que não lhe fizesse aquela extrema injustiça. Minha mãe, lívida, a pele
mais translúcida do que o habitual mostrando o canal fluvial de umas delicadas
veias na testa, olhava para o mesmo ponto, os olhos arregalados de um fulgor
que beirava a certeza terrível de uma bruxa. Shivídia pegou o avental, armou-o
por sobre a barriga, como se ele tivesse um peso que um simples pano jamais
teria, com um ar de quem estava sendo obrigado sob tortura a fazer algo de
consequências ainda não medidas mas que tanto mais seria terrível para ele.
Minha mãe então desviou os olhos para a imagem dele, as pupilas tremendo uma só
vez delicadas e intensamente, como se uma figura clássica em um quadro sobre um
demente tivesse de súbito se movido para mirar o espectador que a observava.<o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Shivídia Mensur pegou a tesoura rombuda e enferrujada, com manchas
amarelas que indicavam respingos de alguma substância química indefinível, e
minha mãe percebeu o quanto as mãos daquele brutamontes eram pequenas. Ele
estudava o objeto que tinha que trabalhar, o longo pêndulo morto espraiado da
cabeça da mulher prosseguindo-se pelas costas da cadeira; observava-o de um
lado e do outro, retorcendo-se para que uma ótica inatingível lhe desse um
sinal do que fazer; mordeu o lábio inferior e proferiu uma espécie de mantra
rápido e pela primeira vez olhou com um olhar profissional, sem reservas, para
minha mãe. Faça da forma mais rápida possível, ela disse, no que parece que ele
enfim entendeu o idioma dela. Ele picotou as pontas, com investidas ponderadas
da tesoura, e uns fiapos que perdiam o negror e ficavam translúcidos assim que
cortados caíam flutuando no chão. Ele a olhou com ar interrogativo, e ela
fechou a cara com enfado como resposta. Daí ele respirou fundo, ergueu a
tesoura com uma resolução que perdia a indecisão de maneira mais fácil que ele
supunha, e o mergulhou na linha da nuca, com a boca do objeto aberto até o
limite possível abarcando um volumoso feixe de cabelo. A tesoura era velha mas
tinha uma afiação extraordinária, vai ver era por isso que a conservava, pois
sincronizado ao som agudo e metálico, um dos sons mais inapropriadamente
rápidos para os anos pacientes que levara à formação do que ele extinguia em um
segundo, um maço de cabelo da mamãe foi jogado ao chão, o peso o fazendo cair
agora de uma vez. O armênio, sem olhar pelo espelho e aliviado por ter sido lhe
indicado como se livrar daquela descomunal incumbência, feliz que afinal a vida
lhe mostrava mais uma vez que nada lhe era magnânimo e sobre nenhuma ação
humana se podia recair o pesar de uma elevada importância, repetiu o trinado
fino e cirúrgico da tesoura até que o restante da cauda senhorial do que fora
aquela menina transfugada em mulher que lhe entrara na sala. Ele parou o gesto
e perguntou à minha mãe se era pra continuar, naquele idioma formado pela
precisão entre eles que era mais um diálogo entre mudos, e ela fez que sim com
a cabeça. <o:p></o:p></span></span></p>
<p class="MsoNormal" style="text-align: justify;"><span style="line-height: 107%;"><span style="font-size: medium;"> Quem me contou
essa história foi o próprio Shivídia Mensur, que não tinha nenhuma suspeita que
eu fosse filho de seu personagem principal, uma semana depois quando eu também
me sentara ali para que ele desbastasse o descalabro selvagem e embaraçado que
me crescia acima das orelhas. Até então ninguém sabia quem resolvera aquele
incômodo para mamãe, quando ela entrara pelo apartamento não tendo nenhuma
diferença de um rapazinho imberbe de pescoço longo e cabelos baixos quase a um
estilo militar, apenas com a extravagância doidivanas de ao invés de estar
enfunado em um uniforme do exército estar dentro de um vestido. Ninguém falou
nada, porque ninguém falava nada dentro daquele apartamento, mas todos pararam
por um momento o que estavam fazendo para olhar aquela nova presença entre nós.
Um segundo só foi o bastante, o que demorou mais que o que comporta
oficialmente esse limite de tempo, em que avaliaram aquela quebra violenta na
rotina da casa, aquela comunicação cheia de êxito e vingança que a cabeça
impávida e combativa de mamãe expressava em seu mutismo, e no final das contas,
ao abaixarem os olhos a título de que mantinham o código de conduta de se
manterem isolados sem se meterem um nas vidas dos outros, mesmo com um arzinho
vestigial de esnobe indiferença, o veredito era positivo, o que cada um achava
era a confirmação unânime de que aquele cabelo condizia melhor com a nova
personalidade daquela ex-menina. Se tivesse uma comunicação subliminar secreta
que possibilitasse que eles expusessem sem grandes danos ao orgulho o que lhes
iam pelas mentes, eles iriam cumprimenta-la por ter incorporado o espírito real
da mulher dura e invergável que ela era.</span><span style="font-size: 16pt;"><o:p></o:p></span></span></p><br /><p></p>charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-19876321200655029492020-06-28T21:57:00.000-03:002020-08-05T07:35:26.153-03:00Scenio<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-06OSKQFJTzw/Xvk6wmeJ78I/AAAAAAAAGmA/JrokerK3ZPsH6Nh0a_Jk71VQ0dUS8uNRQCLcBGAsYHQ/s1600/jose-pancetti-barco-no-cais-carvao-sobre-papel-9250g%2B%25281%2529.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="760" data-original-width="1000" height="303" src="https://1.bp.blogspot.com/-06OSKQFJTzw/Xvk6wmeJ78I/AAAAAAAAGmA/JrokerK3ZPsH6Nh0a_Jk71VQ0dUS8uNRQCLcBGAsYHQ/s400/jose-pancetti-barco-no-cais-carvao-sobre-papel-9250g%2B%25281%2529.jpg" width="400" /></a></div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;">Enrietta foi assassinada há 13
anos. O sr. Flibas parou diante o semáforo para pedestres, que no momento
apresentava o homenzinho em pose marcial circunscrito em seu quadrângulo
vermelho, e olhou os rostos atônitos do outro lado da rua apontando
seus olhos para onde ele estava sem o verem. Foi no bairro de São Bento, a dez
quilômetros dali, quando Enrietta ia às seis da manhã para o serviço de
conselho tutelar no qual se ingressara fazia um ano. O rapaz_ na verdade, um
pertencente à faixa etária indefinida entre a infância e a adolescência_,
passara por ela, estacara dois metros além e, como se algo que exigisse sua
atenção tivesse quase passado batido, mas que se recuperara pelo seu
afinco em ser efetivo a algum zelo irretocável, deu meia volta e voltou
calmamente até onde ela estava, naquela mesma posição em que o sr. Flibas agora
estava diante o semáforo, à espera de que a marcha de carros fosse interrompida
na transversal e o caminho para as pessoas fosse liberado. Ela levava uma bolsa
de pano bordado com uma mixórdia de desenhos africanos pendurada no ombro, e
na hora em que o menino a puxou com violência, seu corpo pendera para o lado; o
desequilíbrio fez com que os grandes óculos ray-ban escuros ficassem inclinados
no meio do rosto e seus cabelos crespos, que lhe conferiam o principal toque de
personalidade, formassem um nimbo na região acima da testa, o que era o detalhe
mais visível na câmera de monitoramento de uma panificadora, que registrara
tudo e que os policiais mostraram para o sr. Flibas alguns dias depois. A luz
vermelha se apagou e o quadrângulo verde, com o homenzinho atarefado estendendo
a perna para efetuar um passo, acendeu, o efeito entre cores tão avessas provocando o acionamento de todas as pernas da fila lateral de
pedestres que esperavam por aquela adstringente libertação. O sr. Flibas
agilizou para chegar ao outro lado, com a desconfiança supersticiosa de que
os carros parados eram seres brutais de vontade própria que poderiam avançar a
qualquer momento, sem respeito às leis. Enrietta jamais fizera aquele gesto que
ele fazia agora, jamais atravessara a rua. Nos primeiros meses, mesmo nos
primeiros lentos e imprecisos 5 anos, ele caía na divagação de se não
comportava uma culpa pessoal em não ter sido audaz o suficiente para ensina-la a
controlar certos movimentos condicionados. Se não teria sido um grande lapso
não ter dedicado a instruir um ser tão imolado pela malícia sobre a corrupção
que imperava do lado de fora da porta de seu refúgio. Talvez ela não teria
simulado reação, como puxar a bolsa de volta, respondendo proporcionalmente à
força do ladrão com a energia muscular de seu braço fino mas vigoroso. Algum
transeunte que testemunhara a cena talvez tivesse expressado um gesto de
admiração e achado que a história teria sido ganha, o mal enxotado e a pobre
figura de David vitorioso sido representado na transfiguração de uma raquítica
mulher de meia idade, quando o rapaz se estatelou no chão, sem a bolsa e de
olhar primeiramente atordoado de surpresa. Mas o sr. Flibas, os policiais e a
história já sentenciada de sua vida, sabiam, ao ver num ângulo apical e em
preto-e-branco na imagem gravada, que a conclusão não havia sido essa. O
movimento da funda tinha sido feito, não com precisão suficiente, e a pedra
passara em direção perdida alheia à cabeça do Golias. O mal não se evadira, se
levantara em suas orgulhosas e ofendidas pernas juvenis, fitara com um ódio
transfigurador o que tinha pela frente, e acertara em Enrietta um murro
carregado de fúria que a fez cair instantaneamente sem vida. Foi isso que o
laudo do instituto médico legal declararia para o inquérito, um murro tão bem
dado que partira seu maxilar e lhe causara uma hemorragia cerebral instantânea.
Essa aberração fria, asséptica e sem transcendência o fazia ter pensamentos
absurdos como achar que era uma sorte ela não ter sentido a série de chutes que
o criminoso dera em sua cabeça em seguida. Não queria se lembrar daquilo,
daquela cena registrada nas fitas da caixa da panificadora; os agentes
policiais tocaram-lhe nas costas e pediram gentilmente que se retirasse,
enquanto um deles dava o sinal para que desligassem o vídeo, mas já era tarde,
por distração todos estavam de frente à televisão e a cena continuara a
transcorrer, cada um afundado em seus pensamentos, confusos diante a análise
que tinham de fazer diante algo que a tecnologia destilara até uma seca trivialidade,
desinflando através da repetição a brutalidade de um assassinato absolutamente
desproporcional e vazio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> O sr.
Flibas seguiu a recomendação do policial e passou pela porta até o outro lado
da pequena sala de perícias, onde a efervescência de uma delegacia de policia
continuava à toda com algumas pessoas sentadas à espera de que fossem
promovidas de seres congelados no interstício entre a ação e a captura para o
centro de interrogatórios pormenorizados, ao que alguns deles responderiam com prontidão, como se narrassem eventos cometidos não por eles mas
por desconhecidos tomados pelo ensandecimento; outros iriam se calar com uma
fúria concentrada; outros não falariam nada com nada, perturbados pela química
ou pela loucura do excesso de afronta que a vida lhes fazia. Seus olhos aturdidos
pousaram por um longo momento em uma mulher que estava em uma das cadeiras
ligadas por uma barra de aço embaixo, sentada em uma pose inusitada, como se seu corpo
não tivesse apenas um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura ou algo
em torno disso mas fosse extenso o suficiente para atravessar pelas outras
cadeiras numa declarada provocação. Mascava chiclete, era morena, cabelos
crespos, ensebados e juntados em feixes pontiagudos revelando uma série
de cuidados cosméticos tentados sem nenhuma resposta satisfatória e
deixados assim como estavam, inóspitos, irregulares, um quebra-cabeça; aliás,
ela percebera que era alvo da deseducada atenção do sr. Flibas, através da
percepção da presa que costuma saber da presença do predador
através de radares sensoriais sutis, e por isso ela parou de mascar o
chiclete; o corpo, que emitia um movimento barcolejante, levando a perna cruzada
acompanhando a linha da outra perna até onde ficava o limite da cadeira de uma
outra mulher mais velha sentada a seu lado, se interrompeu, e seus olhos foram
se iluminando de algo que parecia uma intensidade furiosa emitida à distância
de dentro de uma caverna, o que faria seu observador cogitar se de
dentro pularia uma fera atiçada ou revoariam criaturas noturnas acuadas
em busca de outro refúgio. O sr. Flibas a via, mas não a enxergava; sua mente
estava desbaratinada; um enorme cansaço como jamais sentira antes afundou seu
peso em seus ombros, de forma que ele se encolhera e seus braços
retos e desamparados sentiam a necessidade insurgente de abraçarem alguma
coisa, nem que fosse seu próprio corpo. Seu cérebro sofrera uma pane,
deixando os membros que tinham a obrigação de comandar a seus próprios
domínios, e, em consequência, era como se sua alma partisse por um instante, o
que ocasionara deixar seus olhos firmemente presos no último objeto em que se
sentaram. Os policiais foram buscar um laudo para que ele assinasse e o
deixaram ali, tomado por uma insípida vontade de
desaparecer. Algo estava muito errado com o que estava acontecendo. Ele não
merecia aquilo. Não, não; não era uma questão filosófica, não era uma
reivindicação moral, que isso ficasse nos livros, nos compêndios e nos
tratados, ele pouco se importava com eles; o que exigia em um destemperado
silêncio era seu direito de não ser interessante, era seu mérito em ser
invisível, era que a lei cumprisse sua obrigação sobre ele no antigo acordo que
ele fez em não imolar o mundo, em não querer do mundo nada a não ser a sua
porção satisfatória ínfima e cabível para que levasse sua vida, estendesse
complacente sua não competição no jogo e fosse deixado em paz; sua animalidade,
porque ao menos seres como ele e Enrietta tinham o direito de perfazerem seus
anos em exílio pacífico, não chamando a atenção daquela fúria tão
ocupada e sequiosa do mundo. Mas, como se o mistério inquirido não aceitasse
mais capitulação, seu devaneio foi quebrado pela pequena mulher, que se levantara
agora da cadeira e avançara para o sr. Flibas, os braços formando duas asas com
as mãos na cintura, os olhos arregalados, a boca cuspindo chispas de
impropérios por entre cacos de dentes amarelos. O sr. Flibas olhava-a com
tênue estupefação, como se aquilo não condissesse com alguma linha de lógica
que ainda se prestasse a envolver aquela zona da realidade, e a mulher
esmoreceu, percebeu seu abatimento, provavelmente sentiu através dos canais
telepáticos dos grandes sofredores o inferno que lhe ia por dentro e parou,
silenciou de uma vez; voltou seu corpo miúdo e se sentou com uma nova
integridade, como se o que vira no sr. Flibas, em sua apatia, exigisse dela uma
postura respeitosa. O sr. Flibas vira que era uma menina ainda.<o:p></o:p></span></div>
<br /></div>
charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-12594668059758023982020-04-10T15:20:00.003-03:002020-08-05T07:35:30.054-03:00A cadela<div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-iCOrIs1-tJ0/Xt7WrqKbtMI/AAAAAAAAGlw/i5GOy4EG_LkQtorPEPvACyVdtQpjn_MpACLcBGAsYHQ/s1600/413ebf4ce4e83666c4f7f1d11d9465d5.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="650" data-original-width="489" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-iCOrIs1-tJ0/Xt7WrqKbtMI/AAAAAAAAGlw/i5GOy4EG_LkQtorPEPvACyVdtQpjn_MpACLcBGAsYHQ/s400/413ebf4ce4e83666c4f7f1d11d9465d5.jpg" width="300" /></a></div>
<span style="line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
Os dias tinham uma oligarquia própria e os domingos eram os
reis depostos, os monarcas guilhotinados da cosmogonia sem surpresas da semana
de Timos. Quando era jovem, odiava os domingos, que eram dias em que sua
independência ficava ainda mais longe de ser conseguida porque tinha que se
subordinar à vontade da viagem da mãe, ou dos encontros protocolares com alguma
namorada. Agora, aos 38 anos, esses dias lhe pareciam o que na verdade eram,
mas estava distante da possibilidade de visão do homem citadino: eram encaixes
lógicos do mecanismo, recortes da perfeição matemática do objeto obscuro e sem
sentido da prisão da rotina. Trabalhar, transportar-se, apetites reativados,
colheradas, coito, e depois, trabalhar, se deixar levar pelos ônibus com o odor
acidulante da graxa passada por cima de camadas de suor que nenhum alvejante
conseguia limpar. E aqueles dias imóveis, iluminados como se para sua
realidade brutal fosse atenuada, entrepostos como guardas eunucos em cima do
parapeito de um castelo. Restava em Timos a resignação contra o caráter
acachapante dos domingos que era sempre conseguir transformá-los em inspiração
para músicas ou letras baratas, nas simulações solitárias de que tinha uma banda de rock. Uma abstração fundamentada em olhá-lo não
diretamente mas por vias distorcidas, de maneiras que podiam ser representados
por rostos femininos escorados na janela, lânguidos corpos seminus em sacadas áridas.
Naquele país os domingos atrelavam-se a golpes, mas nada os tornavam mais
detestavelmente mortíferos do que serem o dia primordial dos péssimos programas
de televisão. Sua mãe e ele nunca assistiam a esses programas, que em sua
infância ele recordava como aberrações de velhos vestidos de palhaços e
dançarinas de <i>colant</i> com sorrisos
vazios. Onde quer que fossem, a televisão estava sempre ligada, armazéns, barbearias,
alguma eventual visita a familiares. De modos que era impossível ficar longe
daquilo. E nos domingos a alma do país, incorporada na sacralidade vicking do
futebol, passava na tela no desfile dos guerreiros de shorts e camisetas
coladas posicionando-se para lutar pela nação, ou por uma das tantas partes da
nação que se digladiariam umas com as outras na dramatização de uma guerra
civil que fora daqueles ensaios nunca existira. O futebol lhe causava
indiferença da mesma forma que os pastiches de auditório, mas aquilo acabou por
se escorrer para dentro dele, ou, antes, escorrer para dentro do modo como ele apercebia aquele rei gordo e decapitado que estava na linha de sucessão
perpétua às segundas-feiras matronas, às terças-feiras beatas, às
quartas-marinheiros deixadas em terra firme, às prometedoras quintas-feiras dos
filósofos socráticos que por sua vez eram substituídas pelo ar da montanha das
sextas-filósofos germânicos clássicos e pelo sábado-existencialista. Ou algo
assim, Timos nunca catalogara a sequência além de uma piada silenciosa e
vagamente cerebral. Mas os domingos sim se encaixavam como uma luva à figura de
monarcas caídos. Um palácio de Versalhes em ruínas sobressaía-se como um fogo
fátuo às praças desertas da cidade.</div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele fizera um chá preto e o tomava de frente à
janela, olhando a rua deserta por onde passava uma procissão de cachorros.
Uma esfarrapada cadela marrom, acostumada com uma vida sem eufemismos, se
mantinha séria e concentrada à frente deles. Não fazia que não via os seis ou
sete cães miseravelmente fanatizados dentro do raio de sua vulva
inchada, mas realmente não tinha tempo para notar à turba mais do que veria algumas moscas que a incomodassem. Timos observava as grades
das sacadas dos prédios em frente, os jornais arrastados pelo vento pelas ruas,
o sol projetando-se com a falta de estímulos regimental de um funcionário
público nas vitrines, quando os cães surgiram. Dobraram no alto da esquina
à esquerda e vieram se aproximando em uns trancos desconjuntados e
desgraciosos, se chocando como um só organismo de múltiplos pés e cabeças
contra as paredes e uma lata de lixo, até que entraram de vez no seu campo visual pegando um tanto do deleite de sua distração para si. Uns cães
inteiramente motivados por um propósito, com exceção da cadela, que estava
inserida na vida com as quatro patas. Os machos pulavam-na, cheiravam sua
vulva, às vezes um entrava na dimensão solipsistas do outro e era rechaçado por
um rosnado e uma mordida, enquanto ela focinhava a sarjeta,
vasculhava debaixo das lixeiras, parava um instante para olhar ao longe do
outro lado da rua, como uma matrona atarefada olhando se o açougueiro abrira o
açougue, e depois seguia, lascando suas mordidas e reclamando daquele
contratempo ridículo que lhe estavam causando. De repente, com uma fortuidade astuta, um dos machos galgou suas ancas, sem pressa, deslizando-se na lei
milenar que lhe autorizava a isso, e começou a encaixar o projétil rosa
desbotado que tinha como pênis por entre as almofadas tesas e vistosas do sexo
dela. Isso pareceu acionar alguma antiga lembrança na cadela, como se uma frase
ouvida de algum passante a fizesse se lembrar de algo importante que indesculpavelmente havia esquecido, mas tal sensação passara rapidamente e
ela sentiu a velha coisa exigindo entrada em sua velha porta de acepção e
imediatamente ela virou a cabeça numa versatilidade que se servia de um bem
moldado feixe de músculos e tascou uma mordida de extrema ferocidade na orelha
do cão. Este, apesar de ser um pouco maior que ela, e bem mais jovem, pulou
fora e ganiu com um desamparo que parecia pedir justo à sua agressora algum
piedoso refúgio maternal. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Timos sorvia
o chá e olhava com inesperado interesse àquela quebra de continuidade do
cenário. Não eram felizes, nem os famintos e obcecados, nem a fêmea atarantada
pelos arranjos da sobrevivência. Ele adorava cachorros, mais do que gatos; ou
não, fizera uma curva proibitiva em seus gostos e passara a gostar de gatos
tanto quanto gostava de cachorros, mas compreendia porque os muçulmanos julgavam cães animas imundos. Eram os mais humanos dos animais no sentido da abjeção e
da libido, e, ao contrário do homem, que disfarçava suas lástimas higiênicas
escondendo-as em tecidos e perfumes, toda a selvageria da natureza transparecia
em seus pelos. Deus parece ter tido piedade dessa sua criação pois retirou dela
a tragédia de suar pela pele, limitando a fazerem isso pelas almofadas das
patas. Do contrário, o grau de degradação seria tão grande que vai ver não
teriam sobrevivido, a evolução teria acabado com eles como fizera com as aves
de escamas, ou teria destinado a eles, como uma misericórdia ocasional, uma
região insular própria, como fez com as equídeas. Continuou olhando a matilha
por algum tempo mais, já sem prestar atenção, e seus pensamentos planaram sobre
cães e gatos, imaginou se o professor doutor que morava no andar de baixo teria
um gato, não era a cara dele, mas se algum dia se deparasse com um siamês gordo
e cinza identificaria imediatamente alguns pontos de atalho para se chegar a um
núcleo recôndito da personalidade dele. Um gato com um nome de um filósofo, ou
quem sabe de algum obscuro e muito específico historiógrafo de alguma guerra da
Europa medieval que se ele desaparecesse com seus livros e alguma estante de
uma faculdade pacata pegasse fogo estaria esquecido para sempre. Um gato
chamado Kant, Timos pensou, sorvendo o chá ainda bastante quente e olhando a estoica
cadela atarefada dobrar a esquina seguinte, sumindo daquele setor do universo
que coube a ele registrar na memória, naquele domingo desterrado do infinito,
como diria Baudelaire. Um dia teria o ânimo para bater à porta do professor, na
maior cara dura, e violenta-lo com uma conversa? Um dia veria o sedoso gato
vernacular, com seus bigodes obsidianos e seus olhos carregados de um tédio
avaliativo deitado em cima de um livro em capa de couro?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Saiu de
frente da janela e voltou para as sombras do quarto. Era hora de acender a luz.
As unhas defuntinas do domingo se alastravam por cima da cama, como um ator
alquebrado de um filme alemão dos anos 20. O domingo ia embora e Timos mais uma
vez saiu ileso dele. A cabeça acostumada com a luxúria da coroa rolava pelo
cadafalso e nada acontecera, nem uma revelação, nenhuma notícia desagradável.
Perseverou com a luz apagada, olhando as cobertas revoltas no colchão da sala,
uma revista de filmes aberta por sobre a poltrona de couro, o abajur parecendo
uma pirâmide tailandesa ao lado, verde musgo no meio do escuro por sobre a
escrivaninha que continha um palimpsesto das contas de luz e extratos
bancários. Atirou a revista por cima do colchão, comprada na livraria do
shopping quando comprara uma lote de resmas de papel para escrever seu tratado,
e se sentou. Não queria escrever. Escrevera por horas seguidas naquela tarde, e
era por isso, segundo a crença de seus instintos, que o tempo correra tão
depressa. Se escrevesse um mês sem parar, com pausas apenas para se alimentar e
realizar suas necessidades básicas, quanto tempo pularia para o futuro? Sentia-se
leve, a mente latejando, agradavelmente sem ideias, se permitindo um estágio de
afasia idiótica, como se tivesse cumprido seus deveres com o que determinava a
razão de sua existência e agora estivesse no crédito. Em certo momento em que
fazia a síntese mais concentradamente costurada do que ele sabia sobre a
tirania, viera-lhe a dúvida de se aquilo tudo não era um engodo auto motivado.
Se tudo aquilo não era apenas uma brincadeira, como ele fazia no pátio do
prédio quando era criança. O que havia para dar legitimidade ao que ele
retirava do profundo de sua alma e depositava no papel? Apenas o fato literal
que comportava nesta frase, o fato de ser algo que ele acreditava profundo e
vindo de uma abstração que ele tinha que acreditar para justificar não ser
apenas um gorila destrinchando uma folha, isso que ele chamava de alma. Mas
continuara escrevendo, continuara seguindo aquela vontade que funcionava mecanicamente.
Se era a alma, era podia render através de espremidas constantes da mesma forma
que uma madeira rende sob o fornilho ou a vaca produz sob o empuxo da mão que
ordenha. Era um ponto de conexão com a matéria que tornava a alma muito
suspeitamente uma imaginação de uma glândula. E o cansaço beatifico que o
manuseio bruto da alma causava aumentava essa impressão. Se isso fosse verdade,
ele percebia o paradoxo que era destilar o que lhe parecia o sumo mais refinado
da alma e coloca-lo como pensamentos no papel e a própria fisiologia da alma
dizer que sua carnalidade pura autorizava todo o tema de seu trabalho. A alma
sendo glândula a tirania e a própria miséria inescapável da história seriam o
que há de mais natural, a disputa a céu aberto que acontecia na caravana de
dias iguais seria a razão da existência, sua força combustiva, sua bateria
solar de energia inesgotável. Tudo que ele estava escrevendo e os séculos de
poesia seriam inúteis, todos seriam apenas crianças brincando no pátio
simulando que era uma floresta. E tudo indicava que a verdade era essa. Era
essa a verdade, Timos falou em voz alta, analisando a textura de suas palavras
para ver como soaram. Schopenhauer teria uma voz cinzenta, depravadamente
alcoólica, abnegadamente feliz saboreando essa verdade como um ácido cítrico
excessivamente azedo na língua. Enquanto sua voz soava apenas como um cidadão
sem muitas impurezas a não ser as horas que o separavam do banho de ontem, sem
nenhum pecado. Schopenhauer seria a cadela no cio já em um estágio de pureza de
sofrimento que não tinha tempo de se ligar a uma penetração anal ligeira. Não
era certo falar assim de um busto tão reverenciado. Ainda que o velho alemão
gostasse muito de falar umas sandices para as prostitutas que levava para seu pequeno
quarto. Ele deveria sentá-las no colo, uma em cada perna_ porque o regime
almático de metafísica desconstruidora deveria lhe dar uma libido imune à
idade_, e dizer algo sobre Hegel, como aquele honorável professor de voz
pausada, tendente ao agudo feminil quando lhe despertava o ódio ao um de seus
discípulos fieis fofocar que o professor sem alunos e velhuscamente alquebrado
andava dizendo barbaridades sobre ele, aquele grande pensador limpo e bonito,
bem criado nas artimanhas da vida fútil burguesa para ver a desgraça a que tudo
se dirigia infatigavelmente em um prazeroso conforto. Deveria rir para as putas
enquanto o imitava, e se tinha algo que o Schope era bom era na arte da
maledicência, e elas riam de volta com suas carinhas sacanas olhando para ele
entreabrindo os olhos de lascívia, sem entender nada do que ele dizia mas
sabendo que era o veneno depurado mais mortal do mundo. A velha cadela do
Schopenhauer. Riu alto ao saborear a descompostura e deselegância da frase.
Daria o título de um ensaio, desses que a gente usa para suicidar a carreira e
procurar a fênix que iria nascer no lugar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Não sentia a
mínima vontade de averiguar o que escrevera. Estava tudo no computador, 17
páginas em fonte colibri e tamanho 16. Apesar de tudo, sentia que tinha voado
sobre uma região aprazível, sentira o vento da tundra e o gelo onde os lobos
corriam embaixo. Uma glândula era o tesouro da biologia. Havia tanto desejo
nela, tanta previsão de mundos, tantas utopias redivivas e eternas que se
repetiam como um cacoete passado de avô para pai e de pai para filho. Não
adianta resistir a ela nem com toda a lucidez científica do mundo. Um glândula
comportava algo do porvir do homem na última escala da evolução, sua mesma
asfixiante felicidade e sua mesma resignada tristeza.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>A caneca
estava vazia. Testou a garrafa para ver se caia uma última gota de chá, mas ela
estava vazia como se um vento do deserto a tivesse exaurida enquanto pensava
todas essas coisas. Estava vestido de calça jeans, camiseta e um pulôver para
se proteger do frio, e usava meias marrons finas nos pés, descosturadas ao
longo como espinha de peixe. Esticou as pernas, espreguiçou-se estendendo os
braços até o limite, e sentiu um desejo de dormir, dormir como nunca fizera depois
que crescera, dormir como quando dormia na infância, atarefadamente, com
compromisso, em busca de resultados conhecidos. Sabia que não era mais apto a
esse tipo de desligamento, por isso se deixou cair em cochilos na poltrona. Era
uma poltrona muito boa, que sua mãe lhe dera da sua biblioteca particular.
Chama-se poltrona do papai, ela disse, quando ele a visitara e ela lhe levou
onde estava “algo que não lhe servia mais e queria lhe dar”. Viu aquele objeto
tão espetacularmente feito para descansos inauditos e a quis de imediato. Raras
as vezes acontecia isso de não ter o que confrontar aos agrados de sua mãe, por
isso ele se calou, olhando o feltro macio desgastado, a plataforma de se
encostar as costas, da cabeça aos pés, se inclinando em um v que se alteava nas
extremidades e que deveria ser como deitar nas nuvens. Era velha, olhando para
ela tinha-se a impressão de que seu tempo de uso gerira alguma trave quebrada
entre o esqueleto de madeira escondido por debaixo da pele, e o tecido estava
esgarçado, com fiapos alteando-se para o céu de brinquedo que comportaria
aquelas fogueiras de felpo congeladas na cena após as tribos nômades terem-lhe
abandonado. Tá bom, mãe, eu vou levar. Aquele presente entrara-lhe tanto no
gosto que não raciocinara que era impossível leva-la nas costas até seu
apartamento, exigiria um procedimento de mudança, homens fortes a carregando
pela porta, um caminhão no qual ela iria para o outro lado da cidade. Queria
ela naquele momento, às sete horas da noite. Como fora possível que não a vira
antes? Fazia tanto tempo que não visitava a mãe? Sente-se nela, veja se é o seu
tamanho, ela disse. Ele titubeou olhando-a com demora, ficou sem jeito e riu
encabulado, daí passou uma perna por sobre os braços cantonados do móvel, de
maneira pouco inteligente e improdutiva, cuja finalidade só poderia ser uma
distensão dos músculos da virilha, e, quando viu que havia feito besteira deu
um pulo por sobre ela, se segurando com uma mão no assento, e pôs o corpo por
sobre ela, afundando levemente, cruzou os pés e ajeitou a cabeça por sobre as
mãos lá em cima, no encaixe para a cabeça. A desembargadora riu, talvez lhe
voltara algum fragmento de 30 anos atrás, algo terno e que trazia alguma
centelha de culpa pelas recorrentes desistências de sua parte em avaliar, algo
solto na prancha onde as lembranças mais importantes e necessárias ficavam
grudadas. Pegue aquele livro do Kipling para mim, ele lhe pediu, apontando para
a terceira estante de mogno, a encomendada por último porque a tinta vermelha
sanguínea demonstrava ser recente, recente na escala de sua mãe de dois anos,
encostada nas sombras rembranteanas que toda biblioteca doméstica tinham, o
Kipling da coletânea de contos de terror, aquele livro que ele amava infinitamente,
e que como todo amor infinito ele não trazia seu objeto junto a si por onde
andava, porque sabia que o amor para esses pequenos gigantes fundamentos de sua
alma eram reecontrados após longos anos de abandonos e justo em momentos
memoráveis. E aquele era um momento memorável, ela retirou o livro da estante,
sem deixar tombar os outros que lhe avizinhavam (sempre muito perita com o uso
do corpo, quem ele havia puxado em sua falta de charme e sua total falta de
economia gestuária, já que seu pai também era como um Nijinski dos atos
cotidianos, que pegava uma xícara de café da cafeteira como se fosse uma espada
samurai de porcelana), e lhe entregara. Quando ela saiu, ele abrira no conto
“Eles”, sobre as crianças fantasmas no jardim da senhora inglesa cega, e no
final do segundo parágrafo, quando o impressionado e ostensivo Kipling passeava
com seu automóvel à combustão, uma invenção caríssima e recente, ele caíra em
um sono absoluto.<o:p></o:p></span></div>
<br /></div>
charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4288430065630087860.post-63412344160819586752019-03-24T18:44:00.003-03:002023-10-09T14:00:53.993-03:00Vislumbre de uma estação <div dir="ltr" style="text-align: left;" trbidi="on">
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-size: 16pt; line-height: 115%;"> </span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://1.bp.blogspot.com/-MV28hoEo4Sk/XJf5IZdUpCI/AAAAAAAAGg8/Vxj980MVnGoDGDhA_lMkyTZRpAJuCMQIACLcBGAs/s1600/20190324_183429.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1600" data-original-width="961" height="400" src="https://1.bp.blogspot.com/-MV28hoEo4Sk/XJf5IZdUpCI/AAAAAAAAGg8/Vxj980MVnGoDGDhA_lMkyTZRpAJuCMQIACLcBGAs/s400/20190324_183429.jpg" width="240" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><br /></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;">Timos passou a noite em sonhos estranhos. O que mais
o assustava era que ao acordar pouco se lembrava deles. Antes era
fácil. Bastava que aquele ocre mundo em perspectiva lhe enviasse algum sinal, geralmente quando fazia o chá ou olhava pela janela a rua aos
poucos se acendendo, e com base nessa pequena distração do lado de lá quanto ao
zelo de seus segredos ele seguia a pista e quase todo o sonho lhe
aparecia de volta, como se o lacre não funcionasse bem e ficasse uma abertura por onde algo mais passava. Agora
não era mais assim; necessitava de muito esforço, mas esforço nesse assunto era uma ofensiva inútil. Achava que não era porque estivesse envelhecendo;
algumas poucas coisas melhoram com a idade, e a aproximação dos outros
elementos do sono deveriam fazer com que as apreensões de quando estava lá não
fossem barradas de modo tão definitivo ao acordar. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Quando preparava o chá
preto veio-lhe uma fagulha do que era, um estampido que espalhava luz e que a
mancha em negativo revelava. Era sobre sua avó. Nunca sonhara com ela,
nem quando era criança e ela, de certo modo, exercera uma influência factível de lhe impressionar; e nem quando morrera há oito meses. Ela morreu
com 92 anos. A mãe de sua mãe. Chamava-se Mircéa. Tinha sido governanta nos EUA. Trabalhara com nomes importantes e pagavam caro pelos seus serviços.
Quando voltara, após 50 anos que teriam rendido um livro de memórias fabuloso_
e, dependendo do grau de rancor que sua misoginia estivesse com a condição
humana, bastante desiludido_, a vida se tornara para ela uma comunhão
inexorável entre o tédio e a mesmice. A família aprendera logo a não usar com
ela alguns dos atos sociais; perguntar sobre sua saúde, por exemplo, era cair
na armadilha de ouvir como resposta a alma encarnada em uma senhora de um
filósofo classicista alemão que não tinha nenhuma digna gratidão pela
longevidade. Ela perfilava uma série de queixumes sobre doenças com minuciosa
exatidão que fazia o interlocutor pensar o quanto a literatura do rancor perdia
por não existir o tal livro de memórias. Sua avó e Schopenhauer; era uma espécie
de Thomas Bernhard cuja Áustria cínica e repugnante que tinha para purgar era
seu próprio corpo e os dias incontáveis que lhe restavam pela frente e que
voltaram a ser tão asfixiantemente longos como os da infância. A última vez que
Timos a vira, em um aniversário de 3 anos atrás, ela se recusara a olhar para
ele quando algum parente engraçadinho lhe perguntou se ela se lembrava quem era
aquele rapaz. Ela respondera, com uma lápide de mal humor que azedaria até o
canto dos pardais se eles houvessem pela janela, que aquele não poderia ser o
Timos que ela conhecera, tão lindo e arthuriano, e se transformara nesse
bolchevique barbudo e mal encarado. Foram estes os termos que ela usara.
Empregava um timbre de voz reticente, como se tudo que o mundo lhe emitia para
que ela o conceituasse não merecesse senão aquele hausto de fôlego fissíparo.
Timos sorriu, admirado por aquela estética altiva, e se sentara em silêncio
duas cadeiras longe dela. Ficara magoado, de certa forma. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> A avó tinha sido um
exemplo de vida para ele. Um de seus discursos mentais quando o assunto era a
crítica desiludida do padrão familiar de ganância por posição social e dinheiro
e por cortejos sexuais de todos os estilos, era na avó que Timos pensava, em
sua aspereza, sua concentração, sua corajosa disposição em não fazer parte do
mundo óbvio e brutalizado. Sua mãe lhe contara que tivera pouco contato com ela
quando era criança e mesmo na adolescência o círculo fechado com censuras
atemorizantes contra a mulher que abandonara os filhos criado pela esposa
substituta do pai (e pelo silêncio omisso dele) não lhe permitia que tivesse um
real contato com ela. Você nunca pensou que teria se identificado com ela?,
Timos perguntara à mãe. Ela o olhou com os olhos acendidos pela incrivelmente
não cogitada ideia e negou, talvez para não dar o braço a torcer por aquela
obviedade da qual não suspeitara, e a seu favor disse que Mircea se esvaziara
dos sonhos e da ilusão necessária à vida, em prol de um regime espartano de
pureza que a transformava cada vez mais em uma misógina insuportável. A irmã de
sua mãe, a tia Alda, havia adotado uma menina alsaciana e a velha falava pelos
cantos sobre o derrisório tom oliva da pele dela, o que era sabido por todos. E
a avó desprezava com veemência incontornável o prosaísmo daquele povo subdesenvolvido
da cidade, tão avesso a atirar o lixo na lata de lixo e não nas calçadas e
incapaz de dirigir um carro de modo minimamente não homicida. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Timos levava
essas coisas como desabafo de uma mulher que exigira o divórcio numa época em
que isso era a heresia inaudita que deveria servir a reerguer as fogueiras calvinistas
na mente de todo mundo, quando descobrira a rede de concubinas que seu marido
alimentava. As pessoas a admoestaram, viraram as costas para aquela esnobe
embrutecida pela ilusão de casta que seus diplomas de pedagogia lhe incutira, e
ficaram do lado do injustiçado esposo, o patriarca de cabelos colados à moleira
da cabeça por vaselinas Iliodora e de bigodes perfumados que a maledicência
popular jamais assimilariam dentro da visão pejorativa do cafajeste barato que
seduz pobres arrumadeiras de quarto, mas sim como a estampa que necessariamente
há de se ter um doutor farmacêutico que respeita tradicionais normas de higiene
social. A mãe não a chamava de mãe, só Mircea, o que, com os anos, ia apegando certo
desconforto e o nome ganhava na boca das filhas refratáveis um peso excessivo,
como se em vez do nome daquela mulher que suportara tanta solidão e se
demonstrara ser uma rocha de vontade e persistência estivessem repetindo a
alcunha de um demônio que já não as aterrorizavam. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Naquelas cartas, Timos disse
à sua mãe, sobre os gordos pacotes de folhas amarelas apergaminhadas que
Mircéa, inesperadamente, começou a enviar dos EUA para ele do nada, cheio de
pensamentos recolhidos e retumbantes, naquelas cartas ela não se mostrava dessa
maneira sem vida; pelo contrário, ela me contou tudo do seu ângulo de visão, o
que acontecera entre ela e meu avô para que ela atingisse tal ponto de
escolhas. A desembargadora jamais permitia que falassem contra seu pai, o
icônico e estranhamente canonizável pelos tantos pecados que tinha boticário,
era a fraqueza reservada para sua mãe ter entre as tantas qualidades de vulto
de sua inteligência e sua independência. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> A mãe o olhara com o cenho já
posicionado para exigir que ele mudasse de assunto, tendo retido a colherzinha
na xícara de chá, mas Timos trafegou espertamente para um atalho. O avô se
casou com a empregada, não se casou?, depois que Mircéa saiu de casa e
atravessou o oceano para a América, havia uma madrasta na sua casa, não havia?
Então eram fatos, a desembargadora não podia ir contra eles, eram notícias da
narrativa da família bastante conhecida e já chegando ao estágio de não ter mais
quem sentisse vontade de examinar mais o assunto. Pois nessas cartas, Mircéa
falava das agruras do novo mundo, da estranheza que era falar uma língua que
ela aprendera na academia por questão de ler os volumes de educação
internacionais não traduzidos no país, mas que agora ela tinha que utilizá-la
para sobreviver não mais com a cultura, mas com a subserviência doméstica,
saber como se fala polidamente com uma madame casada com o mecenas das pias de
banheiro de porcelana Avidecent, ou como lidar com o rosto gargulino do agente
de emprego que lhe pergunta quais as condições de contrato que ela leu no
formulário 25 estariam de acordo com sua capacidade de mão-de-obra, se sua
instrução era de grau 4 ou 9, se ela sabia o que era uma comunhão de direitos
empregatícios em que um casal em litígio de separação receberiam-na na casa em
horários diferentes para não terem que se ver nos momentos mais delicados da
questão judicial. E ela voltava para casa depois dessas aventuras sombrias,
atravessando as ruas geladas de geometrias que deveriam lhe oprimir por se
sentir apequenada naquele universo prisional que lhe lançara muito cedo um
destino que pouquíssimas pessoas conseguiriam suportar. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Você já pensou por que
ela mandava essas cartas para mim?, Timos perguntou, e a mãe, nunca querendo
ser engolida pelas sugestões perigosas que a falsa simpatia do filho abria
naquelas vastas visões panorâmicas, sorria e dizia que era porque ele era o
único que ela não conhecia para odiá-lo. Você tinha 13 anos e ela ainda não te
conhecia, só foram se ver dois anos depois, quando ela retornara para cá. Pois
eu sei, ele respondeu, o tom triste e extasiado ao mesmo tempo, o que não era
um oximoro impossível na prática quando ele já antevia a alegria que lhe
causava quartos solitários em um dos quais era o quarto do apartamento da mãe
em que ele abria as cartas da avó e as lia com uma atenção perfunctória, como
se o amarelo inusitado da folha alimentasse a impressão de que desvendava uma
segredo faraônico reservado apenas a ele. Tudo bem, Timos, e mãe, que havia
tomado o chá talvez mais rapidamente que em uma situação em que o espírito de
revisão das anistias mútuas de todos os envolvidos não estivesse tão
alardeante, enxugou as mãos em um pano de prato após lavar a sua xícara de
carrara e se voltou pronta para ouvi-lo com exímia atenção, mesmo que isso
pudesse envolver passagens do discurso que poderia por o dia de comunhão entre
os dois em ruínas. Timos a olhou fundo nos olhos_ essa conversa acontecera há
20 anos, como tudo na vida do progressivamente distante Timos parecia ter
ocorrido_, as pupilas tremendo e as mãos crispadas em um gesto teatral
shakespereano, um tanto inconsciente nele para que se importasse com o
ridículo. Ela sabia que eu era o primeiro da nossa família a nascer livre, ele
disse.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Ele era ainda
muito jovem para ter dito isso. Teria acreditado mesmo nisso em algum momento
da juventude, naquela falácia tão fácil de cair mesmo os espíritos calejados?
Livre de quê, se ele estava na fila da consumação em passo lento e regrado para
fazer o mesmo cronograma que todo mundo. Fez sua faculdade, ingressou-se em uma
escola ouvindo o eco daquele coro repetido à exaustão de que melhoraria os
índices educacionais do país, e só encontrara a mesma falta de horizontes,
alunos basbaques sentados com nébulas de distrações nos cérebros, dispostos a
soldarem os ouvidos e se entregarem ao mar infinito de aberrações da mentira.
Para quem então sua avó escrevia? Quem ela fantasiava que algum dia aquele
menino ectoplásmico que alguma vez deveria tê-la visitado em sonhos se
tornaria? Um filósofo, um eremita, um médico, um advogado. Não conseguia
acreditar que no fundo daquela renitente esperança dela houvesse a imagem de um
adulto misógino e arredio, e aqueles fossem seus ensinamentos de como odiar o
mundo com suficiente estilo. Manual do rancor da senhora exilada, da diaba
branca da família que andava pela vila nas noites de lua cheia atrás de sua
filha diaba desaparecida. Por detrás daquele ensejo havia sua última fé de que
a criança que a lia de alguma forma não seria contaminada por suas palavras
amargas, sua apreensão sufocante da realidade de presídio de toda a terra.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Ela
destilava sua ira, exsudava um tanto do fel de seu desespero calibrado no
papel, mas não queria que o menino fosse intoxicado. Era o paradoxo da
condenada que joga suas cartas pelas grades do presídio supondo achar o ouvinte
perfeito, e entre tantos andantes pelo muro do lado de fora ela havia tido a
sorte rara de ter à sua inteira disposição um mensageiro já pronto, já
visualizável com alguma exatidão entre a névoa de sua utopia. Ele não soube
dizer isso à mãe, mas a mãe entendeu bem o que ele queria dizer. Ele
interpretara que ela lhe ouvia com uma aquiescência aceitando a sua
exclusividade cheia de expectativas no caminho diferente que ele seguiria para
não se tornar um boçal, achava com orgulho que botara a desembargadora no
chinelo e mostrava a sua originalidade predestinada, o segundo membro da
família, ele e a avó, que romperiam para si o muro do dogma escritorial em que
os outros estavam trancados do lado de dentro. E os anos se passaram e a avó
não o reconhecera. Depois de todas as cartas, depois que retornara da América e
os dois se encontraram e tomaram alguns sorvetes, e ambos insistiram durante um
tempo em forçarem aquele laço que perdia desamparadamente o laço quando
transposto das palavras para a atmosfera, ela o rejeitara como um traidor, ela
o excluíra de seu hermético clube da dignidade rancorosa que tinha apenas ela
como membro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Antes de ir
para a clínica, na madrugada fria em que os ruídos já eram ouvidos pela ciência
da acústica formada entre canos, cimento, vácuo e pessoas nas ruas, ele se
lembrou do sonho. Havia uma sala ampla, bem iluminada, com uma luz incisiva de
uma série de lâmpadas fluorescentes, paredes brancas e uma ressonância oca e
infinita que revelava que era uma estação de passagem, uma zona de embarque. A
avó estava sentada em um dos bancos largos de metal, solitária como em um
documentário sobre a velhice abandonada. Ela estava vestida com um terno
cinzento, bem alinhado, saia da mesma cor tendendo para o branco, um lenço bem
apessoado no pescoço, um uniforme inglês que revelava uma distinta funcionária
exemplar. Seus sapatos eram escuros e bem tratados, ela devia engraxa-los todos
os dias, mas na posição em que estava sentada, com as pernas juntas em v
lateral, os tornozelos em primeiro plano e os pés enfiados suavemente para
debaixo do assento, revelavam que estavam frouxos nas laterais, como se os
houvesse comprado por engano ou por alguma comodidade econômica um número
maior, como se estivesse cansada, um cansaço malbaratado, como se aquele local
ermo a que ninguém pareceria apetecível a agradasse. Um local que era um
retrato de seu espírito. No sonho ele observava a cena sabendo-se que não
estava lá, a limpidez da imagem sendo transmitido para suas vistas concentradas
como se numa tela, um cinema frio e escuro que cambiava o que sua avó sentia no
exterior da pele por sob o terno estando naquele local. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> O rosto dela estava
desfocado, ou a mente em atividade idílica de Timos não estava sendo totalmente
receptiva no centro da projeção. Ela não o via, os dois estavam mais distantes
que duas galáxias, talvez ela estivesse em outro mundo, no mundo de lá, no tal
reino dos mortos, talvez aquela amostra de sua nova aventura na opressiva
eternidade fosse mais uma das reativações constantes do enigma que esse lado de
cá não se cansa de propor, um novo mistério dentro de incontáveis outros
mistérios que nunca seriam resolvidos porque seu propósito era apenas uma gratuita
enganação. Quem o propôs, se havia mesmo algum jogador, não se preocupava nem
um pouco com alguma lógica coerente, algum resultado que zerasse a equação.
Depois acordara, ou passara para outras questiúnculas que pregara em sua
percepção durante aquele dia e que tentavam por alguma razão absurda se resolverem
na forma de sonhos_ como se a vigília fosse um estágio desacreditado na
ortodoxia da dialética das sensações acumuladas e a resolução do que elas
queriam dizer passassem para a ludismo do sono.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Sua avó não
era só a primeira exilada da família, pelo menos na linha recente dos últimos
cem anos buscados na árvore genealógica, mas também era a única suicida. Aos 97 anos, ela se dera ao luxo de se matar. Até isso foi ao gosto dela, partiu de
seu inteiro livre arbítrio destituído de glamour. Não usara veneno, como
parecia ser a escolha de maior sucesso entre os velhos, pendurar-se por uma
corda pelo pescoço deveria lhe parecer pavoroso e de contra toda a ética de sua
vida, assim como qualquer das outras soluções que desfigurassem o corpo. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Na
certa imaginava que seria uma vingança oferecida em bandeja para todas as
pessoas que desprezara ostensivamente se suas pernas varicosas, sua pele
sensível ao nível de se rasgar por um simples toque, se sua cara sem o
eufemismo da maquiagem, de um azul baço e libidinoso que só se via na carne no
estágio terminal da vida, aparecesse em alguma situação fora de seu controle,
atirado do quarto andar no asfalto, esfacelado por um projétil. Isso estaria
fora de cogitação. Por isso ela resolvera apenas parar de comer. Fechara a boca
não só para as papinhas indignas e as frutas picadas que as enfermeiras
particulares lhe davam, como também parou de conversar. Não emitiu nem o mais sussurrante
som. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> No final do primeiro dia, as enfermeiras telefonaram para a desembargadora
e para o outro filho advogado, tio M. Eles foram para o apartamento e
encontraram-na deitada na cama de solteira, os braços e pernas rígidos da
antiga menina emburrada, talvez era assim que ela ficava na cama de febre quando
sua mãe lhe trazia a sopa, encontraram-na olhando para um ponto só no espaço,
determinantemente não cruzando o olhar com seus filhos ou com qualquer outro
espécime deste mundo pueril em que ela estupidamente, agora via, perseverara em
estar. A desembargadora lhe falou com um tom amável sincero recuperado no fundo
de todo o depósito de atitudes defensivas que tivera contra ela ao longo da
vida. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Não era mais a mulher anacronicamente elegante que tentava falar com ela
no quintal de casa, aparecida como se do nada mas que se tratava de um arranjo
estratégico dos adultos envolvidos para permitir que chegasse nos filhos sem os
espantar, sem os estarrecer; era apenas o resquício do antigo ego poderoso, era
a desistência, era o arrependimento de ter sido enganada sempre de que havia um
pote não de ouro mas pelo menos de um respeito surpreendente e
resplandecentemente novo que os esperassem no fim de toda aquela indignidade
pujante e asquerosa que eles tinham que atravessar sem propósito algum. Era só
uma velha senhora sem mais cartas na manga, sem mais ódios, sem mais rancores,
sem mais disputas, sem mais enfrentamentos para ver se encontrava o palhaço que
iria lhe colocar nos ombros e passear com ela pelo picadeiro circular acima de
todos os outros a escolhida, não mais palavras frias e bem calculadas para
desestabilizar, não mais olhares atravessados que dardejavam pelos cantos, nada
mais disso. Tudo um imenso tempo perdido, tudo um grande exercício de idiotice
em que ninguém nunca era melhor que ninguém, apenas igualmente imbecis. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> E o
filho, o advogado de controle absoluto sobre seus sentimentos, que falava com
uma voz de trovão que treinara durante toda a adolescência e juventude, até
firmar-se como algo natural seu, segurando-lhe a mão e tentando invoca-la
daquele invólucro, falando com uma tenacidade que usava com seus clientes no
escritório, acreditando que naquele assunto exórdio as regras do mercado de
invocação da verdade relativa também funcionassem, era só repetir o mantra
cotidiano. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Chamaram a ambulância e a levaram para o hospital. Dois dias do
mesmo modo, e ela entrou em coma. Os vidros opacos que se adaptavam à luz
ambiente e as horas rígidas para que só os filhos visitassem na UTI cara
impediram, enfim, que vissem a desfiguração inevitável de toda maneira que seu
corpo sofrera, as veias azuis sob a camisola comunal e despersonalizante, os
aprofundamentos zigomáticos da murchação da carne. </span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Timos estava na clínica
quando a mãe lhe telefonara para avisar que a avó morrera. Nunca ouvira a voz
da mãe daquele jeito, tão triste, tão sombria. Ela só falara o básico, não
queria consolações e nem entrar em muito detalhe. Não lhe pedira para que fosse
ao hospital, mas ele sabia que era isso que ela mais desejaria, e ele saiu às
pressas só avisando para Ofélia, que lhe olhou como se a informação de que
tivesse uma avó, e ela fosse humana o suficiente para morrer, o demovesse do
local onde ele estava na zona resolvida em que ela definira com um prego numa
placa de isopor.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="line-height: 115%;"> Na época, quando vestira o casaco e abrira a porta, parando na calçada
para se situar de volta no frio de chuva e vento da rua, passou-lhe pela cabeça
que um círculo se fechava e que seria num dia apropriado que os dois se
encontrariam novamente. Era uma história sem encaixes narrativos satisfatórios
e completamente entregue à aleatoriedade, mas o velho cinismo cósmico, que
muito provavelmente trabalhava em ponto morto, continuava insinuando que havia
um sentido por detrás das desbastadas camadas do enigma. Se tinha uma coisa que
ele determinadamente não desejava era ir ao hospital.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
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charlles camposhttp://www.blogger.com/profile/12363567899344033584noreply@blogger.com6