quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Rui está no quarto



Quem fez com que o namoro entre mim e minha esposa se firmasse foi ele. Nunca foi nenhum segredo. E foi dele o abraço mais gostoso que tive na vida. Os abraços da minha filha, que são os definitivamente mais gostosos, são determinismos irretocáveis. O dele foi um supetão, um abraço-afronta, coroado desde o início pelo marco assinalado em que o vínculo que tínhamos se desfaria e ele e eu seguiríamos, cada qual, o seu caminho, o que torna em retrospecto esse abraço tão doloroso. Ele fez onze anos semana passada, e é um garoto assolado pela tristeza. Minha esposa telefonou para ele para lhe dar parabéns, e sua voz apática, introjectada, agradeceu, como se ele falasse de uma terra muito distante e a ligação estivesse péssima. Como se ele falasse de uma região ártica subzero, e seu pescoço estivesse em volta de um cachecol grosso que amortecia a voz. Eu não falei com ele. Eu já não tento esconder de mim mesmo que eu desisti dele. A Dani desligou, se sentou ao meu lado no sofá e disse, com o olhar momentaneamente tomado por aquela antiga preocupação que perdeu seu caráter genuíno e inquisidor porque, enfim, não nos diz respeito: ela falou: "minha mãe tem que levar o Rui a um psicanalista. Ele está cada vez pior." Eu senti a latência de um sentimento definhado, por um segundo pensei com pesar no assunto, e esqueci. A Dani falou que desde que ele perdeu o avô, não sai do quarto. Trancado no quarto o dia inteiro, sem computador, sem livros, em silêncio. É notório que ele foi tomado por uma doença do afastamento que tem como sinal o afastamento inconsciente de todas as pessoas que lhe estão em volta. Todos vão se afastando dele sem notar, não vão mais se importando, pensam nele com uma efêmera empatia estatística, ele deixa de ser alguém para ser um sujeito gramatical em uma frase meramente evocativa, "o Rui está no quarto". Sua doença contagia todos com a insensibilidade a seu respeito. Tanto pior que sua infância esteja acabando, e tanto pior que seu corpo resolvera crescer a tal ponto em que ficou alto demais e com a coluna arqueada para a frente. Um sujeito triste e feio, que a graça da infância o abandonou sem misericórdia. A última vez que o vi, no aniversário da minha filha, no salão de festas, meu cunhado que mora nos fundos da casa onde o Rui mora com a avó me disse, com intenção não de todo humorista: "sabe aqueles garotos que um certo dia resolvem entrar armados na escola e fazer uma chacina? Pois o Rui parece que a qualquer momento vai fazer isso." Eu olhei para o Rui encolhido sobre si mesmo no nosso lado na cadeira, e não achei a mínima graça. Ele parecia mesmo.

Quando conheci a Dani, o Rui, filho da irmã dela, não tinha um ano. Era arisco e sorumbático demais para um bebê. Tinha a cabeça grande, eu chamava ele de cabeçudo. Ele tinha pavor de mim. E eu o atormentava sadicamente lhe fazendo correr quando eu chegava na casa dele. Eu sabia que ele estava na sala, nas pernas da avó, e eu pulava para dentro com um grito, e era compensador ver o pavor na cara dele. O pavor verdadeiro da criatura que chegou na Terra por agora, o horror puro. Ele foi perdendo o medo aos poucos, sabendo que, enfim, ele tinha um escalão de importância biológica no sistema da casa, e se ninguém compartilhava o terror que ele sentia, era porque eu não representava perigo. Ele parou de se esconder e de correr, só se amuava no colo do avô e da avó e não dava a mínima para mim. Ele fazia suas coisas cartoriais, suas obrigações de exploração infantil, sem se importar o pouco que fosse se eu o estivesse olhando. Seu pai abandonara a ele, à sua mãe, e à sua irmã três anos mais velha. Na verdade, eles é que fugiram da casa do pai, porque o pai batia muito na mãe. Lembro que ele deu sinais de que me aprovava, sinais típicos que um cãozinho dá quando a frequência que uma pessoa lhe visita até o portão da casa atinge um determinado grau que o deixa de ser um estranho, ainda que não um real conhecido, quando eu e a Dani o levamos à biblioteca da faculdade à noite e o colocamos em cima da mesa, e ele ficou pegando os livros e me entregando, fazendo seus primeiros gorjeios. Uma vez estávamos na casa de um amigo meu, e calhou dele se ver em meu colo, seus olhos me olhando como um inimigo que teve sua memória de uma antiga afronta desbotada pelo tempo olha para aquele que produziu negativamente a lembrança, não pela auto-proteção de um gesto de imprevidente capitulação, mas pela preocupação advinda do ato social de pensar se o outro também se lembra, se cabe ali a percepção vexaminosa de uma distração tão leviana. Outro dia eu o levei para minha casa, com a Dani, e lhe dei um grande brigadeiro, um brigadeiro enorme que dava em tamanho suas duas mãos. Ele não comeu, não aceitou. Ficou circunavegando o doce com o olhar mas me encarava com uma seriedade diplomática de quem desconhece os artifícios por detrás de uma compra arquitetada em oferenda. Eu lhe dizia: "Ruizinho, pra que essa defesa toda, meu chapa. Coma logo o brigadeiro, vai. Mete a boca aí." Eu entrava pela sala, fingindo que o deixava na porta com a Dani, ele averiguava se eu não estava vendo, e arrancava nacos de chocolate. Quando eu voltava, a Dani o consolava simulando para mim que ela que comera.

É a mais pura verdade: a primeira palavra que ele falou foi Charlles. Saiu pulando em uma perna só gritando Chali, Chali, Chali. Quando eu me levantava e me despedia de todos da casa, ele corria, apanhava a bola, e vinha me dizer do seu jeito para que eu ficasse. Bola, Chali! Bola! Eu o levava para a praça a ficávamos lá, sentados, vendo as pessoas, ele olhando as plantas e aventurando-se fora do meu círculo de proteção e voltando correndo. Todas as noites, eu o erguia nos braços e fazia a sombra com a mão de uma boca devoradora que vinha comer seu dedo espichado subindo o muro, e ele caía na gargalhada. Outra noite, ele com o boné virado para trás e vestido com um macacão de bad-boy, eu menti que queimava a língua com o café, e ele soltava deliciosas e sonoras gargalhadas. Todo mundo ria com as gargalhadas e era algo de uma beleza impressionante. Ele viajara com a mãe e os avós, por dois meses. Eu levava a Dani para casa à pé, no dia em que ele chegara, e eu dizia para a Dani: "É certeza que o Rui não se lembra mais de mim. A tal viagem me colocou em segundo plano." Eu acabava de dizer isso, virando a esquina, e ele estava andando junto à avó, duas ruas abaixo. Ele tinha três anos, e sincronizadamente, assim que eu terminara a frase, ele gritou o meu nome e saiu correndo em minha direção. Eu saí desesperado em sua direção, assim como a Dani e a avó, temerosos que algum carro passasse pela rua. Foi uma cena de cinema, para se encenar em uma praia, nós dois indo em direção um para o outro, e ao nos aproximarmos, ele se lançando em meus braços. Foi o abraço mais delicioso da minha vida. Ele vestia um moletom, e me apertou com tanta força que fiquei sufocado. E não parava de repetir, com a voz cheia de amor: "Charlles. Charlles." Depois de minutos em que nos sufocávamos de beijos e abraços, ele passou a pesar em meus braços, e quando eu tentava colocá-lo no chão, ele cruzava as pernas para me impedir.

Depois eles se mudaram para outra cidade, a Dani foi junto. Eu ia às vezes vê-lo, ele se sentava em meu colo à mesa do almoço e dizia que eu era dele. Depois eu passei a ir com menos frequência, até que deixei de ir de uma vez. Casei-me com a Dani e ele, assim, perdeu também a tia. Ano passado o avô, que era o ser que ele mais amava no mundo, morreu atropelado por um carro, e ele se trancou no quarto. Sua mãe também ficou muito solitária com a morte do pai e tentou suicídio, interrompido pela lavagem estomacal que os médicos lhe fizeram às pressas. O pai do Rui, que é viciado em drogas, está preso há dois anos, acusado de ter invadido uma casa e estuprado uma menina de 12 anos. A vida não tem sido boa nem um pouco para ele. Ele já veio muitas vezes aqui em casa, mas nosso elo se perdeu. É uma das coisas da qual mais lamento. Lamento ter deixado que ele tivesse se mudado de cidade, ainda que não sei ao certo o que deveria ter feito para impedir isso: casado logo com a Dani e ter criado ele? Eu bem poderia ter feito isso, pois eu o amava profundamente. Mas eu tinha muito medo à época, medo de meu fracasso humano, medo das consequências da minha solidão brutal, medo das minhas sérias mutilações. Eu tinha muito medo de que algum dia eu fosse rejeitar a feiura das deformações do crescimento que eu veria nele, eu não confiava nem um pouco que eu pudesse ser perseverante. Eu poderia ter criado ele, eu poderia ter falado isso para a Dani à época. poderia ter refeito a louca matemática de improvisos da minha vida e ter comportado essa surpreendente leveza. (Porque, a vida agora me parece, tem me parecido cada vez mais, leve e fácil, absurdamente fácil, descomplicada leve e fácil em todas as suas complicações, desburocratizada.) Passei tempo demais me preocupando com cada coisa besta, com cada coisa sem razão, antecipando os medos afim de não ser sucumbido por eles, de tal forma que me prostrei.

Minha filha tem me ensinado muito. Minha filha e a Dani. Antes de ontem estávamos eu e a Júlia, que é a minha filha de 4 anos, sentados na biblioteca. Era uma hora da manhã, eu estava escrevendo no computador e a Dani já estava dormindo. Como era feriado, a Júlia e eu estávamos acordados mesmo sendo altas horas. A Júlia tirando os livros da biografia do Dostoiévski da estante e os folheando, me mostrando as fotos a cada segundo, de formas que era um milagre eu conseguir escrever. De repente, a Júlia parou de conversar e ficou me olhando, um olhar de profundo enlevamento. Eu notei pelo canto dos olhos, mas só deixei de fazer o que eu fazia para olhá-la depois de algum tempo. Daí eu vi seu olhar de profundo enlevamento, e perguntei o que era. E ela me responde: "Eu gosto muito de você." Assim mesmo. Uma voz sentida, puramente apaixonada. Ela não falou o que eu falo todas as horas para ela, eu te amo, o que seria um clichê, mas falou eu gosto muito de você. Era como se ela realmente tivesse se dado conta de seu amor por mim naquela hora. Foi um insight, uma revelação. Eu a peguei no colo e fiquei mais uma hora com ela lá, conversando, trocando carinhos, um entregue ao outro. Eu soube que aquele era um momento que ela lembraria para sempre, que era algo que moldaria seu caráter, um momento que estaria fazendo uma sombra estrutural de amparo para atos e impressões futuras, uma nota cristalina e talvez indeterminada que a iria fazer parar um instante, com a chave do carro na mão, com a sacola de compras no braço, com o mar batendo em seus pés na praia, 20, 30, 40 anos à frente, e escutar, emitir aquele mesmo olhar enlevado em direção a um raio de sol ou ao rastro aleatório de uma pomba no ar: uma música, imprecisa, reconfortante. E isso, que ela não saberá bem o que é, irá resolver um problema, dissipar uma dúvida ou talvez uma grande agrura, lhe indicar com uma incrível e imprevista facilidade um caminho. Eu quis também achar um idioma tão virginal como aquela frase que ela me disse eu gosto muito de você para lhe retribuir, e fiquei repetindo que eu é que a amava muito, eu é que a amava demais, e ela só concordou se aconchegando em meus braços, ela elegantemente sabendo que era verdade apesar da minha linguagem desgastada só encontrar as velhas formas comparativas do egoísmo da posse em me colocar lamentavelmente como eixo ativo do amor.

Eu sinto uma vontade enorme de falar com o Rui, lhe dizer que nada disso por qual ele está passando é novo. Que eu passei por infernos tão graves como o dele. Que eu fui o menino trancado no quarto, vitimado pela doença da insensibilização alheia e da transfiguração para uma forma gramatical inócua. Eu gostaria de falar para ele que eu não tenho nenhuma lembrança imediata de felicidade vindo da minha infância, e poucas ou também nenhuma vindo da minha juventude. Dizer que a vida, olha só, não é nada complicada, e que isso não é slogan de propaganda de refrigerante e nem tão pouco qualquer outra forma de ardil às custas de uma falsa ingenuidade. Mas se alguém tivesse me dito isso, eu não acreditaria. Aliás, eu nem daria bola. Eu seguiria trancado no quarto, imerso em um universo muito particular. Eu já disse uma vez para a Dani o convidar para passar as férias aqui em casa, mas ele não veio. Eu também não viria, quando estava trancado em meu quarto. Eu queria muito, muitíssimo, que ele viesse, ficasse aqui uma semana, um mês. Ele, emborcado em sua altura e com essa lucidez excessiva e desconsolada de não se ater a nenhum charme visível, e eu, em meu desconcerto, submetido às raízes mentais de alguma associação com personagens descolados de filme americano. Eu com o jeans rasgado, os cabelos compridos e os óculos escuros de meu avatar imaginário de um Kevin Costner acidamente simpático. Um amor seco de um clã de machos, com direito a choro. E ele, como um desenho animado europeu feito para ganhar um Oscar em seu manequim de lixo mecânico de madeira e olhar triste, estilisticamente feioso com a compensação de uma redenção no final para alegrar as famílias espectadoras, fazer valer o preço das pipocas. Ambos andando pelas ruas sem muita conversa, desengonçados, mas também com o direito de uma adstringência de no final do dia, nem se for por enfado mútuo, olharmos de novo um ao outro sem nenhuma reserva. Eu poderia dizer a ele que ele imprimiu em mim uma nota eterna, que me salvou várias e várias vezes, aquele abraço que foi o mais delicioso da minha vida, aquela corrida debelada pelo meio da rua, tão perigosa, que se coroou com uma declaração de amor. O mais delicioso abraço. Eu gosto muito de você

Posso ver ainda o que eu faço.

sábado, 18 de abril de 2015

Meus prêmios, de Thomas Bernhard



Todos os dias quando passo de carro, às seis da manhã, vejo, em um local bem afastado na cidade, um senhorzinho sentado em uma cadeira, de frente ao portão de sua casa, profundamente absorvido na leitura de um livro. Quando passo em sentido oposto, retornando para minha casa, e seja qual hora do dia for, torno a vê-lo, na mesma posição e na posse do livro, absolutamente compenetrado. Ontem, fiz o retorno pelo quarteirão de cima para tornar a passar de frente a ele, e estacionei sorrateiramente meu carro na esquina, na intenção de usar o celular para tirar aquilo que eu pretendia ser uma bela foto de um senhor despreocupado com o andamento da vida dedicado por completo à leitura. As fotos saíram péssimas, o que me desgostou muito, uma vez que me impediram de chegar mais próximo a meu objeto retratável dois homens que no mesmo momento em que eu me pus no disfarce de ter parado meu carro para atender a uma chamada telefônica, eles também estacionaram o carro deles diante uma casa e entraram pelo portão desta me dirigindo olhares desconfiados. Dei marcha a ré e saí dali, lamentando a oportunidade perdida, ainda mais que notei um cãozinho dormindo aos pés do senhorzinho, o que muito iria contribuir para a plasticidade da cena. Das tantas vezes em que eu o vejo, noto que o livro que salvaguarda nas mãos muda de semana a semana, uma vez tendo as lombadas grossas, outras sendo fininhas, e, sou capaz de apostar, não se trata da Bíblia. Um dia paro ali e cometo a audácia de perguntar a ele o que está lendo.

Retorno para casa e vejo no atenciosíssimo sistema de comunicação com o cliente do site da Amazon que minhas encomendas "já estão na agência dos Correios esperando a retirada". Esse tipo de prestimosidade britânica partindo de uma empresa me enche de admiração, principalmente nessa época de empresas telefônicas e de contas da internet cuja política com os clientes é pautada por uma consciente e dissimulada distração extorsiva nas cobranças abusivas das contas mensais. Quem dera todas fossem iguais a você, Amazon, eu penso, com a mente livre de debates sobre as tais consequências nefastas de um capitalismo sem chances de livre concorrência aos pequenos  e médios empreendedores. Os pequenos e médios empreendedores, limito a pensar, não emitem nota fiscal e deixam o cliente a deus dará após efetuado o pagamento, não se importando a mínima em mandar sequer um e-mail dizendo quando a encomenda será enviada, vide Estante Virtual.

Recolho os livros e de imediato, assim que instalado em casa, leio Meus prêmios, de Thomas Bernhard, uma das aquisições feitas a preços abaixo da metade da tabela (os outros sendo Auto-de-fé, do Elias Canetti, e Sartoris, de William Faulkner, o primeiro comprado por 30 reais, o segundo por 25). Não dá para falar de Meus prêmios sem recorrer aos ditos spoilers. O livro me fez soltar altas gargalhadas, é o mais simpático e engraçado dos livros que li de Thomas Bernhard. Tem 100 páginas de leveza e da mesma prosa deliciosamente envolvente de Thomas Bernhard. Traz novidades para mim, como sobre o tempo em que Bernhard se enjoou de livros e literatura e passou meses felizes trabalhando como motorista de caminhão, assim como a informação de que ele iria trabalhar como caminhoneiro entregador de mantimentos em um serviço beneficente em Gana, trabalho abortado após a morte de seu contratante americano. O terceiro e o quarto ensaios_ chamo-os assim, ou poderia chamá-los de contos autobiográficos_, são obras-primas, não sei descrevê-los sem o uso desse clichê. Um trata de sua premiação em Bremen, premiação que, como em todas as outras, ele ia apenas pelo dinheiro do prêmio, e nessa premiação ele escreve às pressas e meia hora antes da cerimônia, em seu quarto de hotel, o discurso de agradecimento, tido pela história do referido prêmio como o texto mais curto já feito por um outorgado. Bernhard escreve que, quando o público presente estava por se deixar se envolver com o discurso, o texto subitamente se encerra. Eu pensei que se tratasse pois de um texto tapa-buraco, burocrático e preguiçoso, mas eis que descubro o pronunciamento publicado na parte final do volume, e fiquei tocado. Sem sombra de dúvidas, e de forma absolutamente inesperada, assim que li Discurso por ocasião da outorga do Prêmio Literário da Cidade Livre e Hanseática de Bremen, já o tive como um dos melhores escritos de Bernhard e o melhor discurso que já li após o do recebimento do prêmio Nobel pelo William Faulkner. Mas, ao contrário da beleza entusiástica de Faulkner quanto à redenção humana, o discurso de Bernhard é uma peça de fria poesia sobre a situação espiritual moderna. Três breves páginas, ou duas, se descontarmos os espaços prologais e epilogais em branco, que me fez pensar com meu saudosismo adolescente nos textos célebres que eu estampava em camisetas quando tinha meus 17 anos. O conto-ensaio sobre Bermen se encerra em uma apoteose de humor delicioso, que não vou contar aqui para não estragar a surpresa de um eventual interessado em ler o livro, mas trata de Canetti e, coincidentemente, de Auto-de-fé, que estava em meu mesmo pacote em que estava Meus prêmios.

Em O sobrinho de Wittgenstein, Bernhard descreve uma das vezes em que recebeu um prêmio literário, e como foi escorraçado do auditório pelos cerimonialistas e pelo público em decorrência de seu discurso de recebimento, altamente ultrajante para todos que estavam presentes. A mesma cena é descrita em Meus prêmios. Ao se ler os discursos na parte final do livro, o leitor entende porquê. É de matar de rir.

Foto mais próxima que pude tirar do senhorzinho leitor. Tomara que seja uma anomalia genética passada para suas próximas gerações.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Dois livros de Thomas Bernhard


O grande Thomas Bernhard, sempre bem humorado

Perturbação é uma obra-prima. Tem a atmosfera medieval de Kafka, com castelos, aldeotas perdidas no fundo da floresta, e personagens ofensivos obcecados por suas próprias ignorâncias. Do ponto de vista de atender melhor às normas do gênero, Perturbação é o mais bem acabado dos romances de Bernhard, com a genial imersão progressiva dos dois personagens principais, o pai médico e o filho narrador, em um mundo abandonado à loucura. Se Hieronymus Bosch tivesse escrito um romance, teria sido este. As comparações com Kafka param por aqui, já que Bernhard tinha plena consciência que produzia algo genuíno no campo das letras, uma literatura da catarse, a escrita exorcizante, um mantra fundamentado na transposição da folha escrita em partitura em que todos os medos e ódios e indignações são revelados sem pudores e daí compensados pela sublimação do final da leitura. Todos os livros de Bernhard resolvem-se na sublimação, após a exposição sumária de todos os atrasos e violências. É sua maneira de compensação. Há dois outros escritores sublimes da catarse, Mikhail Bulgákov e Louis-Ferdinand Céline, mas nenhum deles se parecem entre si, além do fato de que eles escancaram o ódio na página afim de suprirem a adstringência efetiva para suportarem o mundo. Bernhard compõe um livro inigualável, com uma espécie de elegia ao classicismo em seu modo de criar personagens marcados pelo anacronismo e de construir um ensombreamento setecentista, e referenciando um final digno de O coração das trevas, com o magnífico e absolutamente lunático monólogo do príncipe Saurau. Como em todos os seus livros, o leitor fica com a impressão de que a humanidade é um projeto fracassado, mas o shamanismo bernhardiano leva toda a vanidade para a extinção e a morte, e, como todo grande escritor, planta na mente do leitor a intuição colateral e inconsciente de que, uma vez a miséria tendo sido extirpada no campo virtual, uma nova proposta possa ser trabalhada. Não se enganem os que sucumbem à falta de inteligência de uma leitura superficial: Bernhard foi um iluminista.

O sobrinho de Wittgenstein. Reluto em dizer que este é um livro menor na bibliografia de Bernhard. É um exercício bernhardiano enleivado de brincadeira e descomedimento, e um exemplo mais contundente que Perturbação da prosa exorcista e catártica do autor. Há páginas aqui amplamente musicais, com o jogo de repetição e variação de períodos que lembram em muito o minimalismo. Há um convite surpreendente para o coração terno de Bernhard, nas passagens em que ele descreve sem expô-lo o seu ser vital, a pessoa que manteve nele a aptidão pela agradabilidade da vida, apesar do período de internações para tratamento de sua doença dos pulmões. Bernhard nunca oferece uma só leitura para seus livros: há várias interpretações, várias nuances; há um metaforismo em sua nudez radical em que, apesar de se mostrar tanto, não mostra a verdade que está por detrás de suas intenções, fazendo do personagem de si mesmo uma fonte de antagonismos e pontos de vista contrários. O personagem do título serve como ácida crítica ao artista em inanição tão bem como o personagem de Humboldt serve para Saul Bellow. O narrador (Bernhard) assume que esse personagem escrevia melhor que ele, tinha um potencial filosófico superior, mas que se deixou sucumbir pela prisão sensual das armadilhas da sociedade ao ponto de se tornar uma espécie de mendigo, morrendo sozinho. O início do livro mostra os dois, o narrador e o Sobrinho, confinados cada qual em uma ala de uma clínica para doentes crônicos, o narrador na ala de pneumologia, o Sobrinho na ala de doentes mentais. São belas e simbólicas páginas em que Bernhard lembra da amizade fervorosa com esse amigo incomum, que se voltou contra a fortuna de sua família e se pôs em ataque ativo contra todas as imposturas da sociedade; e em que a solidão dos dois revela o quanto as condições eram propícias para o monastério da escrita, monastério esse favorecido pela doença mas que o amigo de Bernhard não consegue usufruir por não conter seu excesso de genialidade. Há um chocante contraste entre o amor que Bernhard mostra pelo amigo durante boa parte do romance, e sua indiferença mitigada com desprezo ao praticamente abandonar o amigo à morte nas páginas finais. Há nisso uma informação: a de que Bernhard, com seu desprezo à carcaça ambulante que mal se mantinha em pé a que seu grande amigo se deixara reduzir, oferece um genuíno respeito à grandeza abortada do amigo ao virar as costas pela traição que este fez consigo mesmo. Com a mesma perícia visionária, Bernhard reforça a motivação à vida através da descrição da degradação absoluta. Lembra a página final de sua obra máxima, Origem, em que ele abandona o sanatório e o pneumotórax, porque ele queria viver.



segunda-feira, 13 de abril de 2015

Günter Grass (1927-2015)



Há muitos anos fiquei convalescente em uma cama por dois meses, e o livro que me fez companhia foi Anos de cão, de Günter Grass. Eu estava com o rosto costurado e a perna engessada com um pino no tornozelo, consequência de um motorista imprudente que avançou a caminhonete pela perpendicular de um cruzamento sem ver meu carro na preferencial da estrada. Pedi à minha irmã para comprar o livro em um sebo, um livro que eu namorava já fazia vários meses. Eu lia por oito a dez horas seguidas, entre os despencares no sono que me provocavam os sedativos que eu tinha que tomar para não sentir com tanta intensidade o ferro que fora fundido em meu osso, e que rescendia feito ouro em meus receptores neuronais. A última vez que me lembrava de ter passado pelo deleite da total fragilidade vigiada na companhia de livros foi quando quebrara a clavícula na infância, e pude ler uma série de gibis do Super-homem e mais os livros do Xisto pela coleção Vagalume. Eu sempre fui uma criança e um pré-adolescente infernal, possuído por uma inesgotável energia demoníaca. Grande parte do bullying que eu sofri foi mais que merecido, pois nenhum guri agia tanto com a finalidade de levar uma sova do que eu. Quebrei duas vezes o braço esquerdo (que, na segunda vez, quando o médico abriu o gesso e viu que haviam feito o procedimento errado, ele tornou a quebrar meu braço com um gesto preciso das mãos, enquanto me distraía equivocadamente me perguntando sobre meu time de futebol), uma vez o direito, a clavícula e o tornozelo. Não me estranha que os adultos que conviviam comigo naquela época hoje me veem com um notável repulsa, disfarçada pela humor nervoso de falarem à minha esposa de como eu era impossível. Por isso, talvez, tenha me identificado tanto com esse romance de Günter Grass. Um dos personagens é um gigante mutilado, com o rosto coberto de cicatrizes, amigo fiel desde a infância de um homem minúsculo e frágil que ganha notoriedade fazendo bonecos autômatos que parecem reais, e que os dois são separados pelo nazismo_ um indo para as fileiras, o segundo para as altas patentes do partido. Foi um livro no qual eu me emergi e fiquei dentro dele por dois meses, e não recuso o fato de que a percepção modificada pelos remédios e a sensação de que chegava a um limite do primeiro ciclo da vida tenha acentuado sobremaneira minha forma de entendê-lo. Havia a impressão não confessada de que o acidente fora uma forma inconsciente de catarse pela minha recente separação e pelo aborto carregado de culpa que adveio disso. Tudo no livro é de um abandono e de uma ruína e de uma cinza emanação da morte que adorna a assinatura comunal de Grass. Tudo no livro é acolhedor em decorrência disso, e eu não estaria em melhor condição para lê-lo do que na minha ruína pessoal. Outra coisa é a extrema devoção à literatura que esse romance revela, na forma como Grass escreve avesso a toda moda e manual de etiqueta literária. A segunda parte do livro tem algumas das páginas mais humanas e belas que eu já li, nas cartas do front do soldado para sua prima: todos ceifados pela indiferença suprema dos processos da história. Günter Grass escreveu em um estilo único, independente, altivo, concentrado, pleno de amor. De certa forma eu sempre o vi como um Joyce do pós-guerra, que assim como o irlandês, trata com sua elevada erudição sobre seres combalidos da mais baixa classe popular, seres distorcidos e deformados pela vida subjugada pelas grandes estruturas de poder, seres repulsivos e sentenciados, pelos quais sua arte mostra que temos o estômago muito menos frágil que supúnhamos por amá-los. Li depois quase tudo de Grass lançado em português, inclusive aquele arrebatador romance pelo qual ganhou a glória definitiva, e aquela sinfonia de lucidez e rara poesia escatológica que é o A ratazana. Mas nenhum livro sob sua pena me parece melhor e mais íntimo que o Anos de cão, para quem foi consolado pela figura do grandalhão que vinha proteger o amigo frágil lançando seus inimigos do colégio de cara contra o muro, numa época da minha vida em que, mais uma vez, a literatura veio generosamente me salvar. Um dia triste hoje. Vai com Deus, Günter Grass, e meus inesgotáveis agradecimentos pelo enorme trabalho que fez pelo bem nessa terra.

sábado, 11 de abril de 2015

Charlles Campos nas cartas da Piauí


Lendo o excelente artigo da Daniela Pinheiro intitulado "Outra história americana", me perguntei se há uma teoria lombrosiana para nomes. Claro que a tentativa de caixa dois de mais de 200 milhões de dólares feita em nome da Petrobrás com uma empresa americana tinha tudo para não dar certo. Não precisa recorrer a um oráculo para ver que a perfídia se anunciava através dos nomes que envolviam o processo: a empresa que intermediava a transação se chamava West Hawk Energy, o que, em uma pequena liberdade associativa, pode ser traduzida por "Rapina do Oeste"; o nome do presidente da West Hawk à época é Macchiavello, o que faz lembrar a notória conotação pejorativa de má intenção e nefastos trâmites políticos que advêm do autor de O príncipe; além disso, o coordenador para assuntos especiais da Petrobrás que assinou o documento se chama Venâncio Igrejas, sobrenome que denota a prática de dízimos (no caso em pauta, um dízimo que transpunha descaradamente em muito o próprio montante original do acordo). Mas o que levou os que se locupletam com nosso suado dinheiro recuarem foi, sem dúvida, o agouro evidente incutido no nome da multinacional que seria personagem passivo do roubo: Encana Oil & Gas.

terça-feira, 7 de abril de 2015

As tais pessoas comuns de Kurt Cobain



A diferença está no tom. John Gray produz uma narrativa que tem tudo para integrar um romance epopeia sobre ingenuidades sinceras e erros bestiais centenários com consequências as mais terríveis ou singelas, e o faz narrando fatos que, em sua maioria, são por demais conhecidos, mas que a desencantada candura da voz empregada em A busca pela imortalidade faz com que o leitor reaja como se os estivesse ouvindo pela primeira vez. Um amigo meu me disse sobre esse livro, com o olhar tomado pelo assombro de orfandade que a leitura de Gray provoca: "Mas por que coisas assim nunca são nos ensinadas na escola?" Não pude deixar de sorrir com certa ternura por um professor de história com um nível cultural bem acima dos índices mais generosos expressar uma indignação que beira a primeira desilusão da juventude com as dores do mundo, mas eu entendi inteiramente o que esse meu amigo sentia. Gray nos informa, por exemplo, que o bolchevismo matou mais pessoas em seus primeiros quatro anos que a dinastia Romanov matou em 300 anos, e uma certa eletricidade fria ronrona em seu silêncio confortável no estômago do leitor. Gray nos revela que a União Soviética não foi somente um regime político, mas um projeto esotérico perpetrado para extirpar todos os homens pueris e incultos e pobres para o benefício recompensador de formar a longo prazo uma sociedade de homens superiores, uma eugenia para a qual a história herdou documentos do próprio punho de Lênin em que este vaticina os benefícios de se matar inocentes para fundamentar o temor reverente na mentalidade dos povos, e o leitor sente o espanto com toda a sua roupagem de ineditismo. Nessas mais de 200 páginas, o tom de voz de Gray se assemelha à clareza estoica das melhores páginas de Camus, um tom muito distante dos artifícios que os eventuais parceiros apontados do autor na escola de atuais divulgadores do ateísmo científico esclarecido usam para autenticarem suas posições de filósofos populares. A solidão de Gray paira com elegância e sem nenhuma estridência acima das propagandas em prol do ateísmo nos ônibus de Londres e das comunidades da internet que celebram a memória de Christopher Hitchens com garrafas de uísque. E a beleza da prosa de Gray após a descrição de tantas estultícies cometidas pelo homem em suas tentativas de vencer a mortalidade nos traz o inusitado consolo de que a morte é a conclusão mais justa para zerar uma matemática que tem provado a mais vazia e inútil presença terrena.

Para quem escreve esse filósofo solitário que é o único entre seus pares que tem a estampa memorial de Kant andando de mãos cruzadas às costas pelas ruas do tranquilo povoado? Esse espanto de meu amigo diante o que funciona como um soco de descoberta do livro de Gray transcende a simples análise sobre o valor educacional da verdade bem empostada. No mesmo dia em que falei com esse amigo, um outro conhecido meu me mostrou pelo celular uma cena de sexo coletivo que viralizou o ambiente virtual da cidade, que mostra uma menina com cinco rapazes no banheiro para deficientes físicos do colégio onde esse amigo dá aula. Eu não tenho a mínima energia para ver esse tipo de vídeo, e a questão aqui me parece ser realmente energia e não estômago ou paciência, pois qualquer simbolismo entre o mais evidente e o mais recôndito que tais cenas possam provocar só me causa um enorme cansaço. O máximo a que pudesse chegar de eu sentir um furor contestatório diante a bestialidade humana, a selvageria adolescente, a total inocuidade do sistema de educação nacional, era de saborear a velha hipocrisia da moral infestada de testosterona desse conhecido que me mostrou o vídeo, sublinhando ao mostrar a velha cartilha de indignação superficial de aonde vamos parar, Charlles? Talvez eu tenha chegado à idade enfim de um estoicismo imune à coligação perceptiva da literatura, um desencanto que não se adorna mais com galhardia da pose de senhor distinto sentado com um livro aberto nas mãos: uma noção de algo sério e irretocável que sempre esteve aqui mas que só agora eu o vejo sem nenhum filtro de amaneiramento, e que não depende de minha posição em relação a ele. Nada que eu pudesse fazer, nem nada que um conjunto de pessoas supostamente detidas das mesmas intenções de mudança que me toma diante a inocuidade humana pudesse fazer, teria algum efeito. A diferença está no tom. O tom de Gray expressa a única concordância possível de acontecer entre pessoas bem intencionadas em um mundo onde as fantasias de redenção nunca tiveram vez. A única utopia possível é a auto-consciência, uma humildade potente e libertária diante a verdade do ser combalido que somos. Esses dias assisti a um documentário produzido com as fitas de áudio contendo as tantas horas de gravação dos testemunhos e opiniões de Kurt Cobain, chamado Retrato de uma ausência. O filme tem a intenção de causar certo peso dissipativo, certa nostalgia triste de uma ruína que se transformou, mostrando cenas de escombros, hotéis vagabundos de beira de estrada, muros da cidade com fragmentos de cartazes que convida a algum evento popular acontecido há muito tempo, exaustores de ar de indústrias que esperam pela demolição, céus de entardeceres que nada prometem, como se fosse a visão de um adolescente que não vê nenhum espaço possível que o integre à sociedade, um mendigo cujo conhecimento genético da exclusão que relegou seus progenitores em longa linha pregressa depõe contra a reação poética possível, restando apenas o ódio mais concentrado. O adolescente Cobain que sentia o mundo devastado dessas imagens sabe que não lhe resta o lenitivo de ser o herdeiro dos românticos escritores da tuberculose, ou o alcoólatra beatnik de uma era em que o apogeu do desespero podia adotar a figura de uma América primordial subliminar ainda passível de ser alcançada, ou o homossexual culto reacionário cujo limite visível da linha da vida cortado pela AIDS justificava a nobreza de seu despojamento. Cobain tinha o enorme azar de ter nascido famélico em uma época pós-suicídio distintivo, de estar em um interstício cujo esgotamento provocado pelos excessos passados mutilava o período histórico com uma absoluta falta de imaginação. Só restava a Cobain visualizar a morte precoce que era a única realidade que tinha pela frente sem uma roupa apropriada para se encontrar com ela, sem mensagens as mais pueris de adeus cínico para os que deixava para trás, sem direito a um epitáfio histriônico que fosse seu testemunho relativamente ruidoso contra a barbárie do mundo. Em uma das gravações, Cobain fala do emprego que teve em um hotel na beira da praia, um emprego que foi o inferno para ele porque as pessoas comuns que eram seus colegas de trabalho sempre lhe foram intoleráveis, pessoas as quais ele não conseguia se manter indiferente e contra as quais ele tinha que dizer as mais terríveis verdades. Muito provavelmente deveria ser um tanto irritante ficar próximo de Cobain, principalmente para os que expressassem as mais mínimas diferenças de educação e idade. O que seria pessoa comum para Cobain? Dificilmente seria a mais proximal à estirpe do Homem comum da biografia que Anthony Burguess escreveu sobre James Joyce, claro; seriam as tais pessoas desinteressantes que Eric Hobsbawn falou em seu discurso para uma classe de história em uma respeitada universidade, pessoas das quais ele afirmou que seus ouvintes não desejariam conversar com elas e nem que fossem suas alunas, a não ser que as amassem. Ao contrário de Hobsbawn, que cita a importância de que tais pessoas sejam protegidas da patrola da história, Cobain fala abertamente de seu repúdio a elas, de seu ódio, de seu nojo_ ao menos nas fitas de áudio que fazem o fundo às imagens do filme. Quando vi essa parte do filme, pensei, desalocando para a superfície meu eu de homem comum, latino-americano de um país à beira da falência: quem era Kurt Cobain? Um artista do rock que, como disse Pete Townshend, estava se tornando cada vez mais um adolescente descerebrado, oco e fútil. Sua arte, a melhor e mais relevante parte dela, se ampara na catarse pura, uma música virtuosística que perde o propósito assim que os hormônios provocados por ela se dissipam. Ele talvez fosse o mais crasso homem comum que teve o revés da sorte de se encaixar na raquítica exigência fonográfica de uma década de total pobreza musical, o que seu suicídio sem o mínimo sentido heroico de seus antepassados do gênero que morreram com os mesmos 27 anos confirmava. Kurt Cobain, pensei, se limitava a uma parca comédia sem graça de uma época que não tinha capacidade de oferecer nada, e por isso sua história fulgurante teve a auto-implosão e auto-digestão de um buraco negro. Não sei situar Cobain nos extremos da situação do vídeo pornô que meu conhecido me mostrou: se ele estaria no lugar hipócrita do meu conhecido, cuja permanência de um vídeo assim em seu celular não condiz com nenhum posicionamento moral válido; se ele seria um dos integrantes do vídeo; ou se ele, vivo com 48 anos, estaria tão esvaziado de energia para assistir tal vídeo.

Kurt Cobain tem relação com o livro de John Gray porque um dos resumos possíveis deste livro é a eterna tentativa eugenista de classes em diversas esferas da dominância em ganhar distinção com base no extermínio das classes que estão embaixo. O livro de Gray mostra o quanto a teoria da evolução de Darwin destruiu a imagem condescendente festiva que o homem tinha de si mesmo e de seu lugar de destaque no universo. E o livro é devastador em mostrar de maneira progressiva como o homem em desespero diante a verdade inexorável de sua insignificância procurou uma série de caminhos alternativos. A primeira parte narra sobre os movimentos do psiquismo acontecidos na Inglaterra, de como foram as tentativas de firmar o propósito da existência em um projeto reencarnacionista que parecia fadado ao sucesso pois além de obter provas em malabarismos entusiásticos da parapsicologia, atendia também a uma versão do evolucionismo para o progresso do espírito. Não era uma religião, mas uma nova outorga de uma Providência divina com propósitos meritocráticos para um ramo da alta sociedade que necessitava de uma legitimidade esotérica de seus privilégios de bom nascimento. E tinha o aval de se arvorar como sendo uma ciência ainda não reconhecida. Quando tudo isso fracassou, ou porque as atitudes circenses das sessões espíritas tinham a graça com prazo de validade, ou porque aumentou os níveis de ceticismo nas gerações sucessoras, vem o projeto de conferir nova distinção à existência do homem da segunda parte do livro. Projetos firmados agora em uma ultra-realidade que se imunizara da necessidade de um deus. E Gray se ocupa largamente do maior e mais terrível projeto religioso dos últimos séculos da história: a efetivação do bolchevismo em boa parte do mundo. Ele inicia com a sintomática e mais que simbólica visita de H. G. Wells a Lênin, em 1920, com a intenção do escritor em trazer Lênin para seu plano de emancipação humana conferindo os postos de poder das sociedades a intelectuais humanistas. Claro que o leitor pode sentir o impacto do presságio da estrutura oca da ingenuidade do sonho de Wells, e de como Wells vai se entregando à lucidez do morticínio quando todas as suas matemáticas sociais sucumbem a um mero caso amoroso com uma das personagens mais enigmáticas e fascinantes apresentadas por Gray, Moura Budberg (uma aristocrata da época dos Romanov que, para sobreviver, tinha que se incluir à única condição de prostituta de luxo que sobrava para as moças de seu meio).

Gray passa o foco para a vida do escritor soviético Máximo Górki, e de como ele tomou frente em um departamento do regime para promover o extermínio de pessoas comuns (as tais pessoas comuns de Cobain) com intuito de, a longo prazo, produzir a sociedade igualitária perfeita povoada de seres humanos superiores. "O recurso ao terror era acima de tudo um meio de recriar a humanidade", escreve Gray. Górki cultivava a crença de que deus ainda não existia, que o propósito da humanidade era criar deus, que a ordem acreditada estava invertida e o homem que teria de criar deus à sua semelhança e imagem. A supremacia do homem, o Super Homem, fomentado às custas da dizimação total de todas os incultos e pobres de espírito, faria que deus existisse. A esse projeto soviético deu-se o nome A Comissão de Imortalização (The Immortalization Commission, que dá o título do livro no original em inglês). A pragmatização da comissão se deu com amplo sucesso. As descrições de extermínio nas páginas do livro são generosas, como a da construção da Ponte do Mar Branco, na qual milhares ou talvez milhões de presos em escravidão sucumbiram no trabalho, no frio e na fome. O livro trata antes da grande insuficiência da razão humana, que sempre descamba para a selvageria sem limites, o que atesta no final o alívio diante a vacina da morte para um engenho tão fracassado. Mostra o quanto a fronteira entre o intelecto e a psicopatia homicida é tênue, prefigurado por assassinos investidos de propósitos redencionistas como Górki.

E por que tais coisas não são contadas para nós na escola? Como ensinar sutileza de pensamento para um mundo dominado cada vez mais pelo branco-e-preto monolítico? Como fazer com que o cérebro pense ao explicar que o livro preferido de Stalin era Os demônios, sendo que este livro que inspirou a sua matança de 60 milhões de conterrâneos, e que Os demônios foi escrito por Dostoiévski justamente como um aviso para que um Stalin não pudesse vir a existir? E será que pessoas tão obtusas à percepção dessas nuances podem merecer serem protagonistas de uma cosmologia de uma vida eterna? E ensinar que todo relativismo que coloca graus de superioridade relativiza sua própria posição na escala entre algoz e vítima. Um livro como A busca pela imortalidade é um grande presente, um generoso ato de humanismo. Nada se compara a ele, em todas as suas idiossincrasias de grande prosa e lucidez libertária sem qualquer engajamento. Gray não impõe nenhuma verdade, e essa sua obra tem o voluntarismo espontâneo de servir como tijolo para a fundação de um novo sistema de precaução contra as intrujões da história. Não defende nada e não condena nada. Tem a beleza do andar livre de um Omar Khayyãm, que não reconhece sobre si nenhuma religião e nenhuma ciência, sem contudo estufar o peito de orgulho arrogante. Não menos sintomático e simbólico, Gray fecha a obra com um belíssimo texto do poeta húngaro judeu György Faludy, que narra seus dias assim que chegou como refugiado de guerra a uma Casablanca rescendida à morte, e que foi enviado ao campo de concentração de prisioneiros de Recsk por se recusar a escrever um poema em honra ao aniversário de Stalin (na prisão, narra Gray, Faludy confessou que tinha sido recrutado como espião norte-americano pelo capitão Edgar Allan Poe e pelo coronel Walt Whitman), e que, libertado, viveu com um companheiro por mais de 30 anos, casou-se outra vez aos 91 e morreu em 2006, aos 95.

Assim encerra A busca pela imortalidade:

A vida após a morte é como uma utopia, um lugar onde ninguém quer viver. Sem as estações, nada amadurece e cai ao solo, as cores nunca mudam de cor nem o céu altera seu vago azul. Nada morre, e assim nada nasce. A existência eterna é uma calma perpétua, a paz do túmulo. Os perseguidores da imortalidade procuram um caminho para fora do caos; mas fazem parte desse caos, natural ou divino. A imortalidade é apenas a alma que empalidece, projetada numa tela branca. Há mais luz do sol na queda de uma folha.

quarta-feira, 1 de abril de 2015

Semana santa



Programei ler A busca pela imortalidade, de John Gray, neste feriado de semana santa. Ensaiei uma degustação hoje, e acabei lendo mais da metade, tendo ao fundo uma magistral trilha sonora. O livro é excepcional. Uma leitura extremamente envolvente e prazerosa. O autor é de uma maturidade, lucidez e contenção que pouco se vê no campo de assuntos que trata o livro. Dispensa todos os irritantes lugares comuns dos livros sobre ateísmo e sobre a cósmica solidão da espécie; não há ironia, complacência ou pedantismo científico, nem tons bombásticos de drama niilista. Trata-se de uma análise sobre o psiquismo e as procuras por evidências da vida após a morte partindo da classe erudita intelectual da América e da Rússia, nos fins do século XIX até pouco antes de meados do século passado. Fala de gente como H. G. Wells e Máximo Górki, William James e George Elliot, entre vários outros. É inevitável o assombro compensador em descobrir nesta obra uma peça literária de primeira grandeza, o que me fez lembrar de O leilão do lote 49_ a inesquecível parte da cronologia histórica sobre o surgimento do sistema de correios. As histórias contadas por Gray são tão arrebatadoras que parecem romances, só que é a mais pura verdade. O chato é que amanhã pela manhã já terei acabado a leitura.