Quando estou melancólico, eu nunca espero os sinais mas eles sempre vem. Hoje foi ao sair de carro, no início de uma tempestade furiosa que cai com tudo agora sobre a cidade. Nós estávamos no bairro mais afastado, um belo e pacato lugar onde moram os mais pobres, onde os idosos ficam nas portas das casas em conversas alegres e arrastadas; então uma senhorinha, que parecia ter já seus oitenta anos, andava de frente a meu carro, no meio da rua. Ela carregava um fardo de lenha nas costas e, apesar de eu estar dirigindo muito lentamente para não assustá- la, quando ela me percebeu fez um movimento rápido para o lado da calçada, uma espécie de pulo jovial que bem poderia ser feito por uma menina de 10 anos. Passei por ela e ela virou o rosto para nós com um sorriso deslumbrante, cheio de imortalidade e vida. Aquilo deixou todos nós radiantes. "Como ela é linda!", a Dani disse. A Júlia disse: "Papai, parece aquela cena do Powaqqatsi". Já eu estou com o rosto dela nítido na cabeça e meu coração está cheio de esperança e conforto. Talvez isso esteja na raiz daquela crença judaica de que 36 pessoas, absolutamente desconhecidas e sem relevância social alguma, justificam a persistência do mundo. Nada pode com essa senhora, nem a guerra, nem a doença, nem a ignorância assassina. Tudo nela é espírito e fé.
terça-feira, 5 de dezembro de 2023
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
A chegada dos hunos
Até o dia do colapso. Que ele estivesse pelo pescoço com aquela comédia barata que o destino fizera com sua vida era algo para não passar batido a alguém com a mínima acuidade perceptiva; ele até era generoso em sinais indo da apatia mecânica, em que atravessar em marcha lenta um simples corredor era uma tarefa hercúlea lhe soando incompreensível quando se via chegando no outro extremo em direção à luz, até uma ira mercurial que lhe tomava conta de vez em quando e sempre lhe parecia surpreendente ninguém ter providenciado seu afastamento imediato da sociedade por conta disso. Mas o que lhe aconteceu extrapolou todas as expectativas. Não imaginaria que o mecanismo adotado seria o das vozes, e num primeiro momento até respirou aliviado diante a intuição de que isso ele poderia suportar. De certa forma, ainda estavam sendo condescendentes com ele, pois um rompimento de uma artéria cerebral obviamente teria sido muito pior, ou em vez de vozes viessem lhe esclarecer sobre a necessidade de um despertar espiritual através do uso pirotécnico das luzes. Lera em algum lugar sobre um homem que via luzes envolvendo um caudal de serafins de severos semblantes incorruptíveis descendo em conflagração dos céus, o que os exames médicos a que o obrigaram sua esposa e filhas empobreceu bastante a prostrante beleza do milagre ao aparelho de eletroencefalograma transcodificá-lo em um câncer no cérebro. Agora, vozes, e ainda a voz de tom sutil, impossível de saber a qual gênero pertencia, mas não diáfana nos moldes do tédio da moda das músicas celtas, era algo até bastante prazeroso, e sua memória conservava uma ingenuidade voraz que lhe dizia para não se preocupar com consequências fisiológicas. A primeira voz ouvida foi quando estava no escritório de seu chefe, lhe soando tão próxima ao ouvido, com uma determinação trivialesca em querer mostrar que fora conduzida por uma distância não apta a ser imaginada para esse plano dimensional afim de ficar junto dele, que ele se voltou para a cara sibarita cujas encarnações pregressas em corpos de reis e donzelas da corte sua alma moldara para abrigar-se naquele avatar agora rebaixado por uma inexplicável provação detrás da mesa. Viu seu chefe lhe dirigir um olhar desamparado, como se o tivesse flagrado em um momento sem retorno processando alguma descompressão interna na qual o punitivo abandono cósmico naquela vida medonha aparecia em uma nudez absoluta, e teve certeza que ele também a ouvira. Emitiu um sorrisinho de alguém que tinha uma doença terminal, mas quando Eme estava fechando a porta lhe ergueu o braço em um aceno de coragem. Eme tentou entender o que a voz lhe dissera. Parecia "Valentina"", ou, analisando mais tarde com um pendor mais acadêmico, "Mais valia". Seria mais valia? Rebobinava a fita da memória e lá estava a voz, um viking castrati em seu aterrizar etéreo no centro de todo aquele aparato estrutural do emprego que era como uma pedra lapidar em cima de suas energias para continuar vivendo, abrindo sua boca esfumaçante para dizer "Mais valia". Era tudo que precisava, se disse, com humor brincalhão, um espírito de luz marxista. Iria ser preciso fazer mais se aquilo fora enviado mesmo para o retirar de sua casca suicida de complacência. Será que mesmo seus anjos da guarda eram tão identificados com ele que não tinham também escapatória?, estavam geneticamente codificados para o embotamento assim como ele?
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
A perrenga entre o Bom Samaritano e o Falo Ancestral (curtas sobre sexo)
Sem exceções, todos os homens da família da minha mãe, uma ora ou outra na vida, já destruíram suas vidas por conta de sexo. Há inúmeras histórias sobre esses homens que começam nelas como desbravadores incautos, animais superiores com amplos recursos de competição, e terminam em camas de hospitais, no bilhete não escrito do suicídio tentado, na bancarrota financeira, na separação de filhos e esposas. Entre eles, literalmente, dois ficaram loucos: um deles deixou tudo que tinha e sumiu no mapa, tendo-se notícias não confiáveis de que vaga pelo sul do país, em estado de semi-indigência; o outro ficou em coma por dois meses, depois da surra do marido da amante, e quando acordou a primeira coisa que disse, ainda entubado, era que precisava sair dali para ir atrás daquela que era o amor da sua vida.
quarta-feira, 18 de outubro de 2023
Assim
É costume aqui onde eu moro as pessoas que sentem a patológica necessidade de passarem a ilusão de serem ricas comprarem Hilux. Ontem ouvi uma dessas pessoas, no círculo de iguais, dizendo que está procurando uma Hilux para comprar. A reação foi como uma festa viking: todos a congratulando, dizendo "nossa, agora você vai ficar metida, hein!", e gritinhos eufóricos. O segredo é comprar uma caminhonete dessas com dez anos de uso, pois a lei diz que são isentas de imposto. Como uma nova custa 300, esses testes de laboratório do vazio cósmico as compram por 190: uma economia de uma vida para isso. Daí esse cidadão-cidadã médio sai com seu belo tanque cromado, com pneus altos para dar-lhe a sensação de ser um faraó agraciado pelo deus sol, vendo o restante do populacho de cima, com a cabeça erguida dizendo de toda forma metafórica possível: "Viram? Eu sou Elite! Sou superior e detentor de toda glória eterna e divina!". E etc, etc. Há dois anos, duas dessas Hilux foram roubadas na mesma noite de domingo. Uma delas, seu dono estava na Assembléia de Deus agradecendo por ser um Escolhido. Como esses macacos de realejo não tem mais grana alguma para pagar o seguro astronômico desses veículos, um roubo significa um prejuízo imenso, lembrado por anos quando todo mês tem que pagar a parcela do financiamento. Daí eu faço igual o Hermann Hesse, me aprofundo na carência regressiva que fez surgir esse sujeito espiritualmente mutilado até achar a criança primeva que me possibilite ter alguma empatia, e penso na minha vida. Eu só não suicidei porque tive filhos. Não é uma frase de impacto. Eu não teria me dado um tiro na cabeça nem saltado do décimo andar. Eu só teria bebido e comido até que meu corpo, um belo dia, bum!, explodisse. E teria sido, a seu modo, muito divertido: cada dose de scotch vislumbrando um cenário cifrado no rock inglês ouvido na acolhedora sombra noturna do quarto. Antes eles teriam que me aposentar, os amigos que resistiriam por alguma ameaça cristã de reciprocidade, e eu teria que fazer alguma memorabilia para ser cantada em odes menores nos primeiros dias de luto, depois que o IML me retirasse com a porta arrombada: eu teria que dar um piti numa festa de confraternização, quem sabe cantando a esposa do dono da casa, com meu pescoço gordo e meus olhos empapuçados, mijado na churrasqueira, abraçado cada um até cair no chão enquanto declamava Whitman ("Ah, como ele era culto e dizia coisas elevadas que ninguém entendia..."), e na certa nem teria sido expulso. Coitado, abandonado, sem filhos, sem esposa, um solteirão nerd cujo cérebro se liquefizera nos livros. Mas não choremos. Uma moça se grudou em mim por algum motivo e me passou o golpe da barriga (ela não lê isso aqui, portanto não precisamos usar esse tom sussurrado). Quando minha mãe soube que eu seria pai ela falou: "Meu Deus, o que vai ser da criança...!". Mas, contra todas as expectativas, inclusive as minhas_ eu odiava crianças!_, eu me mostrei um pai bem acima da média. Já escrevi vários textos chorosos sobre isso, mas é verdade mesmo, fazer o quê?, quando vi a Júlia ali na sala dos bebês, pela primeira vez, eu senti claramente que estava tocando o sol. Foi algo tão devastador que eu fui esfolado de dentro para fora e sofri uma mudança irreversível. Esses dias revi por acaso a primeira foto entusiasmada que tiramos da Júlia e dei um pulo de susto: era um ratinho indefeso e fragilíssimo que apresentei para todos como eu sempre a vi, desde aquele momento transfigurado, como o ser mais perfeito e poderoso que algum dia existiu. Há um poema de Brecht que diz que ele iria se conservar saudável e atento para não morrer prematuramente, assim não deixando abandonada a pessoa que ama. Demorou um pouco para que eu consertasse as coisas, mas então eu me mantive sóbrio e saudável, pesando o mesmo tanto de quando eu era um jovem Hércules de vinte anos. Eu não aconselho a ninguém que seja pai e mãe. Aconselho o contrário: fiquem de boa, sigam seus propósitos, não entulhem o mundo de lunáticos de coração triste, a não ser que VOCÊS TENHAM TALENTO E PREDISPOSIÇÃO E DEEM TODA A SUAS VIDAS PARA OS FILHOS (pronto, agora poderemos baixar o tom de voz e voltarmos para o nível elegante). Eu doo toda minha vida para meus filhos. Não cedo a extorsões sentimentais e sou grosseiro quando quero estar em silêncio e em paz, e muitas vezes meu carinho é brusco. E eu me esfoço para que o amor não me perca na missão de ensiná-los a serem seres humanos dignos. E blá, blá, blá, isso aqui não é texto motivacional. E o que essa coisa toda tem a ver com Hilux? Eu não poderia ser bom pai e ter Hilux? A resposta é não. Conhecimento de classe, psicopatologia cotidiana, honra ao Espírito, sentir lucidamente as emanações do apocalipse ecológico, dinheiro como liberdade educacional e não como impostura, não viver a vida que se exibe, não abrir tão ferrenhamente as portas para a depressão diante o vazio cultivado, não seguir o senso comum, não ser parte da manada, etc, etc, etc.
quinta-feira, 7 de setembro de 2023
Fissuras
segunda-feira, 4 de setembro de 2023
Cary Grant
A Dani me mandou ir a uma marcenaria hoje de manhã para finalizar a compra de uma mesa. Mostrou-me uma conta de facebook com a pessoa com quem eu teria que falar, dona da empresa. Eu olhei bem as fotos, parado com o celular ao lado da Dani. Instintivamente, olhei para a Dani e disse: "É com essa mulher que devo falar?". "Sim", ela respondeu, descansadamente. É claro que a Dani tem plena confiança em mim e somos lúcidos o bastante sobre os efeitos naturais da hidrostática corporal, mas por mais que ela tenha consciência que um homem de 50 anos como eu já está há muito fora do mercado libidinal eu me senti ofendido que ela não se importasse que eu falasse com aquela mulher.
Virtù
Ser filho de um casal que se divorciou quando eu tinha 8 anos desenvolveu bastante a noção do que meus pais temiam fracassar em mim. Os dois tinham pavores opostos. Meu pai, nos nossos encontros mensais, na certa passava noites sem dormir quando ouvia minha voz fina, o jeito sensível que um menino na ingenuidade do deserto hormonal tem de caminhar e de se portar. Minha mãe via em mim um pervertido, na linha contrária, que apesar da minha timidez patológica sempre dizia para eu ficar longe das primas. A natureza da supressão nos torna maquiavelicamente lúcidos, e eu recebia essas coisas com um ar terno, ainda não conseguindo verbalizar a verdade intuída do quanto eles, que eram pais tão jovens, se rendiam ao desamparo.
A real
sábado, 29 de abril de 2023
"Eu também não sei, sinto muito!"
_ Sr. Flibas, é o
senhor?_ uma voz denotando vir de alguém muito ocupado falou do outro lado.
_ Sim, quem fala?
_ Aqui é Salmásio Allende, o detetive particular. Como vai o
senhor, sr. Flibas?
_ Senhor Allende. Não
esperava de maneira alguma que o senhor me ligasse. Pensei ter deixado claro da
última vez que não temos assunto nenhum em comum para continuar nos falando.
Como achou esse número? Aliás, que ingenuidade a minha. Deve ter conseguido
através do trabalho que tem em me seguir e pesquisar os detalhes mais
insignificantes da minha vida.
_ Não diga isso, senhor Flibas. Nada é insignificante na vida de
ninguém. Creio que já mencionei a inclinação que tem se desenvolvido em mim nos
últimos anos para escrever minhas memórias profissionais, e o senhor se
assombraria em ver quanto material tenho colhido de tantos e tantos clientes.
_ Senhor Allende, tenho certeza de que o senhor sabe o que está
dizendo mas não desejo e nem deixo de desejar que leve a diante esse seu plano
literário. Isso não me diz respeito e está longe da área de alcance de meus
interesses. O que eu reafirmo ao senhor é que nós não temos nada para
tratarmos. Isso posto, se o senhor me permitir interromper essa ligação por
agora, eu ficaria agradecido.
_ Não, por favor, senhor Flibas, não desligue. Se não for para tratarmos
do assunto de interesse entre nós, que pelo menos essa conversa sirva para
abrir a possibilidade não de que sejamos amigo, mas, quem sabe, o senhor e eu pudéssemos
ao menos nos relacionarmos como uma consultoria. O senhor é a pessoa mais culta
que eu tive o privilégio de conhecer. Como eu já disse antes, o sr. Vergue me
contou coisas muito profundas a respeito do senhor.
_ Peço que pare com essa bajulação, senhor Allende. Não vamos
chegar a lugar nenhum com isso.
_ Não chegaríamos pela ótica do senhor. Ao porto que cheguei os
passarinhos cantam e as aves marulham com louvor_ ele disse, falando
dissimuladamente para si, em voz um pouco mais baixa, mas que não passava
despercebido que o senhor Flibas ouvisse.
O senhor Flibas ficou
estático, ainda em pé, pensando na caçarola com água que colocara na boca do
fogão elétrico. Havia aprendido lendo o manual da máquina sobre os detalhes de
seu funcionamento e nisso se ocupara por um bom tempo daquela manhã, totalmente
absorto. Como o silêncio por parte do detetive continuava, por um momento ele
cogitou, assustado, que a ligação houvesse sido interrompida por ele.
Mas de súbito, a voz
intromissa, um tanto indecente, do detetive, retornou:
_ O senhor precisa me
ouvir com atenção. O menestrel urbano tem algo muito interessante para lhe
falar.
O sr. Flibas começou a ter
a certeza de que a capacidade de irritar daquele sujeito era de um nível
profissional. Talvez ele estivesse usando com ele técnicas cênicas de
convencimento, como os detetives dos filmes antigos. Uma bem engendrada
ciência para tirar do sério e levar qualquer um a aceitar o grau de irrealidade
da situação. Era o tipo de expediente que não tinha outro recursos senão
desligar abruptamente o fone, mas uma polidez e uma curiosidade remanescente
faziam com que isso fosse impossível para o sr. Flibas.
O detetive havia
pronunciado a frase cantando, como se fosse uma canção infantil. Ele cantava
mal, de forma que parecia um velho marinheiro sem jeito tentando parecer
divertido.
_ Vamos dizer que eu tenha
tempo agora, coisa de alguns minutos, já que a água que eu coloquei para fazer
meu chá já se esfriou, e lhe pergunte o que seria de tão importante para que
nós tivéssemos de nos encontrar._ o sr. Flibas disse.
O homem pareceu se ajeitar
na posição em que estava_ novamente a capacidade expressiva de seus menores
movimentos era algo que se fazia totalmente assimilável pelo sr. Flibas. E
começou a falar em outro tom, se sentindo autorizado a colocar toda sua perícia
técnica para fora.
_ O homem que é objeto de
nosso interesse. Sr. Flibas. O nômade cujo nome é Eustáquio Bavilacque.
Julgávamos que ele fosse alguém solitário, vindo de uma família destruída,
tendo problemas sociais severos vindos do que ao tratados de direitos humanos
dizem ser a desigualdade social e bla bla bla. Virou moda afirmar esse álibi
antecipado a todo criminoso sem dinheiro hoje em dia. Eu não caio nessa, mas levo
em consideração a força retórica desse tipo de discurso. Mas esse sujeito tem
uma filha. Isso o senhor na certa não sabia.
O sr. Flibas sentiu o
impacto de ouvir aquele nome, que ele se proibiu de pensar por duas décadas, e
por um momento ficou atordoado tentando se lembrar quem era. Ele se acostumara
a se dirigir mentalmente ao homem com um sinal gráfico, um pequeno e conciso
hieróglifo mental que era inverbalizável mesmo para ele. O ato em volta do
homem o havia reduzido a algo animalesco, as tantas palavras para nomeá-lo
pareciam impróprias. Se bem que os micróbios tinham nomes longos e intrincados.
O detetive, o sr Allende, fazia o sr. Flibas transcender além do ponto de
conforto. O sr. Flibas, por inércia, pôr o apartamento estar escuro e a áurea
de isolamento ter se mostrado totalmente fantasiosa, resolveu esticar um pouco
só a corda.
_ Uma filha. E essa
mulher sabe que virou alvo de um detetive por causa dos pecados do pai?_ sua
ironia era uma via de mão dupla, ele sabia, que iria mais autorizar do que
coibir que o detetive seguisse em frente naquele assunto delirante.
_ Disso eu tenho certeza que
ela não sabe. Eu cheguei a vê-la com atenção para os mínimos detalhes físicos e
alguns traços de seu caráter em uma lanchonete. Uma dessas vezes ela estava na
companhia do pai. Mas ela acha válido atribuir parte da responsabilidade pelo
pecado do pai ao estado.
Ele devolvia a artimanha
ao senhor Flibas, fingindo às vezes ser detentor de uma pureza ocupacional que
o impedia de captar as nuances semânticas da conversa. Talvez ele fosse mais
uma personalidade literária das tantas que rondavam Vergue, homens do livro,
sujeitos nascidos para o quarto semiescuro, vivendo com seus pensamentos
peculiares, tentando driblar suas imperícias no trato com o mundo.
_ Ela está processando o
estado?
_ O rapaz sofreu uma lesão
irreversível na cabeça e não consegue andar como antes de ser preso. Parece que
a coisa envolve a antipatia que ele criou entre seus colegas de cela, que lhe
deram uma surra violenta. Ele ficou no ambulatório da prisão por dois meses.
Ele talvez quisesse
despertar algum sentimento de desforra no sr. Flibas, que achou que seria uma
concordância esperada entre os dois do que ele estaria autorizado a sentir sem
peso de consciência.
_ Eu sinto muito por ela.
Pelo que me lembro do processo judicial e do tribunal de júri não havia a
informação de que ele tivesse algum membro familiar. O advogado constituído que
o estado lhe destinou para a defesa alegou esse fato para solicitar uma redução
da pena. Um total abandono do estado, de forma que não se deveria punir com
rigor exagerado alguém que desde o início não fazia parte do contrato social.
_ De toda forma não é conveniente
que tenhamos essa conversa pelo telefone. Preste atenção nos ruídos de fundo,
está ouvindo?_ ele ficou em silêncio, sem que o sr. Flibas percebesse algum
propósito_ linhas cruzadas, conversas interceptadas. Hoje é muito mais fácil
fazer isso do que em nossa época, sr. Flibas. Eu também sou uma remanescente
dos velhos tempos, dos tempos românticos.
_ Não estou ouvindo esses
ruídos. Quem se importaria em ouvir essa conversa? Algum centro de pesquisas
psiquiátricas?
_ Que maravilha o senso de humor aparecendo no senhor! Eu sabia
que por detrás dessa estampa altamente formal existia um fino humor britânico.
Groucho Marx era inglês? Mas não se adequa. Estaria mais para Evelyn Wright. O
senhor com certeza já o leu.
_ Eu não o tenho em má
conta, sr. Allende. Só tento me resguardar de uma dor que há muito aprendi a
conviver, e sei que o senhor tem se mostrado sensível o suficiente para
perceber isso.
Ele fez uma pausa
considerando as palavras do sr. Flibas.
_ Isso tudo pode parecer
parte da miséria do mundo, sr. Flibas. Eu ia desconsiderar esse trabalho depois
da nossa última conversa, mas analisei bem a informação da existência da
menina. Eu costumo guardar essas cartas na manga, talvez para usar como
conteúdo exclusivo na possibilidade de escrever aquele livro. O senhor já deve
ter ouvido sobre o coração terno. Creio que foi Tchecov que disse isso. E há
muito coração terno nessa reviravolta de Eustáquio Bavilacqua ter uma filha.
_ O senhor estava guardando
para si essa informação? Não a contou para Vergue?
_ Bem. Eu não poderia escondê-la de Vergue. Sou um dos mais
confiáveis e seguros profissionais da cidade, sr. Flibas.
_ Ah, então Vergue sabe.
_ Como não saberia? Ele se deliciou com isso. Ele faltou pular de
sua cama e dançar pelo quarto.
_ O senhor comunica pessoalmente suas descobertas para Vergue?
_ Isso é o que me estranha no senhor, que é tão similar ao meu
contratante. Ele odeia a comunicação por telefone. Por celular é algo
descartável, se chegar a mencionar isso ele é capaz de rasgar o contrato de
serviço e chamar uma junta advocatícia para que a outra parte não receba nenhum
tipo de acordo.
O sr. Flibas ficou
pensando em Vergue, no pouco tempo que lhe restava e como parecia que aquela
alegria esfuziante diante os mexericos vinham de outra pessoa. Não faria parte
do jogo, fazê-lo se sentir menos vivo por não compactuar com tal frenetismo diante
as ricas fraquezas morais da humanidade expressas nas delícias de sua comédia
patética? Allende era cheio de armadilhas, um homem bastante sagaz. Talvez ele
devesse vê-lo, o sr. Flibas pensou. Um cérebro desses, nesse canto da sarjeta
onde estava, não era para se desperdiçar.
_ Vou poupar o nosso
tempo, sr. Allende. Me diga seu endereço que vou aí numa hora combinada.
O homem pareceu ter sido
pego de surpresa. Não esperava que além do humor aquele idoso de faculdades
intelectuais elevadas o suficiente para alimentar certa misantropia também
fosse aberto à experimentação. Para um homem que se gabava de conhecer a fundo
a natureza humana, ter suas expectativas confrontadas era um presente para o
dia.
_ Eu posso poupar todo
esforço para o senhor e aparecer aí mesmo em sua casa hoje ainda. A sua
inquilina só volta daqui seis horas e, a propósito, me encontro a exatas três
esquinas daí.
_ O senhor é um tipo
bastante pitoresco, sr. Allende. Falava de ruídos, e não ouço nenhum ruído de
buzinas e de conversa para alguém que deve estar num orelhão no centro de uma
das maiores cidades do mundo.
_Oh, me fiz entender
erroneamente, sr. Flibas_ ele sorriu. Um sorriso cascateado, como sílabas
interrompidas e encavaladas, como alguém com uma modéstia suficiente para rir
afim de amenizar um elogio que achasse ser desproposital. O sr. Flibas imaginou
uma papada se balançando sob a força daquela alacridade._ eu não me encontro
numa calçada, à mercê de carros e passantes apressados, sr. Flibas. Quando o
senhor me ver pessoalmente vai entender que seria o mais arriscado e
contraproducente dos artifícios para alguém do meu ofício. Minha aparência é
totalmente conspícua e, infelizmente, eu chamo atenção de longe pelos fatores
mais prosaicos. Sou excessivamente alto e minha cara exala prisões e mandatos
de prisão. Uma vez um foragido da justiça se entregou para o primeiro policial
que se encontrou ao sair de uma boate julgando que eu estivesse em seu encalce,
e eu estava num outro caso, de fraude de seguro. Não é uma qualidade boa para
se ter. Como o diabo diz, sua maior força vem de sua aparência de bom cordeiro.
Eu falo de uma lanchonete. A garçonete daqui é um affair que eu tive há algum
tempo, e ela me concede essa regalia no furo de suas desassistência das leis
trabalhistas, se é que me entende. A gente vive sobre a opressão do capital mas
se diverte o máximo que pode. Os prazeres da falta de altas expectativas.
Ele sorriu do mesmo modo,
como se fosse uma fita gravada que rebobinasse a bel prazer.
O sr. Flibas cogitou a
possibilidade de receber aquele homem incomum no apartamento da sra. Adele. Não
havia nada que o proibisse disso, e se Adele visse o detetive iria até sentir
um interesse pela absoluta incorreção da coisa. Uma cozinheira não se abstrairia
do prazer de mexericos picantes. Ela tinha algo do barbeiro da aldeia, mas era
elegantemente dissimulada em controlar as palavras para não soar impertinente.
O sr. Flibas contorceu o
corpo, erguendo-se sobre os solados dos pés, para ver como estava o céu pela
janela. A faixa do canto da cortina se balançava levemente devido a uma
corrente de ar que entrava pela janela semiaberta, e o escuro que seus olhos se
apercebiam agora em toda sua intensidade não podia proceder do horário. Deveria
ser três horas da tarde, um pouco mais tarde talvez, e o ar elétrico que se
sentia por alguma percepção antropológica naqueles prédios que pareciam grandes
grutas agrupadas confirmava que viria chuva.
_ Estarei esperando pelo
senhor. É no terceiro andar._ ele sorriu, desconcertado, e finalizou a
conversa_ como se fosse preciso lhe dizer isso, sr. Allende.
Colocou o fone no gancho
não sem antes ouvir o detetive tentar dizer alguma coisa em sua defesa, aquelas
considerações modestas cheias de um humor viril defasado e obsoleto. O sr.
Flibas ficou parado por alguns segundos, esperando que sua consciência emitisse
o sinal de alerta por ter agido com desfaçatez. Não sentiu nada, só um sossego
brando que bem podia ser efeito da inesperabilidade daquilo tudo, detetive, o
assassino de sua esposa, a filha bastarda reaparecida. Ao organizar o
pensamento dessa forma o alerta enfim veio, diminuído, como se acionado em
zonas distantes de sua mente. Como uma chama num monte crepuscular longínquo,
visto de quilômetros. Era nisso que ele iria entrar, nesse revival de antigas desgraças, esse remoer de traumas à custas, pelo
visto, da vontade de Vergue e da admissão de que sua velhice era uma
planificação insossa e tediosa, que necessitava do velho teatro de sangue e
criminalidade para lhe dar um sentido significativo. Ele bem poderia
colar sua presença na de Toledo e preencher suas horas vazias com aquelas
preocupações pueris mas carregadas de frescor do velho cunhado de sua inquilina.
Ele o admitiria com agradecido prazer em suas engenharias caseiras. Toledo sim
sabia envelhecer, tinha a sabedoria de conhecer os limites de sua maturidade
para reduzir aquelas escatologias urbanas para suas dimensões particulares. Os
cupins da estante de livros do professor de letras tinham o mesmo valor que o
novo assassinato da vizinhança. Como era verdadeira as acepções mística sobre
os loucos de deus, os santos russos que vagavam em suas absolutas simplicidades
por todo império. Toledo lhe parecia um monge de um mosteiro medieval perdido
nas pradarias de Katchkanar, com seu pomar e suas orações madrugadinas. Era
mais uma das confirmações do grande dispêndio inútil de energia em dedicar a
vida para os livros. O entretenimento eterno para distrair-se da distração pela
distração. Já não tinha nenhum apetite e pegou a caçarola de cima do fogão
jogando a água na pia. Analisou sua estrutura fisiológica maquinalmente, como
se fosse um perito observando as reentrâncias de um motor, e não percebeu
nenhum traço de fome. Alexandra lhe disse para sempre ficar atento à afasia,
que para alguém com a carga de debilidades pela qual passara recentemente seria
perigoso cair num quadro de desnutrição. Tentou pensar em algum substituto
ligeiro para o chá, querendo ganhar tempo para se trocar e esperar que Allende
fosse anunciado por Toledo pelo interfone. Daí se lembrou que, se Toledo lhe
batera à porta, era porque o interfone deveria estar novamente quebrado. Abriu
o armário embutido e deu de cara com os pratos. De súbito notou que havia
esquecido onde estavam as bolachas. Ficou imóvel, os braços espichados, ainda
segurando com as mãos os puxadores prateados das portinholas, imergindo sua
mente para dentro de si mesma na tentativa de decifrar aquele minúsculo
mistério essencial. Estava numa tendência à neurastenia nesses últimos dias, e
o Alzheimer era o terror pulsante e onisciente escondido por detrás daquelas
suas falhas de localização. Mas Adele guardava bolachas de água e sal e
maizenas ali, justamente por serem os locais mais fáceis de se alcançar. A
realidade era que não estavam, não iriam aparecer por mágica no simples intento
de lhe aliviar, e fechou as portas de uma vez, quase com violência. Como era
cansativo o fardo da carne. Talvez o que estivesse ocorrendo fosse uma
revolução de seu espírito, tão ocupado em ser levado pela transcendência se
sobrepujando ao corpo nos mínimos arrebatamentos dos ornamentos cotidianos, que
resultava naquelas surpresas desconcertantes, naqueles mal funcionamentos pelo
pouco uso. Daí se lembrou, como se por resposta imediata de um cérebro
ofendido, e se inclinou dando dois passos e viu as bolachas no balcão próximo
ao chão, pelo vidro transparente perfurado. A coisa toda voltou em sua mente
como se fosse a mais poderosa lembrança que tinha, dando-lhe explicações
lógicas de que ali era o melhor local para que as bolachas não se oxidassem e
se tornassem murchas.
Pegou um pacote aberto de
biscoitos de maisena, cuja ponta estava amarrada pela fita vermelha adesiva
retirada quando aberta, e devorou cinco unidades. Era uma enganação de seu
corpo a aparente falta de fome, pois foi colocar aquelas linguetas de farinha
compactada na boca ele foi tomado por uma compulsão que revelava uma fome
vigorosa. Fechou os olhos, com o pacote nas mãos, mastigando os biscoitos que
estalavam e emitiam sons de uma secura quebradiça agradáveis de se ouvir e
sentir, sentindo o prazer que elas lhe davam. Abriu a geladeira, indo contra
sua indisposição a bebidas geladas no café da manhã, mas enfiou seu extenso
braço até o fundo da prateleira média e pegou uma garrafa pela metade de leite.
Como só tinha uma pequena quantidade, duzentos mililitros talvez, ele sorveu o
leite pelo bico da garrafa, dois fios descendo rápida e inesperadamente pelas
laterais de seu queixo e caindo numa velocidade selvagem pela blusa do pijama.
Estava fresco ainda, o que lhe causou surpresa pois ele mesmo havia aberto a
garrafa e tomado dela há uns bons quatro dias, o que seria natural que o
paladar do líquido estivesse comprometido. Seria parte de seu rol de doenças se
aquele deleite vindo do leite fosse imaginário, as papilas gustativas
enlouquecidas produzindo reações que não comportavam a ativação apropriada
gerada pelo material biológico putrefato e em decomposição, e o sr. Flibas
deixava essas suspeitas penetrarem nele como parte da incorreção em que se
lançara de diversas e variadas maneiras desde que acordou.
Enxaguou a garrafa na
torneira da pia, balançou com determinação a água no interior para que todos os
resíduos translúcidos fossem colhidos pelo verte do pequeno furacão, e despejou
o líquido remanescente no ralo. Fez mais duas vezes o mesmo procedimento, usando
um fio do detergente que retirou do suporte de plástico ao lado da pia, e
depois enxugou a garrafa e a colocou com cuidado e ordem no aparador já cheio
de pratos e copos. Provavelmente a garrafa era descartável e melhor teria sido
se a tivesse jogado no cesto de lixo na porta dos fundos da cozinha, mas ficou
um longo tempo apreciando a garrafa deitada junto às colheres e garfos,
ensombrada pelo exército em descanso dos copos de cabeça para baixo em seus
ganchos. Era uma bela garrafa, ele pensou, e um enternecimento poderoso vindo
de raízes obscuras o fez encher os olhos de lágrimas. Alguma coisa muito
potente acabara de passar no substrato de suas emoções naquele momento e ele a
respeitou, aceitando seu lugar de revelação. Talvez dissesse respeito às tantas
garrafas de leite que seus olhos emancipados pela leveza de tantas manhãs de
divagações haviam apreendido, e por um momento o sr. Flibas achou uma síntese
perfeita, a mais preciosa das invocações do pensamento: tudo o que sobrava eram
invólucros de calor sensorial. Estava tratando sobre assuntos terríveis, cheios
de incorreções malucas e distorções, e o sentido disso era para que o calor
sensorial de experiências primordiais fossem resgatadas, lhe voltassem como
iluminações repentinas.
Ele foi para o quarto,
olhando por impulso o inútil relógio de ponteiros sem pilha parado nas dez para
as dez, e retirou o pijama, descendo as calças com as pernas. Entrou debaixo do
chuveiro do quarto e ligou a ducha, se colocando bem no centro de sua boca de
múltiplos furos. Nunca urinava no piso do banheiro, para que a água do chuveiro
debandasse a urina pelo ralo. Uma antiga pressuposição vinda dos tempos de
casado indicava não ser uma atitude respeitável do ponto de vista higiênico, e
sempre satisfazia essas exigências biológicas no vaso. Desse modo, ainda com o
corpo por sob a ducha, se declinou um pouco para o lado até alcançar o vaso e
descarregou um jato de urina para o interior da porcelana. Deu descarga antes
de terminar o procedimento, admitindo a crença fajuta e autocontestada de que
assim a bexiga se obrigava a se esvaziar mais rapidamente, e depois que acabou
de tomar o banho, lavando os cabelos com shampoo e condicionador e esfregando
as costas com uma bucha orgânica, desligou o chuveiro e escovou os dentes,
olhando-se pelo espelho. Esfregou a toalha para desembaçar o espelho e se viu,
os cabelos molhados, o ar de desamparo mortuário do seu rosto devolvendo-lhe o
olhar. Com a voz baixa, um pouco acima do sussurro, respondeu à imagem: “eu
também não sei, sinto muito”. Abriu a porta que ficava por detrás do espelho e
guardou a escova de dentes e o creme dental. De todo modo era motivo de sorte
que não tivesse um espelho de corpo inteiro, não saberia qual resposta dar.
Voltou para o quarto depois de ter se enxugado e pendurado a toalha no cilindro
de plástico fixado na parede. Se comportava como se tivesse um encontro sério,
o que ele delimitava o contorno do conceito sem ter material memorialístico
para abalizá-lo. A suspensão de sentido era moldável à ideia de um encontro
profissional, pois não era amigo do sr. Allende. Balançou a cabeça e sentiu o
sorriso amargo daquela fase da ironia que ia além da simples constatação de que
atendia a alguns passos de uma comédia abstrata que, de alguma forma,
satisfazia-o como único observador. Até mesmo essa maneira de se referendar no
centro da questão perdera muito de sentido com a velhice, pois ele não tinha um
ouvinte hipotético para quem contar. Ele simulava entender a graça um tanto
chocha de que a história não era isenta de certa relevância se a contasse num
jantar, ou numa reunião do clube do livro, ou, quem sabe, numa sessão de
terapia (o terapeuta tendo angariado uma intimidade após longos anos de
esforços mútuos de entendimento), mas não lhe restara nenhuma outro amigo. Não
um amigo com quem pudesse dividir a total falta de razoabilidade que
compreenderia com simpatia aquela insensatez.
O sr. Flibas colocou a
roupa íntima, vestiu as calças compridas de brim. Vestiu uma camisa branca de
botão e um casaco de feltro leve. Penteou os cabelos, usando uma escova de mão
que tinha uma alça compacta por dentro da qual enfiou a mão. Foi para a sala e
esperou. Lembrou, um tanto encabulado, que não havia fixado um horário para o
homem chegar, o que achou ridículo. Isso o colocava à mercê do sujeito de uma
forma que pareceu ser mais uma das astúcias maquiavélicas dele para se
sobrepor. Não era mais hora de sentir ódio e se punir por essa fraqueza, mas
sabia que sua falta de tato nesse joguinho com um homem como o detetive ainda
traria um comportamento melindrado e auto defensivo de sua parte. E Allende é
quem, para piorar a situação, lhe parecia ter maior traquejo para colocar panos
frios e socializar o ambiente. Não estava querendo ler, cruzando as mãos na
altura do rosto. Ficou um longo momento assim, mergulhado em reflexões, até
que, com um suspiro, pegou o jornal soviético e ficou folheando, sem ânimo.
Estava quase se deixando
render por uma crítica cinematográfica sobre um filme indonésio_ sobre uma mãe
camponesa que luta pela sobrevivência do filho sem pai em uma sociedade machista_,
quando foi retirado de volta à realidade com o som de passos vindos da porta do
apartamento. Dobrou o jornal, pôs os óculos no rosto e ficou com a boca
fechada, relaxada, antecipando sons presumíveis que deveriam continuar o
movimento do corredor de fora. Enfim bateram na porta, um toque decidido mas
não exorbitante. Se levantou a andou com os passos firmes. Abriu a porta e lá
estava o sr. Amásio Allende.
Ele lhe sorriu, meio
inclinado, e se desvencilhou a mão direita do guarda-chuva que lhe custava certo
esforço em operar.
_ Oh, Oh, eis o homem
culto! Deixe-me observá-lo para ver com detalhes como ele é. Brincadeiras à
parte, é um prazer finalmente te conhecer, sr. Flibas.
O sr. Flibas pegou a
grande mão dele na sua e sentiu um aperto cortês, que ele de imediato
identificou como uma estratégia calculada de estender suas credenciais.
_ Sou eu, sr. Allende.
Queira entrar, por favor.
O rosto dele era grande,
imponente, espichado para baixo. Parecia um rosto inglês, desenhado usando uma
régua genética de antigos provincianos insularmente isolados com suas noções
servis mas participativas da aristocracia. Um rosto que denunciava sua
inclinação à ordem, ao fuxico e à manufatura artesã. Indicava que na
estratificação profissional a que rendia fidelidade ele poderia ser com igual
proficiência um barbeiro, um açougueiro, um sapateiro ou um jardineiro. O fato
de ter sido um detetive, porém, parecia não ter sido aleatório, porque nele
havia uma confiabilidade que o teria tornado um destaque em todas as áreas
anunciadas, o que evidenciava ao sr. Flibas que não se tratava pois de um mero
improvisador. Era um homem deveras um tanto alto, como ele mesmo havia alertado
pelo telefone, mas talvez bem menos factível de ser evidenciado no meio de uma
multidão quanto pretendia. Seus olhos tinham o recurso inconsciente de serem
generosos e mansos, o que não eram atributos que chamassem a atenção do vulgo
por muito tempo. Talvez ao ter querido passar a impressão de certa imponência
ao sr. Flibas houvesse nele uma vaidade em driblar o selo de barbeiro de aldeia
que sabia possuir e talvez colocasse em dúvida a sagacidade que se espera de um
homem que transita no submundo do crime. Talvez sua aparência dúbia de homem
grande mas com ar prosaico atendesse à verdade de que fosse apenas um detetive
de temas irrisórios, traições de esposas cansadas, perseguições na surdina de
antigos sentenciados cujo único motivo fosse atender à curiosidade de idosos
entediados. Idosos ricos entediados, o sr. Flibas se corrigiu, pensando em
Vergue. O detetive tinha um bigode muito fino, mal composto, com fios grossos
entortados e com as beiradas de baixo formando um cômico montinho com falhas.
Ele entrou e ficou parado à porta, sem graça, ainda repetindo o risinho cortês
que não escondia que avaliava avidamente o apartamento. Ele estava tão embrenhado
em não disfarçar que o ambiente lhe provocava uma profunda curiosidade que
virava o pescoço, arregalava os olhos e depois se virava para o outro lado,
como para obter alguma comprovação de uma suspeita. Vendo que o sr. Flibas o
olhava, ele se calou, ainda com o sorriso na boca (a ponta da língua se
pronunciando ligeiramente como se tivesse um tique nervoso de a mastigar em
momentos dispersivos).
_ Bem, bem, bem, hehehe_
ele estacou os braços.
_ Era como o senhor havia
suposto?
_ Ah, o apartamento? Eu não
imaginava que fosse tão soturno. A sua inquilina me parece alguém com um senso feminil
de organização muito desenvolvido, de modo que esse ar circunspecto, que remete
muito mais ao senhor do que a ela, me cause certo assombro.
O sr. Flibas seguiu em frente para levá-lo ao
sofá na sala, não querendo demonstrar que caía no conto da carochinha de que
ele era um gigante ingênuo que não percebia uma caçoada. Não lhe pegou o casaco
amarelo que usava e que estava molhado, ainda que não muito, não o suficiente,
pelo menos, para que ele se preocupasse com o tapete e os móveis. Allende não
parecia ser susceptível a esses cuidados profiláticos, nesse ponto ele parecia
ter uma distração sincera. Pensando assim, o sr. Flibas achou por bem se virar
e pedir seu casaco, para evitar danos maiores, ao que o homem o passou (não sem
antes fingir surpresa mais uma vez, uma tática que servia como um
agradecimento). Não haviam porta casacos no apartamento, e o sr. Flibas levou a
peça até a mesa e a colocou no encosto de uma cadeira. De todo modo reconhecia
que era quase tão displicente com esses detalhes caseiros quanto aquele
gigante, o que o sr. Flibas ficou consternado, lamentando não ter a percepção
certa para ver se estava cometendo algum deslize que chamaria a atenção de sua
inquilina. Bom, o que fazer, deixa pra lá, ele deu de ombros e voltou para a
sala.
O homem já havia se
sentado. Sem o casaco sua barriga era visível, pronunciada mas não
patologicamente chamativa. Não parecia que vivia para os prazeres da mesa, mas
ser o efeito colateral de uma vida ocupada, um cotidiano do monastério da
profissão que o fazia desleixado com a dieta. Um regime alimentar fomentado em
bares e sanduíches comidos dentro do carro. Quando viu o sr. Flibas entrando na
sala ele deu outro de seus sorrisos, havia um grande cabedal deles, pelo que o
sr. Flibas suspeitava, cada um querendo emitir partes peculiares do discurso. O
sr. Flibas se sentou de frente a ele e o observou, com as mãos unidas.
_ Bem, aqui está o
senhor._ o sr. Flibas disse.
O homem parou de sorrir,
deu uma volta de olhos mais uma vez pelo apartamento, como se tivesse em um
local cuja excepcionalidade faltava na percepção acostumada do sr. Flibas, e
olhando novamente seu anfitrião, ele disse:
_ É um ambiente fabuloso,
sr. Flibas! Confesso ao senhor que me escapava a intuição de como seria. Eu sou
amante de habitats íntimos, principalmente aqueles que ficam intocados à mercê
dos mesmos moradores por anos, como este. Impregna como o quê a personalidade
dos que vivem nele de modos que parecem extensões, como novos braços e pernas.
Não estou me expressando bem e não queria manter essa imagem equivocada cheia
de fisiologia. É mais algo puramente espiritual.
O sr. Flibas o olhava
impressionado, mas continha qualquer emissão sensorial. Não eram matérias a
serem trabalhadas instantaneamente aquilo que o homem dizia. No fundo de sua
canastrice havia um conteúdo legítimo, não sabia ainda se derivado de algum
poder de percepção saudável da mente.
Como o sujeito ficou calado
em evidente espera de que ele lhe completasse com alguma resposta aquela
observação, o sr. Flibas disse:
_ Esses traços de
personalidade são puramente de minha inquilina, a sra. Adele_ olhou em volta
por inércia, atendendo ao que os dois esperavam que se fizesse_ Acho
interessante que o senhor tenha tantos dons de um bom observador. Mas, se não
for desrespeitoso, gostaria que iniciássemos o que estamos aqui para conversar.
Sem nenhuma outra
solução de continuidade, dispensando trejeitos, o sr. Allende abriu o grande
envelope branco que trazia ao entrar e retirou documentos dele. Não havia
mesinha de centro naquela disposição do prolongamento da personalidade da sra.
Adele, o que o sr. Flibas percebia ser uma falta_ ou resultado do fato de que
ela não recebia visitas que lhe traziam dossiês de vidas alheias. As folhas que
saíam como da cartola de um mágico, lisas e foscas, um momento de cada vez
captado por aquele homem cuja única ocupação era esperar e colher pelas
beiradas os pequenos despojos de um conjunto de crimes maiores, aquilo que as
pessoas que eram seu alvo deixavam sobressair pela distração ou pelo
automatismo.
_ Eu gostaria que me
explicasse primeiro o que o senhor vem descobrindo sobre o rapaz. Mostrar
registros sem fazer esse apodo não melhorará meu parco entendimento a respeito.
_ Pois não. O senhor está
certo._ ele procurou em torno algum local onde deixar os papéis, mas não achou.
Segurou-os desajeitadamente por sobre o peito, olhando-o como uma criança
crescida que tem brinquedos importantes que não podem cair na sensaboria do
mundo dos adultos.
_ Em nossa conversa eu
disse ao senhor que ele tem uma filha. A moça tem 19 anos. Foi concebida na
cadeia, no período de vinte anos que ele ficou preso. O senhor sabe, talvez,
que ele cometeu outro assassinato no presídio. Por este, ele foi condenado e
sua pena se elevou em mais nove anos.
_ Eu não acompanho a
vida dele, sr. Allende. Por algumas vezes Vergue queria me informar sobre o que
acontecia com ele nesses anos, baseado em sua aplicação sempre para mim
misteriosa e incompreensível por se manter a par de tais coisas, mas eu
reiterava minha total falta de interesse no assunto. Como o senhor conhece Vergue,
sabe que nada o demove a realizar suas obsessões, de forma que ele me contava
mesmo assim. Não adianta muito se zangar com alguém que é acometido desde de
sempre por compulsões peculiares. Vergue não é bem um maníaco, mas alguém
movido por hobbies íntimos específicos não pautados pela conveniência.
_ O sr. Vergue é um homem
que conserva dentro de si uma criança que nunca cresceu. Ele tem essa chama
científica que está por detrás dos grandes avanços da humanidade. O que parece
ao senhor um comportamento intransigente, na verdade é a teimosia muitas vezes
não politicamente correta dos ímpetos geniais.
Ele falava sério agora.
Seus olhos ficavam cheios de uma severidade trágica. Era um mal ator quando
tinha que demonstrar dramaticidade menos rasa do que o âmbito de suas ações.
_ Bom, deixemos Vergue de
lado por um momento. Queira continuar sua exposição, por favor.
Ele se achegou para frente
na poltrona, de modos que os intervalos entre os botões em sua camisa deixavam
entrever os pelos de sua barriga. Não tinha retirado o chapéu, uma peça que
lembrava o que os atores que interpretavam Sherlock Holmes usavam nos filmes,
embora isso devesse ser um elemento fortuito pois ele parecia a atender outros
exemplos menos cerebrais. Era um homem de ação, de se deslocar por vários
pontos da cidade. Revelava um entusiasmo difícil de disfarçar por ter vindo
ali.
_ A menina se chama
Janete, e cursa História na universidade federal. É uma espécie de militante de
direitos humanos, uma persona dos livros e das causas dos degradados e
minorias, se é que os degradados podem ser vistos como minorias nesse mundo,
não é, sr. Flibas. Ela obtêm as mais altas notas. Isso eu não soube por nenhum
técnica de investigação mais aprimorada, mas por as notas das provas serem
fixadas em murais específicos no prédio da faculdade. Ela tem uma espécie de
veneração pelo pai. É estranho que uma estudante de elevados dons críticos
tenha esse tipo de abstração suficiente para não cogitar o assassino que a
engendrou. Se eu fosse leviano explicaria tal coisa no fato dela ser um ente do
sistema prisional, seus genes terem sido concebidos numa cela apertada com
vários outros casais copulando ao mesmo tempo. Mas isso não é nem um pouco
científico_ ele ergueu seus olhos de ternura canina para o sr. Flibas, uma
prega palpebral semifechava o ângulo que os olhos formavam com o nariz
realçando algo de buldogue amistoso_ e não falo isso senão como elemento para
que o senhor facilite a composição do enredo em sua mente aprimorada, sr.
Flibas. Uma menina filha de um assassino reincidente, e de uma mãe adolescente
cujo grau de desabrigo familiar e deficiência educacional a fez se apaixonar
por um criminoso a ponto de se casar com ele enquanto esteva preso. É uma
desrazão tratar o amor de uma filha como um simples componente genético, o pai
queiramos ou não, não parece ser um mal pai, mas a fúria que ela demonstra
contra o sistema é uma característica nutrida nesse meio.
_ A mãe dessa menina, o
que aconteceu com ela?
_ Ela está viva. Mora com
outro homem, um dono de um restaurante dez anos mais velho e que não quer saber
de nada desse submundo. Janete é independente. Trabalha numa loja de roupas
durante o dia e cursa o curso de noite. Ela e a mãe se dão muito pouco, em
encontros esporádicos. Mas não há nenhuma rixa entre as duas. A garota teve uma
educação católica clássica nesse aspecto, embora só na estrutura patriarcal de
respeito da grande figura patriarcal que governa a família.
_ O senhor está falando de
heranças genéticas, mas pelo visto essa menina está desenvolvendo qualidades
que não haviam no pai.
_ É justo esse o ponto
chave da questão, sr. Flibas. Olhando-a à distância, como me limitei a fazer
durante os primeiros meses, ela correspondia com uma precisão suspeita a todas
as expectativas da visão progressista sobre os benefícios redentoras da
educação. Imagine sair da linha esperada da criminalidade, ou das paixões
baixas que levaram seu genitor à criminalidade, e antes dos vinte anos ter a
potência intelectual de uma...bem, não tenho a erudição do senhor e me falta
algum nome da intelectualidade feminina. Mas eu queria completar essa imagem
com o nome daquela escritora judia, a que
falou sobre o mal ser coisa de gente comum submetida a lavagem cerebral, e não
uma característica pré definida.
_ Creio que o senhor está
se referindo à Hannah Arendt, que cunhou o termo “a banalidade do mal”.
O detetive o olhou com os
olhos concentrados, prenhes de uma simulada admiração. Na hora o sr. Flibas
percebeu que havia caído em outras das estratégias de relações públicas dele. O
sr. Flibas parecia estar ali em parte para atender a algum arquétipo que aquele
homem alto e inteligentemente maleável havia feito para moldar a realidade
dentro do factoide que criara sobre o assassino redimido e sua filha
anarquista. Era ao mesmo tempo de uma ingenuidade desconfortante e de uma
astúcia da qual o detetive angariava alguns pontos para sua premissa técnica.
Queria passar para si mesmo, mais uma vez, numa eterna alimentação de sua
autoestima, que era altamente articulado e com certo domínio sobre o ambiente,
e tinha algo que deveria deixar o sr. Flibas congratulado por tais joguinhos no
modo como o sujeito se sentia realizado por ser ele, o sr. Flibas, um homem de
elevados dons intelectuais.
_ Isso, Hannah Arendt,
aquela senhora com o cigarro que mantinha intercurso com o Heidegger e seguiu
passo a passo o julgamento do Heichmann.
_ Olha que prodigiosa a sua
memória, sr. Adelle. Um nome apenas e toda uma sequência de fatos é acionada!
Ele sorriu ao ver que
havia sido pego em seu estratagema, mas emitira seu sorriso de menino faceiro.
Talvez fosse parte também da jogada a hora certa em mostrar sua modéstia.
_ Eu li o livro dela, devo
confessar. É que eu fico um tanto desconcertado diante de um homem como o
senhor, sr. Flibas. É um livro interessantíssimo. Creio que todo pai deveria
passar esse livro para que os filhos lessem antes de completarem 13 anos, que é
a idade onde o cérebro está ainda bem receptivo mas começa a dar seus primeiros
passos à rigidez da aceitação e do comportamento repetitivo. Eu não tenho filhos,
mas se os tivesse passaria esse livro e O Castelo, de Kafka, como instrumentos
indispensáveis para a formação do caráter.
O sr. Flibas cogitou
haver uma lógica íntima que sustentava essas duas escolhas, e sabia que se
tocasse no assunto estaria mais uma vez cedendo às intenções dele. Como um
estudante de livros e um interessado na condição humana, era uma tentação muito
grande saber o que um homem como aquele teria a dizer. Mas antes que ele
abrisse a boca, o detetive se antecipara.
_ Eichmann, após ser
sequestrado pelo Mossad e quando estava no corredor da morte em Nuremberg,
recusou um livro que lhe foi ofertado por um dos carcereiros. Ele o devolveu
por atentar contra os bons costumes e ao fato dele ser casado e pai. Era o
Lolita, aquele romance pornógrafo tão cheio de refinamento e elevação moral. Já
notou que os únicos livros sobre sexo que importam sobre os que tratam de tudo,
menos de sexo? Tratam de doenças e compulsões, mas não sobre essa sensação
soberana de felicidade e autoestima infinita que o verdadeiro sexo dado por
deus promove. Mas a questão é que a alta literatura era algo muito impertinente
para esse senhor fino e condoído do exemplo moral para seus filhos que
organizou a estrutura dos campos de concentração e da solução final.
_ Eichmann, pelo que me
lembro desse livro, se achava superior a seus comandados por, durante toda a
vida, ter lido dois livros, enquanto eles não haviam lido livro algum. E esses
dois eram dentro do estilo de aventuras exemplares para jovens patriotas, como
os livros de Kay May que Hitler era louco por eles.
_ Isso, senhor Flibas! Meu
Deus, como é um presente altamente vantajoso poder falar com o senhor. A gente
tem sempre uma resposta sintonizada com as mais altas expectativas, sempre
podemos esperar por uma resposta atenta e circunstancial. Nada de assuntos
sobre carros, mulheres e programas estúpidos de televisão.
_ Mas o senhor estava dizendo sobre Janete. O senhor a está
relacionando à Hannah Arendt.
_ Foi apenas uma maneira de fazer uma introdução auspiciosa ao
assunto. Mas eu não a subestimo, nem um pouco, senhor Flibas. Eu trouxe aqui
alguns artigos que ela escreveu para o jornal da faculdade, e a garota está
francamente incendiada.
Ele procurou entre os
papéis e, erguendo as sobrancelhas e molhando as pontas dos dedos, puxou
algumas folhas de cópias de xerox grampeadas no canto superior. O sr. Flibas
leu uma tarja adesiva amarela grudada em que estava escrito o seu nome.
_ É para o senhor. São três
artigos. Um deles ela trata do pai, de forma velada e culta, em que só
iniciados como eu e o senhor poderemos reconhecer a estratégia de falar de
forma abrangente sobre as injustiças do sistema carcerário e a realidade vivida
pelo pai. Os outros artigos são sobre temas pontuais, uma sobre racismo em grandes
empresas e a outra sobre a real emancipação do poder feminino que é toldado
pelos grandes esquemas de marqueting contrário das mídias dos países
periféricos.
O sr. Flibas estendeu o
braço e pegou as páginas. Não seria muito diferente do material que lia
avidamente na Sentinela Progressista. Ele observou as folhas e a tintura estava
fraca, com alguns pontos de impressão tênues e mal visíveis. Abriu as folhas
debaixo e viu que problema estava na máquina que a reproduzira, que deveria ser
do escritório do detetive. Mas estavam num limite de suficiência que não
atrapalharia o resultado, embora exigissem uma certa aplicação da parte dele.
Para um bibliotecário aposentado, era um aspecto que não causava muitos problemas.
_ Ela é como dinamite.
Escreve muito bem. Tem um talento enorme, embora se soubesse converter boa
parte de sua indignação em estratégias eloquentes evitaria o tom enfadonho
típico da adolescência. Por mais que tenha sofrido, ela acredita piamente na
capacidade do cidadão engajado em mudar o mundo. É de partir o coração, senhor
Flibas.
O sr. Flibas lia por alto
os títulos dos artigos. Não confiava muito em excessos de indignação e o
detetive conceituava bem usando o termo enfadonho. Os jovens tinham uma
percepção biologicamente distorcida sobre a longevidade da vida e muitas vezes
suplantavam a coerência temporal das apostas. Era uma impressão equivocada,
promovida por um instinto muito bem arraigado da continuação da espécie, de
imortalidade. Não conseguia mais se enternecer com esses inúteis dispêndios de
energia, essa balbúrdia mascarada de ideologia, que todas as vezes descambavam
em extenuações profundas. Se o experimento social que Vergue queria propor com
isso tudo_ porque era certo que ele sabia da existência dessa garota_, era que
a escuridão do conformismo lipídico que engloba tudo e todos não poderia
decretar suas vitórias de forma tão incontestável. Ele gostaria de ver o rosto
dessa menina, diferir a independência e a herança do assassino no contorno de
seu rosto_ alguma mácula era deveria ter da intransigente seriedade dele no
tribunal, sua empáfia da invisibilidade, sua vontade proclamada pelos músculos
faciais _aquela rede ultra calibrada de violência e temor_ de que desprezava
profundamente tudo em volta. No assassino aquela fúria havia resultado num ato
bárbaro sem razão alguma, uma admoestação vazia contra a materialização errada
da padronização que tanto o afligia. Naquela moça, algo substancial havia
ocorrido na grandeza do mistério evolutivo em curta escala insuflando um prisma
de propósito. O sr. Flibas não podia negar que enfim Vergue havia composto um
enredo interessante, hipnoticamente estimulante a um nível que ele não podia
mais dispensar.
Ele ergueu os olhos,
saindo de suas divagações, e viu o detetive lhe examinando com o máximo de
atenção, como se estivesse suspeitando dos intrínsecos pensamentos passando por
sua cabeça. O homem não temia o silêncio, e quando isso acontecia num servidor
da lei_ mesmo um mambembe investigador de divórcios sem altas credenciais como
ele_ era algo que fazia aflorar um sentimento de apreensão.
O senhor Flibas se limitou
a devolver o olhar, resignado em não ficar na defensiva. O sujeito sabia bem
impregnar de tensão as diversas linhas discursivas, como um bom narrador
polifônico.
_ Creio que a história
sobre a moça não terminou. Como a história de Kafka, o enigma do que está no
castelo é a parte fundamental do que traz o senhor aqui._ o sr. Flibas disse.
_ Lamentavelmente isso é
verdade, senhor Flibas. A parte principal o senhor ainda não sabe.
_ Pois sou todo ouvidos, sr. Allende.
O sr. Allende se mexeu na
poltrona, achegando seu corpo para a frente. O que tinha por dizer parecia ter
um peso circunstancial alto, e ele queria que as palavras recebessem a
delicadeza possível. Era algo curioso e nitidamente empolgante, visto seu ar
disfarçado de deleite, autorizado a não mais ter que ostentar um falso ar de
abjeção. Sua barriga se encolheu ou foi escondida pelos panos de um número a
mais de sua camisa que sobressaiam na área da cintura, e o branco lhe dava um
ar higiênico, o que deveria ter a ver com a impressão que o senhor Flibas
tinha_ um pré-conceito_ de que os artesãos dedicados tem uma assepsia natural,
como se a dedicação lhes conferisse uma incorporeidade.
_ Essa menina. Hum-hum...,
essa moça, é o termo. Entrou numa grande roubada. É uma dessas histórias a
quais podemos definir como zeigeist, como vindas do espírito do século. Tem a
ver com cibernética, correção política, apologia à liberdade de gêneros, etc.
Tantas e tantas coisas que afloram em ritmo bastante violento nessa Babel em
que todo mundo é o algoz e o elogiador de todo mundo.
_ Sou todo ouvidos, sr.
Allende. Continue, por favor.
_ Um colega de aula de
Janete, chamado Nestor Tostes, foi injuriado por uma professora em sala de
aula. A mulher é uma nazista sem tirar nem pôr, uma dessas criaturas sórdidas
que algum evento que deve ser estudado retirou de debaixo da pedra onde viveu
escondida por décadas. Um desses seres cheios de rancor e esbravejando direito
por legitimidade que os tempos atuais tem feito surgir. Os que ficaram
silenciados nas épocas passadas, quando eu e o senhor éramos homens de meia
idade usufruindo da última ingenuidade reinante, que se lamuriavam diante as
injustiças e rejeições pelas quais passavam. É estranho que na faculdade tenha
muitos desses tipos, mais do que a análise lógica sobre a inclinação desses
ambientes para a esquerda crítica leva a pensar. Essa professora é uma senhora
que ela mesma teria motivos para não cair tão achincalhadamente contra as minorias
representativas. Ela tem, bem, como vou dizer, não quero incorrer em nenhum dos
deméritos que estou criticando, mas não tem outra forma de dizer senão com a palavra
direta. Ela sofre de obesidade. Ela tem uma rotundez corpórea além de qualquer
eufemismo. Mesmo assim, numa sala de aula, durante uma discussão que tomou
proporções descontroladas, ela perguntou a esse rapaz o que ele acharia se os
“dos tipos dele” começassem a ser mortos em via pública. É algo realmente
espantoso de se ouvir, ainda mais em uma sala de aula. Os tipos dele ela queria
se referir aos trejeitos do rapaz, que o vulgo costuma chamar de afeminados.
Que conversa espantosa essa nossa, aparece com todo o poder os limites do
idioma.
_ A mulher inquiriu o
aluno sobre se ele se sentiria confortável se o suposto nicho sexual a que ele
pertence sofresse um pogrom?_ o sr. Flibas perguntou espantado.
_ Com palavras muito mais claras do que as que poderíamos usar sob
a égide de nosso senso moral, sr. Flibas. Perguntou na cara dura.
_ Eu não tenho requintes de exclusividade em achar que estou sendo
poupado de uma atualização absolutamente distorcida das forças da história, sr.
Allende, mas isso é uma amostragem pura demais do que minha idade me agracia em
evitar. Meu Deus! Essa jovem, Janete, sair em defesa do rapaz é algo
obrigatório. Ela tem um grande mérito por não calar, por não se recolher em um
canto de observador omisso das derrocadas do mundo, mas ela está provando
apenas que é alguém digno que respeita o contrato social.
_ É o que escreveu aquele
poeta alemão, levaram meu vizinho, mas como eu não gosto do meu vizinho, eu não
me importei, etc, etc, até que chegaram nele e o levaram e qualquer reação dele
já estava atrasada demais. A professora estava usando crachás e adesivos do
candidato da extrema direita à presidência, o que é terminantemente proibido em
uma repartição pública. Seu objetivo era afrontar, já que toda a classe segue o
que ela conceitua como doutrinação da esquerda. Faltou por pouco ela estender o
braço e fazer a saudação nazista. Janete se levantou e começou a falar sobre os
direitos humanos, a comissão de Genebra, sobre Chomsky, o mundo líquido, o fim
das afetividades, a menina é uma fera e sabe conversar como ninguém. Ela
apontava o dedo e gritava, mas sem perder a firmeza da voz, apenas para que a
mulher gorda perdesse um pouco da progenitura do discurso e falasse menos
bobagens. O rapaz, Manuel Tostes, não conseguiu falar nada, estava em choque,
encolhido num canto da sala.
_ Como senhor sabe desses
pormenores, sr. Allende? Tem informantes dentro da faculdade também?
O detetive, ainda sentado
com o corpo projetado para a frente, deixando um largo espaço entre suas costas
e o escoro da poltrona, olhou para os dois lados, como se tivesse esquecido
onde estava, e continuou:
_ Eu tenho o vídeo feito por um aluno, sr. Flibas. Eu o obtive com
o dinheiro do sr. Vergue. Não quero entrar nessa parte da história agora, mas o
senhor não vai ficar sem conhecer tudo. Apenas me eximo de tratar desse quesito
agora por uma questão de respeitar a linearidade da narrativa. Só antecipo que
ninguém tem esse vídeo, não está nas redes sociais, está bem guardado em meus
arquivos e segurado num site privado de memórias digitais. A professora não se
calou. Ela chamou Janete de sapatão, de experimento sociológico de uma filha
bastarda de um criminoso que comprova a teoria de que a prole de desvirtuados
geram desvirtuados. Essa foi a gota d’água para a Janete, que jogou um livro na
cabeça da professora. O livro nocauteou a mulher, que ficou com um galo
horrível e com um corte na bochecha. Ao cair ela quicou o rosto no chão e por
pouco não teve uma lesão craniana. Janete foi segurada para não desferir chutes
na mulher, segurada com veemência por três alunos. Essa parte da gravação
começa a perder o foco devido ao caos implantado por esse final inesperado. O
diretor e os bedéis entraram na sala e a gravação acabou por aí. A professora
foi levada para a sala da diretoria e quando acordou reivindicou a presença da
polícia para fazer um inquérito. Ela disse que os adesivos haviam sido grudados
nela quando ela estava desacordada, no intuito de cavar uma demissão.
_ Isso é muito grave.
Janete usou de boas intenções cívicas, mas uma vez caído na violência ela
perdeu qualquer margem para defesa.
_ Há uma questão que podemos classificar como de uma má escolha
exegética para experimentar a força de um livro na prática. O volume que Janete
acertou a professora é uma edição traduzida da Plêiade de Leviatã, com
oitocentas páginas em capa dura e de quase cinco quilos. Se a sorte tivesse
montado esse incidente duas semanas atrás, quando eles estudavam o Contrato
Social, as possibilidades de se acertar um livro três vezes menos volumoso
seriam menores. Se a mulher não tivesse negado a cabeça num desvio instintivo
para o lado, o velho Hobbes mesmo assim não teria feito grande estrago. O lobo
do homem acarreta uma áurea involuntária de selvageria maior que o romantismo
sem violência de todo homem nasce bom.
O sr. Flibas sorriu
diante a pilhéria. Era um insight realmente primoroso.
_ O senhor consegue ver toda a graça por detrás dessas bravatas
ferozes. Não deixa de estar certo, pois todo mal é ridículo. Essa cena seria
pavorosa em um prostíbulo, quanto mais em um local teoricamente destinado ao
fomento do saber e da cultura. Mas a diretoria acreditou na mulher, diante
tantas testemunhas?
_ Não só acreditou como abriu um processo de expulsão da Janete. A
professora é filha de um desembargador, tem tios influentes nas empresas da
mídia. Um irmão de sua mãe tem um canal famoso, de milhões de seguidores, no
Youtube, destinado aos mais atrozes delírios da extrema direita. Descobriu-se
depois que o diretor da unidade foi compactuado com os movimentos de extrema
direita para não perder o cargo e a escolha da professora foi algo planejado,
para conter a onda progressista da maioria absoluta dos alunos.
_ Isso é um absurdo!
_ O curso é praticamente tudo que uma menina vinda de uma família derruída
e sem muitas expectativas de ascensão social tem. Retirá-la dos bancos
acadêmicos seria um grande acidente na vida dela, um acidente irretornável.
_ Eu lamento muito. A situação da cultura e do pensamento crítico
independente no país é catastrófica. Toda essa trama só mostra isso. Não se
pode fazer nada para reparar as tantas injustiças nessa história. O rapaz
ofendido em sua sexualidade, a menina levada a cometer um ato bárbaro pela
falta intencional de controle por parte de sua professora. E o fato de se fazer
propagandas desse teor em um local destinado à educação.
_ Mas não acaba por aí. Aconteceu algo muito pior. O rapaz foi até
a sala da professora, uma semana depois, desfivelou a calça e lhe mostrou o
pênis. Ele não havia sofrido nenhuma sanção até o momento, em que a reitoria
não viu outro recurso senão o suspender das aulas.
_ Ele simplesmente entrou na sala dela e fez isso? Sem nenhum
conteúdo entre a briga na sala de aula e esse momento?
_ Nenhum. A professora disse que, enquanto ele lhe mostrava as
partes íntimas ele falava num som libidinoso “isso aqui está bem para você? É
disso aqui que você precisa para virar uma mulher de verdade?”.
_ Meu deus!
_ O rapaz quis se aproximar dela sabe-se lá para quê. Se o senhor
o visse saberia que isso atentaria mais contra ele mesmo do que contra a
mulher, pois ele é um terço do tamanho dela e uns 50 quilos mais magro. Se ela
quisesse, simplesmente o destroçaria. A mulher é algo equivalente a uma modelo
ocidental vestido e feminino de um lutador de sumô.
_ E o que aconteceu com o rapaz?
_ A mulher se sentiu agraciada por tamanha sorte. Não poderia ter
acontecido algo melhor para lhe dar legitimidade em todos seus discursos e essa
cena acabou de vez com as mínimas chances que Janete e seu movimento progressista
teria. Os policiais levaram o rapaz e ele ficou três dias na cadeia. O
judiciário parece ter feito corpo mole para deixar para soltá-lo depois desse
tempo todo, como uma lição moral sugerida. O judiciário nacional não difere
muito da atmosfera metafórica que a professora representa com suas suásticas
disfarçadas e sua paixão pelo candidato extremista.
_ E o vídeo de toda a ação? Isso deve valer muito, considerando o
quanto o universo de vídeos da internet se alimenta de material escabroso. Isso
foi divulgado?
_ Ah, senhor Flibas! Reconheço que o senhor viva num isolamento
saudável quanto a todas essas emanações doentias do mundo lá de fora, e por
isso compreendo que não esteja com isso colocando minha perspicácia
profissional em dúvida. Foi uma colega de Janete que filmou tudo com seu
celular e ela não queria se expor se publicasse esse conteúdo em canais
virtuais e nem tão pouco queria jogar isso levianamente nas redes. Eu já a
havia entrevistado alguns dias antes sobre o caráter de Janete, e ela me
telefonou me oferecendo o vídeo por um preço proibitivo. Ela é duro na queda e
foi irredutível, mas sem fazer chantagens. Deixou no começo a insinuação de que
se eu não o comprasse ela não teria nada a fazer com ele senão atender ao apelo
instintivo da consciência virtual uniforme de jogá-lo para os leões da crítica
incessante. Eu fiz uma ligação rápida para nosso contratante e ele topou pagar
o preço. De modos que eu adquiri o vídeo e ele é a peça chave tanto para
inocentar quanto para condenar Janete.
_ Suponho que tenha o registro por inteiro do episódio, de modos
que mostra a propaganda ostensiva no corpo da professora como também,
lamentavelmente, o desfecho do ato de violência.
A conversa não poderia
continuar mais. Ainda ficara uma estrutura suspensiva no ar sobre o propósito daquilo
tudo sendo levado para o senhor Flibas, o que ele poderia fazer em sua profunda
insuficiência em um sentido ou em outro para socorrer aquelas pessoas. Aquela
moça desesperada pelo excessivo apelo moral e o rapaz homossexual cujo
desenvolvimento do enredo se jogara a uma ponto morto de autodestruição. E a
professora, que talvez fosse o elemento mais sensível disso tudo, pelo que
representava na contramão de qualquer esperança de redenção nesse quadro de
almas em turbulência. Era a violência pela violência, o arquétipo puro de
emanações sensoriais vazias de propósito a não ser a imolação mútua. Como uma
pira de sacrifícios conjuntos em nome de um deus amparado no ódio. Mexer com objetos tão venenosos não se obtinha nenhum seguro de se
sair ileso. A conduta forçada em retorno ao andar da trivialidade fez com que o
sr. Flibas interrompesse a conversa e levasse o detetive para a porta de saída.
A desculpa verdadeira era que a inquilina estava por chegar e prometera trazer
visitas, e não seria bom para ninguém que houvesse testemunhas daquele acordo
tácito mas ainda indeterminado que se fazia entre os dois. O detetive mesmo
concordava, achando de uma indispensável prudência que ele saísse naquela hora,
obtendo do sr. Flibas a promessa de que matéria segredo sobre todas as
revelações. O sr. Flibas conteve um sorriso diante essa definição, mas chegou à
conclusão de que o homem estava certo, eram revelações poderosas. Não era por
serem desse grau de escatologia que não envolvesse sentimentos humanos que
deveriam ser considerados de forma séria.
O sr. Allende disse que
iria manter o sr. Flibas informado. Ele se vestira o casaco e descera com vagar
as escadas, olhando os ângulos de cima com uma atenção de entendido. Quem sabe
se ele não teria alguma solução milagrosa a apresentar ao Toledo sobre controle
de pragas? Na certa os dois iriam se encontrar na portaria e aquele mundos
eloquentes não resistiriam a uma pausa para conversarem.
A sra Adele chegou meia
hora depois. A chuva havia parado e um sol manso, preparado para reaver seu
direito de progenitura pelo menos por algumas horas, incidira um calor sobre-humano
cujo recurso imediato foi abrir as janelas e correr as cortinas. Olhando para a
rua de frente, se via as pessoas aparecendo novamente em suas qualidades de
transeuntes apressados atinados com outros aspectos da realidade que não fosse
a pressa desviante contra a tormenta. O céu se esvaziara de nuvens, emitindo um
azul esbranquiçado, ainda inseguro se devia cobrar para si toda a manifestação
sub-equatoriana dos longos meses de calor intenso, e uma ponderação esotérica,
uma espécie de convalescência ainda longe por terminar, deixava claro que as
sombras só estavam em algum lugar resolvendo outras tarefas de urgência
intermitente que, logo cumpridas, voltaria a estender o longo manto de
escuridão e assobios por sobre a geografia visível.
As crianças estavam com
seus uniformes oficiais do colégio. Consistia de uma camiseta polo branca com a
gola azul, com uma insígnia no peito, e a menina usava uma saia até os joelhos
e o menino uma bermuda, ambas azuis. Evocava uma atmosfera regencial cara,
línguas estrangeiras e algum código de ética centenário. A escola era de
período integral, e o fato das crianças estarem ali era algo que despertava
curiosidade no sr. Flibas. A sra. Adele leu isso no rosto do inquilino quando
colocou os dois sentados na sala de estar, e com uma voz firme, característico
dela, lhe contou que os pais haviam pedido que ela os buscasse antes do almoço
no colégio. Ela falava no mesmo tom inalterável que usava para todas as coisas,
mas tinha uma técnica própria de estabelecer o alcance para cara frase de forma
que os que não deviam ouvir ficavam de fora. O sr. Flibas testou mais uma vez
esse poder dela observando as crianças ilesas à fala de sua cuidadora, a menina
folheando um livro que retirou da mochila e o menino, gordinho, com ar de
enfado educado, olhando algum ponto neutro que era importante justamente por
isentá-lo de participar do ambiente.
_ Os pais se julgam
observados, e ainda não estão em condições suficientes de admitirem uma
situação de risco_ ela disse, enquanto pegava uma panela de aço nova de dentro
do armário de cima.
Ela já o havia deixado a
par da disputa na justiça pela parte do hospital que os Neville haviam
acionado. O grande hospital da Anunciação, onde a sra. Adele era cozinheira
chefe e onde Alexandra trabalhara quando exercia a medicina. Era uma causa que
se revelava complicada, cheia de embargos e audiências adiadas ou promovidas
apenas para que os advogados lessem frases de retificação. Tudo para estender a
resolução o máximo possível até que o cansaço físico ou institucional desse o
ganho para os sócios majoritários. A sra Adele havia constituído um grau de
confiança com o casal que se transformou em uma espécie de vínculo familiar,
cheio de respeito e consideração. Foi o casal que lhe dera a promoção de chefia
e supervisionara mesmo o espólio do apartamento de seu viúvo através dos
advogados da família, e Adele lhes dava em troca a persona de cuidadora extra
expediente das crianças, cujo vínculo admitia ser chamada em qualquer hora. Ela
cobria esses adendos do contrato de amizade com uma dedicação sagrada, sendo
que nutria um amor incondicional pelas crianças. E a menina e o menino viam
nela uma sucedâneo autorizados dos pais, atribuindo a ela as características
sobressalentes de carinho que o casal enredado em questões de um mundo de
ocupações restritas não tinha tempo para dar.
A menina era alta, de
quinze anos, e o menino era rotundo, com um ar inalienável do privilégio de
casta, de doze anos. Sentados à mesa pareciam seres tirados de uma cena
vitoriana, um pouco só modernizada por novas adaptações de jovialidade no coque
e nas meias (com marcas da Nike), e colocados ali para comporem um quadro de
uma suave comicidade anacrônica. Fernanda_ era o nome da menina_, havia lido o
livro do sr. Flibas e conhecia aspectos relacionados à literatura juvenil
mundial que rendera uma conversa cheia de felicidade imodéstia para o sr.
Flibas. Ter seu herói menino assimilado a Kim, do Kipling, era algo óbvio,
visto o substrato da cultura subdesenvolvida não poder escapar desses moldes de
referência, mas as considerações saíam com uma inteligência sem misericórdia,
com a precisão condigna da visão aristocrática da garota. “Ele só é enfático
demais em sua recusa do mundo, como se sentisse a necessidade de ser elogiado
continuamente por esse esforço sobre-humano que faz”, ela dissera a respeito do
Pequeno Nero, o herói do livro do sr. Flibas que, em certa época da infância e
por pura voluntariedade, resolvera abrir mão de sua beleza e se tornar um ser
deformado, um pequeno corcunda. “Mas isso não faz com que ele perca sua
verossimilhança, isso, pelo contrário, reforça que ele é um personagem humano
cheio de falhas e inconsistências”.
O sr. Flibas ficava em um
silêncio meditativo diante essa leitura tão inesperadamente próxima das coisas
que ele escrevera há tantas décadas. Talvez se não fosse aquela capacidade
corajosa dela em não ter papas na língua, e conservando ainda por cima um
respeito e uma quase polida adoração pelo livro do sr. Flibas, ele a teria
visto com a misantropia que ele tanto tentava combater mas que se acentuava
mais com a idade. As olheiras cinzas, debaixo e seus olhos concentrados,
intensamente ternos, o enchiam de uma admiração pelo futuro que ela tinha pela
frente, aquela promessa vigorosa que a juventude bem situada,
questionativamente incansável, provoca nos velhos. O sr. Flibas gostava de
falar com ela mas eram poucas as vezes que tinha tal oportunidade. Via as
aparições dela no apartamento como momentos valiosos mas que intuíam sempre um
fator indeterminado de risco, o que não ficava de todo claro mas que Adele e os
meninos emitiam tal suspeita nos rostos. Principalmente o menino, que, sem aos
atributos intelectuais desenvolvidos da irmã, era susceptível a mostrar a
intensidade de seus sentimentos.
_ Ele parecem ao senhor
mal nutridos?_ um dia a sra Adele lhe perguntou.
Ele não saberia responder
com precisão a pergunta, as exigências cosméticas do mundo moderno_ com suas
exibições excêntricas do que considerava-se hoje em dia belo ou socialmente
aceitável_ mudavam numa rapidez que ele não era capaz de acompanhar. Seu padrão
estético elementar se relacionava com alguma insinuação famélica de escassez,
mas ele procurou levar ao pé da letra a pergunta e disse que os achavam bem
nutridos. O menino era algo que não se podia relativizar, embora ele não
tivesse exposto a questão nestes termos para Adele, mas a menina tinha uma
esqualidez que, em sua teoria, favorecia a clareza mental. E esse atributo era
o mais requisitável para a sobrevivência num mundo de simulacros e imposturas
como aquele. Ele sentiu necessidade de ir mais longe na resposta e disse à
Adele que Fernanda lhe parecia capaz de se defender em seus próprios termos
contra a realidade inóspita, o que, para sua surpresa, não foi recebido como
esperava. Adele suspirara de preocupação, e depois de um instante lhe disse que
era isso o que temia. Eram situações nunca explicadas e o sr. Flibas continha a
tendência dos mobiliários do apartamento e das sombras ecoando o vazio das
horas em atiçar a voz do futrico dentro dele. Não queria nessa altura bancar o
velho xereta, atrás de picuinhas para ocupar suas longas horas, se retirava
para seu quarto ou se mantinha no limiar da cordura do bom anfitrião coetâneo quando
eles estavam lá.
Como falar sobre
literatura o desgastava, pois sempre achava que era mais autorreferente do que
seu senso de autocrítica requisitava, ele se mantinha num oneroso silêncio. As
crianças, por mais que disfarçassem, não conseguiam deixar de demonstrar o
quanto se sentiam estranhas diante um velho calado, que ficava sentado sem
fazer absolutamente nada na sala diante eles. Tudo que ele tinha ele levava na
consciência, suas imagens reservadas, suas sensações acolhidas, seus temores
amortizados pela certeza do cumprimento da ampulheta dos anos, e o que era
intensidade auto avaliativa era natural que eles vissem um sucedâneo nada convidativo
para tão elevadas expectativas: lembranças do que seus livros avançados de
biologia daquela escola cara informavam sobre as doenças da senilidade. Ou quem
sabe suas fantasias soltas iam além, no terreno desabrigado das insinuações
criminosas, alimentadas por alguma insuspeita expressão a mais surgida em seu
rosto pela secura da idade. Na internet deveria haver monstros urbanos em que a
sua aparência alquebrada, obsoleta, sem lugar efetivo na região saudável das
aspirações indenitárias, deveriam se encaixar com perfeição.
Como o segredo do que
havia entre os três e aqueles pais corporativos sempre leais às finanças e ao
deus do capital era inatingível para ele, o sr. Flibas pegou seu casaco e pediu
licença. Pensou em almoçar no restaurante italiano a duas quadras abaixo e
pegar o metrô para a biblioteca municipal, onde tinha de entregar um livro e
escolher um outro. A sra Adele ficou consternada, e ele viu que havia sido
abrupto demais em sua evasão, se virando para ela e dando um sorriso de
desculpa. Era fácil mostrar que não era um ser de artimanhas, embora essa fosse
uma das características que a
psicopatologia social reiterava ter de ser afirmada todos os dias. A sra Adele
aceitou suas desculpas e perguntou se as crianças lhe incomodavam (sempre
mantendo a voz audível fora da frequência de outro modo bastante assimilável
dos ouvidos deles na sala), e o sr. Flibas foi veemente, com toda a justeza de
seu caráter. Estava precisando colocar os pés para fora do apartamento e pegar
um pouco de sol, afinal de contas.
Toledo não estava à vista
na portaria. Não teria sido de todo incomodo perder um pouco de seu tempo
ouvindo a epopeia nova dos isópteros, e na certa ele lhe perguntaria se falara
com o Allende. Mas segurou seu chapéu na cabeça, o ajustando mais na linha dos
seus cabelos, e ganhou a calçada. Não havia sombra de água da chuva recente, o
sol cáustico evaporara todos os sinais deixados pela madrugada e pela manhã. O
calor acentuado reforçava a intuição de que para mais tarde tudo aquilo se
converteria em uma tormenta poderosa, como um processo alquímico inevitável. Se
lamentou em não ter pego o guarda-chuva, que estupidez ser levado pela
aparência superficial do tempo. Saíra com pressa para não ter de dar mais
explicações sobre não estar incomodado e acabara se sujeitando àquela distração
inconveniente. Na certa encontraria Filogônio, o bibliotecário que o substituíra
na biblioteca, e se lançariam em longas conversas que extrapolariam o prazo
mental afixado de modo estapafúrdio da hora de ir embora.
Não iria se apressar.
Tinha muitas coisas para pensar. Havia um substrato de diversos assuntos nos
escaninhos mentais da repartição íntima em sua cabeça. Os reis africanos lhe
pareceram convidativos, como se fosse uma missão em favor da defesa da
racionalidade ocidental catalogar aqueles déspotas de mil serviçais negros em
seu lugar na sociologia primitiva. Antepassados distantes tanto dele, através
de sua cor atenuada, quanto daqueles outros sul americanos que passavam por
ele, atarefados, incapazes, a não ser se instigados por alguma fixação
inapropriada, de perceberem os genes de assassinos cerimonias trafegando dentro
deles. Era um alento sentir aquela hordas ocultas de selvagens desaparecidos
adormecidos na multidão com seus celulares nas mãos e suas roupas ajustadas, de
tecido sintético e lanhos vegetais trazidos do outro lado do mundo. Havia algo
de belo no morticínio, na deformação espiritual da extrema violência, era uma
certeza irredutível pouco produtiva em sua desmentida progenitura. Era uma
fantasia utópica da vida mental achar que se poderia viver apartado treinando o
espírito para só se ater aos propósitos capitais, os mais importantes e
elevados. Ele mesmo fazia seus esforços nesse sentido, alimentando essa
impossibilidade abstrata, dirigindo seus circuitos cerebrais para a origem das
nebulosas e os buracos negros. Repetir com autonomia os aforismos da ortodoxia
científica moderna. Se o universo é infinito, não existe metade do infinito, ou
um terço do infinito. Essas fabulações grandiosas para a qual o instrumento
humano não era feito. Esses enormes cristais de elucidação sobre um princípio
que tanto o método quanto o objeto eram abrangentes demais, ou por demais
diminutos, para que o cérebro os comportassem. Era como um conhecimento
sustentado puramente pela semântica, e a prática estivesse inalcançável, o que
era de comum acordo não mencioná-la. O que havia de verdadeiro, terreno,
próximo, carinhosamente atencioso num eterno respeito à nossa dimensão prosaica
eram essas amostras da ferocidade e da intolerância. Ainda se podia deleitar
com a metáfora por detrás do enigma insondável da condição humana: uma
professora e uma aluna se matando numa sala de aula. Seria muito perguntar se
no quadro negro havia alguma coisa escrita? No alcance simbólico de nossa
autorreferente inteligência isso não seria de extrema importância? Como Jesus
desenhando com o dedo sabe-se o quê na areia enquanto a multidão se arregimenta
para apedrejar uma prostituta. Ah, que esplêndida consideração a uma coerência
interna da espécie acharem que ele desenhava a cadeia cromossômica. É aqui que
estará a prova de vossa suficiência e sua redenção. Na ciência libertadora, na
constância cosmológica que separa os atos brutos e os assassinatos, os rancores
e as maldades. O espaço entre essas coisas sendo a Promessa, o
fins constitutivos que vão justificar os meios.
O sr. Flibas fazia pequenas gesticulações, nada comprometedoras, embora tivesse consciência de se beneficiar com o fato de que ninguém incomoda um velho. Que rissem, nessa altura da grande história do despautério qualquer tipo de humor, mesmo o alimentado em fontes vexatórias, era bem quisto. Às vezes ele percebia que havia expressado alguma frase em voz alta, o que levava a alguém naquela turba anônima a olhá-lo. Era uma região selvagem apenas aprimorada com cimento e detalhes de antigas e sobressalentes tecnologias, um letreiro que se aprimorou ao longo dos últimos anos, com a letra “N” queimada. LA_CHONETE. Lojas de celulares com grandes símbolos de uma maçã mordida, ondas termais congeladas em um azul translúcido em frente a uma loja de calçados. A grande savana do homo civilitations, em que os leões passavam em uma observância dissimulada, as hienas se escoravam nos cantos atrás de despojos possíveis. Nessa linha simbólica ele poderia se considerar alguma presa de certa elevação na base da pirâmide competitiva, um animal velho. Pelo que ele lia nos jornais, os velhos haviam aberto uma categoria nova de vítimas e não eram poupados. Esperavam-nos na porta de bancos, sentavam-se com eles nos bancos das praças, se achegavam por detrás quando eles caminhavam para lhe surrupiarem a carteira. Era uma arma involuntária o ar de doidivanas, de alguém que debate com a própria demência, e ele não desconsiderava as possíveis atrações que isso podia exercer nos predadores apressados. De toda forma ele estava tão embrenhado nesses pensamentos que se deu conta que já estava dentro do metrô, em pé se segurando na barra vertical de aço galvanizado, em sentido centro. Esquecera-se de que seu destino quando saiu era a biblioteca, mas também não havia pego o livro que tinha que devolver. A Evolução Criadora, de Henri Bergson. Suspirou sentindo estranhamente sem nenhum traço de apreensão por aquela sublevação total à gravidade. Isso seria uma demonstração indubitável de seu estado de progressiva debilidade fisiológica ou um resultado de ter saído às pressas do apartamento, para deixar a sra Adele e as crianças à vontade? Ele não se importava. Na base de todas essas reflexões estava a filha do assassino de sua esposa, que ele a partir de agora resolvera mencionar pelo nome, Janete, era o que devia a ela essa humanização, dar-lhe o direito justo de sua individualidade. Pensava na grande professora, que ele a imaginara com poucas possibilidades de sua imaginação estar exagerando. Essas figuras abjetas proto-nazistas, absolutamente ignorantes, eram fáceis de serem dimensionadas. A rigidez muscular apropriada à certeza que levavam davam-lhes uma aparência extenuante. Bastava pensar em Goebbels, em Eichmann, em Mengele, em Demjanjuk. Ele mesmo já vira essa máscara um sem número de vezes, não admitindo que a cromossomia tivesse-lhe feito com aquela cor e postado ali em frente a eles, como uma afronta a seus altos regimes aristocráticos. Era uma eterna repetição, uma reformulação que parecia gastar pouca energia para retirar esses mostruários seculares do sótão da história, pois eles por si mesmos já se regeneravam. A propulsão que os faziam ganhar uma estatura perigosa era a matéria fétida que habitava o coração humano. Talvez a perda de força desse clichê desse ainda mais poder àquele símio que se acreditava superior até mesmo por reconhecer a pobreza gramatical das frentes de oposição. Essa professora se julgava a mais inteligente, a mais bela em sua gordura exagerada, a mais bem nascida. Ou alguma armadilha linguística muito bem elaborada, despejada em conta-gotas, a fazia achar que detinha uma verdade desconhecida, que só os adeptos de um secreto merecimento angariavam. Uma verdade que se tinha que honrar pela escolha defendendo-a da abjeção da ralé, da bestialidade do populacho. Mas o sr. Flibas conservava seu conceito de que a ralé estava na medida do espírito, e não na impostura do vestuário que enganava nos dois sentidos. Já vira senhores que pareciam velhos sábios judaicos, secos e gnomizados na aparência, que estupraram as netas. E já vira janotas de terno que participavam ativamente de salvamentos em desastres naturais. E tal professora, o que a fazia se julgar um ente isolado num panteão genético? O salário de professora? Ah, ela era de uma família da mídia, alto poder financeiro. Lênin falando que o homem do campo era um ser bestializado, que tinha que ser contido pela patrola da história. Ellison no início de seu romance sobre o homem invisível falando da pobreza espiritual profunda, cheia de vícios e crimes, das famílias negras famélicas do sul dos Estados Unidos.
O metrô parou na estação
de C. e o sr. Flibas se firmou atrás das pessoas na porta de saída e desceu.
Sabia onde estava mas resolveu não pensar nisso, embora uma presciência de seus
passos lhe revelasse que já não tinha nenhum destino, nenhum local para onde ir
que configurasse um álibi a seu flaneurismo. Era um personagem de alguma
expressão clássica do pensamento comum do homem urbano, da mesma vertente de
Raskólnikov ou Stephen Dedalus, apenas que a cidade que o acaso lhe determinara
vagar era de uma feiura insubmissa, de uma falta de transcendência impiedosa.
Ele requeria para si um pouco de estética para orlar com algum grau de isenção
aqueles seus pensamentos sem esperança, aquela sua ausência já avançada de fé.
Era algo do qual ele sempre se lamentou os cenários daquele país serem tão
organicamente desprovidos de relevância, aquelas pessoas serem tão
inexoravelmente presas em seus estágios de entes efetivos da vida prática. Um
país que nunca teve uma capitulação séria, envolvida por demais com sua
lisergia primordial. O sr. Flibas resolveu prestar atenção por um instante o
que seus passos faziam e se direcionou para um sebo de livros usados que ele
sabia existir a uns três quarteirões. Na mesma hora voltou seus pensamentos
para o assunto que explorava, a sensaboria da raça sub-equatoriana. Por que
eram tão manipuláveis, tão afáveis, tão intocáveis pela história? Essa afasia
fez com que todos os impulsos não digeridos dos anos ficassem estancados dentro
daquele espécime pacífico de olhos esbugalhados. Todas as emanações poderosas
dos vícios da história passando diante dele e ele se sentindo intocado apenas
porque algum sistema de retenção lhe dava a sensação de anestesiamento.
Lá estava o pequeno sebo.
Uma porta entre dois comércios. De um lado uma corretora de seguros, do outro
uma sala de advocacia. O sr. Flibas entrou pela porta envidraçada e deu de cara
com o corredor estreito cheio de livros. Duas estantes longilíneas forradas de
volumes notavelmente muito velhos. Capas soltas, páginas amarelas. Um cheiro de
pó e obscuridade, como se o tempo houvesse se condensado em matéria. Só foi
encontrar alguém na sala de entrada, onde alguns homens taciturnos e
comprometidos estavam de frente as outras estantes, vasculhando o conteúdo
delas. Era um velho armênio que tomava conta do comércio, um homem de barba em
ponta e que usava uma bandana de tons africanos, sempre coloridas. Sua intenção
era se meter num canto de sombras e continuar embrenhado em pensamentos. Uma
janela a dois metros emanava a luz exterior. Estava fechada e o calor ali era
confortável, pelo menos para aqueles tipos de homens. Tinha-se que ter alguma
propensão oriental a um espírito de religiosidade, o que não envolvia a noção
de deus mas sim da agrura da geografia. Como se a percepção dos livros se
vinculasse ao o conhecimento de que o princípio daquelas encadernações e
daqueles pensamentos registrados em tinta impressa viessem de ambientes
cáusticos. Ali dentro a insubmissão do espírito humano era o que estava por detrás
daqueles semblantes calmos, conformados, já isentos de grandes planejamentos e
grandes esperanças.
O sr. Flibas catou de uma
estante um volume da Ética, de Spinoza. Folheou-o e voltou à primeira página,
pondo-se a lê-lo. Já o havia lido um sem número de vezes e sabia várias partes
de cor, mas sempre que o encontrava não resistia a um vislumbre apaixonado. Por
muitos anos se deixou levar por aquelas ideias, se consolou com elas. A forma
como o filósofo português, ou espanhol, ou flamenco, cada nação que o reivindicasse
por orgulho, a forma como ele, ele ia pensando, definira deus, por anos o sr.
Flçibas se forçara para ver nisso o consolo que os que escrevera os prefácio e
as contracapas propagandeavam. A grande libertação que era pensar como o
mestre. Eles e deixara levar por essas sofisticadas palavras. Como toda marca
muito famosa, Espinosa era o suprassumo do pensamento superior. Isento de
dominações religiosas, isento até mesmo de piedade. Se podia trancar em um
quarto e ficar com Espinosa só para si, sem precisar com isso amaldiçoar o
mundo. Ele passou a mão pelo pó da capa e se lembrou da impossibilidade de se
separara o infinito em dois. Se separando, cada parte seria infinita e criaria
a implausibilidade racional de duas partes do infinito somadas serem em maiores
do que o infinito em si. Pequenas piadas que engrandeciam a alma do leitor,
essa que o filósofo afirmava não existir. Deus era a lei rígida, inexorável,
sempre existente, imortal e infinita, logo não poderia haver nada que
extrapolasse os limites de sua criação, a Substância. Era a maneira mais
cristalina de resolver grandes questões inúteis. Espinosa acabou com séculos de
exclusivismos humanos em posicionar o homem
como ser beneficiado por algo que os tufões e os vulcões não eram. Mas
tudo bem, as grandes corporações de empreendimentos metafísicos sociais baniram
Spinosa, decretaram que nem os vermes deveriam prestar atenção a ele, que não o
cumprimentassem. Enumeraram as parcas quantias de bens que ele tinha, seus 160
livros, seu cobertor, seu travesseiros, suas velhas vestes de pobres, e o
afastaram da sociedade. Sob tal peso, mesmo esse que deveria ser o mais livre
dos mortais não aguentou, e essa fátua, esse herém, o levou a uma morte
prematura. Sempre vão falar que era a estimativa média de 300 anos atrás num
mundo cientificamente primitivo, mas o gênio Spinoza morreu de solidão
inconsolável. De nada adiantou sua lucidez baseada na mais pura felicidade
racional, pois foi justamente o que combateu como o atraso animal do homem que
o matou. Era uma simplificação maravilhosa aquela genialidade condensada que
tinha o atributo ainda de ter sido banido, potentes revelações sobre um
niilismo asséptico que custara a morte e a obsolescência de sistemas
metafísicos sagrados.
Espinoza fundou toda uma
corrente de mentes poderosas que se sentiram autorizadas pelo sangue derramado
de seu mestre a irem contra as grandes construções políticas. Deus foi visto em
seu avatar último de regente institucional de organizações com fins muito bem
sedimentados em interesses terrenos. Não era para menos que onde caia essa semente
da palavra a mácula do banimento seguisse seus novos promulgadores. Mas esse jugo
a que Spinoza atribuía o empecilho para a liberdade humana, no entanto, era o
que determinara que o humano progredisse. Sem as igrejas e as sinagogas, sem o
sistema monetário que vicejou a poucos metros da casa do grande filósofo, com
os usurários holandeses sentados em bancos de madeira ao lado do rio Amstel à
espera de que suas vítimas trouxessem os exorbitantes juros dos empréstimo
consentidos, sem essa vida vicejantes, corrupta, escatológica, visceral e
mesquinha, a humanidade não teria do muito além dos limites da caverna. Só um Spinoza
fortalecido por sua posição de pária fundamental, elemento exórdino louvável e
apologético que se valia pelo poder em negativo de confirmar tudo o que
repudiava, poderia existir em sua dimensão própria de saber privilegiado. Só
ele poderia ser esse tipo de super-humano despido de cheiros, rasteirice e abjeções,
livre da perversidade dos pastores corruptos e dos velhos sábios do Sião com
seus filactérios e suas sinetas cujo propósito os séculos trataram por eles
mesmos enterrar. Só Espinosa poderia reivindicar uma nova tautologia
absolutamente exclusiva onde ele em uma solidão majestática poderia habitar,
intocado pelos séculos ou milênios que a sociedade ainda ousasse perdurar
depois de seu novo evangelho. Não havia, em todo reino da erudição humana, um
só modelo que pudesse ostentar uma aproximação do homem a alguma ideia de
sacralidade. Tudo descambava no mais deslavado niilismo. E era isso que o velho
Baruch chegara, com suas palavras cordiais, sua educação límpida de não
ofender, não julgar, não amaldiçoar e nem lamentar nada. Se todos os seres
humanos tivessem se convertido em massa às suas doutrinas, a humanidade não duraria
mais que um século. Um século consumado em uma felicidade estranha, de sorrisos
cheios de um aprimorado terror, o sorriso da tirania do nada, da reificação da
obsolescência aceita. Spinoza teria adiantado em três séculos o nazismo e a
sociedade deísta construída no estágio preconcepção do ideário leninista. Uma
humanidade que se resignasse em viver na eternidade, assepsiada do orgulho, da
ganancia, da sexualidade e mesmo do memorial formativo que constituía a
lembrança individual, teria caído em questão de décadas ao extermínio mais
atroz e abjeto. Viver apenas com as premências do espírito imortal dentro do
fervor controlado da carne finita seria o mais pavoroso dos infernos.
Era para confirmar essa
sua aversão à beleza conceitual máxima das ideias de Baruch que o sr. Flibas
gostava de se emergir naquela cidade sombria e movimentada. Se submeter aos
ruídos, ao estalo, ao som do freio fremindo em sua potência desesperada máxima,
o som das gralhas das mulheres e da brusquidão dos homens, ou o som disperso
procurando seu direito de progenitura das crianças, o som dos pulsos sobre o
vidro, das janelas sendo abertas, dos despojos se liquefazendo nas sarjetas.
Era essa a vacina do sr. Flibas contra aquele cristal fractal de lucidez
aterrorizante da grande ideia. Uma ideia que impressionara os maiores homens de
seus tempos, de Goethe, Mann, Tolstoi, a Einstein. Nós somos deuses era o que
Cristo falou aos apóstolos. E Spinoza traduziu essa frase dessarroada por nós
vivermos em deus, de forma que toda revolta, todo movimento, toda procura e
descoberta, era resultado em nada. Viver em deus e ser deus resultava em um
apaziguamento que não dava mais relevância alguma em continuar. Isso
justificava acreditar que os únicos sábios pragmáticos que receberam bem esse
novo mandamento foram os que sucumbiram em longas prestações ao suicídio das
drogas. Só os bêbados e os loucos teriam razão, os loucos de deus. Espinoza não
diferia em última instancia à crendice cosmológica de Cthulhu ou a cientologia.
Não meu caro Baruch. Nós precisamos de esquemas pueris, de servidão das formas,
de complacência diante uma ideia menor, mais espúria e contornável, em algo que
nossas frágeis e trêmulas mãos possam tocar. Nós somos cegos e todas as formas
que se prestarem a se preocupar um pouco que seja com nossa redenção tem que se
situar nas três dimensões conhecidas. Nada de física quântica, nada de grandes
esquemas, paradoxos do saber, grandes potenciais inflados do cérebro para
vislumbrarmos deus. Nós não queremos vislumbrar deus, não nesse estágio em que
estamos. Não nessa era em que novas conjurações estão sendo testadas com os
velhos êxitos alienantes.
O sr. Flibas resolveu
comprar o velho livrinho. Já tinha três edições, uma da universidade de são
Paulo e outra da editora Perspectiva, numa coleção das obras completas do autor
em quatro volumes. Estava livre de Espinoza, o que queria dizer que não tinha
muita cosia a se apegar como substituto. Ele avançou pelo espaço entre as
estantes improvisadas, na pequena saleta. Quase se esbarrou num senhor de óculos
e chapéu panamá, que estava acocorado como um menino procurando nas estantes debaixo.
Se desculpou, ao que o homem sequer expressou alguma resposta. Desceu uma
escadinha pequena composta de três degraus e chegara à sala principal, de teto
baixo e entulhada de mais livros. Do lado esquerdo havia o balcão, feito por
uma mureta branca de tijolos pintados com cal, onde havia uma plataforma abaixo
que servia de mesa para se colocar os produtos. Ele ficou postado ali em pé, aguardando
alguém aparecer. Olhou em torno e s[o agora viu que havia mais pessoas que
teria imaginado para o horário. Contou distraidamente quinze pessoas. Haviam
duas mulheres, que conversavam baixo examinando um livro, e sorriam com uma incrível
jovialidade. Era uma compulsão ter que substituir Spinoza por aquela cena, de
duas jovens sorrindo com um livro em mãos. Se tivesse algo em que acreditar, o
sr. Flibas cismaria em acreditar naquela cena. Romântica, burlesca, com o mesmo
sentido raso de uma propaganda de banco. Não era a mônada de sentido da qual resolveria
morar com conforto e nem trazia aquele tipo de mensagem terna para seu sono
irregular à noite_ onde era propício ele inserir e arregimentar cenários que o desincorporasse
para o sono_, mas se ele nãos e sentisse tão fisiologicamente isolado em suas
resignadas expectativas da velhice, ele gostaria de enquadrar aquela cena e
emoldurar na parede de seu palácio interno. O fato de não ter que explicar
aquela sensação a confirmava, sua afasia discursiva. Um mundo onde a
comunicação fossem lâminas de fotografias ininterruptas, pensadas com seriedade
conforme a apreensão sensorial sincera, seria um estágio da evolução, um desvio
padrão interessante. Mas por ora, por milênios enquanto a espécie ainda
insistisse em durar, o propulsor da vida estria sempre do lado de fora de Spinoza
e absolutamente alheio aquela jovens sorrindo. Mas ele podia guardar para si
como solidamente importante a luz daquele instante, por mais que todo falatório
de sua mente e do mundo viesse tentar suplantá-la.
O armênio havia aparecido do fundo da sala, com um telefone celular pregado no ombro. Reconheceu o sr. Flibas e acenou para ele com um meio sorriso. Era o máximo que comportava seu semblante reservado. O sr. Flibas pagou pelo livro, uma bagatela. Grandes tesouros sendo desfeitos por cêntimos. Era a forma de continuar o herém. Deem ao proletário tudo o que ele nunca imaginou que tem e assim evita-se o dispêndio de grandes fogueiras para queimar livros.