terça-feira, 28 de junho de 2011

Leitura Sob o Frio

Eu sou um ser humano muito melhor quando submetido a ambientes frios. Há mesmo algo de substancialmente irracional em mim quando me deparo admitindo em silêncio as velhas teorias etnocêntricas de que a biologia funciona com maior plenitude em regiões de climas amenos. Por uma semana voltei a sentir a felicidade  nietzscheana do frio. Sentado à varanda da casa, observando mais abaixo a linha de praia vazia, livre de turistas que não dividem a excêntrica excitação das baixas temperaturas desse intermezzo de estação, pude reavaliar com uma reiterada completude mental minha situação de vida. Felicidade, harmonia, paz. As escolhas musicais demonstraram-se espontaneamente as mais certeiras. Haynd teria dado uma fagulha de culpa pela leviandade inerente a todo o arranjo. De manhã colocávamos As Seis Suítes Para Violoncelo de Bach, executadas por Truls Mørk, o que acabava por ser quase insuportável de tão bonito e dividir a família em duas frentes: eu e as crianças, que eu havia trazido covardemente para meu lado desde que estavam no útero da mãe, e que são devotas por inteiro à Bach, Coltrane, Beethoven e Mingus; e a mãe delas, que suporta bem maciças cargas de mensagens oníricas, mas desde que não por 24 horas seguidas e desde que não anule seu direito feminino de ser ouvida em seus intensos e intermináveis monólogos. Mas Bach como trilha sonora para a paisagem indescritível de Furnas é realmente uma experiência espantosa. Confirmou o que já é demasiadamente sabido: que não se pode, ainda, ir muito além em tudo que Bach tem a oferecer. Um pouco da sugestão de amplitude dos cânions de Furnas, sua intuição de fim de mundo, sua água onipresente que luta contra os ossos e encharca mesmo no seco os agasalhos usados no corpo, acentua o alienismo que daqui a mais um século ainda será uma das características da música de Bach.

Ficamos uma semana desconectados da internet, de forma que a síndrome de abstinência do primeiro dia deu lugar a um certo esmorecimento de saber ao que retornar quando nos vimos novamente de frente à tela do computador. Mas as leituras foram espetaculares. Levei três livros na bagagem, todos devorados (lê-se melhor no frio, também).


Finalmente me vi diante deste cultuado escritor suíço, Robert Walser, que por tantos anos me neguei a ler. Inspirador de Kafka; encontrado morto aos 76 anos congelado na neve; frequentador eterno de sanatórios e clínicas para loucos; escritor pouco ou quase nada reconhecido em vida e que se negara a escrever uma palavra sequer na maturidade. Esses ingredientes já bastavam para não me chamar a atenção. Era uma espécie de Rimbaud que desvirtuou-se da cansativa e improdutiva vida do intelecto para se atirar em alguma vida de aventuras no extremo oposto de suas treinadas amenidades espirituais de burguês renegado, só que Walser era um tanto mais pedante por ter fugido logo para dentro do mais profundo de si mesmo. E eu estava vacinado desde meus 20 anos a todo dadaísmo disfarçado e nada me desmotivava mais do que a presença de mestres fundadores. Mas num desses rompantes de coragem (e também, vou confessar, atraído por essa belíssima capa aí do lado), adquiri o livro.

Pois Walser é uma surpresa compensadora do início ao fim. Li as 148 páginas desse magnífico romancinho num átimo (para usar uma antiga expressão condizente). As frases são velozes, curtas; só se percebe o germanismo da moda literária do ano em que foi lançada, 1909, pela polidez da condição de europeu nascido no século XIX mas formado pelas energias premonitórias do século XX que é fator inescapável mesmo ao menos alemão dos escritores (Heinrich Böll). E, ao contrário do que parece, é uma obra prenhe de antiintelectualismo, com poucas sombras (ou sombras completamente diferentes das de seu sucessor oficial, Kafka), sem a dogmática requerida pelos romances de pesadelo em se ajustar às paisagens freudianas e ao dicionário formal de sua interpretação. É uma história solta, descompromissada, submetida à narração em primeira pessoa do garoto Jakob von Gunten, que se interna no inexpugnável Instituto Benjamenta para aprender a humildade e a modéstia necessárias ao ofício de servir. Jakob é um jovem vivaz, cheio de sarcasmo, cheio de uma dúbia negação ao materialismo crescente da sociedade da virada do século que, ao mesmo tempo que parece lhe incutir asco, o atrai para confissões de que tudo que mais necessita é de muito dinheiro. Walser é muito eficaz em demontrar as incertezas de um adolescente que se esforça em se adaptar ao marasmo de uma instituição cuja função é a anulação do indivíduo e sua despersonalização massificadora, e como Jakob vai, aos poucos, se revoltando. Jacob é um narrador cheio de ódio e humor, o que torna Walser um escritor incrivelmente próximo e acessível. Não há como não passar a amar esse escritor que, segundo alguns biógrafos, simulou constantemente a loucura para manter-se distante da sociedade que sua lucidez exacerbada antevia como a mais destruidora para o espírito humano. O que ele tem de precursor de Kafka é sua proposital indefinição cenográfica, que, somada às personagens unidimensionais geralmente obcecadas pelas próprias intensidades, dão uma atmosfera de fábula opressiva. Mas ao final da leitura percebe-se o quanto Walser é um grande narrador, por sua visão de conjunto da obra e sua organização perspicaz. Coloca Salinger no chinelo.

Comprei junto com o volume de Walser esse livrinho charmoso com alguns dos contos fundamentais de Kafka. Também há nele os 109 aforismos reunidos na íntegra, que já valem o preço do livro. Kafka muitas vezes_ olha a heresia a que me disponho_ é melhor nos aforismos. Há várias entre essas 109 peças que nos envia a profundezas da reflexão, como essa: "Uma vez incorporado o mal, não se exige mais que se acredite nele." Ou essa: "Como é possível alguém alegrar-se com o mundo, a não ser quando se refugia nele?"

Reler O Veredicto e Na Colônia Penal é confirmar, sem ser preciso mas com renovada surpresa, que Kafka distribuiu sua lição de perícia narrativa e lúcida visão da condição humana sob a modernidade pelos maiores escritores do século XX, sendo difícil apontar alguém que não lhe seja um herdeiro direto. Lembro que Paulo Francis dizia que Borges não passava de uma cópia de Kafka; toda a literatura latino-americana se impregna da influência de Kafka, de Macondo à casa tomada de Cortázar, dos ambientes herméticos que pressupõe um deus militar no controle nos melhores romances de Llosa; e assim vai Piglia, Bolaño (lembro de uma cena arrebatadora em Detetives Selvagens, do encontro visto à distância, numa praça, entre Arturo Belano e Octávio Paz), Osman Lins. Assim também com Roth (que compôs uma louca variação de A Metamorfose, em torno de um enorme seio feminino em que se transforma o personagem da narrativa), as descrições kafkianas do interior dos tribunais norte-americanos que são o supra-sumo de Herzog, de Saul Bellow.

Kafka, que era formado em direito, funcionário de uma repartição de seguros, e escolhido certa vez como o homem mais bem vestido de Praga, dizia que a única coisa que lhe interessava na vida era a literatura. Como se tal afirmação fosse o revestimento premonitório de sua existência, acondicionando-o a ser ele um personagem da narrativa do século, há um pesar inerente em cada palavra de sua obra, uma tristeza evocativa ao lermos sua biografia. O terror que sentimos ao lermos a descrição da máquina de tortura e aniquilamento em Na Colônia Penal, que imprime à lâmina no corpo do sentenciado o seu crime e o atira numa fossa assim que o excesso de dor lhe condena à morte (passando pela cruel misericórdia de ser-lhe despejado na garganta uma papa de arroz durante o processo), é um terror que se ainda nos oprime hoje, ao leitor do começo do século passado provocava uma antecipação sensorial inédita que o preparava para as formas de terror inimagináveis dos campos de extermínio. Não à toa que, numa leitura que Kafka fez num sarau para amigos desse conto (apesar de extremamente reservado quanto à publicação, Kafka adorava ler em público seus contos), uma das senhoras à mesa desmaiou durante as passagens do funcionamento da máquina. Para se ter uma idéia do impacto e da importância de Na Colônia Penal, quando Hannah Arendt, exilada nos Estados Unidos, soube a confirmação oficial do que os nazistas  fizeram nos campos de extermínio, ficou tão irremediavelmente chocada que só se restabeleceu meses depois. Ali Arendt, com toda sua potência filosófica, teve a compreensão sobre o fim das esperanças humanistas e dos séculos de atraso pela frente que a humanidade teria que purgar devido a esse inconcebível passo de auto-descobrimento. Um casal de amigos que a viu lendo a revelação do genocídio pelo New York Times testemunhou que sua palavras foram: Isso nunca poderia ter acontecido. E a frase que cunha em Reichmann em Jerusalém, uma das sentenças definidoras do século passado, sobre a banalidade do mal, não é mais que a releitura do aforisma de Kafka que copiei acima. O que estarreceu Arendt a ponto de quase fazê-la desistir de escrever, diante sua insuportável perda de fé na humanidade, Kafka já havia anunciado trinta anos antes. E as três irmãs de Kafka seriam exterminadas por uma variante coletiva de sua máquina, nas câmaras de gás nazistas, o que fecha o círculo do destino do escritor em ser ele mesmo um operário do estilo de niilismo e abjeção incorporado na narrativa do século XX.


O terceiro livro desta semana foi a primeira parte da biografia de Elias Canetti, A Língua Absolvida. Vou reservá-lo para uma futura resenha individual, assim que terminar as duas outras partes que compôem a trilogia. Só digo que confirma todas as críticas e opiniões que venho obtendo sobre essa trilogia há anos, e é mesmo um dos mais gratificantes e deliciosos textos que já tive a oportunidade de ler. E a questão do frio só acentua o prazer da leitura.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

"Liberdade", de Jonathan Franzen _ As Primeiras 300 Páginas

Essa não é uma resenha séria, mas anotações para uma. Liberdade tem me deixado com um sorrisinho constrangido enquanto vou avançando para as páginas finais. Antônio Xerxenesky, em seu blog, disse algo perigoso para se dizer sobre um escritor, de que Franzen mais ou menos assim é alguém tão desprovido de uma aparência ameaçadora, tão terninho-de-professor-universitário e cara de bom moço, que isso acaba contando em desfavor na qualidade da sua prosa. E... desconsiderando as evidências em contrário oferecidas por inúmeros outros escritores de ótima qualidade com a inconspícua aparência de vizinho nerd, Xerxenesky acertou em cheio.

Ouso afirmar e provo, que cada página do tão aclamado Liberdade está contaminada de alto a baixo com o bom mocismo de Franzen. Não há uma cena, nessas 300 páginas iniciais, que seja convincente; aliás, não há uma cena nessas 300 páginas que seja relevante. A história da decadência (???? Onde????) da família  Berglund é tão isenta de drama, tão limpa de sombras de tragédias, que os diálogos entre os personagens não são mais que isso: diálogos. Por exemplo, quando o garoto Joey vai passar um feriado na casa do pai judeu multimilionário de um colega de universidade, Franzen aborta um sem número de situações que poderiam engendrar grandes cenas de conflitos clássicos entre o extremamente rico e o jovem planejador incipiente, entre o filho castrado pelo fardo do exemplo de sucesso do pai e o macho caçador cheio de certezas sobre a plenipotência do dinheiro; todas essas situações _ que o leitor muda de posição na poltrona esperando que enfim chegou-se ao ponto em que a coisa vai esquentar_ parecem ter sido cirurgicamente removidas pelo bisturi de bom mocismo de Franzen. Há uma cena em que o milionário desce ao porão onde estão os garotos, e inicia-se um jogo de mesa entre os três, em que o velho empresário vai testando o judaísmo recém descoberto de Joey, mas tudo sem gosto, num monocordismo que remete à impressão de que para o autor bastava a prosa supostamente elegante que, justamente aclamada em As Correções, em Liberdade já foi contaminada pela insuficiência de ambições dramáticas de Franzen.

Franzen evita qualquer sinal de trauma em seu novo romance. E, isso feito, torna transparente as outras limitações que ficariam escondidas se um pouco de hormônio fosse instilado na vida restringida à celulose dos personagens. As cenas de sexo, por exemplo, são tão ingênuas, que não seria de se espantar que o alter-ego assumido do autor fosse o diligente e cordial Walter, pai de Joey. Quando a esposa de Walter o trai com seu melhor amigo, o roqueiro Richard Katz, no chalé do casal, o sexo se restringe a parágrafos curtos e quebras bruscas que atenuariam a falta de traquejo de Franzen, coisa que o leitor bem disposto aceitaria, mas o desenlace é colocado no final de um diálogo entre os amantes que repete a forma sem perigo dos diálogos de Franzen. E Franzen erra ao insistir na modística literária do sexo (afinal é herdeiro de Philip Roth e Norman Mailer) nas aborrecidíssimas descrições das masturbações de Joey, coisa que ocupa umas 50 páginas em que a história cai num ralo circular de descrever os "dramas" e "sofrimentos" nada mais que peculiares da adolescência de Joey. E as descrições de sexo entre Joey e Conny são de dar bocejos.

Pode ser que a última metade do livro confirme a impropriedade da crítica antes de terminada a leitura. Mas por enquanto, Liberdade está me servindo a dar mais valor retrospectivo a 2666, e a ver o quanto a imprensa literária dos EUA regrediu a uma bajulação que inventa atributos de grandeza baseados num parco conhecimento do que é boa literatura.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Enrique Vila-Matas



"Considera-se tão leitor como editor. A edição lhe roubou basicamente a saúde, mas parece que em parte roubou também o bezerro de ouro do romance gótico, que forjou a lenda idiota do leitor passivo. Sonha com o dia em que o fim do feitiço do best-seller dê lugar à reaparição do leitor com talento e se recoloquem os termos do contrato moral entre autor e público. Sonha com o dia em que os editores literários possam respirar de novo, aqueles editores que se desdobram por um leitor ativo, por um leitor suficientemente aberto a ponto de comprar um livro e permitir em sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria. Acredita que, se é exigido talento de um editor de literatura ou de um escritor, deve se exigir talento também do leitor. Porque é preciso não se enganar: a viagem da leitura passa muitas vezes por terrenos difíceis que exigem capacidade de emoção inteligente, desejos de compreender o outro e se aproximar de uma linguagem distinta de nossas tiranias cotidianas. Como diz Vilém Vok, não é tão simples sentir o mundo como Kafka o sentiu, um mundo no qual se nega o movimento e em que se torna impossível sequer ir de um povoado a outro. As mesmas habilidades necessárias para escrever são necessárias para ler. Os escritores decepcionam os leitores, mas também acontece o contrário e os leitores decepcionam os escritores quando só buscam nestes a confirmação de que o mundo é como eles o veem..." (Dublinesca, tradução José Rubens Siqueira, editora CosacNaify, p. 69)

Samanta Schweblin

Samanta Schweblin:”Con el ebook, será más fácil publicar y más difícil ser leído”

 

 Ainda não a li, mas duvido que haja escritora mais linda.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Journal of Pain


Para se achar onde fica a sala de UTI do imenso hospital foi preciso subir e descer rampas, abrir portas detrás das quais uma equipe de mulheres e rapazes de aspecto funcionalmente servil rodeavam um médico de aparência sacerdotal que me fulminou com os olhos ao responder que a UTI não era ali, errar por portarias que só confirmavam o indício de que eu estava desamparadamente sem rumo quando a cara do recepcionista por detrás do balcão revelava ser a mesma vista do início da peregrinação pelo labirinto. E labirinto não é um mero artifício de imagem. Todo o hospital onde minha esposa dera entrada nesta sexta-feira para uma cirurgia cardíaca é um labirinto, não só na inóspita sensação de amplitude ilimitada, em que as paredes se reproduzem uma nos ângulos das outras e as portas fechadas vão se constituindo opressivamente diante dos olhos, como tem a mesma urdidura que compõe o enigma espiritual dos labirintos, coisa que se sente no desbaratino espantado que há por detrás da cordialidade profissional dos atendentes e das enfermeiras de encaminhamento. Não me surpreenderia se a maca com algum paciente morto só fosse encontrada numa saleta de canto anos suficientes para que a mumificação natural tornasse impossível identificar o cadáver. 
 
Quando finalmente encontrei a UTI, fui direcionado por uma enfermeira para participar antes de uma sessão que todos os parentes dos internos têm necessariamente que passar. Entrei por uma porta com uma placa que evocava um distante ressabiamento de felicidade, escrito “Biblioteca”, e me sentei numa cadeira escolar com espalmo para o braço, junto a mais umas vinte pessoas. Havia apenas duas estantes com revistas médicas com títulos assépciados de sentido, como Psychoneurology e Journal of Pain, revistas com figuras de capa onde não se detectava o mínimo indício de subjetividade, lirismo ou a mais inodora poesia. Por alguns minutos fiquei sob o efeito de uma dessas figuras, um desenho refeito por computador de uma chapa de raio-x do perfil de uma cabeça humana. O perfil estava em azul translúcido sobre fundo negro, e na região do cérebro o artista gráfico colocara uns três nódulos de eletricidade neuronal. Era uma imagem pura demais para ser compreendida, algo que tanto me fez pensar na aparição de um santo como num desfile militar. Era tão audaciosamente desprovida de transcendência que tornava ainda mais sem propósito e mesmo cruel a obrigatoriedade daquela reunião pseudoterápica. A única informação que se podia tirar daquela imagem era de uma fé absoluta nos limites a que chegara a ciência, e uma imposição a que se aceitasse com refinada condescendência que tudo que estava além dessa parca capacidade era uma aposta para o amanhã, sendo os vários resultados deletérios fatos inquestionáveis olhados não do ponto de vista da falência humana, mas da interrogação da técnica. O primeiro relato de uma das senhoras confirmou a completa incompatibilidade da reunião com a mensagem desprovida de emoção do desenho. Seu marido há 57 dias estava confinado na UTI. Seu comportamento não mais condizia a de um ser humano; ele gritava erguendo as mãos, tendo os enfermeiros que o segurarem para não retirar os cateteres, as sondas e os fios dos aparelhos elétricos ligados a ele, e o avanço da demência o tornava cada dia mais vegetativo. A educada senhora, com sua voz baixa que cobria o silêncio da sala com uma insistência hipnótica, no meio de um choro polido de quem tem vivência suficiente para não dividir o pedantismo com estranhos, disse que havia insistido com o médico para que sedassem o marido. O médico recusara terminantemente, pois a sedação para aquele estágio em que seu marido estava era algo muito arriscado. “Mas...”, ela continuou, olhando o mesmo ponto de convergência entre as cadeiras na qual servia para se dirigir a todos, “não seria melhor que o sedassem? Não seria melhor que lhe poupassem o sofrimento, que lhe permitissem descansar?”. 

Por longos 30 minutos, a psicóloga, uma mulher alta, de 40 anos, toda empacotada de azul dos pés à cabeça, com uma daquelas belezas que uma conjunção do acaso fez se encaixar plenamente à função_ um misto de Sigourney Weaver com alguma das minhas garotas de infância com ar intelectual pelas quais me apaixonava platonicamente_, pôe-se a falar com extrema paciência com cada um dos visitantes. É mesmo de uma lentidão hipnótica, acompanhando cada palavra bem pronunciada com revoluteios delicados das mãos, em que a psicóloga olha atentamente nos olhos da pessoa convocada a falar e espera que dela saia até o último filigrama de confissão mesmo depois que a frase apresenta todos os indícios de que chegara ao fim. Ela apresenta uma curiosidade apostólica por tudo que os pais, filhos, irmãos, amigos tem a dizer sobre o que seus desafortunados parentes estão vivendo na U.T.I., o que acentua ainda mais o caráter de monasticismo que sua função possui quando a maior parte dos relatos sobre coma, quadros de demência, vegetarismos, acabam por se concluír com a confissão de que melhor seria para os pacientes se podessem morrer de uma vez e em paz. Quando é chegada a minha hora de falar, identifico que estou ali para visitar minha esposa, Daniele, ao que a psicóloga identifica imediatamente e faz um relatório que mesmo para seu conteúdo promissor é rodeado da tensão reservada do costume de sua profissão, diz que ela está bem e que tem por certo que receberá alta no fim da tarde. Sou então tomado por uma complexa felicidade profundamente desconcertante e mesquinha de mostrar aos outros que não faço parte da segregação ao qual lhes submetem os seres tornados sub-humanos que lhes esperam do outro lado do corredor, que não terei que passar mais que algumas horas em suas companhias e não as semanas e meses nos quais eles se estabelecem uma familiaridade de moradores do limbo, escravos do amor obrigatório que devem dedicar sob todo o imenso fardo do sacrifício àqueles cujo único alívio lhes oferecido é o da confissão enviesada da hipótese da eutanásia.

Toda essa semana foi uma carga de tensão e espera. Todo dia morre alguém no hospital, ou alguém achega-se a você inesperadamente para anunciar uma áurea de morte. Encontrei o dono do maior supermercado da cidade onde moro, instalado na sala de espera, que se levantou e com seu mesmo costume educado veio me cumprimentar e dizer que há um mês sua esposa se encontrava internada ali. Haviam retirado de seu couro cabeludo uns focos de sarcoma, e, dias depois, no exame de acompanhamento, a internaram novamente para a cirurgia de retirada de um novo tumor detectado nos intestinos. Estava além da quimioterapia, ele me disse, para minha surpresa que sempre achei ser a quimioterapia o estágio final do tratamento. No outro dia, uma mulher extraordinariamente bela, toda de blusa e calça branca, e com uns óculos imensos que lhe tampavam quase todo o rosto, sai de um Porsche no estacionamento do hospital e se dirige para o balcão, e pergunta ao recepcionista para onde levaram o corpo do conhecido deputado morto após uma cirurgia craniana.

Quando levava a Dani para a casa de minha mãe, estando à espera diante o semáforo numa das avenidas principais da cidade, junto com mais uns cinquenta outros carros, uma turma de motociclistas batedores da PM surge do nada e fecha todas as vias de acesso transversais. Daí, esses guardas desmontam das motos e sacodem os braços em nossa direção, ordenando com todo tipo de frases descortezas para que acelerássemos as merdas dos carros e saíssemos dalí. No meio da perplexidade que tomou a todos nós motoristas, avançamos pelos semáforos fechados, ao que avistávamos logo em seguida mais uma série de braços uniformizados perfeitamente satisfeitos com a função delegada de ordem abrutalhada, que nos sinalizam sob o berro de vamos, desgraçados! Corre, corre! Assim que saímos para outra pista, uns 500 metros depois, vimos o motivo da urgência: uma comitiva de inúmeras viaturas escoltavam o ônibus da seleção que voltava do treino para o hotel. Estava justificado que colocassem em perigo os civis com filhos e passageiros convalescentes, em tributo à proteção dos heróis da pátria, que estavam destinados a dar o troco ao time estrangeiro que nos humilhara no ano passado na Copa.

A coisa que mais impressionara um amigo meu de um livro que eu lhe emprestara de Nooteboom foi da extrema disciplina civil dos escandinavos. Diante um semáforo fechado, numa rua deserta e sob uma frio de 20 graus negativos, o motorista esperava diligentemente que o sinal mudasse para o verde, o permitindo seguir pela via. Desde então eu resolvi me tornar um motorista holandês, pronto a me humilhar diante à pressa desarroada. Mas houve momentos de delicada adstringência, que permitiu um substancial raio de luz em meu coração apreensivo. Um motorista de ônibus coletivo me dera passagem, ao me ver emparedado diante uma caçamba de construção, em plena hora do rush. E também outras vezes caminhonetas, caminhões, motociclistas. Exceções que me inundavam de um indefinível orgulho. E houve a equipe médica que tratou da Dani, com o cirurgião chefe paternalmente zeloso e atencioso, o anestesista que nos veio visitar uma série de vezes, mesmo tendo vencido em muito o horário do plantão. E houve aquele sorriso que me pareceu deliciosamente transloucado da enfermeira que veio levar a Dani à sala de cirurgia, e sua piadinha deliciosamente sem graça e incompreensível que, contudo, iluminou todo o dia com uma visível esperança, e que me fez pensar alto para minha irmã que nos acompanhava: queira Deus que a nossa Júlia também cresça assim.