terça-feira, 26 de abril de 2016

Relendo O fiasco






"A minha mão, livre sobre a superfície do papel, lisa como espelho, teria disparado loucamente sobre os patins da minha caneta esferográfica. Teria escrito, como se quisesse evitar alguma catástrofe_ obviamente a catástrofe de eu não escrever. Teria, portanto, escrito, porque Deus me livre se não escrevesse; teria escrito, para que a cada minuto pudesse amarfanhar o tempo debaixo de mim e me esquecesse do que sou: o produto final de determinações, o náufrago dos acasos, o dependente da eletrônica biológica, o surpreendido displicente do meu próprio caráter." (O fiasco, Imre Kertész, editora Planeta, na tradução do húngaro de Ildikó Sütö.)

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ontem



Ontem fiquei profundamente triste. Ainda estou. Nada a ver com partidarismos, mas reconheço que muita gente que estava apoiada em piadinhas e em críticas ao PT somente viu naquele momento a grande besteira que fez. Acho que bateu um gigantesco arrependimento em pessoas como o Idelber e etc. Nesses últimos meses, nunca foi hora para exercícios de metalinguagem: que o PT mereceu o que teve, que a negligência e a conivência de Lula causou isso tudo, etc, etc, todos nós sabemos à farta*. Faltou a astúcia de lutar por causas a longo prazo para essa boa gente que se diz cerebral; faltou o maquiavelismo a nosso favor. Digo “nosso” me enquadrando entre os tantos e tantos milhões de brasileiros que serão profundamente prejudicados com esse retrocesso: profissionais liberais, professores, funcionários públicos, pequenos e médios empresários, e uma gama outra de pessoas. Ontem ouvi fogos de artifícios tímidos em minha cidade, e um silêncio que logo constrangeu. E então percebi que a ficha caiu para muita gente. É verdade que a natureza humana está condicionada a só ver certas obviedades somente quando toda a terrível suspeita se concretiza. Não vejo com nenhum sentimento de revanche, mas com a piedade comunitária de quem está no mesmo balaio. O que foi feito ontem? Que espetáculo de bizarrice! Nossa versão empobrecida e horrível de Hieronymus Bosch. Quanta podridão e hipocrisia! De novo me veio a lucidez atordoante do pensamento: “nós brasileiros estamos absolutamente sozinhos”. Nós todos, de todos os lados e posições, vociferantes e hidrofóbicos, desamparadamente sozinhos. Não tem como evitar saber que muita coisa se acabou ontem. Agora vem nossa expiação.

*O PT cavou a sua própria cova, como se diz. Do ponto de vista de imoralidade e falha de planejamento, o PT merece tudo que vem sofrendo. Mas agora que a coisa acabou _só os muito sofredores ainda tem uma esperança_, sei que vem em mim e em muita gente a sensação de que, apesar de tudo, saímos infinitamente mais pobres e prejudicados ontem. Rever o naipe dos políticos desse país, naquele show de horrores de bandidos da sessão de ontem, é ter a certeza de que estamos sozinhos. Essa corja assassina, inescrupulosa, mafiosa, ególatra e criminosa em último e vasto grau, age por si só e só obedecendo a interesses pessoais. Eu não aguentava ver aquelas caras espúrias que ficavam rondando o microfone, com os olhos grudados na tela gigante acima para verem o quanto estavam aparecendo bem em rede nacional, com seus sorrisos de machos no botequim contando piadas estúpidas e denegridoras, suas plásticas e implantes capilares, seus sarcásticos de tão flagrantemente fingidos semblantes de que estavam levando a sério, fazendo história, reivindicando o retorno da moral. Não há figura de linguagem apropriada para tangenciar esse atraso na alma nacional ver essas ratazanas, declarando seus atos à família, a seus estados, às suas cidades, e votando "sim" olhando de frente para um dos maiores achacadores e criminosos desse país. Fiquei no mesmo nível de compreensão dos fanáticos que atendem à comoção de medidas heterodoxas. Os políticos brasileiros são um muro indevassável, sãos as portas da lei para sempre fechadas do conto do Kafka.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

A chave secreta da vida



As similitudes entre dois escritores absolutamente diferentes estão em como se integram na total necessidade de escrever. Mishima escrevia compulsivamente; certa vez se trancou em um quarto de hotel e só saiu dias depois, com uma obra iniciada e concluída por completo. Era um autor de extrema vaidade. No dia do seu suicídio, entregou à editora o manuscrito que completava o último volume de sua obra máxima. Escreveu que seus livros eram uma expressão divina. Já Imre Kertész, em seu discurso de recebimento do prêmio Nobel, publicado em A língua exilada, comovedoramente diz que teve sorte porque as condições históricas em que sempre viveu, entre a morte iminente no campo de Auschwitz e os anos de opressão da ditadura de esquerda em sua Hungria natal, lhe abortaram no início qualquer esperança de que algum dia fosse lido. Kertész considera a invisibilidade uma sorte porque assim ele se entregou à escrita intimista, dirigida a si mesmo. Em ambos, o que escrevia sabendo-se no centro de um aparato midiático, e o que escrevia para ninguém, está nítido a escrita como uma missão, como ato de sobrevivência e busca espiritual. Quando li O fiasco vi claramente a solidão e a felicidade de Kertész, no modo como a estrutura textual parecia um molde guardado na parede do quarto onde suas mais recolhidas ideias eram projetadas. Há uma tocante sacralidade na abdicação de Kertész à escrita, sua confiança que nunca pediu nada de retorno ao mundo físico. Sua poderosa reclusão infantil ao exercício no quarto escuro. Assim como é perfeitamente aceitável a extrema vaidade e trabalhado amor próprio de Mishima, quando se lê, já nas primeiras páginas de Neve de primavera: "Tomar nas mãos o próprio ideal e moldar o mundo à sua maneira? Isto não seria uma manifestação notável de poder? Seria como segurar na mão a chave secreta da vida, não acha?" Esses dois homens frágeis, que levaram, cada qual à sua idiossincrática maneira, o peso da história nas costas, conquistaram a posse da chave secreta da vida, retomaram à força de uma arraigada confiança no soerguimento de suas vozes mais recônditas o direito sobre suas vidas, resgatando-as, como diz Kertész, ao Moloch da história. É de Kertész uma das mais verdadeiras descrições da atividade da escrita:

"...num lindo dia de primavera em 1955, de repente descobri que existia uma única realidade, eu mesmo, a minha própria vida, uma dádiva concedida por um tempo impreciso, que havia sido capturada, expropriada, circunscrita, marcada por forças estrangeiras, desconhecidas_ e eu deveria retomá-la da "história", desse Moloch terrível, porque ela era minha, somente minha, e eu tinha de cuidar dela de acordo com esse princípio."

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Duas anotações para serem perdoadas



Não me parece ser apenas sintomas da incompatibilidade com a contemporaneidade que advêm com a idade. É algo mais, e talvez seja preocupante: há uma enorme carência por autenticidade no mundo. Penso assim ao terminar de assistir ao novo Star Wars. Assisto-o com a minha filha de 5 anos; ela adora o robozinho, mas tudo o mais, assim como a mim, lhe distrai para outras coisas. Ela encara enfrentar o filme por uma segunda vez, na cópia bem definida, dublada e legendada, que um amigo baixou pela internet. E, de novo, o mesmo desinteresse. Star Wars é um produto astucioso construído para ficar nobremente acima de qualquer crítica. A isenção típica das mediocridades instituídas. Seu sucesso em ser imaculado é tanto que criticá-lo passa a ser ridículo. "Você levou tanto a sério a ponto de anunciar que não gostou?". É tão absurdo como criticar uma bebedeira de sábado à noite com os amigos. Aliás, o filme não é horrível, o que, em certa visão desconstrutivista, seria ótimo: Star Wars é apenas totalmente indispensável. Para mim foi difícil assisti-lo até o fim. Acabou que a Julia e eu conversamos sobre diversos assuntos enquanto a banalidade com uma das maiores bilheterias da história seguia seu curso. Há atmosferas histriônicas, criadas para o enaltecimento da plateia, que minha sempre reascendida em vão fé no bom gosto do homem comum supõe que a ardilosidade fora detectada, mas não; logo imagino que o simples reaparecimento do velho Harrison Ford em seu papel de Han Solo, de maneira absolutamente preguiçosa no filme, deva ter provocado um grito de comoção nas salas de cinema. Ou que o simples R2D2 esquecido em um canto da tela tenha gerado uma ola entre os expectadores. O roteiro é capenga, paupérrimo, abalizado pela certeza de que a força do produto já atingirá os píncaros financeiros. Poupemos a fadiga. São tantos clichês e aparecimentos propositadamente súbitos do velho elenco para despertar aplausos (meu Deus! é a princesa Leia!!!), que tudo é de uma comicidade involuntária constrangedora. E é aí a chave do problema: pouquíssimas pessoas percebem o humor involuntário. Dois bilhões em ingressos vendidos! Para algo deselegantemente raso, pois os produtores, roteiristas e diretores, não se preocuparam nem um pouco em fazer algo que tivesse a mínima profundidade e envolvimento. É como assistir, por duas horas e meia (a megalomania de estender uma sensaboria corriqueira e banal além do prazo fisiologicamente suportável, pela paradoxal imposição sádica de inventar que essa concentração devotada é mais uma reivindicação para o ingresso ao culto da coisa), a expressão áudio-visual do sabor da Coca-Cola, ou do Big-Mac.

                                         ________________________________

Uma refutação à teoria da conspiração de que o golpe em andamento no Brasil está sendo patrocinado pelos EUA. Um economista da revista Superinteressante escreveu em seu Facebook. Centenas de pessoas compartilhando. Os EUA não tem interesse no Pre-sal, ralé inculta! Segundo o economista, colaborador de décadas dessa revista, diz que os carros elétricos da Tesla já são campeões de vendas na Europa, o que atesta que o petróleo está em franca decadência. Economista da Superinteressante. Fiz uma pausa de desânimo após a sequência dessas duas últimas frases. Tudo bem! Tudo bem! Vivemos em um país que tem duas paixões nunca racionalizadas e transferidas com um poder assegurado de uma geração a outra: a paixão pelos altos diplomados acadêmicos, e pelo militarismo. As duas, aliás, difundidas em menor ou maior grau pelas corporações da mídia. Décadas de história em que a universidade era um avatar invejado e inalcançável pela grande maioria da população, todo "doutor" que aparecia na homilia de domingo à noite no Fantástico falando seja o que fosse, era comentado religiosamente por toda a semana. Se o doutor dizia, era algo incontestável. O militarismo, por sua vez, mostra o estigma na alma brasileira nas invocações do retorno dos quartéis e na vanglória estúpida da eficiência dos colégios militares. Daí ser fácil ver que alguém que professa a mais distorcida das profissões bastardas da filosofia, e que escreve para uma revista destinada ao protótipo do adolescente obtuso, consegue certo grau de notoriedade instantânea ao dizer que os carros elétricos estão suplantando de forma determinista os que consumem derivados do petróleo. Não, ninguém está nem aí para a maior reserva de combustível fóssil encontrada no mundo bem abaixo de nosso narizes.  Não, nunca houve derrubada de governos e implantação de comoção social por um pouco que fosse de gás natural em outros países. Não há nenhuma prova exaustivamente documentada sobre o domínio dos EUA no governo dos países da América Latina, ao longo do século XX. Nunca existiu uma companhia vilipendiadora, assassina e cruel, chamada Fruit & Company, a Companhia Bananeira que aparece em metade dos livros de Garcia Marques e de outros escritores latinos. E mesmo assim, os zumbis da internet aplaudem o economista, julgando talvez que se forem à concessionária mais próxima podem de forma imediata retirarem seus carros elétricos a preços módicos para juntarem-se à revolução utopista.    

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Nightcap


Nesta quarta-feira hedonista, o exercício sagrado e constante de revisitar alguns dos sentidos da vida.

domingo, 10 de abril de 2016

Incógnita



Para mim, a maior incógnita da literatura é o suicídio de Yukio Mishima. Não há questão existencial que me aflija mais, no campo das letras e das personalidades intelectuais, do que o fato de alguém como Mishima ter se matado, ainda mais do jeito que a coisa se deu. Suponho que seja por demais sabido que o autor de Mar da fertilidade praticou o harakiri, diante os mil soldados que ele exigiu que fossem arrebanhados no pátio do quartel-general das forças armadas em Tókio, no lance cinematográfico da invasão que o escritor e alguns asseclas de um culto nacionalista fizeram ao quartel. Estou me embrenhando na obra máxima de Mishima, a tetralogia Mar da fertilidade; já li o primeiro volume, e todos os outros estão em minha posse. Para resumir em um só adjetivo esses livros: arrebatadores. Já havia lido apenas um livro dele, o Pavilhão dourado, romance que já de cara convence sobre a genialidade de Mishima. Pelas pesquisas que fiz, os outros livros que se seguem na tetralogia são ainda melhores que Neve de primavera, este já tendo me deixado pasmo diante tanta grandeza, inteligência generosa, profundidade e beleza poética.

Mishima tinha 45 anos quando se matou. Sua fama era mundial, seus livros o deixaram rico. Estava inserido confortavelmente no rol dos maiores escritores do século XX. Era um homem belíssimo, cuja consciência disso ele provou em uma série de fotos de vaidade perturbadora. Tinha uma inteligência fenomenal e um senso artístico refinado, uma vasta cultura. Quem lê um de seus livros_ e pode ser qualquer um deles, que mantem o mesmo nível de qualidade_, é recompensado por uma certa luminosidade exuberante, um excesso de vida radiosa. Em O pavilhão dourado, eu senti esse frescor da alma que se esbanja com seu pleno controle da existência, com sua posição de liberdade acima da mera labuta autômata do homem comum. Não era o tipo que se mataria. E seu suicídio, por mais que se escrevam sobre seus subjacentes simbolismos (há uma recente tradução de um livro de Marguerite Yourcenar todo dedicado ao tema), é um dos mais estúpidos da história. Foi um dos únicos suicidas que cometeram o ato final em nome de um efusivo orgulho metafórico. Matou-se com alegria. Queria que o Japão não descambasse no capitalismo ocidental, o que ele via como algo impossível deter, e resolveu expressar sua indignação através da mais tradicional manifestação nipônica. Diante a obra de enorme lucidez que ele deixou, seu suicídio ficou como sua única criação falha, pois parece que lhe faltou a previsão de que, em vez de fazer as pessoas pensarem, sua morte voluntária faria as pessoas verem-na o mais próximo da chacota, do exibicionismo vão. Se Mishima continuasse a escrever (e imagino com pesar quantos livros havia ainda para mostrar sua grandiosidade; o que o Mishima de 65 anos teria por dizer ao Mishima que botou uma pedra em sua permanência aos 45), ele teria feito muito mais por sua causa. E isso é que me mata. Por que Mishima se suicidou?

Antes de mais nada: o lance de recorrer-se a Freud, ao homossexualismo, à depressão, etc, etc, quem se predispor a cair nessa vala comum, que ao menos tenha lido um livro do Mishima. Sim, ele era homossexual, seu amante se matou junto a ele; sim, ele teve um casamento por conveniência com uma mulher e deve ter passado por todas aquelas agruras da sexualidade reprimida, potencializada pelo conflito de essa situação ser ainda pior em uma sociedade patriarcal como a japonesa. Freud teria se deleitado com o caso. E, não, Mishima não era uma personalidade depressiva. Como eu disse, seus livros exumam um amor incomensurável pela vida. Só a felicidade que ele tinha ao escrever já sustenta que o suicídio lhe era antagônico. (Eu não vejo Mishima como um suicida, como me vem a consciência física quando pego um livro de Hemingway, de Virginia Woolf, de Maiakóvski; aliás, quando fecho um livro de Mishima e vasculho preguiçosamente a contra-capa e as orelhas, me passa um leve tremor de entendimento e eu me falo baixinho: "ah, é mesmo, ele se matou.")

Lendo Mar da fertilidade eu posso tecer minha própria teoria. Não que ela me convença de todo, mas eu já intuía isso desde que vi a descrição do corpo do pai morto em O pavilhão dourado. Nessa cena magnífica, o narrador diz que o próprio excesso de materialidade imóvel de um corpo sem vida revela em contraste o quanto esse invólucro é absurdo para conter a energia do espírito. Na tetralogia, os personagens se reencarnam ao longo do século, e retornam para resolver antigas pendências no seio de suas famílias. Não é um livro espírita, se é que não é ridículo eu ter que avisar tal coisa ao falar de Mishima. E aqui me vem certa explicação pelo suicídio de Mishima. O cara era genial demais para ter cometido isso em nome da beleza, da nacionalidade, de seja o que for. Dostoiévski jamais faria isso, e Mishima era Dostoiévski. Mishima teria uma convicção arraigada da superação da existência à realidade física, e isso o motivou a departir-se com êxtase para o prosseguimento antecipado da jornada. Seu suicídio sempre me pareceu propositadamente cômico: ele ter exigido, sob a ameaça de passar à espada um dos altos funcionários das forças armadas em posse dos homens de sua associação, para em seguida exigir que o imperador fosse restituído e o Japão voltasse ao tempos antigos, é claro que ele sabia que era algo histriônico e incabível. E, assim que os soldados soltaram o riso uníssono de mofa diante sua imposição ("hahaha, esse Mishima é um louco"), ele proferiu um discurso, os olhos injetados, e rasgou sua barriga de alto a baixo com a lâmina. Para completar, o seu seguidor que ficou encarregado de decapitá-lo com um único certeiro e rápido gesto, conforme o ritual, errou a mão e teve que dar três desferidas da espada para separar a cabeça do escritor do corpo.

Os autores preferidos de Mishima eram Thomas Mann e Joris-Karl Huysmans. Nega-se, com isso, a hipótese de que ele deva ser entendido com um excessivo olhar oriental.