quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Lasanha Perfeita

Silvia Viana: inteligente e bela

Estou meio que sem tempo para escrever no blog, como está claro. Quando a fagulha surgir, retorno na produção de textos para cá. Muito trabalho aqui em casa, essas coisas. Mas sinto uma imensa vontade de ter umas cinco horas livres pela frente para falar de duas escritoras. A primeira_ e mais impressionante_ é a maior escritora brasileira do momento, deixando todas as outras no chinelo: a Silvia Viana. Estou relendo, ainda mais impressionado que a primeira vez com a sua inteligência, sua profundidade e sua capacidade de síntese e de construir frases soberbas (que nada ficam a dever a uma Hannah Arendt), o seu livro Rituais de Sofrimento. Antes eu o havia lido emprestado de um amigo, mas como acontece quando pego bons livros emprestados, eu fiquei formigando de vontade de comprá-lo. Pois o encontrei na capital e o comprei, e estou já na metade. Digo que Silvia Viana é a maior escritora brasileira do momento pois para mim o mais importante não é o qualificativo de gênero literário, mas a estatura real da inteligência e do talento do(a) escritor(a). Silvia Viana é um deslumbre da primeira à última página; cada linha deste livro é interessantíssimo, instigante, revelador e elegante. Peguemos uma escritora de ficção, como a Carol Bensimon, com sua necessidade de virtuosismo, seus cacoetes vaidosos de imitar referências e leituras, e seus pronunciamentos públicos toldados por um inamovível e involuntário classicismo e arrogância; a Silvia dispensa essa gratuidade, pois é uma pensadora potente antes de uma mera esteticista à busca de estrelato, e notavelmente é carregada de coisas genuínas e importantes para dizer. Esse livro é, em um primeiro plano simplista, um longo ensaio sobre reality shows (especificamente o Big Brother), mas sob essa linha há um verdadeiro estudo sobre a dominação da imagem, sobre a alienação e sobre os arquétipos de poder. E Silvia Viana mostra a grande leitora de literatura que é nas incomparáveis partes desta obra em que usa Kafka como correlação com o tema, além de ter respondido, recentemente, a um convite da revista Veja para que ela compusesse uma entrevista nas páginas amarelas da publicação com a frase bartlebyana "preferiria não" (que provavelmente o funcionário que recebeu tal resposta estava inapto de saber a sofisticada ironia nela impressa). Por isso, ela é a maior escritora brasileira do momento_ num país com uma vida intelectual boçal como o nosso, a Silvia Viana é mesmo algo difícil de acreditar.

A segunda escritora me provoca bem mais apreensões. Trata-se de Zadie Smith. Numa dessas distrações de quem viveu a maior parte de sua vida fora dos benefícios de aquisição da internet, só há duas semana caiu-me a ficha de que era coisa imensamente simples comprar um romance esgotado que há anos eu desejava ler. Acessei a Estante Virtual e pedi Dentes Brancos por meros 25 reais, e o livro me chegou em quatro dias. Que coisa!_ o vestígio do inacreditável em mim cobrando fetichismo do desejo do objeto impossível de dez anos atrás, quando a longa espera determinava a explosão de felicidade da coisa surpreendentemente encontrada. Pois o exemplar retirado do embrulho e folheado causou mesmo neste veterinário que aqui escreve, acostumado a dejetos e cheiros com a mais absoluta naturalidade, um embrulho no estômago. O livro traz carimbo de ter pertencido a uma locadora de livros (o romantismo disso também contribuiu para a nostalgia do velho fetichismo), e, ainda que bem conservado, traz atormentadores marcas de polegar impressos pelo que me parece ser cera de ouvido em diversas páginas. O leitor marcava as páginas em que parava a leitura com uma impressão digital nítida em explícito amarelo biológico, tanto que se fosse atualmente possível identificar o endereço pelas digitais em algum site da net, eu faria o favor de enviar pelos correios um pacote de cotonetes para o sujeito. Mas... como esperar que na descrição das condições físicas do livro no site da EV viesse a desconcertante frase: "com marcas de cera de ouvido por todo o volume". Me envolvi de mais musculatura estomacal e me pus a ler logo o livro da Smith, fazendo muito esforço para conter minha imaginação pulsante que queria me brindar com especulações sobre os outros escatologismos que alguém assim poderia oferecer em horas de leituras em banheiro, etc (aqui me sinto influenciado por uma das frases simpáticas recorrentes da Silvia Viana: "um longo etc").

Mas vamos ao que interessa: Smith é boa escritora. Escreveu uma obra de fôlego e a publicou aos 24 anos. Há diversas evidências de sua pouca idade no romance, e o irritante virtuosismo em cenas sem propósito algum além de suas prestações de contas com Dickens e com o inventário de seus narradores fundamentais (uma sorte para o leitor Joyce não estar no rolo). Há partes impagáveis, e outras nem tanto. É uma obra desigual, às vezes longa demais. Mas valeu a leitura. O que define seu estilo está bem descrito na contra-capa: Zadie Smith é "despojada". Me surgiu a comparação inevitável em linha menor com Jennifer Egan, e maior com Margareth Atwood. Já que estou em uma conversa passional de bar, Egan é o exemplo de prosa sintética desmotivadora, enquanto Atwood continua sendo para mim a maior romancista (mulher) em inglês viva. Pois bem, o despojamento de Smith é um ensinamento, tanto quanto sua enorme fé no que escreve. O que vale atravessar longas cenas gratuitas desse seu romance é justamente o brilho que ela coloca nelas, como se fosse a escrita que salvará o mundo. Produzir um livro de 600 páginas contando histórias domésticas é um exorbitante exercício de fé na literatura. E isso apenas já tornaria Smith a seu modo indispensável_ é muito bom estar em mãos tão crentes, tão devotas. E aqui entra o despojamento: ela destrói a possibilidade de grandes frases, propositadamente: quando se depara com o momento cabível em sua música interna de compor algo lapidar, ela vai lá e populariza a coisa, transforma a frase beethoveana em um desleixado e feliz foxtrot. Alguém mestre em fazer isso é Salman Rushdie. E isso é sensacional, dá um força incrível para a permanência do que escreve. Esse é seu despojamento, despojamento de uma escritora ainda jovem por demais, mas já apta a abraçar sua mestria no trabalho. E aqui entra Egan: enquanto Egan faz do despojamento uma forçação de barra, sendo possível ver a dificuldade que lhe custou ser tão aerada, Smith passa a impressão de que escreveu no ônibus, ou em um restaurante enquanto espera a mãe _ isso é possível, não é só uma figuração: Bellow escreveu Augie March assim.

Desde semana passada, ao ler Smith, estou brigando contra essa comparação, mas foda-se o mau gosto. Lá vai: li há pouco uma matéria gastronômica sobre a Lasanha Perfeita. Um repórter a encontrou no centro de São Paulo, se não me engano. E a foto parece mesmo ser a Lasanha Perfeita. Ele a descreve: não tem queijo em excesso, como acham que tem que ter a maioria dos cozinheiros; é resumida no tamanho, seca, com um raminho de alguma plantinha em cima. É despretensiosa em sua simplicidade arrogantemente cobradora de distinção elitista. Pois Egan é a Lasanha Perfeita. Egan escreve roteiros de séries americanas em forma de romance. Eu detestei A visita cruel do tempo, ainda que ele seja bastante divertido: mas é falso e esquemático em tudo. É trabalhosamente leve. É exaustivamente composto para não cansar. É despojado no pior sentido. Vi uma blogueira metida a besta dizendo com imenso enfado que tudo na literatura atual a cansa, é tedioso, e que teve um momento de total adstringência quando leu A visita cruel do tempo em uma praia em Ibiza. Esse é o retrato da literatura pastel, ou literatura Lasanha Perfeita. A lasanha perfeita para mim é a lasanha que minha tia Tânia faz, e que é um sucesso na família toda: tem excesso de queijo, gordura que sai pelas pontas da colher quando colocamos uma porção no prato; tem o cheio vindo da cozinha que atiça a fome ainda mais; tem um cordel de doces reminiscências da infância; tem todos os erros e imperfeições que só o poderiam ser para os de fora que nunca gostaram de lasanha, mas de empáfia na mesa. Pois bem: não sei ainda se Smith vai me afigurar futuramente no mesmo escalão de grande romancista como Margareth Atwood, mas uma coisa é certa: ela não é a Lasanha Perfeita; talvez por isso tenha me deixado tão prazerosamente desconcertado.

domingo, 25 de maio de 2014

A morte e a pompa_ Louis-Ferdinand Céline: "De castelo em castelo"

Um texto excepcional de Milan Kundera sobre Céline, retirado do ótimo Um encontro, um volume de ensaios de Kundera lançado pela Companhia das Letras:



"No romance De castelo em castelo, a história de uma cadela; ela vem das terras glaciais da Dinamarca, onde estava habituada a longas escapadas pelas florestas. Quando chega à França com Céline, acabam-se as escapadas. Depois, um dia, o câncer.

[...] tentei deitá-la em cima da palha... logo após o amanhecer... não queria que eu a deitasse... não quis... queria ficar em outro lugar... no lado mais frio da casa e em cima das pedras... deitou-se calmamente... começaram os roncos... era o fim... haviam me dito, eu não acreditava... mas era verdade, estava deitada no sentido da recordação, de onde viera, do Norte, da Dinamarca, o focinho ao norte, virado para o norte... cadela a seu modo tão fiel, fiel aos bosques de suas escapadas, Korsör, lá no alto... fiel também à vida atroz... os bosques de Meudon não lhe diziam nada... morreu após dois... três pequenos estertores... ah, discretíssimos... sem um só lamento... por assim dizer... numa pose de fato muito bonita, como em pleno ímpeto, em fuga... mas de lado, prostrada, acabada... o focinho para as suas florestas das fugas, lá longe de onde vinha, onde sofrera... só Deus sabe!

Ah, vi muitas agonias... aqui... ali... por todo lado... mas nem de longe tão belas, discretas... fiéis... o que estraga a agonia dos homens é a pompa... o homem afinal está sempre no palco... até o mais simples [...].

"O que estraga a agonia dos homens é a pompa." Que frase! E: "o homem afinal está sempre no palco"... Quem não se lembra da comédia macabra das célebres "últimas palavras" pronunciadas no leito de morte? É assim: mesmo agonizando, o homem está sempre no palco. E mesmo "o mais simples", o menos exibicionista, pois não é sempre verdade que o próprio homem se coloca em cena. Se ele mesmo não se coloca, nós o colocamos. É seu destino de homem.

E a "pompa"! A morte sempre vivida como alguma coisa de heroico, como o final de uma peça, como a conclusão de um combate. Leio num jornal: uma cidade, soltam-se milhões de balões vermelhos em homenagem aos doentes e aos mortos de aids! Paro neste "em homenagem". Em memória, como lembrança, em sinal de tristeza e de compaixão, sim, eu compreenderia. Mas é assim, e Céline sabia disto: "o que estraga a agonia dos homens é a pompa".

Muitos dos grandes escritores da geração de Céline conheceram como ele a experiência da morte, da guerra, do terror, dos suplícios, do exílio. Mas viveram essas terríveis experiências do outro lado da fronteira: do lado dos justos, dos futuros vitoriosos ou das vítimas aureoladas por terem suportado uma injustiça, em resumo, do lado da glória. A pompa, essa autossatisfação que quer se exibir, estava tão naturalmente presente em todo o seu comportamento que eles não podiam vê-lo ou julgá-lo. Mas Céline ficou durante vinte anos entre os condenados e os desprezados, no lixo da história, culpado entre culpados. Todos em volta dele foram reduzidos ao silêncio; ele foi o único a dar uma voz a esta experiência excepcional: a experiência de uma vida cuja pompa foi inteiramente confiscada.

Essa experiência permitiu que ele visse a vaidade não como um vício, mas como uma qualidade consubstancial ao homem, que não o deixava nunca, nem mesmo no momento da agonia; e, sobre o fundo enraizado dessa pompa humana, permitiu que ele visse a beleza sublime da morte de uma cadela."

Louis-Ferdinand Céline

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Singeleza



No jornal televisivo agora de manhã: uma menina de sete anos sobe em uma torre de televisão em Roraima, e só aceita ser resgatada quando lhe prometem que ela vai poder passear no carro dos bombeiros em perseguição ao arco-íris.

domingo, 11 de maio de 2014

Em que acreditam os escritores ( II )



Philip Roth: é uma torre sólida e indevassável de certeza de que tudo que existe de vida termina por aqui. Roth é um escritor realista do final do século XX, o que diz muita coisa e marca uma enorme diferença do realismo de outras épocas da literatura. Roth é cosmopolita, político, historiógrafo tanto do imaginário do seu país quanto das especulações sobre uma história de massacre alternativo, e é o suprassumo do escritor idiossincraticamente americano. Analista incansável da maior parte das vertentes mentais da América pós-1945, estudou todo o prisma da vida americana, ao mesmo tempo reforçando e desconstruindo o que sobrou da energia metafisica da América redencionista. Em sua bibliografia vemos a fase em que dialoga ironicamente com o freudianismo, usando a saúde sexual contestatória de sua própria juventude como comburente verbal e esotérico_ ler Complexo de Portnoy é dividir com Roth sua terrenidade lúbrica, sua mortalidade adiada em prol aos hinos à saúde corporal e mental. O Roth da juventude é um atleta sexual prenhe de vida, fascinado pela fama, situado a uma distância insofismável da morte e da deterioração: é um escritor que encarna o poder feérico dos Estados Unidos em sua ampla atmosfera de ser porto a todas as revoluções intelectuais, culturais e científicas. Roth se dava tão bem consigo mesmo, reconhecia sem o mínimo pudor a importância de seu egocentrismo, que produziu parte de sua obra falando única e exclusivamente em uma auto-referência explícita. Em Zuckerman acorrentado vemos um exemplo de prosa excepcional em que, em maior e menor grau de ficcionalização, Roth é seu próprio personagem, e seu tema é todo o fisiologismo correspondente a ele: talvez seja o único escritor que tenha feito uma obra relevante em torno da descrição de sua mialgia de postura e de sua paranoia de perseguição. Outra fase bem característica de Roth é seu ataque a toda forma de religião, em O avesso da vida e Operação Shylock, o primeiro incorrendo mesmo em um didatismo de viagem por Israel e pela Londres católica. Mas seu romance mais próximo do que poderia ser chamado de metafísica por uma procura além de significados para a existência é Teatro de Sabbath. Neste livro monumental encontramos a forma que o ultra-cerebral Roth adota para investigar a finitude: através da degradação paulatina de um shakespeariano na sociedade de excessivas aparências americana. É a obra mais notável e mais altiva de Roth; conserva similitudes simbólicas profundas com Rei Lear. Impossível de ascender-se para qualquer intuição de transcendência, o alter-ego do ególatra Roth, Mickey Sabbath, pena com sofrimento enorme o ter que se confrontar com seu envelhecimento. Aqui vemos a linha contínua de reflexo na escrita do que se passava na biografia do autor: não mais jovem, não mais podendo contar com sua incrível energia sexual e sua vaidade intelectual, Roth se analisa de forma extremamente solitária no mendigo Sabbath, em sua esposa alcoólatra velha, em sua aluna gorda com quem mantem esperança de alguma nostalgia erótica dos velhos tempos, na fornicação triste com as peças de fetichismo esvaziado do armário da filha de seu amigo que o acolhe em casa. Aqui vemos o Roth russo, ou russificado, o Roth dostoievskiano que começa a se voltar, obrigatoriamente, para fora de seu americanismo, de sua profusão festiva do grande gênio americano. Não à toa a última frase do romance reafirma seu materialismo, mas um materialismo que venera a sacralidade da decomposição e da degeneração irrevogável de tudo que outrora foi belo. Daí vemos a fase de análise crua das patologias humanas em seus livros sobre doenças e morte, sendo os mais sintomáticos o tocante relato da morte de seu pai, Patrimônio, e seu último romance, Nêmesis. Nesses, Roth resume toda sua filosofia conquistada: ele se transformou em um estoico amargurado, que mal suporta a visão da velhice. Se tivesse um caráter menos romano, teria se metido um balaço na cabeça, como fez Hemingway quando viu a rua sem volta da velhice. Mas Roth é vaidoso demais, centrado demais para fazer isso_ um escritor paranoico pela escrita, que não gosta de música e nem de nenhuma outra forma de expressão artística. Nêmesis é sua última grande obra, uma obra-prima sobre contenção e análise cerebral destituída de sentimentalismos ou cogitações paralelas, uma aula surpreendente de Roth de como escrever sobre a alteridade retirando toda a presença pessoal do escritor da escrita_ isso vindo do mais pessoal dos escritores. Roth, a meu ver, é o escritor mais materialista das últimas décadas, quiçá do século passado.

Em que acreditam os escritores ( I )



Saul Bellow: foi um dos últimos escritores esotéricos norte-americanos. O que pega é que ele foi melhor e mais inteligente que todos os outros, daí não ser encorajador para ninguém analisar criticamente suas crenças espirituais. Ele acreditava em Deus e na prevalência do espírito além da carne, mas em um deus distante do homem, um deus que deveria ser alcançado em seu elevado padrão de comunicação através da melhora intelectual da espécie. Há uma parte memorável de Sr. Sammler em que ele imagina o homem daqui a bilhões de anos, e escreve: "será então que esse nosso irmão de espécie estaria apto a conversar com deus?". Em sua biografia romanceada de Allan Bloom, ele escreve que não acreditava que alguém como Bloom desaparecia para sempre após a morte. Bellow estava à frente dos modismos e das conjunções filosóficas de sua classe de intelectuais; o mais culto de todos os escritores (para se ombrear a ele, somente Borges, Cortázar e Anthony Burguess), ele simplesmente evitava falar a sério sobre deus, pois, na sua concepção, tratava-se do mais importante (ou talvez o único) assunto da literatura, mas que não era cabível tratar do tema de forma simplória. Uma de suas frases principais era que não acreditava em nada que a criação técnica do homem havia promovido, pois trezentos anos de ciência era um estágio de engatinhamento que não dava a ninguém o direito de supor que tudo já fora explicado. Em outra parte antológica, ele ouve um homem que fora ateu convicto durante toda a existência ter uma revelação em um metrô de Londres, e dizer: "Nada é absurdo o suficiente para existir; talvez, então, Deus exista!". Ele expressava todas essas ideias através de seus personagens.

Isaac Bashevis Singer: em uma entrevista, perguntado se ainda acreditava em Deus, Singer responde que sim, mas que, se tivesse oportunidade, faria um grande cartaz de indignação e esfregaria na cara de deus. Singer está para o judaísmo assim como Tolstói está para o cristianismo: ele foi um devoto assolado por dúvidas e por lapsos duradouros de niilismo, mas na maior parte de sua obra vemos a crença batalhada através de uma compreensão libertária sobre o flagelo  humano. Vemos em sua ficção que a transcendência não é mero artifício literário, como o realismo fantástico dos escritores latino-americanos: o primitivismo conservado em que vive os últimos judeus tradicionais de seus contos remete à força da fé diante um mundo cuja aproximação arrasará essa fé de modo inexorável. Singer fez algo absolutamente inédito (e muito revolucionário em seu contexto) para um intelectual do século XX: se afundou cada vez mais em um universo avesso à modernidade em todos os sentidos, deu as costas deliberadamente para o século do esclarecimento niilista em que vivia. Mas não era, claro, um descerebrado anacrônico; em seus romances e contos nunca deixou de fazer um intercâmbio crítico com a futilidade da vida urbana americana (notavelmente em Sombras sobre o rio Hudson); em uma de suas novelas tardias, O penitente, ele mostra um narrador que foi empresário bem sucedido na megalópolis americana que abandona tudo para viver na tradição fechada do talmudismo aldeão em Jerusalém: e expõe todo o repúdio inicial diante uma sociedade minoritária religiosa também infestada pela ortodoxia vazia da busca por saciedade.

Albert Camus: não há como ler os diários de Camus sem intuir que, se Camus não tivesse morrido em um desastre de automóvel, provavelmente teria retirado a vida com as próprias mãos. Camus era um ateu que sentia uma enorme, colossal, orfandade de deus. Todos os seus livros tratam de deus, toda a sua vida era obcecada pela impossibilidade de viver sem a guarda de um deus. Ele trai uma nostalgia da simplicidade infantil em que toda a crença era possível em seus surpreendentes rasgos poéticos ao escrever sobre a natureza, mas era francês demais em seu colonialismo, era infestado pelo ultra-racionalismo de um exilado e de um apátrida que vivera as diásporas pós-coloniais do século para não ser outra coisa que um niilista. Mas não conseguia ser um niilista pleno: por detrás da doutrina filosófica de pensador moderno muito requerido, sua escrita traz uma série de contradições e pequenas mas relevantes auto-traições. Sua precocidade foi seu maior inimigo, e o fato de morrer ainda jovem sem que tivesse combatido o esteriótipo sofisticado de sua obra é um dos mais cruentos sarcasmos da literatura. O hipotético Camus velho, resguardado na segurança relativa de seu gabinete da manutenção do existencialismo como escola jovial para arrebatar adolescentes, teria se virado para uma cogitação menos defensiva, com menor cosmética dureza, rumo à possibilidade da transcendência. Teria feito como Bellow e Nooteboom: se preocuparia menos com esses terrores da alma. Em A peste, temos a mais pura posição de Camus quanto a isso (Camus foi um filósofo capenga, um bom ficcionista, mas um grande poeta e um ensaísta de mão cheia), na decisão dos dois personagens principais isolados na cidade contaminada, o médico e o fotógrafo, que se investem da qualidade de santos sem deus em darem suas vidas para a amortização da dor dos condenados e na premissa inevitável de que logo sucumbirão à morte pela doença. O ateísmo de Camus era algo que deveria ser conceituado e preenchido por ele; havia uma moral elevada, sobre-humana, quase religiosamente auto-martirizante em sua abdicação do mundo; havia uma nostalgia selvagem por alguma forma de compreensão desagrilhoada das filosofias e posturas congeladas, exigidas para se manter socialmente íntegro no século da destruição total. Camus em nada tinha a ver com Sartre; Sartre era um ateu político, detinha uma concepção segura da ausência de deus, era biologicamente imune a questões de sublimidade, era terreno até a medula e adaptado ao máximo aos confortos da cidade moderna; era um animal muito mais dotado de fatores de sobrevivência que seu companheiro de pensamento filosófico argelino; basta analisarmos naquilo na escrita em que os dois mais se aproximaram, seus volumes de contos, para percebermos o quanto eram diferentes e tornados semelhantes por uma convenção mercadológica editorial: em O exílio e o reino, de Camus, vemos a orfandade de personagens sem uma pátria definida, viajantes, passantes, turistas em países exóticos, pessoas à procura em meio à devassidão de um mundo que não oferece guarida; um livro escrito por um eterno exilado, que necessita criar para si um modo original de visão, desapegado dos valores políticos e espirituais do Império;  já em O muro, livro de contos de Sartre, vemos todos os sagrados temas europeus escritos por um europeu consolidado por séculos de boa digestão: um assassino psicopata transitando por Paris; um intelectual sexualmente impotente partindo seu amargor com novas formas de carinho na regra matrimonial a ser mantida; prisioneiros de guerra que se traem em uma comédia de erros (a única manifestação de humor de Sartre). Camus era oriental, místico inconsciente e religioso, que morreu em uma lamentável precocidade.

Thomas Bernhard: o pragmatismo minimalista de Bernhard é algo assustador. Bernhard nunca escreveu sobre deus, sobre crer ou não crer, sobre a transcendência. Sua escrita é uma força natural de ódio concentrado, expurgador, asséptica. Ele fundou na catarse todo o motivo de sua obra: ler Bernhard é livrar-se das toxinas espirituais, dos envenenamentos crônicos que a história e a vida entre os homens nos impregna. Seus personagens estão todos no limite: no limite da estupidez consentida em seguir rebanhos, ou no limite da contravenção, da não-coaptação, da não aceitação. Na lápide do tio do personagem de Extinção, por exemplo, lemos "aqui jaz aquele que deixou os estúpidos para trás na hora certa". Bernhard, assim como na arte, foi um homem coerente: foi odiado por sua pátria, processado pelas igrejas institucionais, e pessoa respeitada mas non grata pelas academias (que ainda assim incorriam no erro de lhe outorgar prêmios e lhe dar motivos para ler "agradecimentos" ácidos que lhes faziam cair um tanto mais o reboco dos bustos de pensadores proeminentes). Em O náufrago, faz seu narrador dizer que era uma estultície viver até os 50 anos. Doente crônico, Bernhard viveu com a iminência da morte desde menino, mas sua convivência com a finitude é algo desprovido quase por completo de filosofia. Seu trato com a mortalidade é cheia de humor, de uma ternura nem sempre bem sublinhada mas fortemente percebida pelos excluídos e sofridos e renitentes. Seu único inimigo nunca foi a potestade ou o vazio de qualquer resposta quando se clama aos céus, mas a ignorância. Bernhard foi o irado e profundo contestador da ignorância e do atraso humano, investindo-se contra todas as formas seculares e institucionalizadas desse atraso. Foi o escritor mais bem equilibrado na realidade desse mundo, justamente por mostrar em cada frase seu inconformismo absoluto com ela. Não era ateu e nem um crente: era um radical reacionário em seu mais exímio e puro significado.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Nick Drake



Os três álbuns lançados em vida por Nick Drake, Five leaves left, Bryter Layter e Pink Moon estão, fáceis, entre o que de melhor se produziu na música da metade final do século passado. Escutar a música de Drake sempre foi algo espiritual para mim, de uma suavidade, delicadeza, rusticidade, sofisticação, força. Talvez eu gaste tantos adjetivos para conceituá-la porque, quando a escuto, como acontece com a grandes músicas, a necessidade da palavra se perde por inteiro, e tudo seja apenas a alegria poderosa e a tristeza diáfana que ela desperta. Escutar Northern sky, por exemplo, me deixa em estado de uma precipitada atenção, como se estivesse por pegar um trem noturno que me é muito conhecido, ou como se, assim que as primeiras notas da canção são executadas, eu estivesse por encontrar, entrando pela porta, algum amigo ou amiga muito amada. Sempre me movo para uma posição de descanso en garde para ouvir mais uma vez aquelas notas de puro cristal lunar sem peso, que me soam impossíveis de que algum instrumento e alguma mão humana tenham-nas realizado_ é como poder transmitir para a partitura o frio do céu nórdico, a aurora boreal, ou o brilho inapreensível de todo o cosmo visto em uma noite excessivamente translúcida. Northern sky me deixa com a alma limpa; me revela algum mistério universal com o qual eu jamais conseguirei dizer mesmo a mim mesmo do que se trata: um mistério não verbalizado, tão importante que eu não posso senti-lo por inteiro, só por fagulhas_ fagulhas que atravessam o céu diante um rosto desfigurado por um sorriso que é tanto de alívio quanto de plácida loucura.

Alguém disse uma vez que não conseguia aceitar que alguém que tenha composto uma música tão impregnada de amor pela vida quanto Northern sky tenha se matado. Estranho que eu escute Drake sem que esse detalhe sobre sua biografia venha à minha mente; ao contrário de Kurt Cobain, Janis Joplin e Jim Morrison, cuja departida no auge da juventude parece ser a prerrogativa primária para se entender o que eles falavam. Drake não me traz nenhuma pista em suas músicas, mesmo na beleza quase prostrante de Fly, cuja letra filosófica e o cello crepuscular tenham servido de trilha para uma cena de suicídio no cinema. Mas, claro, eu sei que a depressão impactante foi o mote dos últimos dias de vida de Drake; sei que seu altíssimo Q.I. e sua família abastada que o prometeram às melhores faculdades inglesas sucumbiram diante seu quarto em que ficava isolado, sem se prestar a ver ninguém. Sei que era um músico dotado de um talento em um grau avançado que poucos, só os gênios , tinham, e que isso refletia também em sua perícia na guitarra e no violão. Desejei muito escutá-lo mas seus álbuns eram inacessíveis ao mercado nacional. No início da internet democratizada, quando o download se arrastava, eu pedi em uma lan-house que baixassem algumas músicas de Drake para mim. O rapaz colocou no som ambiente para testar a qualidade do som, e o que tocou foram as primeiras notas de violão e orquestra de Introduction, do Bryter Layter. Aquilo me arrebatou, aquele som preenchendo sem álibi nenhum a saleta da lan-house. Anos depois, eu consegui comprar a caixa com 4 cds Fruit tree, que traz tudo que Drake gravou, inclusive as músicas não editadas que ele compôs no quarto isolado. A sensibilidade em estado puro.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A felicidade correndo pelas largas campinas



É fácil falar sobre a morte. A literatura se fundamenta desde sua gênese no ótimo tom lúgubre da saudade. Por isso gerações de grandes escritores da angústia da perda, da lamúria. Difícil mesmo, quase impossível, é escrever bem sobre a saúde e a felicidade. O propósito é tão impossível que são poucos os que acreditam que a felicidade realmente exista, e esses são combatidos pela excessiva relativização que a felicidade em um mundo onde impera o sofrimento por todos os lados oferece como auto-crítica. Ser feliz com a simples constatação de que minha vizinha, uma senhora costureira de sessenta anos, adotou uma cachorrinha como única companheira (e ouvir o terno arrastar do prato de comida pelo chão pela cachorrinha brincalhona, o dia todo), já é ser dotado de um estágio de alma matizado pela incômoda consciência da alteridade; e como ser feliz, então, com o linchamento reportado pelos jornais, ou as infinitas outras mortes, as nunca apaziguadas caras de desespero no mundo todo, provocadas pelas tantas fontes de agruras das quais esse mundo é generoso.

Os escritores russos sabem ser os mais tristes e ao mesmo tempo os mais felizes. São os únicos, fora os poetas, que realmente conseguem exprimir a felicidade na página. Há um sem número de páginas de felicidade em Guerra e paz e Anna Kariênina, no mais altíssimo estilo_ porque, pior que o sexo mal escrito, a felicidade má escrita destrói a carreira de um escritor para sempre. Também Cholokov, o ótimo mas esquecido escritor soviético, soube imprimir uma estranha e retroativamente ingênua felicidade em seus contos e em seu grande romance O Don silencioso. Não me recordo qual conto dele li certa vez em uma biblioteca pública, mas me lembro perfeitamente que o ar estava um tanto mais leve e elétrico depois que li as aventuras de um menino camponês que limpa o caminho para que Lênin passe pela aldeia onde mora. E em seu romance, há uma cena de reconciliação na frente de batalha de dois inimigos jurados que traz a felicidade do perdão dado e consentido. E também, em Turgueniév há aquela felicidade pelas largas campinas e pelo gelo que torna os sonhos primordiais do homem mais tangíveis quando ele está entregue à natureza. 

Me ocorreu escrever sobre a felicidade porque, em contrapartida, na casa solitária, hoje me pesa um punho fechado da tristeza. Disse a um amigo que não escreveria sobre isso, que não quero mais pôr aqui textos que avancem uma polegada a mais no culto da lamúria. Mas o fato é que perdi meu magnânimo e majestoso amigo, meu cão rottweiler, Miles Davis, na sexta-feira passada. E hoje, minha esposa e filhos tendo ido para a capital, passar 5 dias na casa da minha mãe, estou em absoluta solidão aqui em casa. Por seis anos nunca estive só. Miles Davis sempre foi minha companhia. E isso dói muito agora, dói de uma maneira única que eu jamais havia experimentado. Sinto tanta falta dele que o mínimo movimento dos calangos no quintal, ou do vento nas janelas, me acende subitamente uma alegria sem lógica por pensar "é ele, é o Miles!"; e o quanto essa alegria é sádica por se esvanecer diante a realidade de que não pode ser ele. É uma saudade feita para ele, feita para se sentir entre um homem e um cão; de certa forma, é mais dura de suportar do que a perda de meu pai, por se tratar de canais de amor distintos. Tudo em mim está condicionado pela escora que Miles oferecia: abro a geladeira e instintivamente espero que ele pule na janela pedindo um naco do que for que eu vou pegar para mim; se eu tiro o carro da garagem, eu paro um instante e me contenho de não ir aos fundos prender o Miles na coleira; quando chega a tardinha, como agora, eu me contenho para não recair na disciplina cultivada de esperar que ele bata com a pata na porta me lembrando que é a hora de passear.

Por vinte dias eu batalhei a vida dele. Levei em dois veterinários, cada um com um diagnóstico diferente. Um disse que era diabetes, mas fiz os exames de glicemia nele, e não era. O outro disse que era leptospirose, mas eu não acreditei muito. Tratei-o como sendo uma parvovirose, de início aliviado por ele ter vencido os cinco primeiros dias difíceis. Antibióticos, soroterapia, mas ele minguava cada dia mais, sem apetite. Eu tinha que jogar a comida batida e a água boca adentro dele com uma seringa. De duas em duas horas o hidratava, na esperança de que fosse as sequelas da parvovirose. Mas ele não resistiu. Depois que eu troquei o portão gradeado aqui de casa por um todo fechado, o Miles ficou triste. Na harmonia das coisas, os cães que passavam e lhe provocavam, e os moleques infernais que latiam para ele e o tiravam do sério quando voltavam da escola, era parte do que o mantinha vivo. Os moleques que eu tanto odiava! (Singer estava certo em seu conto "Alegria": sejamos sempre alegres, pois tudo anda conforme a impressão segura de que somos imortais.) Perguntei a um amigo sábio para onde vão os animais quando morrem, ele me disse que os animais tem alma, mas não espírito; seu princípio vital volta para a harmonia do cosmos para preencher de vida um outro animal à espera de nascer.

O amigo com o qual falei sobre Miles me disse que minha alegria aos poucos retornaria com um novo livro, uma nova distração, um novo cachorro. Eu devo isso ao Miles: continuarmos sendo preguiçosos e desimpedidos, machos destemidos que protegem nosso território. (Antes de me casar, a imagem de uma felicidade pessoal era Miles e eu em uma casa de campina, voltando à noite de nossas correrias pelo campo.) Eu devo isso ao Miles: voltar a ouvir sem um nó no coração as sonatas de Mozart que ele tanto amava, quando deitávamos lado a lado no colchão que eu colocava na sala e partíamos para aquelas sublimes dimensões da música_ eu acordava, lhe dava um beijo no pescoço sentindo seu delicioso odor de cachorro, e ele dava um suspiro profundíssimo.

Eu devo essa felicidade ao meu grande amigo Miles Davis. Nada de lamúria, Miles Davis. Essa noite vou ficar aqui sozinho; lá pelas nove, vou me preparar um sanduíche, e será impossível não pensar que você subirá à janela com as grandes patas solicitando o direito irrevogável do seu. E amanhã vou para a capital ficar com os meus. E vou comprar Memórias de um Caçador, de Turgueniev.

sábado, 3 de maio de 2014

Reflexão dissociativa de beira de estrada



Pode parecer que não tem planejamento nos textos que escrevo para este blog. Às vezes fico pensando por dias determinados temas que pretendo postar aqui. Todos, porém, são escritos em um mesmo dia, num fervor que pode durar de 30 minutos a 4 horas e meia ininterruptas. Durou 4 horas e meia, por exemplo, o texto que escrevi sobre a morte do meu sogro. Comecei-o às sete da manhã e só fui me dar conta das horas quando eram 11 e meia, horário em que finalmente o terminei. Há textos que me vem em locais improváveis, e na maior parte das vezes consigo parar tudo que estava por fazer para tirar aquilo da mente e jogá-lo no papel: exemplo disso foi um dos meus textos por qual eu sinto mais gosto, o Bebê 59, que escrevi em meu trabalho após ver a reportagem na televisão falando sobre o bebê jogado no cano da privada por sua própria mãe. Fiquei tão tocado que peguei uma folha a esmo e escrevi em um arroubo de raiva e ternura e desespero. Acho que o escrevi em 15 minutos. Há outros textos que escrevi em fila de banco (Mustang), na sala de espera de consultório médico, em praças públicas. Grande parte dos textos que estão aqui não me descem mais pela garganta; evito lê-los, para evitar de sentir uma desbragada vergonha de meu semi-analfabetismo. Mas há alguns que, tardia e inesperadamente, como Dumas pai ao reler um de seus romances, me faz pensar: "Poxa, não está tão mal assim". 

Mas escrever aqui no blog tem sido essencial em meu despertar para as letras. Sempre notei um talento em mim para a escrita (sou dessas pessoas que descartam a obsolescência absurda de falsas modéstias), mas antes da internet eu já havia perdido por completo a motivação para escrever. Talvez porque a escrita seja algo importante demais para mim, e eu não vi onde poderia acrescentar alguma coisa de valor real no que já está aí escrito. Talvez porque submeter algo tão íntimo quanto a escrita ao marasmo e ao olvido imediato me causava repúdio. Nunca vi a escrita como exercício puro de vaidade, e abomino escritores que pretendem ser apenas virtuoses de estilo e palhaços vivendo às custas de palmas. Sei que quando eu escrevia, antes da internet, o ato me deixava cheio de serotonina, cheio de um prazer inefável pela existência, por estar vivo, por ter aquilo. Escrevi de tudo: contos de pescaria à lá Hemingway, ensaios à lá Said, retratos de personalidades à lá Conrad, um romance garciamarqueano, um romance faulkneriano_ e até uma elegia às assombrações de William Golding, escritor que foi uma das minhas mais severas obsessões da juventude. Por anos, eu tratava a ânsia e o passar do tempo escrevendo excertos de imaginários romances, simulando o Sr. Sammler e Pynchon. E como escrever é uma ótimo remédio para a passagem do tempo! (Quando não posso escrever, submetido a algum horário impositivo em que nada tem que ser feito a não ser esperar o ponteiro do relógio percorrer o gigantesco raio da arena, eu canto mentalmente todo o Thick as a Brick, como placebo para matar o tempo.) Uma vez, quando esperava o aparecimento de um tio em seu escritório, aparecimento que prometia resolver um problema financeiro da minha parte, eu, cansado daquilo, escrevi duas páginas em um caderno sobre uma cena que não me saía da cabeça, e quando terminei, saí embevecido dali sem me preocupar em ter que esperar ninguém. Mas aí eu parei de escrever, porque o Brasil, porque a sobrevivência, porque a vida adulta, porque a gente tem que aprender a crescer afinal de contas, porque... Fiquei anos sem escrever nada de substancial. Me tornei um pragmático; um leitor voraz, mas não mais um escritor. 

Contudo, a escrita não me abandonava, de uma maneira ou de outra, o que era, do ponto de vista de meus planos estéticos de outrora, uma aberração por se prestar ao cartoricismo. Vou explicar: me tornei um escritor de ofícios. Eu trabalhava na área de administração de penitenciárias, e todos sabiam que eu era fera para escrever. Uma vez, fugiram quatro presos de um dos presídios que estavam sobre minha administração, e, quando recapturados algumas horas depois, esses presos chamaram advogados e a pastoral carcerária, com a alegação de que haviam sido espancados pelos agentes policiais. Houve um tumulto da falsa moral dos que se alimentam da rançosa bondade midiática, e esses agentes estavam para ser demitidos e lançados em um processo penal desgastante que poderia levá-los a serem presos. Os presos, na fuga, surraram quase até à morte o agente de plantão, mas nenhum dos padres sequer mencionou isso nas audiências do caso. O diretor da cadeia me pediu, por telefone, para que eu escrevesse um texto explicativo sobre o que acontecera, para que ele assinasse como autor e enviasse ao juiz da causa. Escrevi uma apologia suada e apaixonada; a coisa fluiu tão bem que, lá para o final, fiz uma ousadia subliminar, em honra a meus tempos de escritor sério, em que, para quem soubesse ler, deixava claro que havia acontecido mesmo uma retalhação por parte dos acusados. No meio da apologia, surgiu em mim o escritor adormecido acostumado a evitar as armadilhas do maniqueísmo: ninguém era inocente. Mandei o texto por fax, e dias depois o diretor me liga agradecendo, dizendo que não só o juiz, após ler a novela, lhe chamara em particular para dizer que iria arquivar o caso, como ele (o diretor) havia ganhado fama de um cara altamente articulado e cerebral na cidade. O delegado foi lhe cumprimentar pelo texto. Extremamente umbiguista isso, eu sei, mas entendam como quiser. Fiquei orgulhoso, mas não menos decepcionado. Recordei meu instrutor de monografia do curso de veterinária ao ler minha monografia e dizer: "você escreve bem, mas tem a tendência de ser um mero funcionário público com um vocabulário vantajoso que não serve para nada". 

Por isso que, com a net, uma renovação no propósito da escrita surgiu em mim, ao ver que o universo nacional de escritores trabalhando em silêncio em seus escritórios é algo tangível. Há um mês, recebi um bom livro de contos de um escritor sulista, recomendado pelo Farinatti. Seu nome, Vitor Simon, o livro Bravos contos breves, que eu devorei em um dia e devo um comentário sincero por e-mail para o autor. E recebo outros livros de escritores brasileiros na ativa, que me mostram o quanto o ato de escrever é algo que jamais acabará. Escrever neste blog tem sido uma forma mais descarada de exercitar minha auto-crítica e aprender mais sobre a escrita, visto que antes eu jamais mostrava meus textos a ninguém. E o modo de atuar aqui me fez pensar a semana toda sobre Nietzsche e Kafka, lendo-os, na intenção de que, num supetão em que o tempo se suspende, possa escrever um texto sobre eles.