segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Sir Richard Francis Burton, uma biografia



Agradeço ao Paulo Raviere pela indicação desta fantástica biografia. Sir Richard Francis Burton é uma personagem menos interessante que T. E. Lawrence (e muito menos genial em seus conflitos interiores), mas o autor, Edward Rice, transforma o livro em um deleite raro ao mostrar com claro detalhismo as circunstâncias históricas e ambientais do seu herói. A segunda melhor biografia que eu li _ ainda perde para a magnífica de Darwin, da dupla Desmond & Moore. Quando me deparo com um livro tão envolvente, sempre me lembro do Paulo Francis dizendo "drogas para quê?". Segue um trecho memorável (o livro como murro na cara para nos mostrar sempre que existe muito, muito mais além de nossos umbigos):

"E havia também o costume de urinar que Burton tinha de seguir de maneira ainda mais automática. Os muçulmanos, como a maioria dos ocidentais, urinam acocorados e, quando terminam, enxugam o pênis com uma pedra ou um, três ou cinco bocados de terra ou argila, dependendo do costume local. Existe uma história que já foi várias vezes repetida: na viagem a Meca, viram Burton distraído, atendendo ao apelo da natureza de maneira não-muçulmana, urinando de pé, na posição ocidental; para salvar a vida, ele teve de matar a pessoa que o viu; é uma lenda que ele tentou desmentir, apontando a dificuldade de urinar de pé com aquelas roupas árabes que estorvavam os movimentos. Mas não há dúvida de que Burton tinha a fama de ter matado um homem a sangue-frio; no entanto, seu detrator Stanley Lane-Poole gostava de comentar que Burton "admitiu um tanto constrangido que nunca matou ninguém em momento algum". (tradução de Denise Bottmann)

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Leniência



Eu estava comendo um damasco seco quando meu dente incisivo, naqueles silêncios de pesadelo que mostram um terror irreparável, se partiu ao meio. A língua e a gengiva emitiram o sinal de alarme de que alguma coisa estava seriamente errada no preciso processo da mastigação, e a língua, em uma mecânica automática, se me estica boca afora e entrega o objeto estranho em minhas mãos. O olho com o reconhecimento paulatino da miséria que é a condição humana, em seu realismo mais restrito, e sinto uma infelicidade por todo meu ser: uma desproteção antropológica que há muito tempo não sentia. Fico com o pedaço amarelecido na mão, e nada é mais feio que um dente partido, mais denegridor, mais excludente. Percebo que em toda minha vida eu fui massacrado por terrores na solidão da noite em me ver sem dentes, em sonhar que meus dentes se deslocavam, caíam, esfarinhavam como um giz que aparecia de súbito ser impossível se manter em minha boca. Lembro de todas as peripécias de minha mãe em me levar, naquela época de severas privações financeiras, a inúmeros enchumbadores de dentes. Cada um se conserva em minha memória como uma entidade única: o homem com cara de criminoso, de jaleco sujo, de barba por fazer e com um azedume lacônico contra o mundo que me apavorava. Seja qual aspecto espúrio essa entidade possuía, era ela que erigia aquelas lápides cinzas da amálgama por sobre o túmulo em que sepultavam a dor em minhas gengivas, e me trazia alívio. Daí me recordo qual foi a última vez em que senti esse desolamento profundo: foi justamente quando esse mesmo dente se partira há quase 25 anos. Eu era um jovem magricela, meio sem rumo na vida, fazendo faculdade mas completamente desmotivado com tudo. E em uma bela manhã, no pátio da universidade, o dente se parte e minha língua faz sua primeira entrega policialesca daquele fragmento rejeitado para minha mão. Eu tinha 18 anos, ou 19, e aquele dente da frente quebrado, no auge da minha vaidade, me fez sentir ainda mais minha condição de segregado. Eu sabia que minha mãe não teria dinheiro para um dentista. Eu sabia que não estava preparado para viver com aquele novo sinal de pobreza em mim, tão violentamente evidente. Eu saí do pátio, peguei um ônibus e desci perto de casa. Não abria a boca, mas não conseguia parar de raspar a lâmina que sobrara do dente com a língua. Só para ver quanto ficaria uma reparação, entrei em um consultório que só então descobrira próximo de casa. Sabia que seria um preço impossível para minha mãe pagar, porque era um consultório de verdade, com um dentista de verdade, e não um enchumbador clandestino. A dentista, uma mulher jovial de cabelos negros _ que me causava ainda mais vergonha pela deformação na boca_, examina o problema, me encaminha para sua secretária para que esta faça o orçamento, e antes que a secretária complete os números das possíveis parcelas e sobre o desconto no caso de um pagamento à vista, eu me despeço dizendo que não daria, estava sem dinheiro. Quando estava para atravessar a rua, a própria dentista me chama: "Vem cá, vamos ver o que podemos fazer". Talvez foi a primeira vez em minha vida que uma concessão assim estava prestes a acontecer; talvez ela orquestrava um desconto; talvez ela ofereceria um trabalho panorâmico de restauração de outras pequenas falhas que havia visto em meus outros dentes; talvez iria dar de brinde um tratamento de flúor: eu me sentei de novo na cadeira inclinável e me encolhi de vergonha diante ao que parecia ter que dizer mais uma vez, após toda a exposição, de que não haveria meios para isso. Para meu assombro ela começa a mexer em meu incisivo. Leva uma meia hora ou mais, e conclui dizendo: "Ficou tão perfeito que eu poderia assinar aqui embaixo". (Lembro-me claramente dessa frase, e um quarto de século depois as surpresas da memória evocam o timbre maroto de sua voz, uma certa estridência que o rapaz que eu era então associava a algo da classe abastada, de filhas criadas em paz com uma efetiva margem de carinho paterno, de cultura, de uma bondade perigosa diante a qual eu sempre me sentia perigoso, com a qual uma brutalidade indisfarçável da minha parte iria trair-se revelando para o choque de um coração tão bem moldado que eu não estava apto a suportar tamanha leniência.) Eu já sabia, mas tinha que perguntar, e a pergunta me tornava ainda mais tremulamente miserável: "quanto foi?". Ela sorriu com todo cuidado, de modo a que passava longe de qualquer possibilidade de me ofender, e me disse que não era nada, era de graça. Fez isso sem ostentação. Eu agradeci, sem efusividade, e ela me disse: "olha, só vai durar 10 anos, depois você terá que refazer". E há duas semanas, com a lasca que ela tão bem colocara em meu dente que nem eu mesmo me lembrava que era uma restauração, grudada em um pedaço de damasco, finalmente vencera o prazo de duração. Fiz a restauração em um dentista daqui da minha cidade, caro, pra lá de caro_ imagino quanto seria naquele tempo em que a odontologia era ainda mais exclusiva. Indigno-me comigo por ter passado todos esses 25 anos sem me lembrar disso, sem pensar na dentista, sem sequer me lembrar do nome dela. Há muitas questões aí: o fato de que eu me sinto cada vez mais combalido e reservado com toda impressão de completude pessoal, cada vez em que envelheço mais. O medo que eu sentia naquele labirinto da juventude. Mas não foi ingratidão. É forte a tentação de tecer a frase "em um mundo cheio de ira e egoísmo..."; mas não é assim. O mundo é cheio de medo e incomunicabilidade, de tal forma que a bondade aparece no esforço de se afirmar-se a cabeça para fora do invólucro como uma leniência, uma tentativa sempre mal ajambrada, sempre suspeita, sempre titubeante. Assim me parecera aos 18 anos, mas não mais agora. Agora apenas me parece que até a validade que ela colocou em seu ato totalmente despojado e sem motivos práticos a não ser o de tornar mais fácil a vida de um jovem que ela via em todas suas fragilidades, estava investida de modéstia. Durou quase 25 anos, doutora.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Quermesse dos psicopatas



Uma das vergonhas maiores da indigente realidade brasileira atual é que alguns dos formadores de opinião com mais seguidores por essas excrescências virtuais são oriundos do meio do rock. Temos Lobão, temos Tico não sei o quê, e, pelo que descobri ontem, temos um guitarrista de uma falida e obscura banda de metal que, assim como seus páreos, adotou o hobby de vaticinar suas iras "políticas" em um canal do youtube. Conhecedor que sou que esse país é um circo desnecessário e anacronicamente sempre fanático pelo atraso, retive minha capacidade de espanto ao ver que tal sujeito tem "500 mil seguidores no Facebook". Respeito o impacto dessas cifras, embora tal coisa me pareça incorrigivelmente insignificante. Pois bem, incorri na curiosidade de tentar assistir a um vídeo desse astro cibernético ontem, em que o futuro presidente dessa pocilga, conhecido por Jair Bolsonaro (o Brasil requerendo garbosamente seu papel de destaque nos livros de história desse século XXI, predito a ser mais violento e bestial que o século passado, avoé!), lhe concede uma entrevista. O guitarrista falido, um tipo branco, barbudo, com os cabelos tratados indo até a cintura (uma das perguntas recorrentes nos comentários: que shampoo você usa?), começa com uma longa parlenga sobre deus, Cristo, afirmando que esses são as presenças mais importantes e capitais em sua vida. E daí ele pergunta o que Deus representa na visão do presidente antecipadamente eleito Jair Bolsonaro. Daí por diante, eu paro de assistir_ assisti 5 dos 75 minutos que tem o programa. Não aguento; além das minhas forças. Antes de desligar vejo o primeiro comentário com um fio de esperança. Um questionamento educado e inusitadamente inteligente de que a política e as questões sociais não deveriam passar pelo crivo da crendice religiosa. Um comentário bem posto e bem escrito de uma moça. O sujeito, depois de falar de Cristo e Deus, o que responde? Umas 6 linhas de fúria descomedida que se encerram chamando a moça de "vagabunda". Eu acredito que Bolsonaro ganhará a presidência daqui a 2 anos. Tirem aí as conclusões.