terça-feira, 28 de junho de 2011

Leitura Sob o Frio

Eu sou um ser humano muito melhor quando submetido a ambientes frios. Há mesmo algo de substancialmente irracional em mim quando me deparo admitindo em silêncio as velhas teorias etnocêntricas de que a biologia funciona com maior plenitude em regiões de climas amenos. Por uma semana voltei a sentir a felicidade  nietzscheana do frio. Sentado à varanda da casa, observando mais abaixo a linha de praia vazia, livre de turistas que não dividem a excêntrica excitação das baixas temperaturas desse intermezzo de estação, pude reavaliar com uma reiterada completude mental minha situação de vida. Felicidade, harmonia, paz. As escolhas musicais demonstraram-se espontaneamente as mais certeiras. Haynd teria dado uma fagulha de culpa pela leviandade inerente a todo o arranjo. De manhã colocávamos As Seis Suítes Para Violoncelo de Bach, executadas por Truls Mørk, o que acabava por ser quase insuportável de tão bonito e dividir a família em duas frentes: eu e as crianças, que eu havia trazido covardemente para meu lado desde que estavam no útero da mãe, e que são devotas por inteiro à Bach, Coltrane, Beethoven e Mingus; e a mãe delas, que suporta bem maciças cargas de mensagens oníricas, mas desde que não por 24 horas seguidas e desde que não anule seu direito feminino de ser ouvida em seus intensos e intermináveis monólogos. Mas Bach como trilha sonora para a paisagem indescritível de Furnas é realmente uma experiência espantosa. Confirmou o que já é demasiadamente sabido: que não se pode, ainda, ir muito além em tudo que Bach tem a oferecer. Um pouco da sugestão de amplitude dos cânions de Furnas, sua intuição de fim de mundo, sua água onipresente que luta contra os ossos e encharca mesmo no seco os agasalhos usados no corpo, acentua o alienismo que daqui a mais um século ainda será uma das características da música de Bach.

Ficamos uma semana desconectados da internet, de forma que a síndrome de abstinência do primeiro dia deu lugar a um certo esmorecimento de saber ao que retornar quando nos vimos novamente de frente à tela do computador. Mas as leituras foram espetaculares. Levei três livros na bagagem, todos devorados (lê-se melhor no frio, também).


Finalmente me vi diante deste cultuado escritor suíço, Robert Walser, que por tantos anos me neguei a ler. Inspirador de Kafka; encontrado morto aos 76 anos congelado na neve; frequentador eterno de sanatórios e clínicas para loucos; escritor pouco ou quase nada reconhecido em vida e que se negara a escrever uma palavra sequer na maturidade. Esses ingredientes já bastavam para não me chamar a atenção. Era uma espécie de Rimbaud que desvirtuou-se da cansativa e improdutiva vida do intelecto para se atirar em alguma vida de aventuras no extremo oposto de suas treinadas amenidades espirituais de burguês renegado, só que Walser era um tanto mais pedante por ter fugido logo para dentro do mais profundo de si mesmo. E eu estava vacinado desde meus 20 anos a todo dadaísmo disfarçado e nada me desmotivava mais do que a presença de mestres fundadores. Mas num desses rompantes de coragem (e também, vou confessar, atraído por essa belíssima capa aí do lado), adquiri o livro.

Pois Walser é uma surpresa compensadora do início ao fim. Li as 148 páginas desse magnífico romancinho num átimo (para usar uma antiga expressão condizente). As frases são velozes, curtas; só se percebe o germanismo da moda literária do ano em que foi lançada, 1909, pela polidez da condição de europeu nascido no século XIX mas formado pelas energias premonitórias do século XX que é fator inescapável mesmo ao menos alemão dos escritores (Heinrich Böll). E, ao contrário do que parece, é uma obra prenhe de antiintelectualismo, com poucas sombras (ou sombras completamente diferentes das de seu sucessor oficial, Kafka), sem a dogmática requerida pelos romances de pesadelo em se ajustar às paisagens freudianas e ao dicionário formal de sua interpretação. É uma história solta, descompromissada, submetida à narração em primeira pessoa do garoto Jakob von Gunten, que se interna no inexpugnável Instituto Benjamenta para aprender a humildade e a modéstia necessárias ao ofício de servir. Jakob é um jovem vivaz, cheio de sarcasmo, cheio de uma dúbia negação ao materialismo crescente da sociedade da virada do século que, ao mesmo tempo que parece lhe incutir asco, o atrai para confissões de que tudo que mais necessita é de muito dinheiro. Walser é muito eficaz em demontrar as incertezas de um adolescente que se esforça em se adaptar ao marasmo de uma instituição cuja função é a anulação do indivíduo e sua despersonalização massificadora, e como Jakob vai, aos poucos, se revoltando. Jacob é um narrador cheio de ódio e humor, o que torna Walser um escritor incrivelmente próximo e acessível. Não há como não passar a amar esse escritor que, segundo alguns biógrafos, simulou constantemente a loucura para manter-se distante da sociedade que sua lucidez exacerbada antevia como a mais destruidora para o espírito humano. O que ele tem de precursor de Kafka é sua proposital indefinição cenográfica, que, somada às personagens unidimensionais geralmente obcecadas pelas próprias intensidades, dão uma atmosfera de fábula opressiva. Mas ao final da leitura percebe-se o quanto Walser é um grande narrador, por sua visão de conjunto da obra e sua organização perspicaz. Coloca Salinger no chinelo.

Comprei junto com o volume de Walser esse livrinho charmoso com alguns dos contos fundamentais de Kafka. Também há nele os 109 aforismos reunidos na íntegra, que já valem o preço do livro. Kafka muitas vezes_ olha a heresia a que me disponho_ é melhor nos aforismos. Há várias entre essas 109 peças que nos envia a profundezas da reflexão, como essa: "Uma vez incorporado o mal, não se exige mais que se acredite nele." Ou essa: "Como é possível alguém alegrar-se com o mundo, a não ser quando se refugia nele?"

Reler O Veredicto e Na Colônia Penal é confirmar, sem ser preciso mas com renovada surpresa, que Kafka distribuiu sua lição de perícia narrativa e lúcida visão da condição humana sob a modernidade pelos maiores escritores do século XX, sendo difícil apontar alguém que não lhe seja um herdeiro direto. Lembro que Paulo Francis dizia que Borges não passava de uma cópia de Kafka; toda a literatura latino-americana se impregna da influência de Kafka, de Macondo à casa tomada de Cortázar, dos ambientes herméticos que pressupõe um deus militar no controle nos melhores romances de Llosa; e assim vai Piglia, Bolaño (lembro de uma cena arrebatadora em Detetives Selvagens, do encontro visto à distância, numa praça, entre Arturo Belano e Octávio Paz), Osman Lins. Assim também com Roth (que compôs uma louca variação de A Metamorfose, em torno de um enorme seio feminino em que se transforma o personagem da narrativa), as descrições kafkianas do interior dos tribunais norte-americanos que são o supra-sumo de Herzog, de Saul Bellow.

Kafka, que era formado em direito, funcionário de uma repartição de seguros, e escolhido certa vez como o homem mais bem vestido de Praga, dizia que a única coisa que lhe interessava na vida era a literatura. Como se tal afirmação fosse o revestimento premonitório de sua existência, acondicionando-o a ser ele um personagem da narrativa do século, há um pesar inerente em cada palavra de sua obra, uma tristeza evocativa ao lermos sua biografia. O terror que sentimos ao lermos a descrição da máquina de tortura e aniquilamento em Na Colônia Penal, que imprime à lâmina no corpo do sentenciado o seu crime e o atira numa fossa assim que o excesso de dor lhe condena à morte (passando pela cruel misericórdia de ser-lhe despejado na garganta uma papa de arroz durante o processo), é um terror que se ainda nos oprime hoje, ao leitor do começo do século passado provocava uma antecipação sensorial inédita que o preparava para as formas de terror inimagináveis dos campos de extermínio. Não à toa que, numa leitura que Kafka fez num sarau para amigos desse conto (apesar de extremamente reservado quanto à publicação, Kafka adorava ler em público seus contos), uma das senhoras à mesa desmaiou durante as passagens do funcionamento da máquina. Para se ter uma idéia do impacto e da importância de Na Colônia Penal, quando Hannah Arendt, exilada nos Estados Unidos, soube a confirmação oficial do que os nazistas  fizeram nos campos de extermínio, ficou tão irremediavelmente chocada que só se restabeleceu meses depois. Ali Arendt, com toda sua potência filosófica, teve a compreensão sobre o fim das esperanças humanistas e dos séculos de atraso pela frente que a humanidade teria que purgar devido a esse inconcebível passo de auto-descobrimento. Um casal de amigos que a viu lendo a revelação do genocídio pelo New York Times testemunhou que sua palavras foram: Isso nunca poderia ter acontecido. E a frase que cunha em Reichmann em Jerusalém, uma das sentenças definidoras do século passado, sobre a banalidade do mal, não é mais que a releitura do aforisma de Kafka que copiei acima. O que estarreceu Arendt a ponto de quase fazê-la desistir de escrever, diante sua insuportável perda de fé na humanidade, Kafka já havia anunciado trinta anos antes. E as três irmãs de Kafka seriam exterminadas por uma variante coletiva de sua máquina, nas câmaras de gás nazistas, o que fecha o círculo do destino do escritor em ser ele mesmo um operário do estilo de niilismo e abjeção incorporado na narrativa do século XX.


O terceiro livro desta semana foi a primeira parte da biografia de Elias Canetti, A Língua Absolvida. Vou reservá-lo para uma futura resenha individual, assim que terminar as duas outras partes que compôem a trilogia. Só digo que confirma todas as críticas e opiniões que venho obtendo sobre essa trilogia há anos, e é mesmo um dos mais gratificantes e deliciosos textos que já tive a oportunidade de ler. E a questão do frio só acentua o prazer da leitura.

23 comentários:

  1. Não li a primeira parte, sobre o Walser, pois comprei o livro há dois meses e ele está na fila; enquanto isso, nada leio a respeito dele, para não ficar marcado pelas leituras alheias.

    "Paulo Francis dizia que Borges não passava de uma cópia de Kafka"... caralho, Paulo Francis era uma besta, que impressionava com seus juizinhos peremptórios apenas os tolos. É melhor dizer logo duma vez algo como "Literatura é uma perda de tempo; toda literatura que importa no mundo provém da Bíblia, todo o resto é derivativo".

    Kafka foi ganhando importância na medida em que mais foi sendo confundido com Nostradamus; tudo nele passou a ser visão e profecia. Ele é (quer dizer, foi) brilhante pela economia brutal de recursos para exprimir o máximo com a precisão de um criador de elementos essenciais à vida, mas é melhor não lê-lo como prefigurador da modernidade.

    Não me interesse pela biografia do Canetti. Li Auto-da-Fé; é um autor que dá a si mesmo demasiada importância; coisa de gente antiga, como o Huxley e Orwell, conforme comentário que fiz no blog do Milton; isso pode dar em boa coisa, mas às vezes fica rançoso, e Auto-da-Fé é um tanto rançoso em sua erudição que se quer menos estéril do que a de seu protagonista, mas termina ombro-a-ombro com ele. Me deu a sensação de que Elias estava a zombar de si mesmo e de seu próprio tempo, em que as massas se sobrepuseram a cultura e corromperam os saberes, mas isso tem mais a dizer sobre a organização social de classe com a depuração do mundo sob o filtro do lucro; as massas que importam são as que servem à multiplicação do capital, daí que o intelectual é mais um elemento de massa e existe enquanto consumidor nesse mercado segmentado dos livros, cinema, boa música, etc.

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  2. Charlles,
    seu post inspirou-me a seguinte ideia…



    COLAGEM
    by Ramiro Conceição


    “As grandes massas cairão mais facilmente numa grande mentira do que numa mentirinha.” “Temos de ser cruéis. Temos de recuperar a consciência tranquila para sermos cruéis.” “Toda propaganda tem que ser popular e acomodar-se à compreensão do menos inteligente dentre aqueles que pretende atingir (1)”.

    “A morte de uma pessoa é uma tragédia; a de milhões, uma estatística.” "Nada melhor do que descobrir um inimigo, preparar a vingança e depois dormir tranquilo". “Teríamos acabado sozinhos se governássemos apenas pelo medo. A classe operária jamais se submeteria a um governo que pretendesse impor-se pelo medo (2).”

    "Uma vez incorporado o mal, não se exige mais que se acredite nele (3)." “Isso nunca poderia ter acontecido (4).”


    (1) Hitler
    (2) Stalin
    (3) Kafka
    (4) Hannah Arendt

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  3. Marcos, há anos_ uma década, acho_ que não lia Kafka. Como todo bom aluno de literatura, já li dele os dois grandes romances e as narrativas miúdas, tanto na tradução de Carone quanto na do Marcelo, preferido do Milton (não há dúvida para mim, Carone é melhor). Por isso, tentei reler as obras compiladas nesse volume sem o filtro das relações históricas, sem pensar nas várias interpretações dadas ao cara. Mas me foi impossível. O Veredicto remete à vida pessoal de Kafka de forma muito explícita, tanto seu noivado quanto a presença castradora do pai. E Na Colônia Penal então, é impossível não ver ali o Nostradamus a que se refere. Mas Kafka intuiu o futuro próximo não por derivações místicas, mas através de sua lucidez. Isso é a razão de sua permanência. Veio-me a ideia de imaginar o que Kafka, sobrevivido à tuberculose a atingido seus 90 anos de vida, com as honras e os deveres de um catedrático itinerante,teria feito em pról da acusação de tudo que estava acontecendo. Acredito que ao longo da insistência de uma contestação, as coisas acabam cedendo à força de um conjunto de ideias, sistematicamente ditas e escritas e discutidas. Kafka junto a Arendt, Adorno, Zizek e uma turmaiada de gente. Mas tudo pode ser apenas uma ilusão da minha cabeça e a verdade esteja mesmo no verso de Neruda: "Esse século necessita de poetas de peitos largos." Talvez o romantismo decadentista do século XIX afundasse Kafka na imperiosidade de sua própria constituição física mirrada.

    Canetti é um dos maiores. Não gostei de Auto-da-Fé, achei-o esquemático, artificial, ainda que bem acima da maioria do que se produziu na época. Canetti é imprescindível em Massa e Poder, nos ensaios literários de A Consciência das Palavras (no quel há um texto maravilhoso sobre Kafka), e nessa trilogia. Se era arrogante ou não...qual o problema?

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  4. Ramiro, quando perguntaram ao Canetti se ele se achava um gênio, sua resposta era que lutava dia a dia para ser ao menos humano.

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  5. O velho Kafka

    Está mais reticente que Beckett: da sua boca
    as palavras são raras; seu respiro, ainda
    ofegante, é nódoa velha. Sorri como um macaco
    que atingiu a glória do Nobel, e, na Academia
    urra como um humano, enquanto coça as bolas
    ruminando noutras paragens, depois do lapso
    de uma guerra vivida entre neblinas, depois
    da escolha do exílio eterno, depois
    do filho nascido no Brasil, amante
    de Madureira e das flores praianas.

    O velho Kafka não é mais aquele, dizem
    os vizinhos, que nunca mais o viram
    bater suavemente no couro de um tamborim.

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  6. Charlles,

    Dos herdeiros de Kafka encontrei há não muito tempo, graças à maravilhosa coleção de clássicos japoneses da Tuttle, Kobo Abe.
    Tenho a impressão de que ele é sumariamente ignorado pelos leitores brasileiros - apesar de ter sido cultado nos 60 e 70 na Europa como o Kafka japonês.
    Leia dele o perturbador Suna no Onna, The Woman in the Dunes. Niki Jumpei, um entomologista de Tokio sai em direção de dunas em Kyoto à caça de uma espécie de besouro ainda não descoberta.
    Descobre, no lugar da espécie desconhecida, um pobre vilarejo de casas encrostadas entre vãos que resultam do exercício constante da erosão e da sedimentação causada pelo vento que sopra do litoral. Jumpei se vê obrigado a passar a noite no vilarejo, hospedado na casa de uma solitária e silenciosa jovem mulher. Acordado pela irritação que areia causara nas dobras de seu corpo e nos olhos, Jumpei se descobre aprisionado na cratera que perfaz o lugar onde a casa da misteriosa mulher se encontra. Jumpei descobre também que o pernoite fora um embuste e que dali em diante ele teria de se juntar à mulher na absurda tarefa de cavar as encostas da cratera onde a casa se encontra, toda a noite, afim de que a casa não seja soterrada pela areia movimentada pelos ventos.
    Trata-se de um pesadelo bem ao gosto da tradição Kafkiana. Mas se me permite, vou mais além. Para mim Suna no Onna é mais que um sucedâneo ou um derivativo de Kafka. É um pesadelo que não poderia ter sido sonhado por nenhum outro se não Kobo Abe. Mais filosófico que Kafka, tão perturbador quanto o onírico mais aterrador do outro, esse é um autor que não se finca fácil em baixo do colossal vulto de Kafka.
    Depois de Suna no Ona, aqui talvez mais diretamente como cacoete de Kafka, indicaria The Secret Rendezvous: Um homem acorda no meio da noite e descobre que a sua mulher fora sequestrada de sua casa, inexplicavelmente, por uma ambulância. O livro narra a busca de Sísifo do homem pela sua esposa pelos labirintos do underground de um hospital em Tokio. Em reminiscência a The Trial, o protagonista se vê, em meio à surreal busca, contratado como segurança chefe do hospital.
    Kobo Abe é uma das surpresas mais gratas que a literatura me proporcinou nos últimos anos.

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  7. Luiz, nunca tinha ouvido falar em Kobo Abe. Procurei no site de sebos unidos Estante Virtual e há três romances dele disponíveis, duas traduções para o português e uma em inglês. Confesso ser ignorante em autores orientais. Minha leitura deles resume-se no excelente Gao Xingjian (A Montanha da Alma),Kawabata (A Casa das Belas Adormecidas), e Kenzabuo Oe sobre o filho dele com paralisia cerebral.
    Fiquei instigado por seu comentário e vou atrás da indicação, embora não por agora, já que tenho aqui ao menos uns 10 livros recém adquiridos que ainda não li.
    Mas seu resumo me fez lembrar de Juan Rulfo, o Pedro Páramo, do qual me impûs gostar mas que não consegui. Levei meses para chegar ao final de Pedro Páramo. Aquilo me entediou mortalmente,mas Borges, Garcia Márquez e não sei mais quantos adoram o livro. Achei-o uma fusão simplista de Faulkner com Kafka.
    Sobre a procura pela esposa desaparecida de The Secret Rendezvous, há o mesmo argumento no Livro Negro de Orhan Pamuk, do qual gostei.

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  8. Claro, claro. Só tinha achado auspicioso que você estivesse relendo Kafka por agora. Mas guarde a referência. Kobo Abe é uma gema.
    Tanto o Kenzaburo Oe quanto Yukio Mishima insistiam que Abe deveria ter recebido o prêmio nobel de literatura.

    Outra tradução japonesa de Kafka, essa porém guardadas as devidas proporções pois se trata de uma obra de dimensão bem menos colossal que os delírios de Kobo Abe, é o Kafka on the Shore de Haruki Murakami. Já leste alguma coisa de Murakami?
    Ele é tratado pelos cadernos culturais como o nome da literatura pós-moderna das últimas décadas. Dispenso o rótulo - mesmo porque não há muito do pastiche na obra do Murakami para explicar a taxonomia - e tenho me divertido com a inventividade desse autor. Não há nada nele que o iguale a Mishima ou mesmo Soseki. Há algo inclusive de descartável nas suas descrições unidimensionais e no ritmo acelerado, moderninho, da narração. Mas trata-se sem dúvida de um story-teller de mão cheia. Creio que você vai lembrar muito de Pynchon lendo o cara. Digo, da estranheza dos plots do Pynchon, que na realidade são também reminiscências de Kafka.
    Kafka on the Shore, conta a estória do adolescente Kafka Tamura. Um garoto de 15 anos dos subúrbios de Tokio que foge de casa afim de escapar da profecia sofocliana imposta pelo pai: de que aos 15 Kafka iria matar o próprio pai e que dormiria com a mãe e a irmã. A influência de Kafka nesse livro de Murakami aparece menos na estrutura da novela ou na cadência labiríntica, do que no recurso - às vezes abusivo - do absurdo e principalmente nas referências constantes que o autor faz a Kafka. Há inclusive uma interessante referência na novela a justamente a máquina de tortura de Colônia Penal, perfazendo um importante plot-turn do livro. Aqui, portanto estaríamos mais perto de um The Professor of Desire do Roth do que da alegoria Kafkiana em The Breast, que você faz referência no seu texto e que quero muito ler. Assim como Kafka aparece em Professor of Desire como referência constante - na tese que David Kapesh escreve sobre o autor de Praga, na visita que Kapesh faz ao túmulo do autor e sobretudo no hilário sonho que Kapesh tem onde visita a velha prostituta com quem Kafka bulinara - Kafka on the Shore é uma espécie de elogio ao mestre de Praga, uma cruza entre Coltrane, O Processo e Édipo Rei.

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  9. Bem , o Marcos disse:
    “Kafka foi ganhando importância na medida em que mais foi sendo confundido com Nostradamus [...] tudo nele passou a ser visão e profecia. [...] mas é melhor não lê-lo como prefigurador da modernidade.”

    Mas, então, após o XX e a primeira década do XXI, como falar de um cara que, como tudo mundo sabe, escreveu A Metamorfose (1915), que narra o caso de um homem que acorda transformado num gigantesco inseto, O Processo (1925), que conta a história de um certo Josef K., julgado e condenado por um crime que ele mesmo ignora, A Colônia Penal (1914), que trata duma máquina, que tem o poder de executar sentenças e é utilizada numa colônia onde pessoas são mortas simplesmente por estarem vivas?

    Além de Kafka, tenho uma enorme dificuldade sobre a maneira de falar sobre W. Reich, que escreveu, dentre muitas obras, A Psicologia de Massas do Fascismo (1933) e Escuta Zé Ninguém (1945-46), a não ser considerá-lo tal qual um visionário. Deve ser lembrado que, em 1933, Hitler não era levado a sério praticamente por ninguém a não ser, talvez, por Churchill; e quanto a Stalin, Reich já o considerava um contumaz assassino - mesmo durante a 2ª Grande Guerra – coisa que se tornou evidente em meados da década seguinte, via Nikita Kruschev.

    O que quero dizer é que existem caras que captam o futuro quando, praticamente, ninguém está a percebê-lo. Me vem à cabeça as jogadas de Pelé, que só podem ser compreendidas em câmara lenta: o cara enxergava muito antes...
    Penso ser isso, o caso de Kafka.

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  10. Esse é o de Norwegian Wood, né. Já li uma resenha sobre que falava muito bem. Coloquei na lista. O The Professor of Desire ainda não li, mas o The Breast li no original, principalmente depois que li o Entre Nós em que Roth fala sobre os desenhos que Guston fez para a novela. Procurei agora no google uma reprodução do desenho que há em Entre Nós, mas não achei. Uma teta gigantesca em cima de uma escada, sendo acariciada por uma espécie de intelectual oriental sentado numa cama.

    Na verdade acho que Pynchon é uma roupagem bem sucedida de um novo absurdo que parte de Kafka mas adquire sinais distintivos o suficiente para não ser imediata a identificação.

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  11. Ramiro, é exatamente isso que eu quis dizer sobre a lucidez de Kafka.

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  12. Norwegian Wood é excelente! O erotismo da literatura japonesa, inaugurada em Tanizaki, que mergulha na morbidez de Sade em Mishima, e aparece estranhamente potencializada em Kobo Abe - tal qual o prazer irriquieto do comichão - e que também está presente muito em Murakami, tem uma autenticidade que não havia experimentado nem em Nabokov.
    Você vai gostar de Murakami se tem predileção por referências extemporâneas e esnobes à literatura, jazz e música clássica...

    Ah, gosto muito do Francis, e diferente do Marcos, não o tinha como um velho babão cheio de opiniões. Mas essa nota sobre Borges ser uma réplica do Kafka é bem boba.

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  13. errata: por favor, ao invés de
    "tenho uma enorme dificuldade sobre a maneira de falar sobre W. Reich",
    muito mais simples e melhor
    "tenho uma enorme dificuldade em falar sobre W. Reich".
    Agradeço desde já.

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  14. Claro que o Francis falhou em muito, inclusive nesta frase sobre Borges. Agora me deixastes, Luiz, com essa comichão de ler esses autores japoneses.

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  15. Charlles,
    após as minhas postagens no Carpinejar, no Milton, creio que, eis a versão final...


    SOBRE O SOBE-DESCE
    by Ramiro Conceição


    Tudo sobe, desce, sobe, desce… Às vezes, por um longo período, sobe-se fácil… Em outras, se desce terrivelmente… Contudo, não ter medo, pois tudo sobe e desce… Com amor ou amizade é sempre sadio – o tal de sobe-desce. Por dinheiro, pela solidão, por qualquer um – é melhor não tê-lo; nestas condições, sinceramente, não fazê-lo, pois assim errar-se-á menos… Não temer a solidão, por maior que seja, porque ela ensinará, se for amada, como será melhor quando sê-lo; não se envergonhar ou se desprezar por tê-lo que o fazer às vezes, ou muitas vezes, com as próprias mãos: nunca se envergonhar das mãos!: antes ensinar-se, descobrir-se, preparar-se, mantendo-as limpas com carícias terrestres e celestes àqueles que, com meigos risos inocentes, se aproximarão para brincar com fé, novamente, com a dádiva que é viver com o amor - esse! -, que sobe e desce.

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  16. Como complemento ao que o Marcos disse, encontro nessa ânsia referencialista, de encontro de prefigurações e antevisões, um vício da razão apegada a uma visão etapista da vida e da história. Na verdade não importa se Kafka viu isto ou aquilo antes de ninguém, porque o visto por ele foi visto por todos muito antes e talvez desde sempre, à parte as especificidades tecnológicas engendradas pelo processo civilizatório; seria isto: antes um processo do que a antevisão. A lucidez, é claro, ajuda, e o que nos deveria ficar de Kafka seria isso, o aspecto formal aliado à lucidez que, através de símbolos cuidadosamente pinçados das interseções entre a razão desperta e a razão em delírio, sintetiza o mal-estar-no-mundo, principalmente em seus contos (os romances não me parecem tão bem sucedidos assim, neles Kafka se perde, o que ele mesmo percebeu, ao deixar um e outro inacabados e, insatisfeito com sua obra em geral, preferir vê-la em cinzas, o que nos revela também os limites de sua própria lucidez.

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  17. Gostei muito deste texto, principalmente pelas opiniões sobre os livros, cujos autores só conheço (e adoro, por sinal)Kafka. No entanto, sobre a observação de Arendt a respeito do genocídio judeu, não entendo por que o espanto: o mal é uma necessidade humana. Seria possível ao homem viver essencialmente do bem?

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  18. Sobre o comentário da professora Rachel Nunes: pô, adorei: nada há de novo debaixo do sol, já dizia a Bíblia.

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  19. Não li Amerika e acho que Metamorfose é superestimado, mas o lugar de O Processo no cânone é incontestável. Não me parece certo a avaliação de que a incompletude dos romances do Kafka se deve a uma confissão de insastifação com a própria obra.

    E por que é que ninguém fala de Artista da Fome? Para mim esse foi o maior feito do escritor.

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  20. Eu adoro o "Artista da Fome", o texto me remete muito a Macondo. Alguém me explica? Por outro lado, Kafka é simples de ser entendido. Imagine alguém comendo macarronada num velório e na mesma sala onde se encontrava o caixão com o defunto?

    P.s.: Charlles, você sabe algo a respeito de "Quarto de Despejo"? Parece ser uma história de uma "Cinderela negra"... Sei que poderia consultar o Google, mas eu prefiro, sempre, descobrir algo por vias tortas.

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  21. Não tenho nada a acrescentar ao comentário da Rachel, talvez apenas que meu romance preferido de Kafka, "O Processo", me impressiona, entre outros motivos, por sua desfragmentação e incompletude. Algo que vejo também em "2666".

    Milton, sei ao que se refere, mas faz parte da acepção do mal o posicionamento cristão de "não se render a ele". Aliás um posicionamento pré-cristão que vemos em alguns dos mais belos salmos do assim chamado Antigo Testamento. Esse assunto daria muito pano para a manga. Arendt muitas vezes expressa nuances religiosas em seus textos (mais acuradamente em seu último livro), no mais alto grau que o entendimento dessa palavra possa suscitar. Ela era uma profunda estudiosa de Santo Agostinho.

    Me lembro do lançamento de Quarto de Despejo, e de sua autora, que era favelada e obteve relativo sucesso com a obra. Nunca a li, e talvez a Rachel saiba alguma coisa.

    Luiz, gosto muito de o Artista da Fome. Me faz lembrar Macondo, coisa que explico por GGM aludir muito a esse conto em seus textos autobiográficos e jornalísticos. Gosto de Carta ao Pai e de uma série de outros. Não saberia dizer o meu preferido.

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  22. Este comentário foi removido pelo autor.

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  23. "O Ajudante" é melhor do que Jacob von Gunten. É o livro mais impressionante (e singelo...) que já li nos meus 56 anos.

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