Quem fez com que o namoro entre mim e minha esposa se firmasse foi ele. Nunca foi nenhum segredo. E foi dele o abraço mais gostoso que tive na vida. Os abraços da minha filha, que são os definitivamente mais gostosos, são determinismos irretocáveis. O dele foi um supetão, um abraço-afronta, coroado desde o início pelo marco assinalado em que o vínculo que tínhamos se desfaria e ele e eu seguiríamos, cada qual, o seu caminho, o que torna em retrospecto esse abraço tão doloroso. Ele fez onze anos semana passada, e é um garoto assolado pela tristeza. Minha esposa telefonou para ele para lhe dar parabéns, e sua voz apática, introjectada, agradeceu, como se ele falasse de uma terra muito distante e a ligação estivesse péssima. Como se ele falasse de uma região ártica subzero, e seu pescoço estivesse em volta de um cachecol grosso que amortecia a voz. Eu não falei com ele. Eu já não tento esconder de mim mesmo que eu desisti dele. A Dani desligou, se sentou ao meu lado no sofá e disse, com o olhar momentaneamente tomado por aquela antiga preocupação que perdeu seu caráter genuíno e inquisidor porque, enfim, não nos diz respeito: ela falou: "minha mãe tem que levar o Rui a um psicanalista. Ele está cada vez pior." Eu senti a latência de um sentimento definhado, por um segundo pensei com pesar no assunto, e esqueci. A Dani falou que desde que ele perdeu o avô, não sai do quarto. Trancado no quarto o dia inteiro, sem computador, sem livros, em silêncio. É notório que ele foi tomado por uma doença do afastamento que tem como sinal o afastamento inconsciente de todas as pessoas que lhe estão em volta. Todos vão se afastando dele sem notar, não vão mais se importando, pensam nele com uma efêmera empatia estatística, ele deixa de ser alguém para ser um sujeito gramatical em uma frase meramente evocativa, "o Rui está no quarto". Sua doença contagia todos com a insensibilidade a seu respeito. Tanto pior que sua infância esteja acabando, e tanto pior que seu corpo resolvera crescer a tal ponto em que ficou alto demais e com a coluna arqueada para a frente. Um sujeito triste e feio, que a graça da infância o abandonou sem misericórdia. A última vez que o vi, no aniversário da minha filha, no salão de festas, meu cunhado que mora nos fundos da casa onde o Rui mora com a avó me disse, com intenção não de todo humorista: "sabe aqueles garotos que um certo dia resolvem entrar armados na escola e fazer uma chacina? Pois o Rui parece que a qualquer momento vai fazer isso." Eu olhei para o Rui encolhido sobre si mesmo no nosso lado na cadeira, e não achei a mínima graça. Ele parecia mesmo.
Quando conheci a Dani, o Rui, filho da irmã dela, não tinha um ano. Era arisco e sorumbático demais para um bebê. Tinha a cabeça grande, eu chamava ele de cabeçudo. Ele tinha pavor de mim. E eu o atormentava sadicamente lhe fazendo correr quando eu chegava na casa dele. Eu sabia que ele estava na sala, nas pernas da avó, e eu pulava para dentro com um grito, e era compensador ver o pavor na cara dele. O pavor verdadeiro da criatura que chegou na Terra por agora, o horror puro. Ele foi perdendo o medo aos poucos, sabendo que, enfim, ele tinha um escalão de importância biológica no sistema da casa, e se ninguém compartilhava o terror que ele sentia, era porque eu não representava perigo. Ele parou de se esconder e de correr, só se amuava no colo do avô e da avó e não dava a mínima para mim. Ele fazia suas coisas cartoriais, suas obrigações de exploração infantil, sem se importar o pouco que fosse se eu o estivesse olhando. Seu pai abandonara a ele, à sua mãe, e à sua irmã três anos mais velha. Na verdade, eles é que fugiram da casa do pai, porque o pai batia muito na mãe. Lembro que ele deu sinais de que me aprovava, sinais típicos que um cãozinho dá quando a frequência que uma pessoa lhe visita até o portão da casa atinge um determinado grau que o deixa de ser um estranho, ainda que não um real conhecido, quando eu e a Dani o levamos à biblioteca da faculdade à noite e o colocamos em cima da mesa, e ele ficou pegando os livros e me entregando, fazendo seus primeiros gorjeios. Uma vez estávamos na casa de um amigo meu, e calhou dele se ver em meu colo, seus olhos me olhando como um inimigo que teve sua memória de uma antiga afronta desbotada pelo tempo olha para aquele que produziu negativamente a lembrança, não pela auto-proteção de um gesto de imprevidente capitulação, mas pela preocupação advinda do ato social de pensar se o outro também se lembra, se cabe ali a percepção vexaminosa de uma distração tão leviana. Outro dia eu o levei para minha casa, com a Dani, e lhe dei um grande brigadeiro, um brigadeiro enorme que dava em tamanho suas duas mãos. Ele não comeu, não aceitou. Ficou circunavegando o doce com o olhar mas me encarava com uma seriedade diplomática de quem desconhece os artifícios por detrás de uma compra arquitetada em oferenda. Eu lhe dizia: "Ruizinho, pra que essa defesa toda, meu chapa. Coma logo o brigadeiro, vai. Mete a boca aí." Eu entrava pela sala, fingindo que o deixava na porta com a Dani, ele averiguava se eu não estava vendo, e arrancava nacos de chocolate. Quando eu voltava, a Dani o consolava simulando para mim que ela que comera.
É a mais pura verdade: a primeira palavra que ele falou foi Charlles. Saiu pulando em uma perna só gritando Chali, Chali, Chali. Quando eu me levantava e me despedia de todos da casa, ele corria, apanhava a bola, e vinha me dizer do seu jeito para que eu ficasse. Bola, Chali! Bola! Eu o levava para a praça a ficávamos lá, sentados, vendo as pessoas, ele olhando as plantas e aventurando-se fora do meu círculo de proteção e voltando correndo. Todas as noites, eu o erguia nos braços e fazia a sombra com a mão de uma boca devoradora que vinha comer seu dedo espichado subindo o muro, e ele caía na gargalhada. Outra noite, ele com o boné virado para trás e vestido com um macacão de bad-boy, eu menti que queimava a língua com o café, e ele soltava deliciosas e sonoras gargalhadas. Todo mundo ria com as gargalhadas e era algo de uma beleza impressionante. Ele viajara com a mãe e os avós, por dois meses. Eu levava a Dani para casa à pé, no dia em que ele chegara, e eu dizia para a Dani: "É certeza que o Rui não se lembra mais de mim. A tal viagem me colocou em segundo plano." Eu acabava de dizer isso, virando a esquina, e ele estava andando junto à avó, duas ruas abaixo. Ele tinha três anos, e sincronizadamente, assim que eu terminara a frase, ele gritou o meu nome e saiu correndo em minha direção. Eu saí desesperado em sua direção, assim como a Dani e a avó, temerosos que algum carro passasse pela rua. Foi uma cena de cinema, para se encenar em uma praia, nós dois indo em direção um para o outro, e ao nos aproximarmos, ele se lançando em meus braços. Foi o abraço mais delicioso da minha vida. Ele vestia um moletom, e me apertou com tanta força que fiquei sufocado. E não parava de repetir, com a voz cheia de amor: "Charlles. Charlles." Depois de minutos em que nos sufocávamos de beijos e abraços, ele passou a pesar em meus braços, e quando eu tentava colocá-lo no chão, ele cruzava as pernas para me impedir.
Depois eles se mudaram para outra cidade, a Dani foi junto. Eu ia às vezes vê-lo, ele se sentava em meu colo à mesa do almoço e dizia que eu era dele. Depois eu passei a ir com menos frequência, até que deixei de ir de uma vez. Casei-me com a Dani e ele, assim, perdeu também a tia. Ano passado o avô, que era o ser que ele mais amava no mundo, morreu atropelado por um carro, e ele se trancou no quarto. Sua mãe também ficou muito solitária com a morte do pai e tentou suicídio, interrompido pela lavagem estomacal que os médicos lhe fizeram às pressas. O pai do Rui, que é viciado em drogas, está preso há dois anos, acusado de ter invadido uma casa e estuprado uma menina de 12 anos. A vida não tem sido boa nem um pouco para ele. Ele já veio muitas vezes aqui em casa, mas nosso elo se perdeu. É uma das coisas da qual mais lamento. Lamento ter deixado que ele tivesse se mudado de cidade, ainda que não sei ao certo o que deveria ter feito para impedir isso: casado logo com a Dani e ter criado ele? Eu bem poderia ter feito isso, pois eu o amava profundamente. Mas eu tinha muito medo à época, medo de meu fracasso humano, medo das consequências da minha solidão brutal, medo das minhas sérias mutilações. Eu tinha muito medo de que algum dia eu fosse rejeitar a feiura das deformações do crescimento que eu veria nele, eu não confiava nem um pouco que eu pudesse ser perseverante. Eu poderia ter criado ele, eu poderia ter falado isso para a Dani à época. poderia ter refeito a louca matemática de improvisos da minha vida e ter comportado essa surpreendente leveza. (Porque, a vida agora me parece, tem me parecido cada vez mais, leve e fácil, absurdamente fácil, descomplicada leve e fácil em todas as suas complicações, desburocratizada.) Passei tempo demais me preocupando com cada coisa besta, com cada coisa sem razão, antecipando os medos afim de não ser sucumbido por eles, de tal forma que me prostrei.
Minha filha tem me ensinado muito. Minha filha e a Dani. Antes de ontem estávamos eu e a Júlia, que é a minha filha de 4 anos, sentados na biblioteca. Era uma hora da manhã, eu estava escrevendo no computador e a Dani já estava dormindo. Como era feriado, a Júlia e eu estávamos acordados mesmo sendo altas horas. A Júlia tirando os livros da biografia do Dostoiévski da estante e os folheando, me mostrando as fotos a cada segundo, de formas que era um milagre eu conseguir escrever. De repente, a Júlia parou de conversar e ficou me olhando, um olhar de profundo enlevamento. Eu notei pelo canto dos olhos, mas só deixei de fazer o que eu fazia para olhá-la depois de algum tempo. Daí eu vi seu olhar de profundo enlevamento, e perguntei o que era. E ela me responde: "Eu gosto muito de você." Assim mesmo. Uma voz sentida, puramente apaixonada. Ela não falou o que eu falo todas as horas para ela, eu te amo, o que seria um clichê, mas falou eu gosto muito de você. Era como se ela realmente tivesse se dado conta de seu amor por mim naquela hora. Foi um insight, uma revelação. Eu a peguei no colo e fiquei mais uma hora com ela lá, conversando, trocando carinhos, um entregue ao outro. Eu soube que aquele era um momento que ela lembraria para sempre, que era algo que moldaria seu caráter, um momento que estaria fazendo uma sombra estrutural de amparo para atos e impressões futuras, uma nota cristalina e talvez indeterminada que a iria fazer parar um instante, com a chave do carro na mão, com a sacola de compras no braço, com o mar batendo em seus pés na praia, 20, 30, 40 anos à frente, e escutar, emitir aquele mesmo olhar enlevado em direção a um raio de sol ou ao rastro aleatório de uma pomba no ar: uma música, imprecisa, reconfortante. E isso, que ela não saberá bem o que é, irá resolver um problema, dissipar uma dúvida ou talvez uma grande agrura, lhe indicar com uma incrível e imprevista facilidade um caminho. Eu quis também achar um idioma tão virginal como aquela frase que ela me disse eu gosto muito de você para lhe retribuir, e fiquei repetindo que eu é que a amava muito, eu é que a amava demais, e ela só concordou se aconchegando em meus braços, ela elegantemente sabendo que era verdade apesar da minha linguagem desgastada só encontrar as velhas formas comparativas do egoísmo da posse em me colocar lamentavelmente como eixo ativo do amor.
Eu sinto uma vontade enorme de falar com o Rui, lhe dizer que nada disso por qual ele está passando é novo. Que eu passei por infernos tão graves como o dele. Que eu fui o menino trancado no quarto, vitimado pela doença da insensibilização alheia e da transfiguração para uma forma gramatical inócua. Eu gostaria de falar para ele que eu não tenho nenhuma lembrança imediata de felicidade vindo da minha infância, e poucas ou também nenhuma vindo da minha juventude. Dizer que a vida, olha só, não é nada complicada, e que isso não é slogan de propaganda de refrigerante e nem tão pouco qualquer outra forma de ardil às custas de uma falsa ingenuidade. Mas se alguém tivesse me dito isso, eu não acreditaria. Aliás, eu nem daria bola. Eu seguiria trancado no quarto, imerso em um universo muito particular. Eu já disse uma vez para a Dani o convidar para passar as férias aqui em casa, mas ele não veio. Eu também não viria, quando estava trancado em meu quarto. Eu queria muito, muitíssimo, que ele viesse, ficasse aqui uma semana, um mês. Ele, emborcado em sua altura e com essa lucidez excessiva e desconsolada de não se ater a nenhum charme visível, e eu, em meu desconcerto, submetido às raízes mentais de alguma associação com personagens descolados de filme americano. Eu com o jeans rasgado, os cabelos compridos e os óculos escuros de meu avatar imaginário de um Kevin Costner acidamente simpático. Um amor seco de um clã de machos, com direito a choro. E ele, como um desenho animado europeu feito para ganhar um Oscar em seu manequim de lixo mecânico de madeira e olhar triste, estilisticamente feioso com a compensação de uma redenção no final para alegrar as famílias espectadoras, fazer valer o preço das pipocas. Ambos andando pelas ruas sem muita conversa, desengonçados, mas também com o direito de uma adstringência de no final do dia, nem se for por enfado mútuo, olharmos de novo um ao outro sem nenhuma reserva. Eu poderia dizer a ele que ele imprimiu em mim uma nota eterna, que me salvou várias e várias vezes, aquele abraço que foi o mais delicioso da minha vida, aquela corrida debelada pelo meio da rua, tão perigosa, que se coroou com uma declaração de amor. O mais delicioso abraço. Eu gosto muito de você.
Posso ver ainda o que eu faço.