Fiz um acordo com minha mulher _ não um juramento, mas um acordo _ de que vou ficar sem comprar livros pelos próximos três meses. Se há uma pessoa sem a mínima credibilidade para cumprir promessas, essa pessoa sou eu. Sempre que me deparo com a iminência de fazer uma promessa, logo me dá um comichão incontrolável para quebrá-la. Não sigo os links que aparecem em sites de download, aqueles que te revelam com a mais acurada ciência o que você foi numa encarnação passada, por temer que, em vez do príncipe fidalgo norueguês ou do escritor público que erigiram uma estátua em bronze em Bruges, apareça a real confirmação de que eu fui um desses criminosos que incendiavam igrejas e pregava cones de chifre de carneiro no busto de Nossa Senhora Aparecida. A minha iconoclastia chega a graus tão extremos que o aviltamento da promessa feita assume requintes do mais deliberado satanismo. (Vou colocar essa confissão entre parênteses e procurar ser o mais eufemístico possível para não ofender sensibilidades: quando tinha quinze anos, no auge da efervescência hormonal, fiz a mais solene promessa a Deus de que não cairía em tentações da solidão da carne durante um mês, se Ele fizesse com que o médico determinasse que o gesso em minha perna quebrada seria removido no prazo estipulado, sem que necessitasse que eu ficasse mais um mês atolado na cama no mais profundo tédio; eis que Nosso Senhor me atende e, no final de uma semana _ uma longa e valorosamente penitente semana! _ eu estava para morrer de saturação de tanta testosterona acumulada; me recordo que, andando de carro com meu tio, cada uma das saliências do asfalto remexia diretamente com minhas saliências internas, e, entendendo um pouco a lógica dos molestadores sexuais, quando até senhoras de sessenta anos e mulheres roliças me apresentavam como os mais entumecidos objetos do desejo, eu tive que conseguir uma postergação com Deus. Apresentei da forma mais competente possível as razões do porque eu teria que destroçar por completo a promessa, e digo aos estudantes da liturgia que, se o Onipotente não fosse mesmo um poço de infinita misericórdia e propagasse que o perdão deva ser dado não sete vezes, mas sete vezes setenta e sete mil, eu teria sido pulverizado imediatamente pela falta de solenidade de ter feito tal acordo já com as calças arriadas.)
De forma que minha esposa, com essa percepção infalível que toda mulher tem de que, na verdade, a maior sina do casamento é que se casa com o protótipo antecipado do próprio filho, sabe por suas vias silenciosas do meu iconoclastismo, e me fez que assinasse um acordo e não uma promessa. É que aqui em casa tem livros até em cima da geladeira, ao lado da privada, dentro do berço dos bebês, senta -se em cima de livros as visitas distraídas debaixo das quais temos que retirar o Balzac já azul de sem fôlego, aparecem livros molhados de chuva porque esqueceu-se de fechar uma janela, e até situações ideologicamente incompatíveis de se encontrar uma nota de dez reais esquecida em equivocado rendimento dentro de um livro do Thoureau. Em acordos eu sou medianamente fiel, talvez por não envolver do outro lado um deus que se acostumou em fazer cara enternecida para com seu filho cheio de manhas. (Prometi a Deus não colocar uma gota de álcool na boca até que a obstetra retirasse do útero de uma Dani em segurança,uma Júlia perfeita e propagando aos quatro cantos de uma maternidade em polvorosa a sua total ausência de pudores em estar VIVA. Consegui levar a coisa até um dia antes do parto, quando, sentado ao lado da janela da casa solitária, bebia no gargalo uma garrafa de vinho do Porto e, bêbado como uma égua, ameaçava à Potentade que se Ela fizesse um mal sequer contra as duas, se algo fosse removido fora do lugar ou se na conta apreensiva dos dedos ficasse sobrando de resto um dedinho a mais ali no canto do polegar, se Ela me deixasse com dois órfãos de mãe, ou se Ela fizesse com que todos os monólogos que fiz contra a barriga em movimento _ os pezinhos alteando-se testando os limites de seu conforto _ fossem para alguém destinado a não ter uma vida aqui na atmosfera...eu A renegaria com toda abrangência do ódio por Ela não cumprir a promessa. E eis que nasce um bebê com dez dedinhos nos pés e mãos, e uma série de bônus que me faz acreditar que meu poder de convencimento foi tão eficaz que escondeu a evidência de que eu amaria sem condições até se tivesse nascido um rabanete em vez da menina mais perfeita do mundo.)
Mas voltemos ao acordo (prometo a vocês que não usarei mais parênteses nesse texto). Firmei o acordo com a Dani e, no prazo de três meses, me manterei longe do site da Livraria Cultura, e atravessarei para o outro lado da rua para não ver a cara da dona da livraria lotérica cheia de pasmo por não ter uma encomenda minha para a semana. É bom que terei tempo para acabar de ler os cinco livros com os quais me ocupo agora: Ressurreição, do Tolstói, na magnífica tradução do Rubens Figueiredo e na belíssima editoriação da Cosacnaify; As Veias Abertas da América Latina, do sempre inigualável Eduardo Galeano, na edição de bolso da L± O Medo dos Bárbaros, de Tzvetan Todorov, um filósofo contemporâneo que ainda não tinha lido, editado pela Editora Vozes; Seu Rosto Amanhã, vol. 1, desse que foi um dos melhores presentes dos últimos anos conhecê-lo, Javier Marías, pela Cia das Letras; e a releitura de O Ano da Morte de Ricardo Reis, meu romance preferido do Saramago, da editora Caminho. Vai um excerto de Ressurreição:
E toda essa terrível transformação ocorreu só porque ele parou de acreditar em si e passou a acreditar nos outros. Parou de acreditar em si e passou a acreditar nos outros porque viver, acreditando em si, era difícil demais: acreditando em si, todas as questões tinham sempre de ser resolvidas não em proveito do seu eu animal, que busca alegrias fáceis, mas sim quase sempre contra ele; já acreditando nos outros, não era preciso resolver nada, tudo já estava resolvido e sempre era resolvido contra o eu espiritual e em favor do eu animal. Além disso, acreditando em si, ele sempre estava sujeito ao julgamento das pessoas _ acreditando nos outros, recebia aprovação das pessoas à sua volta.
Enquanto minha filha dorme em meu peito, e eu me regalo com a presença desse russo incomensurável. Sempre bom andar em companhia dos grandes, e dos muito pequenininhos.
Brilhante: "essa percepção infalível que toda mulher tem de que, na verdade, a maior sina do casamento é que se casa com o protótipo antecipado do próprio filho".
ResponderExcluirEstou tão do outro lado neste post que nem tenho o que comentar...
ResponderExcluir(a última promessa, entre parênteses, foi cumprida)
ResponderExcluiro texto está mto bom, e me identifiquei bastante com essa história de promessas, principalmente a Deus...
mas me causou quase terror a pessagem do tolstoi. foi no meu SUBTERRÂNEO. [não sei se é o caso, suponho q sim, mas percebo nos grandes livros q, retirada deles uma passagem, parece, essa passagem, uma síntese ou um ápice de toda a obra. como numa música.
]
ResponderExcluirConcordo plenamente, Rômulo: frases ou trechos isolados ganham uma força tremenda. Acho que vem daí um dos poderes de Shakespeare, o autor mais citado da história. Há citações do Rei Lear, Hamlet, Júlio César... que me dá a impressão de nunca ter lido Shakespeare, e quando vou consultar, ei-la a frase ganhando uma nova distinção de sabedoria justamente por se desvincular da obra. Quanto a esse trecho do Tolstói, assim que o li _ ontem_ tive um baque, corri para sublinhá-la (sempre sublinho meus livros, pois, de outra maneira, como vou retornar àquela passagem mágica? Contudo, deu uma certa pena risca um livro tão bonito).
ResponderExcluirAcho que o velho russo acertou em cheio com essas palavras, e Ressurreição, por muito tempo tida como uma obra apologética e moralista, e por isso desprezada pelos padrões modernistas do século XX, foi relegada ao segundo time. Mas que livro, cara. Na verdade parei de ler os outros 4 mencionados para chegar logo ao fim. Um escritor que foi coerente com todos seus princípios. No texto escrito pelo Rubens, o tradutor (ótimo), ele cita que Tolstói doou parte de suas terras para os mujiques que trabalhavam nelas, e relegou os direitos autorais de seus livros, fazendo-os circular livremente sem requerer direitos autorais. Nota: Tolstói foi best-seller enquanto vivo, tão vendido quanto o nosso Paulo Coelho. E, provando mais uma vez sua nobreza de espírito, escreveu Ressurreição para, com os direitos autorais agora em seu nome, destinar o dinheiro no transporte e instalação de uma grupo grande de pessoas religiosas, que se negavam a servir as forças armadas e à violência, e assentá-los no Canadá. Por muito tempo não prestava atenção em Tolstoi, comprometido por demais com o Dostoiévski. Recuperarei o tempo.
Vc já postou alguma resenha sobre a obra de William Faulkner?
ResponderExcluirQual obra dele mais lhe agrada?
Estou iniciando no mundo Faulkneriano tendo lido somente Santuário; atualmente estou mergulhado nas páginas de "O som e a fúria".
Abraço,
Rodrigo
Isso é uma provocação, Rodrigo, sujeira da sua parte! O Faulkner é meu autor preferido. Estou sem tempo justo agora pra te dar uma resposta. Mas prometo um post _ que aliás, está faltando_ sobre o autor de um dos mais belos romances de todos os tempos: Absalão, Absalão.
ResponderExcluiroutro abraço.
Ah... sobre o Faulkner, neste blog, por enquanto, tem isso aqui:
ResponderExcluirhttp://charllescampos.blogspot.com/2010/08/someones-knockin-at-door-somebodys_27.html