domingo, 29 de outubro de 2017

O melhor dos mundos



Com os talões de água e luz em mãos perguntei, estupefato, à minha esposa como o brasileiro consegue viver nesse país. A vida nesse país é um absurdo, um milagre, uma improbabilidade. Mais da metade da população vive de um salário mínimo: como fazem para pagar as contas?, criarem os filhos, terem o que comer, pagarem transporte? Com os dois talões em mãos, fiquei ciente do enorme engano da esquerda e da direita: elas se ocupam com retóricas elevadas, com abstrações fantasiosas, quando o grande problema é que o brasileiro não tem tempo, condições e espaço para se preocupar com política. É por isso que ele não se revolta, porque sobre ele há uma barreira indevassável dentro da qual está labutando para tentar suprir suas necessidades mais básicas. Eu não conseguiria expressar como lamento isso. Essa é a maior violência que podem cometer contra um povo, cortar-lhe a dignidade e a profundidade. Ontem me deparei com essa matéria da foto, na GloboNews. A emissora a reportou sem nenhum traço de escândalo, sem nenhuma estridência, sem absolutamente a mínima crítica. Já estou acostumado com isso (mentira, nunca me acostumo!), a voz fria da apresentadora do jornal, suas tentativas monstruosas de fazer humor pueril, sua tranquilidade pesadelística como se tudo estivesse bem e vivêssemos no melhor dos mundos. Anunciam que o governo vai retaliar os deputados que votaram contra a absolvição de seus crimes, com uma naturalidade sonambúlica, mecânica. Me dá uma vontade de sair pela cidade e esfregar na cara de todo mundo esse absurdo, essa afronta, esse estupro, mas sei que a grande maioria dos que moram na minha cidade iria dar uma resposta convencional, expressando uma resignação plástica, e viraria para o outro lado, de volta ao ciclo imutável de agir da mão para a boca: "e eu com isso?".

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Creio que foram 10 segundos, não mais do que isso, que a âncora do jornal de ontem à noite da Globo News levou para ler as manchetes. 10 segundos dos mais repulsivos e acachapantes da história do pais, pensei. A história do Brasil, para qualquer um que se disponha a ler um dos tantos livros didáticos sobre o assunto, é plena de momentos repulsivos, de modos que, diante o que me parecia o mais repulsivo de todos, percebi estar diante algo realmente insuportável. Eram 4 as manchetes, lidas rapidamente: Aécio Neves retorna a seu cargo de senador; a recusa da denúncia contra Temer; Dória institui ração humana no lanche das crianças; e, para fechar o circo de horrores, Temer legaliza o trabalho escravo. Veio-me a constatação óbvia que viria a qualquer ser humano minimamente esclarecido: a de que, em qualquer outro país do mundo em que um jornal comportasse, em meros 10 segundos, tamanha fila de abominações, o que se seguiria seria a revolta da população, com a invasão do congresso nacional e o assassinato, com requintes de violência extrema, desses que abalizam com suas assinaturas porcas a morte e a vida indigna de milhões de pessoas. Seria legítima defesa genuína feita pelo povo. Mas eu sei que ninguém vai protestar; eu sei do material barato que é feito o estofo do brasileiro padrão. Mudo de canal, para não ver as tantas propagandas de carros (ironicamente dirigidas a um mercado consumidor à beira da ruína), mas retorno para ver um dos nobres comentaristas do jornal_ um nordestino_, falar sobre a decisão do Dória sobre a ração humana. Sim, o fato dele ser nordestino teria me dado alguma expectativa humanista, alguma espera de empatia representada pela parcela do povo neste país que mais sofre com a discriminação e a desigualdade social, mas acontece que eu já conheço a figura, com seu terninho de subalterno agradecido, ombros encolhidos para dentro, sua gravata desarranjada, sua boca que tende a juntar a baba nos cantos. O que ele diz não passa nem distantemente sobre a desumanidade brutal que é dar restos de comida processada para crianças em fase escolar, ele nem tange as nuances espúrias do quanto isso trará lucro para a empresa que diminuirá substancialmente os custos com seu lixo. O que esse ser bestial, comprado, corcúndico, diz, o que essa aberração de alma deformada fala é um pequeno discurso sobre os erros para a imagem política de Dória que são atos assim; sobre os números de reprovação do iminente candidato à presidência que devem ser retrabalhados, para que coisas assim não o atrapalhem politicamente. É isso que ele diz. O Brasil chegou a um patamar rasteiro para o qual já não há esperança. Reafirmo: o brasileiro é o ser mais solitário do mundo; ninguém se importa com nós, nem nós mesmos.

Uma confissão, de Liev Tolstói


É ousado dizer isso, pelos parâmetros do que eu acredito, mas eu sou cristão. Jesus Cristo, tendo existido ou não, foi o ser humano mais revolucionário da história. Toda a ortodoxia criada em torno dele usou de arquétipos das mais variadas religiões e crenças, mas não conseguiu tocar a originalidade inigualável de sua mensagem, expressa em sua maior parte no sermão da montanha. Coisas como "oferecer a outra face" e "perdoar seus inimigos" nunca tinham sido ditas antes: a primeira como a mais efetiva arma contra o mal, ou seja, uma reação que nada tem da passividade que sua leitura superficial atribui (mesmo Hannah Arendt cai nesse erro, em uma passagem belíssima sobre a bondade em "A condição humana"), e a segunda como o remédio espiritual mais pragmático. O Cristo em que acredito nada tem a ver com a monstruosidade que atende à egolatria de seus defensores, como o cristo dos macedos e dos olavos e dos barbudos propagadores do ódio da internet. O Cristo em que acredito prescinde da necessidade de ter existido. Eu acredito que um mendigo louco realmente apareceu e fez misérias na Galileia de 2000 anos atrás, mas isso é irrelevante. O que importa é sua palavra, é a busca que ele propõe. A busca entre os combalidos e os incompletos e mutilados. Eu acredito que, além dos evangelhos, e de maneira ainda muito mais profunda, sua palavra deixou outros evangelhos ao longo do tempo: o de Kazantzákis, o de Bulgákhov, por exemplo (como o Cristo de O mestre e Margarida é lindo, em toda sua singela e frágil loucura!, e como ele me fala de modo muito profundo e verdadeiro!), o de Dostoiévski. Passei anos sofrendo de depressão diante o que meu cérebro afirmava ser a passagereidade fútil de todas as coisas; e foi grande a luta para que eu aprendesse que essa descrença e esse desespero fazem parte da mensagem do Cristo. Assolava-me a brutalidade pascalina do silêncio desses espaços infinitos, até que eu compreendi_ ou, antes, senti sem compreender_ que a dúvida é tão inerente à mensagem que o ponto atingível é não se importar mais com a dúvida. Nós vivemos no inferno e, provavelmente, nós somos condenados pagando a pena em um matadouro a céu aberto, mas isso não descarta a maravilha de que somos também parte do cosmos e temos o mesmo direito à relevância que os buracos negros, as tempestades solares e a partenogênese. Por isso, esse livro de Tolstói é-me enormemente importante. Li-o em uma forma muito condensada no volume "Os últimos dias", da Companhia das letras, e depois o li em sua versão integral, traduzida do russo pelo Rubens Figueiredo e lançado pela editora MC. Eu senti tudo que Tolstói sentiu: o pensamento de suicídio perene, o olhar para as coisas e só ver um profundo vazio; a opressão comendo o peito e a certeza de que a alegria e a felicidade eram impossíveis. Lembro, perfeitamente, certa vez, quando eu tinha 17 anos, que me sentei em uma praça e, por longos 5 minutos_ mais do que isso seria fisiologicamente impossível suportar_, fui assolado por uma luz em negativo de que tudo era uma imensa gratuidade, de que tudo o que eu via já estava morto e extinto e tudo não passava de uma ilusão sem qualquer propósito. É uma comunhão adstringente saber que Tolstói pensou assim, e expressou de uma maneira crua e profunda nesse livro. Assim como o grande russo, eu achei o caminho da alegria da vida, ao descobrir_ ao sentir mais do que descobrir_ que o fato de estarmos vivos já é o mistério que nos foi dado. Isso nada tem a ver com agradecimento religioso, mas uma constatação cósmica salvadora.

Che, de Jon Lee Anderson


Não acredito em heróis. Nunca acreditei, nem quando tinha idade em que o culto a eles era perdoável. Enquanto alguns amigos da adolescência usavam camisetas com estampas de figuras iconizadas da política e da música, eu era rigorosamente sistemático em usar camisetas lisas, sem estampas (coisa que eu conservo até hoje). Eu tenho escritores e músicos que amo_ como William Faulkner, Hannah Arendt e Miles Davis_, pelo que eles produziram, mas não os cultuo pelas pessoas que foram. Ontem fui à fazenda de um amigo meu, um sujeito com o intelecto bastante desenvolvido e de muita cultura, e na despedida, quando ele me levou até o carro e viu o volume sobre o Che no banco do passageiro, perguntou como eu perdia tempo lendo um calhamaço de quase mil páginas sobre um assassino contumaz. Era provocação da parte dele, por isso eu ri e respondi com alguma piadinha ligeira. Admiração nada tem a ver com concordância: eu admiro o Che em alguns aspectos, mas não gostaria de tê-lo conhecido, e nem me simpatizo com ele. Quero entender o máximo sobre a América Latina e a leitura desse livro faz parte do propósito. Tenho outra biografia dele já faz uns 5 anos, a do Jorge Castañeda, mas o tom rançosamente poético me desmotivou da leitura. Jon Lee Anderson é um dos maiores jornalistas do mundo, sua análise é mais profunda e realista. Estou prestes a chegar à página 200_ ler usando um lápis para conduzir o foco dos olhos é imensamente proveitoso, atravesso páginas numa velocidade muito maior que a normal. Ainda estou no Che das viagens com La Poderosa, a motocicleta com a qual, na companhia de seu amigo Alberto Granado, atravessa parte da América Latina; o Che reflexo do direito de explorar as mucamas, empregadas semi-escravas, índias, negras e vindas de outras extrações mais baixas da sociedade, que trabalhavam nas casas da elite e eram estupradas pelos patriarcas e os filhos dos patriarcas. Em uma cena, reportada no livro baseado no testemunho de um dos amigos do Che, Guevara transa com uma mucama por cima da mesa, à frente da testemunha e pelas costas de sua tia, e depois retorna ao jantar como se nada tivesse acontecido. É repugnante. Alguns anos mais tarde, o biografado escreve um conto e entrega para seu pai, onde aparece a frase de Ibsen: "Educação é a capacidade de confrontar as situações criadas pela vida."