sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

O Século que Não Foi de Tolstói



Eu passei muito tempo amando Dostoiévski, só lendo Dostoiévski, tendo Dostoiévski como a unanimidade mais vantajosa tanto no aprendizado da escrita como dos ângulos mais certos para observar o raivoso e mesquinho diabo humano, de forma que me esqueci quase por completo de que ao lado dele há um outro desbravador de igual ou superior envergadura. Durante o século XX, Léon Tólstoi passou por um curioso processo de esquecimento que, à diferença dos tantos outros autores esquecidos, foi motivado não pela obsolescência e envelhecimento de sua obra, mas por sua imensa superioridade. Tolstói, trocando em miudos, foi relegado a um segundo plano na esfera dos grandes escritores justo por ser o maior de todos. O maior esteta, o compositor do maior painel ficcional de todos os tempos, o narrador por excelência, o dono de uma perfeição excessiva em cada um dos bastiões da escrita que frequentou, de forma que nomes sinonímicos das letras chegam a ficar pequenos perto dele. Era muito mais refinado na concisão lapidar do que Flaubert, nunca tendo sentido o terror que o francês sentia de ser escravo de sua própria técnica; sua memorialística faz com que os romances de formação produzidos pelos autores nos anos futuros percam o ar distintivo de legitimidade; suas fábulas infantis e moralistas são tão cheias de torpezas, degradações, e modelos etéreos de ascensão que dá a direção da literatura fantástica que se produziria no restante do século XX; suas descrições de pessoas  e paisagens são de uma beleza trágica e de uma reverberância para outras profundidades do discurso que é impossível ao leitor, mesmo a dez mil quilômetros de distância, não ter a certeza de que é íntimo das ruas de São Petersburgo e de Moscou, assim como não lhe sai da memória a lembrança detalhada da morte da princezinha e do rosto monumental do velho conde Bezukhov no leito de morte. Cada descrição de Tolstói tem as sombras de Rembrandt. Ser levado por ele através da enorme Rússia com seus mujiques e seus salões da aristocracia, é saber como os leitores do século XIX já sabiam o que era o cinemascope, ao mesmo tempo em que se entende porque Martin Amis disse que Tolstói foi o único escritor que conseguiu reproduzir por escrito a felicidade.

E mesmo assim, estabelece-se a incógnita do por que Tostói foi canonizado e preso a uma redoma de admiração empoeirada por cem anos, tornando-se um desses nomes citados como pontos de grandeza mas muito pouco lidos. No Brasil, por exemplo, até cinco anos atrás era algo de sobeja dificuldade achar alguma tradução de seus três romances principais, sobrando ao leitor persistente a procura por traduções antigas de Anna Karenina em sebos de livros usados, ou a espera de que o ciclo quinquenal de publicações de clássicos da literatura universal feito por revistas e jornais relançasse alguma tradução vertida do inglês. Ainda hoje, eu que procuro Guerra e Paz nas livrarias que visito, só encontro a informação no computador de buscas de que uma edição da obra em dois volumes pode ser importada de Portugal, ou então pode-se adquirir por um preço tirânico quatro volumes da LP&M que, apesar do respeito que tenho a essa editora, não me inspiram muita confiança.

É algo que penso ser motivo de um estudo mais abrangente por parte dos pensadores que se ocupam com os contrapontos ideológicos dos séculos, a razão de por que Dostoiévski foi eleito o respresentante do então moderno século XX, em detração de colocarem Tolstói como o homem estigmatizado por ter definido por inteiro o século XIX (a ponto de se enterrar na história junto com ele), e, uma nova questão que surge nesses cem anos da morte de Tolstói: a qual dos dois pertencerá agora o século XXI? Em um magnífico ensaio sobre esse assunto, escrito por Joseph Bródski e publicado pela Cia. das Letras no volume Menos que Um, Bródski diz que os autores modernos se identificaram com o conturbado e inconstante Dostoiévski. As vertentes mais importantes da intelectualidade do século XX tomaram Dostoiévski como pai  do homem urbano, exilado, perseguido por poderes institucionais inéditos que os transformariam em números, privando-os do direito à individualidade. Dostoiévski entregou dilapidado aos grandes analistas da alma da humanidade, confrontada pela primeira vez com sua bestialidade desencantada, um novo posicionamento profilático capaz de um certo esclarecimento ao ver para dentro do seu interior de caos e fúria. Em uma simples passagem de Crime e Castigo, em que Raskolnikov anda pelas ruas de Moscou tomado por uma febre cerebral, formulando no curso de seus pensamentos inconstantes a tese pessoal da grandeza que há por detrás do assassinato, há mais do que a gênese de vários procedimentos modernos da narrativa, do stream of consciousness, do relativismo moral, da quebra da linearidade da escrita, do romance coisa desprovido de personagens e ocupado no centro por impulsões do ego, o romance freudiano de Beckett.., há também o sintoma da falta de segurança total proporcionado pelas duas grandes guerras mundiais que lançou o homem na depressão desespiritualizada da modernidade.

Yasnaya Polyana
Bródski cita o imediatismo da escrita de Dostoiévski (já citado por Nabokov, que disse não haver uma página de Dostoiévski que possa fazer parte de uma compilação de textos representativos), sua falta de uma organização mais apurada da narrativa, seus aparentes excessos que descambam espontaneamente para o grotesco, seu desleixo pela limpidez e fluidez. Exceto na intensidade, Dostoiévski é o oposto de Tolstói, e um oposto que, num primeiro momento, parece diminuído diante aos atributos retilíneos de Tolstói. Tolstói era  não só melhor escritor como melhor homem que Dostoiévksi. Tolstói foi coerente com tudo que  acreditou, até mesmo quando escolheu por puro exercício de campo ser um aristocrata burgues devasso na juventude. Entendia com lucidez os ciclos ontológicos da evolução pessoal, e por isso renegou seus grandes livros, permitindo que eles circulassem livremente nos milhões de exemplares pelo mundo , sem que cobrasse um centavo dos milionários direitos autorais a que teria direito. Em seu cristianismo íntegro, em sua piedade guerreira pelos despossuídos que nada tinha de pedante, criticou duramente tanto a igreja católica por seu niilismo abjeto de culto castrador a um Cristo martirizado, quanto ao evangelismo reformador ganacioso e prostituído pela sede pelo dinheiro; partilhou sua fortuna com os empregados de sua grande propriedade rural, Yasnaya Polyana, distribuindo-lhes a posse da terra. Diante tais ações, foi excomungado pela igreja russa ortodoxa, e olhado com suspeita pelos camponeses, e, no fim da vida, quando parte em exílio voluntário para longe dos interesses surrupiadores de seus herdeiros, morre solitariamente na gare de Astapovo.

Dostoiévski, epiléptico, polemista inconstante que sentia prazer em rebaixar-se diante o inimigo ao pedir-lhe desculpas,  propenso a admirar homens nefastos do alto poder czarista, e cujo cristianismo desesperado revelava toda uma arraigada falta de fé, era, pois, o anti-Tostói. Isso fez a diferença real a seu favor. Em seu eslavismo em cantar a superioridade do povo russo sobre os demais povos da Terra, foi, por contradição, o porta-voz do homem ocidental. Tolstói era centrado demais, seus tormentos espirituais dotados de uma dor cabível em um desenho lógico previa a redenção pelo isolamento e pela fidelidade individual; Tolstói era muito oriental e completo para ser interessante ao mundo ocidental e desfragmentado do século XX. Enquanto Dostoiévski era, geneticamente, o formulador de Mersault, Antoine Roquentin, Thomas Sutpen, Stephen Dedalus, no que tinha de pesadelo, de dissonância, de intriga, de incompletude.


Escrevi esse texto motivado pela leitura de Ressurreição, o último dos três grandes romances de Tolstói que a editora CosacNaify lançou, em 2010, no Brasil. A CosacNaify está fazendo o excepcional trabalho de resgatar Tolstói ao leitor brasileiro, empreitada que tem no tradutor direto do russo, Rubens Figueiredo, sua peça chave. Já lançou a primeira tradução direto do russo de Anna Kariênina, que teve sua primeira edição esgotada, assim como a obra de Tolstói preferida de Harold Bloom, Khadji-Murát, (essa pela tradução também do ótimo Boris Schnaiderman). Os livros tem um acabamento luxuoso, capa dura, fita de seda para marcar a página, fotos, de forma que são belas peças que também servem para colocar em relevância, no tocante de quem as possui, ao menos a decoração da casa.


Lendo Ressurreição eu aventuro dizer que talvez esse novo século seja, até por saturação à toda herança bem esgotada que o modernismo recebeu de Dostoiévski, o século de Tolstói. Uma surpresa foi a descoberta de que um de meus autores preferidos, Thomas Bernhard, parece ter bebido muito da maneira de escrever de Tolstói, em sua limpidez, sua falta de pomposidades, seu discurso direto e destemido, sua repulsa a se integrar ao modernismo e às escolas da moda, sua forma minimalista de, em alguns preciosos parágrafos, usar da repetição para firmar uma ideia (a diferença fundamental que valorisa essas traduções diretas é notar esse detalhe substancial do método de escrita de Tolstói, completamente apagado nas traduções do francês e do inglês). Talvez esse novo século não suporte mais os modelos de realidade paralela, as fábulas kafkianas, as parábulas distópicas de Orwell, e, aos esclarecidos que ainda restam e aos inconformados, a crítica dura e sem artificação de Tolstói seja a nova arma para confrontar os poderes instituídos. Pois Ressurreição é uma viagem sem eufemismos e sem retoques artísticos aos porões do sistema judiciário russos (e, por derivação, brasileiros), e mais ainda, uma denúncia saturada da corrupção humana, da ignorância e, sobretudo, da crueldade gritante mas oficialmente aceita dos que se omitem.

(Sobre as novas traduções diretas dos grandes russos, esse ensaio imprescindível:
http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao_47/artigo_1392/Nossos_tres_russos.aspx)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Uma Oração, por Jorge Luis Borges



 Minha boca pronunciou e pronunciará, milhares de vezes e nos dois idiomas que me são íntimos, o pai-nosso, mas só em parte o entendo. Hoje de manhã, dia primeiro de julho de 1969, quero tentar uma oração que seja pessoal, não herdada. Sei que se trata de uma tarefa que exige uma sinceridade mais que humana. É evidente, em primeiro lugar, que me está vedado pedir. Pedir que não anoiteçam meus olhos seria loucura; sei de milhares de pessoas que vêem e que não são particularmente felizes, justas ou sábias. O processo do tempo é uma trama de efeitos e causas, de sorte que pedir qualquer mercê, por ínfima que seja, é pedir que se rompa um elo dessa trama de ferro, é pedir que já se tenha rompido. Ninguém merece tal milagre. Não posso suplicar que meus erros me sejam perdoados; o perdão é um ato alheio e só eu posso salvar-me. O perdão purifica o ofendido, não o ofensor, a quem quase não afeta. A liberdade de meu arbítrio é talvez ilusória, mas posso dar ou sonhar que dou. Posso dar a coragem, que não tenho; possa dar a esperança, que não está em mim; posso ensinar a vontade de aprender o que pouco sei ou entrevejo. Quero ser lembrado menos como poeta que como amigo; que alguém repita uma cadência de Dunbar ou de Frost ou do homem que viu à meia-noite a árvore que sangra, a Cruz, e pense que pela primeira vez a ouviu de meus lábios. O restante não me importa; espero que o esquecimento não demore. Desconhecemos os desígnios do universo, mas sabemos que raciocinar com lucidez e agir com justiça é ajudar esses desígnios, que não nos serão revelados.
        Quero morrer completamente; quero morrer com este meu companheiro, meu corpo.

(Obras Completas, volume II; Elogio da Sombra, p. 416; tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques; editora Globo)

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A Love Supreme/John Coltrane, 46 Anos Hoje




Hoje é tão fácil, mas para ter meu primeiro A Love Supreme foram necessários uma lojinha cult de entendedores esnobes num bairro chic da capital, um vendedor belga avisado pelo recentíssimo mecanismo de e-mail, um espaço num container, a travessia de um cargueiro pelo Atlântico, rodovias e rodovias interestaduais, e meses de economia monástica. A espera foi de oito semanas, e lembro com a apreensão feliz de uma criança às vésperas do natal que o ar condicionado e os vários CD´s de dar inveja, ordenadamente expostos em prateleiras de mogno inglesas, foram o hino marcial para que me botassem nas mãos o pacote inacreditável onde estavam dois dos álbuns mais elogiados do jazz: In the Silent Way e A Love Supreme. Este último, uma edição comemorativa com capa tripla de cartão e um folheto de doze páginas contendo fotos inéditas e a oração a Deus manuscrita que Coltrane vocaliza, palavra por palavra, no sax tenor da parte 4. Desde então,  na época da queda da Bastilha do download, comprei-o mais duas vezes, por preços miúdos, em sebos.

Odiei-o ferrenhamente quando o ouvi. Nada me parecia mais tosco. Não era o Coltrane exuberantemente oriental de Kind of Blue, filho direto de Rimsky-Korsakov, Stravinski e o escravo negro escondido que descobriu em plenitude beatificada o sentido da vida antes de morrer no silêncio dos batedores do campo lá  de cima; não era o mesmo cara que, possuído por um anjo megatômico, espontaneamente contrabandia para a nossa limitada estratosfera o solo inclassificável de luz em Flamenco Sketches. O cara havia perdido a direção depois que separou de Miles Davis. Aquilo era grafite numa parede de cal, não tintas no acrílico. Pura enganação o  jazz que se rebelou na década de 1960, tudo que existira de bom e sublime ficou confinado no be-bop e no jazz modal. A Love Supreme confirmava a perda de tempo em dar ouvidos aos experts, esses entendedores de uma maçonaria do gosto que ditavam graus de ascensão estipulados em herméticas burocracias internas, que nada tinha a ver com o mundo aqui de fora. Gente que sabia por completo o nome da baronesa Rothschild,  os canais certos para se chegar ao hotel de onde Chet Baker saltara pela janela, o nome das cinco músicas e do auditorium onde Louis Armstrong inspirou o ensaio clássico de Cortázar, o maior baterista de todos os tempos, o maior clarinetista de todos os tempos, o maior tocador de glockenspiel de todos os tempos (e a estupidez de não saber a diferença óbvia entre o glockenspiel, o mero xilofone, a prosaica marimba e o demodé balafon).

Não tanto para manter minhas credenciais de iniciante ingênuo mas que pode ser trabalhado junto a essa turma, mas por pensar que havia gastado tanta grana numa coisa espúria, que insisti na audição de A Love Supreme. Por coincidência, assistira naqueles dias ao filme Adorável Professor, em que Richard Dreyfuss interpreta um professor aspirante a músico que, quando avisado da gravidez de sua mulher, entra numa crise de prostração. A esposa, sentindo-se rejeitada, chora num canto da cama. O jovem Dreyfuss, cujo martírio no filme é suportar estoicamente a um cotidiano insípido de professor colegial e homem casado que cada vez mais o separa de sua ambição de ser músico, senta-se ao lado da mulher e, num esforço de espiação, justifica que a primeira vez que escutara Coltrane achara aquilo um lixo; parecia um caos sem lógica e propósito, a enrolação de um soprador de tubo que não tinha talento nem para assoviar canções de marinheiro. A pior coisa que ouvira na vida, MAS...(daí vem a parte muito emocionante, a câmera se aproximando lentamente de um Dreyfuss invadido por intrusões inesperadas de beleza, entrando licitamente em sua região própria de espaço significativo), aos poucos foi compreendendo a sublime música de Coltrane, sua força inusitada, seu jorro de ira, sua conflagração ilimitada de ternura, sua insatisfação pelo absoluto, sua incrível inteligência despojada, seu misto de clamor visceral e ódio divino, sua imposição de dizer que existia e participava do jogo, sem requintes, sem retoques, com sua recém criada sofisticação e auto-atribuido pós-doutorado em uma nova refinadíssima estética. E como essa descoberta, continua Dreyfuss, o deixou maravilhadamente sem palavras, como essa percepção de algo transcendente desatrelado do senso comum e absolutamente puro, o reduziu ao silêncio da mais valiosa alegria. Por isso, conclui, quando você me avisou que está grávida, eu senti a mesma coisa de quando descobri Coltrane. A mulher lhe esfrega a cabeça no peito:" a coisa mais linda e verdadeira que já me disse".

Precisamente hoje, Coltrane entra no Van Gelder Recording Studio, em Englewood Cliffs, no estado de Nova Jersey, junto com o baterista Elvin Jones, o baixista Jimmy Garrison e o pianista McCoy Tyner, para a gravação de uma das mais belas músicas de todos os tempos, firmemente decidido,  na paráfrase a Walt Whitman, a falar em idiomas aromáticos. Poucas pretensões foram tão fielmente atendidas.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Robert Capa

"" E lá vão aqueles que um dia foram crianças calorosas"
                                                                                      (Doris Lessing)


"Capa morreu na Guerra da Indochina, em 25 de maio de 1954, ao pisar sobre uma mina terrestre. Seu corpo foi encontrado com as pernas dilaceradas. A câmera permanecia entre suas mãos."(Wikipédia)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Gagos na Gaiola



Éramos muito amigos, quando resolvemos estragar tudo iniciando um namoro. O namoro durou cinco ou seis meses, na imprecisão de poder contar a partir de quando realmente tudo começou, e dali por diante, como na maioria dos casos do gênero, já não conversávamos. Ela empinava discretamente o nariz quando me via, e atravessava para o outro lado da rua. Eu lamentava; por muitas noites senti a saudade atordoante de nossas conversas, de como ríamos fácil de tudo, de como um sinal antecipava o entendimento cujas palavras só testavam depois hipóteses disparatadas. A minima coisa _ como ela ter dito, certo dia, que amava a voz do Bono Vox por ela ter uns pedregulhos ao fundo _ me enchia de remorsos. O remorso de não ter controlado a libido de uma noite de bebedeira e ter alegremente confundido tudo.

Passaram-se três anos. Por esses acasos perigosos, participamos de um mesmo amigo secreto de fim de ano. Ela, já emaciada pelo esquecimento e por outros namoros sofridos, se aproximou de mim , devagarinho, para não ficar estranho na hora de ter de dar o disco do Radiohead, fazê-lo para alguém contra o qual alimentara  anos de mágoa. Voltamos a uma amizade fresca e felicíssima. Foi a única mulher com quem trocava massagens nas costas sem falsos pudores. Não iríamos mais falhar um com o outro. Daí, surge uma profusão de mensagens por celular de uma "pretendente secreta". Bem escritas e inteligentes para serem de qualquer uma, mas só fui saber que era dela quando, em sua casa, confessou irritada que não tinha superado o amor que sentia por mim. Eu via com clareza que ela não havia superado, na verdade, a época em que lhe diagnosticaram um câncer de útero, e o calhorda do namorado dela terminara tudo por telefone após ficar sabendo. Ela estava profundamente triste e se sentindo rejeitada. Seu pai, uma advogado amigo meu, fôra até em casa pedir a misericórdia de que eu não lhe oferecesse bebidas alcoólicas. Não respondi que ela que estava com o freezer cheio de cerveja, e bebia para retratar a repulsa que lhe despertava a inchação de seu corpo pelos medicamentos, e a vida amarga em geral.

E foi justo num bar, à noite, quando a sombra era evidente demais por detrás das suas  heróicas tentativas de simpatia, que, do nada, ativando a tecla "palhaço", eu começei a lhe contar de como havia lido em um livro sobre como os gagos sempre foram alvo de preconceito. Como um desvairado, não me importei de que ninguém mais dos outros cinco na mesa não conseguiam mais me acompanhar, enfadados, e só prestei atenção em seus súbitos olhos embevecidos e de suas abruptas gargalhadas das minhas histórias. Moisés era gago, como está  nas escrituras, Machado lia discursos longuíssimos tropeçando nas palavras, mas não estava nem aí. Na Idade Média, os gagos eram colocados em gaiolas e apresentados pendurados em praça pública, onde os populares os incitavam com varas a falar. Quando falavam, todos caíam na mais selvagem gargalhada.

Ela se curou. Um de meus melhores amigos, que sempre fôra apaixonado por ela, pediu que lhes apresentassem, e os dois se casaram. Minha esposa, quando éramos namorados, morria de ciúmes dela. Depois que se falaram, a Dani e ela, num jantar, a Dani nunca mais sentiu um pingo de ciúmes dela. "Não sei ao certo, é como se vocês dois fossem muito parecidos, muito iguais, e ela é idônea demais para que eu continue a sentir ciúmes." Após meses sem nos vêrmos, eles dois aparecem aqui em casa para conhecer a Júlia. Eu e meu amigo reativamos o ensejo antigo de abrirmos um bar temático, com boa música e bebida, ao lado de uma pracinha sossegada, cujo nome será "Dig a Pony". Ela, no final da noite, com os olhos claros da estabelecida felicidade, me enche de orgulho: "Sabe quando iniciou-se minha cura completa? Na noite em que você, como um bêbado descontrolado, pouco se importando em falar alto para as outras mesas ouvir, gaguejando sem parar, me matou de rir ao contar sobre os gagos na gaiola." Mais tarde, na cama, a Dani passa a mão sobre minha cabeça, e me beija ternamente as lágrimas, sabendo.


Sobre o Quadro do Cabeçalho deste blog

"Sou Fascista?"

(texto extraído do livro "A Era do Inconcebível", de Joshua Cooper Ramo, editado pela companhia das Letras; tradução de Donaldson M. Garschagen)

Entre seus primeiros quadros, esse é um dos mais grandiosos. De um lado a outro, mede 6,80 metros; de cima a baixo, três metros. A tela engole o observador postado diante dela. Mas o que se esperaria de cerca de vinte metros quadrados de tinta esculpida em camadas, uma pincelada sobreposta a outra, formando ondas que ainda parecem frescas? O título, Deutschlands Geisteshelden, estendendo-se ao alto, numa caligrafia que parece tensa, com letrasde trinta centímetros de altura. "Heróis Espirituais da Alemanha" _ assim se pode traduzir o título do quadro de Anselm Kiefer. A execução da tela durou dezoito meses. Kiefer trabalhou nela dos 27 aos 28 anos, entre 1972 e 1973, anos antes de ser aclamado um dos grandes pintores de nossa época, décadas antes de os críticos contemplarem essa obra em particular e dizerem: "É o tipo da coisa que olharão daqui a duzentos anos para compreender nosso momento na história".

A tela mostra um dos ambientes arquitetônicos alemães mais típicos, o salão de uma igreja luterana, todo feito de madeira. Na perspectiva do quadro, as linhas das tábuas do assoalho afastam-se do observador como os trilhos de uma ferrovia. Ao longo das paredes veem-se lâmpadas a óleo acesas, espaçadas com exatidão. Junto da base de cada uma, Kiefer escreveu o nome de um herói alemão homenageado. O que confere ao quadro uma tensão perturbadora é o que percebemos ser inevitável, o que sentimos à medida que nossos olhos avançam pelas paredes do imenso salão, passando da chama para a viga de madeira e de volta à chama: a estranha tolice de haver tanto fogo junto de tanta madeira. Aquele é um prédio à beira da combutão. (...)

Kiefer terminou o curso de arte em 1969 e seu projeto de formatura não foi o previsível quadro de campos de cores nem a escultura abstrata que se poderiam esperar de um estudante ambicioso. Em vez disso, ele apresentou uma série de fotografias em que aparecia fazendo a saudação nazista em diversos lugares da Europa. As imagens formavam um ersatz de um álbum de férias. Aqui estou saudando o Louvre. Aqui estou saudando o canal da Mancha. Se as fotografias enfureceram a banca de avaliação _ ele foi reprovado _, os professores ao menos ficaram tão perplexos que a única coisa que puderam fazer foi se esconder na pequena caverna da defesa artística. O trabalho de Kiefer, disseram, "carecia de distanciamento". Mas era exatamente isso o que ele queria. Como seria possível que alguém, quanto mais um alemão, tivesse algum distanciamento do passado recente do país, de seus hábitos culturais e históricos homicidas? O único membro da banca que votou a favor de Kiefer foi Rainer Küchenmeister, um homem sem distanciamento algum, em nenhum momento e durante o resto da vida, em relação ao que Kiefer tentava evocar. Ele compreendeu a mensagem daquelas fotos: não há meio de você se afastar da história ou de afixá-la atrás de um vidro como num diorama. A história vem à sua procura, como tinha feito com Küchenmeister e sua família.

Mais tarde, explicando suas fotos, Kiefer declarou que seria melhor vê-las de outro modo: ele se perguntava, como alemão, exatamente que tipo de DNA político ele tinha, queria sentir se alguma coisa nele mexia quando ele erguia o braço daquela maneira. Uma combinação correta de condições históricas traria à tona um instinto fascista latente, como uma doença fatal, hereditária, invisível? Ele se perguntava o que poderia fazer se um momento da história colidisse com sua vida. (...) "Pensa que esta tela está engolindo você?", pergunta Kiefer naquele quadro monumental. Bem, espere até ser engolido pela história.








 























segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

O Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon


(Acima: capa de Frank Miller, da edição comemorativa da editora Penguin)
Por Charlles Campos
Flaubert morreu sem realizar seu desejo de escrever um livro que não dissesse absolutamente nada. Olhando de nossa situação no tempo_ do meio do ano 2010_, um escritor que produzia seus romances e contos como quem deita delicadas gotas de estricnina em milimétricos quadrados de vidro, não fica difícil perceber que o célebre francês sonhava com uma composição estética à frente de seu tempo, desvinculada de enredo e de personagens, algo próprio para o século que se desanuviaria e que estaria cheio de descobertas cujo modelo para armar seria a falta de coerência que determinaria tudo: a teoria do caos. Homens como nós, pós-modernos_ ou seja qual novo conceito resume esse não-sei-que cosmopolita_, estamos acostumados à falta de sentido, à independência à linha reta, à conturbação e às reticências que só dão a aparência de que a resposta está de molho pronta para ser lançada sobre nós assim que completa sua maturação. Palavras da cartola da ciência foram postas ao olho vivo da platéia, e o pasmo da descoberta de que todos os presentes fazem parte da ilusão de luz e sombras cujo truque final fará que tudo desapareça, como a bela moça de biquíni escondida no caixote, entraram para o linguajar cotidiano. Entropia, Indeterminação, Relatividade, Dimensões Paralelas, Teoria das Cordas. Se Flaubert viajasse na máquina do tempo de Wells e parasse sem estágios aqui nesse olho do furacão onde moramos em sossego, sentiria a vertigem aterrorizante do herói de casaca amarrado no carrinho da montanha russa em franca aceleração em direção ao abismo à frente, onde os trilhos estão partidos: o som inapreensível da queda com o qual nossos ouvidos acostumados transvertem em música de comercial das Casas Bahia que já não nos incomoda.

Coube ao americano Thomas Pynchon, um século depois, chegar o mais próximo do sonho de Flaubert, esbanjando vivacidade e fôlego em um romance de 800 páginas que dá ao leitor o sério problema de não saber definir do que trata. “O Arco-Íris da Gravidade”, lançado nos Estados Unidos em 1973, em plena ressaca dos anos 60 e no estilhaço das guerras geográficas que transformou a possibilidade de uma nova guerra mundial em um premonitório fantasma convergido em um hipotético botão nuclear, parece não dizer nada, ser uma caixa caleidoscópica que simula um delírio de LSD, ou, mais apropriadamente, a concha marinha onde está registrado o último nó caótico de sons de uma humanidade que desapareceu para sempre. Uma mensagem final dirigida a ninguém, de seres sem rastro que foram incapazes de emitir qualquer significado conjunto para configurarem o mínimo propósito à sua existência. Na verdade, “O Arco-Íris da Gravidade” é um grande epitáfio a esse projeto mal fadado que é o homem, fazendo-o numa língua impossível cujo tom é dado pelas suas primeiras frases apoteóticas: “Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compara com esta vez.” E como todo epitáfio_ ou todo réquiem_ traz uma profunda ternura por trás de sua acusação da brutalidade da finitude; no paradoxo de desnudar o caos, quando tudo é sugado por sua força implacável, emite uma frágil bolha que flutua tranquila na borda do buraco negro para, no momento que cessa sua efemeridade, libertar uma última reação de importância_ como se houvesse algo de sagrado e duradouro na saudade.

Sobre isso que trata o romance, entenderam?

Não?

Bem, há um personagem principal, um misto de espião americano, experimento vivo ambulante e prodígio sexual, cujo nome é William Tyrone Slothrop. Ele ocupa uma parte avantajada dessas 800 páginas, em que erra peripateticamente por uma Europa pós-segunda guerra devastada, sendo alvo das mais absurdas aventuras, algumas das mais memoráveis delas a luta corporal com um polvo, a fuga cinematográfica de uma plataforma subterrânea de lançamento de foguetes nazista (em cima de uma ogiva e com uma série de alemães enfurecidos atrás), um mergulho para dentro de uma fétida privada de um banheiro masculino, enquanto um negão de exageradas proporções corporais tenta lhe mostrar da pior maneira possível por que erram os que julgam que sua superdotação é puramente cerebral. Esses e outros infortúnios são narrados numa velocidade estonteante, que desarma o leitor de seu assombro crescente assim que tem a revelação de que o verdadeiro personagem do romance_ como diz o autor das orelhas do livro, e do qual me impossibilita dizer algo diferente_ é a linguagem de Pynchon: seu inglês caudaloso, debochado, anárquico, irreverente, paranóico. Um anarquismo lingüístico que não perdoa nada, que muitas vezes arranca o leitor de sua impressão de atingir compreensão para atirá-lo em uma abrupta análise de um pormenor destoante. Um romance que ultrapassa a média em envolvimento e absorção, principalmente por ser composto por materiais nem um pouco convencionais.

Se a micro-história ou a História das Mentalidades retirou o foco dos estudos dos reis e dos heróis nacionais para se concentrar no homem comum, a prosa de Pynchon continuou uma revolução semelhante na seara do romance, utilizando o lixo, os caçoetes e toda a tralha multicolorida da sub-cultura norte-americana, compondo uma obra soberba que, como haveria de ser, gerou repúdio e muita polêmica. A comissão do prêmio Pulitzer lhe conferira o prêmio de melhor romance do ano de seu lançamento, mas na última hora a direção da comenda o rejeitou sob a acusação de ser um romance pornográfico. Talvez pela irreverência das descrições sexuais de um Slothrop que, sempre que transava com uma mulher, determinava por uma ligação misteriosa com o foguete (e o material com que ele era feito, o estranho Imipolex-G) que o local onde estava fosse destruído, logo depois, por uma explosão. E Pynchon se molda, intencionalmente ou não, ao escritor-mito, por sua completa negação a aparecer na mídia, a dar entrevista ou ser fotografado. Chegaram a sugerir que ele e Salinger fossem a mesma pessoa, ambos afeitos a uma reclusão monástica. Seu tradutor brasileiro_ o excepcional Paulo Henriques Britto_ que nos deu uma das melhores conversões já feita desse romance, retém sob severo juramento cartas do próprio Pynchon, escritas em espanhol, com longos esclarecimentos sobre as partes mais complexas da obra. Cartas que com certeza seriam disputadíssimas entre os milhares de fãs ardorosos que formaram um culto organizado em torno de Pynchon.

O Arco-Íris da Gravidade é inusitadamente engraçado, e não pensem que se trata do risinho renhido do sarcasmo saramaguiano, ou os risos sincronizados do único romance com claque da história da literatura, o Ardil-22_ o livro se mantém numa constante e irresistível eletricidade histriônica, um humor abrangente e sem reservas que é um dos seus poderes inigualáveis: o riso se torna um sério posicionamento filosófico, um costume contaminante que muda nosso confrontamento com o mundo, uma herança erudita transformada de Rabelais, Groucho Marx, Monty Python, Os Três Patetas e Buster Keaton.

E, quando chegamos ao final dessa extensa saga, Pynchon nos soluciona o enigma derradeiro: só assim, usando os despojos de nossa cultura, a falta de vergonha de nosso orgulho desarroado, os nossos preconceitos e nossos ódios infinitos, a nossa miséria e capacidade de nos enganarmos e nos iludirmos eternamente, nossa tecla defeituosa que nunca proporcionou aprendizado com o passado, nosso frenesi e arrogância científica que finge esclarecer, poderemos ter a presciência terrível de que toda piada traz o lamento enrustido de só conseguirmos rir até as lágrimas do outro que cai e arrebenta a cara no muro, e nunca compreendermos que afinal rimos de nós mesmos atirados no chão, todos atolados no caos e vítimas das gritantes trivialidades criadas, na única comunhão possível de esperar alegremente o aniquilamento, como nas palavras que finalizam o livro:

“E é bem neste ponto, este quadro escuro e mudo, que a ponta do Foguete, caindo a um quilômetro e meio por segundo, absoluta e eternamente sem som, alcança seu último imensurável intervalo acima do telhado deste velho cinema, o último delta-t.

Há tempo, se este conforto lhe parece necessário, de tocar a pessoa a seu lado, ou de pôr a mão entre suas próprias pernas frias…ou, se é preciso cantar, eis uma canção que Eles jamais ensinaram a ninguém, um hino de William Slothrop, há séculos esquecido e jamais reeditado, para ser cantado com a melodia simples e agradável de uma ária da época. Acompanhe a bolinha:

É a Mão que faz o tempo andar,
Ainda que em tua Ampulheta se esvaia a areia,
‘Té que a luz que abateu as Torres altas
Chegue à Alma Preterida derradeira…
‘Té que os Viandantes durmam à beira
De toda via desta Zona estropiada
Com um rosto em cada encosta de monte,
E uma Alma em cada pedra da estrada…

Agora todo mundo__”


Este seria Thomas Pynchon há muitos anos

Este, retirado de um site francês, vem até com credencial…

(Originalmente publicado [...adivinha onde? ], no blog do Milton Ribeiro)

domingo, 5 de dezembro de 2010

Outras Cores, de Orhan Pamuk

 Por Charlles Campos


(Originalmente publicado no Sul 21)

É natural na cronologia da literatura que, entremeado ao surgimento dos grandes autores, apareçam aqueles que não são nem grandes nem medianos, que não estão destinados a escrever obras revolucionárias nem a livros totalmente irrelevantes, e cuja perenidade nas letras está ditada não por sua propensão criadora à imortalidade, mas a seu esforço disciplinado e devotado para a preservação da importância da palavra: algo como fazem os investidores financeiros que se esmeram em manter os índices econômicos em equilíbrio até que apareça o gênio que abra as comportas dos megainvestimentos. Orhan Pamuk é uma dessas peças chave que a literatura necessita que, não sendo um grande escritor, seus livros, contudo, estão longe de poderem ser desprezados; que, não sendo o portador da sentença bombástica, o que escreve e fala está, no mais condizível grau de importância, sempre em relevância. E nenhum volume de sua autoria — além do realmente bom Istambul — oferece suas melhores qualidades como narrador, ensaísta, observador da vida prosaica e moderado opositor das forças constituídas da sua Turquia, quanto a recém lançada miscelânea de textos esparsos Outras Cores, Ensaios e Um Conto, pela Companhia das Letras.

Há uma categoria de leitores, entre os quais me incluo, para a qual Outras Cores é destinado. Os leitores que gostam de ler sobre o escritório do autor, os aspectos de sua intimidade, a escrita por detrás da escrita, as besteirinhas poéticas rascunhadas num guardanapo ajuntadas na papelada que vai dar escopo ao volume, e que no final se revelam tão mais substancias quanto a sua produção principal. Esse livro é para aqueles leitores que se regalam com os extras de um DVD, o making of, as cenas excluídas e tais. À diferença de outro livro sobre as atividades e circunstâncias documentais que cerceiam a obra do autor, o O Carvalho e o Bezerro, obra muito popular de Soljenitsin lançada após sua premiação do Nobel, Outras Cores não paira muito sobre as polêmicas políticas suscitadas pelas palavras de Pamuk. Aliás, como passou a ser moda na colisão entre escritore s e autoridades políticas e religiosas de seus Estados da década de 1990 para cá, o que gerou tal polêmica não foi mais que algumas frases proferidas por Pamuk numa entrevista dada à Paris Review (incluída no livro), em que ele denuncia o genocídio armênio perpetrado pelo governo turco, de 1915 a 1917. Afora essa entrevista, há alguns outros pequenos ensaios (a maioria dos textos são muito curtos) em que Pamuk apenas toca no assunto, o que a eficácia da obra de ser um misto de papéis pessoais que não deveriam ser revelados a público acaba por transparecer um autor que está inseguro quanto a se valeu a pena ter se submetido ao inconveniente de responder a um processo por quebra de decência patriótica, apenas por algumas palavras mal pensadas.

Outra confissão, dita como uma espécie de deslize não editado, que a espontaneidade da obra oferece, é a que dá maior intuição da verdadeira tendência de Pamuk a não se meter em temas espinhentos: a de que não se importava por assuntos que não fosse “escrever belos livros”, de que era um perfeito rascunhador a-político, e que só teve uma pré-visão da situação interna da Turquia, quando foi escalado a receber Arthur Miller e Harold Pinter numa visita desses autores a seu país. Foi só desde então que Pamuk desenvolveu “uma persona política muito mais vigorosa do que desejava”. Nesse molde de adepto a uma revelação que Pamuk escreve alguns ensaios não de todo desinteressantes sobre o papel da literatura dos países subdesenvolvidos, condenando (já tardiamente, pois se trata de conversa requentada) a posição de Sartre em dizer que países do terceiro mundo não poderiam perde r tempo com a literatura, devendo-se se preocuparem diuturnamente com a revolução social e política.

Tirando as confissões miúdas de sua vida cotidiana e algumas composições preguiçosas que dão uma sabor de diário em alto estilo (reafirmo: prosaicamente saborosas), as partes mais densas desse livro são os três ensaios vigorosos sobre Dostoiévski, uma resenha identificadora sobre Mario Vargas Llosa, e uma reafirmação de amor por Thomas Bernhard que deixa-nos comovidos todos os outros admiradores desse austríaco.

Tudo revela a organização e disciplina de Pamuk, sua catalogação das próprias palavras com um amor próprio não ofensivo e sem esnobismo (apenas com a real seriedade que um escritor convicto tem de ter). Um escritor de família rica que, seguindo uma tradição dissidente dos filhos que se negam a seguir o caminho do direito internacional e do comércio hereditário, optam por um monastério estético e moral firmemente movido por sua inabalável vontade própria. No caso de Pamuk, a literatura.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ameaças Não Cumpridas



Fiz um acordo com minha mulher _  não um juramento, mas um acordo _ de que vou ficar sem comprar livros pelos próximos três meses. Se há uma pessoa sem a mínima credibilidade para cumprir promessas, essa pessoa sou eu. Sempre que me deparo com a iminência de fazer uma promessa, logo me dá um comichão incontrolável para quebrá-la. Não sigo os links que aparecem em sites de download, aqueles que te revelam com a mais acurada ciência o que você foi numa encarnação passada, por temer que, em vez do príncipe fidalgo norueguês ou do escritor público que erigiram uma estátua em bronze em Bruges, apareça a real confirmação de que eu fui um desses criminosos que incendiavam igrejas e pregava cones de chifre de carneiro no busto de Nossa Senhora Aparecida. A minha iconoclastia chega a graus tão extremos que o aviltamento da promessa feita assume requintes do mais deliberado satanismo. (Vou colocar essa confissão entre parênteses e procurar ser o mais eufemístico possível para não ofender sensibilidades: quando tinha quinze anos, no auge da efervescência hormonal, fiz a mais solene promessa a Deus de que não cairía em tentações da solidão da carne durante um mês, se Ele fizesse com que o médico determinasse que o gesso em minha perna quebrada seria removido no prazo estipulado, sem que necessitasse que eu ficasse mais um mês atolado na cama no mais profundo tédio; eis que Nosso Senhor me atende e, no final de uma semana _ uma longa e valorosamente penitente semana! _ eu estava para morrer de saturação de tanta testosterona acumulada; me recordo que, andando de carro com meu tio, cada uma das saliências do asfalto remexia diretamente com minhas saliências internas, e, entendendo um pouco a lógica dos molestadores sexuais, quando até senhoras de sessenta anos e mulheres roliças me apresentavam como os mais entumecidos objetos do desejo, eu tive que conseguir uma postergação com Deus. Apresentei da forma mais competente possível as razões do porque eu teria que destroçar por completo a promessa, e digo aos estudantes da liturgia que, se o Onipotente não fosse mesmo um poço de infinita misericórdia e propagasse que o perdão deva ser dado não sete vezes, mas sete vezes setenta e sete mil, eu teria sido pulverizado imediatamente pela falta de solenidade de ter feito tal acordo já com as calças arriadas.)

De forma que minha esposa, com essa percepção infalível que toda mulher tem de que, na verdade, a maior sina do casamento é que se casa com o protótipo antecipado do próprio filho, sabe por suas vias silenciosas do meu iconoclastismo, e me fez que assinasse um acordo e não uma promessa. É que aqui em casa tem livros até em cima da geladeira, ao lado da privada, dentro do berço dos bebês, senta -se em cima de livros as visitas distraídas debaixo das quais temos que retirar o Balzac já azul de sem fôlego, aparecem livros molhados de chuva porque esqueceu-se de fechar uma janela, e até situações ideologicamente incompatíveis de se encontrar uma nota de dez reais esquecida em equivocado rendimento dentro de um livro do Thoureau. Em acordos eu sou medianamente fiel, talvez por não envolver do outro lado um deus que se acostumou em fazer cara enternecida para com seu filho cheio de manhas. (Prometi a Deus não colocar uma gota de álcool na boca até que a obstetra retirasse do útero de uma Dani em segurança,uma Júlia perfeita e propagando aos quatro cantos de uma maternidade em polvorosa a sua total ausência de pudores em estar VIVA. Consegui levar a coisa até um dia antes do parto, quando, sentado ao lado da janela da casa solitária, bebia no gargalo uma garrafa de vinho do Porto e, bêbado como uma égua, ameaçava à Potentade que se Ela fizesse um mal sequer contra as duas, se algo fosse removido fora do lugar ou se na conta apreensiva dos dedos ficasse sobrando de resto um dedinho a mais ali no canto do polegar, se Ela me deixasse com dois órfãos de mãe, ou se Ela fizesse com que todos os monólogos que fiz contra a barriga em movimento _ os pezinhos alteando-se testando os limites de seu conforto _ fossem para alguém destinado a não ter uma vida aqui na atmosfera...eu A renegaria com toda abrangência do ódio por Ela não cumprir a promessa. E eis que nasce  um bebê com dez dedinhos nos pés e mãos, e uma série de bônus que me faz acreditar que meu poder de convencimento foi tão eficaz que escondeu a evidência de que eu amaria sem condições até se tivesse nascido um rabanete em vez da menina mais perfeita do mundo.)

Mas voltemos ao acordo (prometo a vocês que não usarei mais parênteses nesse texto). Firmei o acordo com a Dani e, no prazo de três meses, me manterei longe do site da Livraria Cultura, e atravessarei para o outro lado da rua para não ver a cara da dona da livraria  lotérica cheia de pasmo por não ter uma  encomenda minha para a semana. É bom que terei tempo para acabar de ler os cinco livros com os quais me ocupo agora: Ressurreição, do Tolstói, na magnífica tradução do Rubens Figueiredo e na belíssima editoriação da Cosacnaify; As Veias Abertas da América Latina, do sempre inigualável Eduardo Galeano, na edição de bolso da L± O Medo dos Bárbaros, de Tzvetan Todorov, um filósofo contemporâneo que ainda não tinha lido, editado pela Editora Vozes; Seu Rosto Amanhã, vol. 1, desse que foi um dos melhores presentes dos últimos anos conhecê-lo, Javier Marías,  pela Cia das Letras; e a releitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, meu romance preferido do Saramago, da editora Caminho. Vai um excerto de Ressurreição:

E toda essa terrível transformação ocorreu só porque ele parou de acreditar em si e passou a acreditar nos outros. Parou de acreditar em si e passou a acreditar nos outros porque viver, acreditando em si, era difícil demais: acreditando em si, todas as questões tinham sempre de ser resolvidas não em proveito do seu eu animal, que busca alegrias fáceis, mas sim quase sempre contra ele; já acreditando nos outros, não era preciso resolver nada, tudo já estava resolvido e sempre era resolvido contra o eu espiritual e em favor do eu animal. Além disso, acreditando em si, ele sempre estava sujeito ao julgamento das pessoas _ acreditando nos outros, recebia aprovação das pessoas à sua volta.

Enquanto minha filha dorme em meu peito, e eu me regalo com a presença desse russo incomensurável. Sempre bom andar em companhia dos grandes, e dos muito pequenininhos. 


domingo, 28 de novembro de 2010

E de Improviso, É Noite


Todo homem está só no coração da Terra, trespassado por um raio de luz; e de improviso, é noite.
                                                                                                                      (Salvatore Quasimodo)

sábado, 27 de novembro de 2010

Estrela Distante, de Roberto Bolãno

Por Charlles Campos


 O que poderia haver de errado, nesse começo de século pouco promissor para a literatura — no qual Norman Mailer lamentou que tudo pelo qual sua geração de intelectuais lutara tenha fracassado, e onde as mesmas formas eternamente combatidas de dominação tenham obtido uma vitória incontestável sobre qualquer resistência contrária — , com o fato de Roberto Bolaño ter sido escolhido como objeto de acirrada adoração pela mídia cultural mundial? Nessa época desencantada dos ilimitados milagres da eletrônica, onde Philip Roth vaticinou que a próxima geração a surgir trará incutida no gene o fim do interesse pela leitura, não é espantoso que o romance de mil páginas “2666” já tenha vendido mais de 23.000 exemplares em Portugal? E que “Detetives Selvagens” tenha movimentado o competidíssimo mercado editorial norte-americano; e que os outros livros de Bolaño já sejam por lá tidos como potenciais clássicos de um escritor genial? E o que poderia ser mais esperançoso do que vermos Bolaño ocupando o centro de vários debates culturais pelo mundo, seus livros aparecendo mesmo em locais exórdinos como na mala de viagem do apresentador da Globo Zéca Camargo ( que levou “A Pista de Gelo” para o acompanhar nas filmagens pela Tailândia, demonstrando os critérios práticos da simplificação de sua escolha)?

Mas essa iconização, por outro lado, é o reflexo de outros aspectos não tão festivos do atual momento cultural por que passa a América Latina. À exceção de Bolaño, de qual outro escritor latinoamericano se ouve falar com a mesma persistência? O cenário mostra-se desconcertantemente desértico, ainda mais em comparação à profusão de nomes de valor que existiam há cinquenta ou quarenta anos. A acreditarmos na tendência — o emprego de tal palavra talvez seja o mais maneirista dos eufemismos — do definhamento da escrita, essa espera pelo desaparecimento dos últimos grandes escritores sem que se veja o natural surgimento de uma geração que os substitua, é uma realidade não só das Américas, mas universal. Não que os escritores apareçam obedecendo a u ma determinada sistemática providencial, ou são produzidos em série para, no momento devido, virem com a resolução para os conflitos da pobre humanidade desgovernada. Mas o que ocorre é que o prognóstico lançado por Mailer, Roth, Vargas Llosa e uma dezena de outros escritores, sobre o futuro inglório que eles não verão , parece se encaixar com perfeição nos estágios velozes da técnica que já nos pegam pela frente, onde a escrita se torna irrelevante e descartada, e, com isso, o pensamento crítico, as nuances lingüísticas, a contestação às doutrinas dominantes, o reconhecimento de uma dimensão mental independente, a lentidão necessária para inteirar-se da constituição espiritual morta por fora pela extenuante falta de tempo da escravidão dedicada às empresas, ao Estado e ao modus operandi de consumidores infinitos.

Se a efervescência intelectual é expressão produzida pela intolerância alcançada aos conflitos históricos, como vemos os poderosos escritores surgidos na Rússia czarista, nos memorialistas do extermínio da Segunda Guerra mundial, nos inconformados contrários ao bezerro de ouro do capitalismo norte-americano, nos refugiados hispano-americanos que acusam as ditaduras assassinas em seus países, não há momento mais legítimo para a imposição da voz do que o que vivemos hoje. Se a desgraça crônica explode no desenvolvimento de pessoas comuns em contestadores que escrevem grandes livros, o estágio atual de desgraças seria mais que justificável para a descavernização desses anônimos, a fim de instigarem aos demais míopes silenciados as possibilid ades de um mundo lá fora.

E é aqui que a carga relegada a Bolaño demonstra-se demasiado pesada. Bolaño, em decorrência da degradação de sua saúde e da conseqüente falta de tempo para amadurecer sua escrita, aceitou resignadamente o trabalho que tinha e, como o albatroz com as asas quebradas, desmoronou-se em desistência para o interior de sua imensa depressão. E ficou com toda a soberba constituição de pássaro majestoso, mas incapaz de disfarçar para si mesmo o pouco tempo que lhe restava, e o quanto isto lhe destruiu a capacidade de ver com abrangência. Não venham me dizer que a proximidade da morte cause essas coisas; quase pela mesma época, Edward Said compunha sua biografia e um volume de ensaios onde se negava a afastar uma revificação solar de todas as idéias humanistas de seus outros livros, ele que também via o fim irrevogável se aproximando.


Bolaño não estava apto a continuar a resistência contra os antigos poderes de dominação vigentes e mais poderosos do que nunca na América Latina: a política patriarcal, a mídia a serviço desses poderosos, a grande alienação e o expansivo silêncio. (Não se mostrou apto a incorporar o intelectual que fala a verdade ao poder, na definição ativista de Said.) Resistência que se fazia com uma militância romântica (hoje tão anacrônica em suas singelas tentativas, que de imediato é taxada de ingênua e demagoga) pelos escritores do assim chamado boom da literatura hispano-americana: Miguel Àngel Astúrias, Juan Rulfo, Mário Vargas Llosa, Rômulo Galegos, Júlio Cortázar, Manuel Scorza, o jovem García Márquez.

Com seu nome valorizado nos mais altos índices de graduação pela crítica estrangeira como representante da atual intelectualidade latino americana, o seu quietismo raivoso, a sua falta de fé, o seu queixume derrotado, alinha-se ao pesado silêncio que mais uma vez assola nosso continente. E Bolaño é tanto mais decepcionante por sua desistência por não se poder dizer que os escritores atuantes em outras regiões do planeta perfaçam a mesma entrega de pontos e pacificação resignada; é só ver Ismail Kadaré, Amós Óz, Ohran Pamuk, Mia Couto, entre outros. J. M. Coetzee, por exemplo, continua insurgindo com uma revisão desafiadora contra o instituído ponto comum e politicamente correto em que coube calar a questão da guetização do negro e da miséria ainda reinante sob a edulcorada versão oficial de uma África redimida e liberta pós Nelson Mandela (como no magnífico romance-palestra “Margareth Costello”).

A crítica que cabe a Bolaño é a mesma que em outra época e sob óticas diferentes, D. H. Lawrence fez a Joseph Conrad, não perdoando por este ser um escritor tão inexoravelmente triste. Com todo esse potencial para o fantástico, e cedendo na primeira investida às formas aterrorizantes da falta de perspectivas do mundo real, era o que estava dizendo Lawrence, lamentando que a música bombástica da prosa exuberante de Conrad o engolisse antes que o arrebatasse para fora da cadeira. O que pode alimentar a interpretação de que os trópicos seja um cinturão global cujos atributos coincidentes são o desespero, a apequenização e o silêncio.


Bolaño, com seu estilo que parece ser independente de qualquer influência, sua profusão de histórias, seu talento em revirar a trama inúmeras vezes, seu humor surpreendente, suas frases que aparecem aqui e ali no relevo do coloquialismo como sentenças borgeanas, o que vemos é seu receio em mitificar, em ir além. Suas narrativas são todas sobre exilados que, mesmo professando a mais difícil e anti-moderna das artes — a poesia — , ainda assim são imediatamente descartados como poetas medíocres, mais uns versejadores outsiders que vão se silenciando e rendendo ao suicídio, à doença ou aos aspectos comezinhos da vida cotidiana. Em determinado momento de “Estrela Distante”, o narrador declara que o Chile ainda não está pronto para a poesia.

Os intelectuais que erram pelas páginas de seus livros não estão motivados a transformarem céu e terra, a bradarem seu canto selvagem sobre os telhados do mundo — mesmo que sempre quebrando a cara no final — , como os personagens de Saul Bellow; também não visam o sublime, como os desesperados que se apartam da mesquinharia mundana para seus territórios artísticos pessoais, como o dos livros de Thomas Bernhard. Seus personagens não tem o firme estoicismo intelectual dos de Philip Roth; ou o prosaísmo quixotesco dos de García Márquez; ou o provincianismo que conlui o submundo bairrista da infância com a experiência do militarismo regimentar dos livros de Vargas Llosa. Os seres de Bolaño não se encaixam nem ao mais niilista dos existencialismos; vivem apenas uma pobre e levianamente documentada aventura de passantes. Não existem dois personagens mais anêmicos e inexpressivos que Arturo Belano e Ulisses Lima.

Eu não perdoo que Bolaño seja tão triste. Quem lê “Putas Assassinas”, sai com a certeza de uns três ou quatro contos realmente muito bons, mas com uma sombra na alma que leva dias para desaparecer. Poderão me dizer que mexer com um material tão emocionalmente radioativo como a literatura é tarefa para quem tenha estoicismo suficiente para suportar doses cavalares de desencanto. Mas eu saio revitalizado depois de ler Bernhard, Beckett e Céline (para citar três escritores do desencanto). Ler “Extinção”, “Origem” e “Viagem ao Fim da Noite”, é percorrer uma indignação festiva, uma repugnância que recorda sempre a força de contestação juvenil, a desconstrução de toda certeza e gratidão imposta pela farsa da sociedade equânime; é literatura adrenérgica e viril, que, dependendo da época, deve ser naturalmente reprimida pelo sistema que estiver vigorando.


Já o Chile, Pinochet, as andanças sem rumo pelo México e pela Europa — até as cenas espetaculares numa guerrilha africana que aparece em “Detetives Selvagens” — , são incapazes de romper o isolamento de Bolaño; essa violência mundana não consegue suscitar nele nada mais que o aproveitamento, sob a devida distância, de matéria para sua prosa documental. Um conto de três páginas de Cortazar, “Grafite”, faz mais pela indignação, a denúncia e reação, do que “Amuleto” e aquelas últimas páginas de “Detetives Selvagens”. “Estrela Distante” vai mostrar mais uma vez isso, com um número inédito de aberrações e corpos mutilados, de que Bolaño renunciara à política, à filosofia e à poesia, e o resultado é um livro competentemente limpo de qualquer transcendência em qualquer sentido. O único símbolo sutil perceptivo é deixado à deriva, como se Bolaño, com seu cigarrinho entre os dedos, mandasse às favas o trabalho que daria dar escopo ao inteligente esquema do personagem central ser um serial killer. Como em Detetives, em que ele não consegue mitificar a procura por 600 páginas pela Cesária Tinajero, ele também não passa ao leitor aquela indagação após fechar o livro de “o que diabos ele quis dizer com aquilo?” O poeta fascista assassino Carlos Wieder representa o que? Bolaño não constrói vínculos inteligíveis em que se possa dizer: “Ah! É a desumanização que a rendição à ditadura causa!”, ou “Ah! Cesária Tinajero é o símbolo da liberdade perdida!” A prosa de Bolaño é indevidamente rarefeita numa época em que a literatura precisa de mais para prosseguir.

Mas vale lê-lo? Vale! Cada centavo empregado! Não sei se Bolaño é um grande escritor. Estou propenso a pensar o contrário, o que seria uma contribuição à mesma mitificação que favorece ao setor das compras antes do deleite da leitura. Um dos melhores livros que li foi escrito por um autor menor, “Pergunte ao Pó”, do John Fante, e pouca coisa há de mais singela que Arturo Bandini (que coincidência!) atirando seu livro publicado em direção às areias do deserto da Califórnia. Não estou dizendo que Bolaño seja medíocre. Mas contra a comercialização desarroada de sua imagem (que só imponho reação quanto às possibilidades críticas, e não contra o quanto se consiga vender de seus livros — é um aspecto de raríssimo otimismo ver Bolaño ocupar algumas listas de mais vendidos), eu creio que o Bolaño verdadeiro é aquele da foto e m que aparece sentado atrás de uma mesa atulhada de papéis, com o olhar perdido para dentro de si mesmo, frágil, solitário, equilibrado com seu cigarrinho eterno na fina linha de sua vida, com a cabeça cheia da música mais angustiante.

(Publicado originalmente no blog do Milton Ribeiro. Seleção de imagens: Milton Ribeiro)

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Platero e Eu

Estava puxando pela memória algum livro infantil de que eu gostasse, e hoje me veio, de súbito, o “Platero e Eu”, do poeta espanhol Juan Ramón Jiménez. Muito popular na primeira metade do século passado, hoje exige atenção mais restrita e uma sensibilidade apurada, passando a ser destinado a crianças, poucas, que num momento descubram a felicidade de um mundo anterior onde as coisas eram menos autônomas, e havia espaço para a delicadeza. Charles Bukowski escreveu: “Onde foram parar as coisas doces e delicadas desse mundo?”. Um pouco delas está em Platero.




A Menininha


A menininha era o encanto de Platero. Quando se encaminhava para êle, entre os lilases em flor, com seu vestidinho branco e o chapéu de palha-de-arroz, chamando-o, dengosa, de Platero! Platerinho! o burrinho queria arrebentar a soga, e saltava como uma criança, e rebusnava como louco.

Com uma confiança cega, passava por baixo dêle, e dava-lhe palmadas, e punha a mão_ cândido nardo_ na bôca de Platero, ornada das ameias dos grandes dentes amarelados; ou, então, agarrando-lhes as orelhas e puxando-as até a altura de seu rosto, chamava-o por tôdas as variações de seu nome: _ Platero! Platerão! Platerinho! Platerete! Platerote!

Durante os longos dias em que a menininha navegou em seu berço de aurora, rio abaixo, até a Morte, ninguém se lembrou de Platero. Ela, em seu delírio, chamava por êle, triste:_ Platerinho! Da casa sombria e cheia de suspiros, ouvia-se, às vezes, o grito distante e choroso, do amigo a chamá-la. Oh! verão melancólico!

Como Deus cobriu de esplendor e beleza a tarde do ênterro! Setembro, rosa e ouro, como neste instante, declinava. Como vibravam os sinos naquele ocaso maravilhoso! Voltei pelo taipal, sòzinho e triste, entrei em casa pela porta do cercado e, fugindo do convívio dos homens, encaminhei-me para a estrebaria e sentei-me, a recordar, com Platero…

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Bestas Honoráveis


Se naqueles quatro meses que durou a fase mais terrível de seu sofrimento, o tio Márcio de 35 anos tivesse se apegado à decisão de que não havia mais motivos para continuar vivo após o pedido de separação litigiosa de sua esposa, teria evitado que o tio Márcio de 13 anos depois se tornasse um dos advogados mais ricos do país. Olhando do alto de sua condição estabelecida de sobrevivente muito bem sucedido, hoje deve lhe parecer uma das coisas enigmáticas daqueles anos já  por natureza  estranhos ter confiado a um trio composto por duas de suas irmãs e um pirralho de quinze anos a chance de lhe dissuadir de que  não haveria outras hipóteses que a de um conformado e alentador suicídio. E o pirralho dessa história era eu. Não sei qual dos atributos da minha distração caiu na má interpretação de minha mãe e de minha tia Tânia para que me escolhessem como espécie de guarda-costas do tio Márcio, vigia sentenciador e "cagueta" dos seus menores movimentos. Se o tio Márcio, no restaurante aonde íamos os dois jantar (eu comendo pela primeira vez língua de boi ao molho madeira, ele com o prato intocado), mostrava-se uma fração a mais além da introspecção dos que imaginam outras funções para as facas por sobre a mesa, era motivo para reportar minuciosamente o fato às duas irmãs: como estava seu olhar, se voltado totalmente para dentro ou se houvera alguma margem de interesse para os objetos e circunstâncias do ambiente, se ele falara alguma coisa, quantas vezes suspirara. Como ele executava os passos na caminhada ao largo da represa perto do apartamento, onde os corredores do cooper cortavam em sentido contrário ao nosso como lampejos coloridos que reafirmavam sobre nossa dupla taciturnidade a prevalência da saúde urbana; ele com o paletó amulambado, eu com o uniforme de colégio suado _ me tornaram tão comprometido  que me passava inadvertidamente a desatenção à higiene dos que pouco faziam caso com a existência. Minha mãe e minha tia de certa forma lamentavam que o agente mediador entre o tio Márcio e a morte padecesse da limitada experiência dos 15 anos, não tivesse bagagem suficiente para enxergar por debaixo do mosaico de homem traído os sinais significativos, as emissões de dor que partiam de sua alma arruinada. Elas tinham que acrescentar por conta própria o que vazava pelo filtro da minha infância e ficava faltando na compositura do retrato completo.


Uma das minhas suspeitas do por que o tio Márcio só tolerava (ou fingia tolerar, para manter o pouco de atenção às exigências familiares que ainda tinha que ter) a minha presença nesse dias, era a de que as vidas pessoais de suas irmãs evidenciavam que elas estariam defendendo o lado errado da contenda. Por minha mãe ser uma divorciada com dois filhos, e a outra irmã uma mártir do casamento suportando o marido alcoólatra, pela fidelidade compulsória ao Sagrado Sofrimento Feminino, as duas no fundo dividiam a alegria libertária por sua esposa ter-lhe pregado um par de chifres. Mesmo em meus 15 anos, a insurgência da verdade de gênero do Eterno Macho Dominador que falava em meu sangue me permitia interpretar as vezes em que meu tio firmava o olhar nas duas e um tremor de medo passava por seu rosto. Elas tinham com ele apenas o compromisso formal de impedir que o sofrimento fosse insuportável a ponto de lhe levar ao suicídio, mas o que havia abaixo desse limite mensurável em flagelo didático deveria ser bebido por ele até a última gota. Elas se referiam à sua esposa com toda a sinonímia à disposição do consolo _ o que não se importavam que eu ouvisse _ : aquela vadia, aquela puta devassa, a biscate desavergonhada, a mulher que havia colocado a buceta à frente da família. Era um teatro que, à maneira de Sherazade em ludibriar com as artes de contar uma história por noite o sultão de tirar-lhe a vida, elas encenavam para meu tio o que só era suficiente para mantê-lo vivo. (Isso é tanto verdade que hoje, as duas são fervorosas amigas da minha tia Valéria, a ex-esposa do tio Márcio.) Por isso então eu, com minha cara de alienação, meus modos reservados e meu coração cheio de amores platônicos, era o único elemento daquele ensaio de psicopatologia cotidiana que meu tio via como o que carregava menos conotações de justiça feminina e culpa.

Nesse fim de ano que eu recordo como um dos mais chuvosos e cinzentos, minha mãe, minha irmã e eu estávamos instalados no apartamento de minha avó que morava nos EUA, devido ao incidente com o Césio que fizera com que interditassem nossa residência original, e meu tio Márcio se mudara para lá depois que a tia Valéria lhe anunciara querer o divórcio por estar apaixonada por um médico carioca cinquentão que conhecera num congresso. O apartamento de minha avó _ ironicamente, também ela havia deixado o país  trinta anos antes por ter descoberto que o marido estava tendo um caso com uma das empregadas do casarão colonial onde viviam em Minas Gerais_ estava se tornando o refúgio oficial de parte da família; de tempos em tempos alguém batia na porta da minha mãe solicitando as chaves por duas semanas, uma tia que tinha que fazer hemodiálise, um outro que precisava vender uma casa, outro cujo caráter ubiquamente conhecido requeria a sensatez de não se perguntar o por que precisava se esconder por algumas semanas. Entre esses exilados, alguns dos quais compartilhei  a presença naqueles meses em que o prosaísmo sinistro de um acidente nuclear havia acontecido sob nossos narizes, o tio Márcio era o mais triste, o mais deslocado, o que transparecia o que nos outros era a verdade disfarçada com desmascarável laconismo: estava ali pela lucidez insuportável de se ver como um pai ausente e um marido sem a capacidade de carinho, um homo laborians comprometido animalescamente com a sobrevivência social, mas cujas portas adentro de sua casa revelavam sem eufemismos o que não escapava nem a suas irmãs, o direito outorgado a um estranho a vir substituí-lo no que fracassara de maneira tão inexorável.

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Treze anos depois ele se tornara obscenamente rico. Ganhara um ação histórica contra a Petrobrás, e os donos de postos e refinarias de petróleo que o contrataram abarrotaram sua conta com quarenta milhões de reais de honorários. Escrevera uma matéria de duas páginas inteiras para a Folha de São Paulo explicando em linguagem despermeabilizada de juridisquêz todo percurso burocrático da aventura. Até seus detratores e os ascetas ao dinheiro estudavam suas palavras na busca dos sinais da predestinação. Quando me chamara para conversar, dividi na minúscula saleta de espera de seu escritório, num edifício destoante que ganhara a mítica justificativa de ser uma camuflagem, o espaço joelho a joelho com senhores de terno e pastas de couro, alguns com o desespero indisfarçável do empresário falido atrás de um empréstimo, outros com as insígnias vocabulares dos desembargadores. Fiquei uma semana em sua companhia, dormia no condomínio fechado onde ficavam em perfeita plenipotência fotográfica a sua nova esposa e seus outros dois filhos, aguardava nas salas ao lado da sua até que o expediente findasse, me entupindo de café na máquina de expresso. De tardezinha íamos a um clube fechado onde na mesa ampla senhores de bermuda esporte e os rostos vermelhos saturavam-se de whiskey. Cada um tinha uma moça de seus dezessete anos do lado, que definitivamente não eram suas filhas. Uma das moças estava acompanhada pela mãe, uma senhora que havia vestido sua melhor roupa e não se continha de felicidade por sua filha ser a escolhida, nenhuma delas se importando que o homem às vezes falasse com a esposa pelo celular. Meu tio era uma espécime diferente de besta honorável, não era imune ao universo de macho alfa para o qual sensibilidades eram atrasos na obtenção de todo hedonismo que o dinheiro tinha para oferecer nas horas de folga do cotidiano acirrado em que tinha-se que obtê-lo, mas ainda via em seu infinito traquejo e sua genialidade em angariar simpatia o menino provinciano, o cara simples que em caminhos paralelos teria conseguido ser feliz com bem menos que isso. Ao mesmo tempo que interrompia a conversa séria com um desembargador, num corredor do Centro Administrativo, para apresentar-me como seu sobrinho veterinário, eu o ouvi instruindo taxativamente sua filha, que lhe insistia por telefone que precisava levar o bicicleteiro que havia atropelado para um hospital particular de ortopedia, a deixar que o SAMU cuidasse do caso, "quando ele descobrir de quem você é filha, vai pedir uma senhora de uma indenização". Em sua cadeira rotativa ele me deu um conselho que deve estar talhado em madeira na porta de entrada de seu santuário íntimo: "a gente passa a vida toda que nos resta tentando consertar as besteiras que fizemos na juventude". Anda hoje penso o que teria me salvado da proposta que me fez, em meus trinta anos, de estudar o curso de direito totalmente bancado por ele, e ser um de seus estagiários. Se não tivesse sido a aprovação no serviço público, qual  outro fator inviolável teria feito com que eu virasse as costas para a porta de seu escritório e seguisse a minha própria vida ?