terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Resto




  Quando ela voltou da cozinha com as chaves, tendo corrido a cortina da janela para que também ali o sol não entrasse, encontrou-o onde o havia deixado um pouco mais cedo, sentado em sua poltrona de couro. Como todos os anos, naquele dia, ele em nada mudava seu itinerário pela casa, apenas exercendo com mais peso a sua inércia astuciosa, acordando de madrugada, vestindo-se com menos apuro do que antigamente mas ainda assim a camisa velha e as calças de brim lhe dando um ar perfeitamente composto e sóbrio. Dormia_ o que ela sabia por conhecê-lo tão bem, por ser por cinco décadas a receptora atenta de todos seus gestos e manhas, de toda a ordem marcial que desde o primeiro dia em que ele a pusera para viver naquela casa ela pressentira que aquilo se tornaria com a velhice um decálogo de preconceitos e ódios por tudo que lhe fosse diferente. Seus braços não se descontraíam no sono, mesmo pousados cada um no espaldar da poltrona mantinham uma atitude belicosa, os dedos artríticos encrespados segurando-se na borda do couro como se temesse uma repentina ruptura na constância de sua falta de sonhos; seu rosto como uma máscara mortuária, ela não sabendo dizer o quanto era desesperadamente inexpressivo com aquele crânio querendo se libertar da pele, as sobrancelhas sempre contraídas como se _ela pensou_ no fundo nunca tivesse feito outra coisa além de repudiar violentamente a si mesmo. Quando ela se aproximou mais, um tremor descomunal a fez se segurar na mesa da sala. Meu Deus, pensou, como ele sempre fora apiedante e solitário. Não um demônio, mas um ser muito mais baixo e sem legitimidade, a verdadeira vítima. Só uma mulher como ela poderia amá-lo como ela o amava, e só uma velha como ela poderia perceber o desassombro e a extensão desse amor. Não havia muito o que amar naquele corpo. Era tão insubstancial como um bebê que tivesse-lhe saído inteiro e com toda impossibilidade de esperança de dentro dela. Como se pudesse substituir o que se fora por aquele e tal substituição só agora fosse concluída, só agora quando não mais lhe serviria a proteção que ela lhe daria e pelo pouco tempo que lhes restava. Quando ela passou por ele sabia que o despertaria de seu tênue sono. Estava preparada para se deixar segurar pelo seu olhar irredutível, e como se a compaixão tivesse extravasado e contaminado o ambiente, percebeu um tom novo nos olhos dele. Como se lhe comunicasse que estava disposto a ceder dessa vez, se ela não lhe pedisse, se, nesse ano, ela não lhe pedisse, o isentasse de ter de proibi-la, se soubesse agir por conta própria. Sem fazer questão de esconder as chaves, ficou mantendo o olhar no dele, como se tivessem a nítida consciência de que se seguravam um no outro por aquela delicada fimbria de sanidade. Então ela não perdeu mais tempo. Avançou escada acima com determinação, com todas as suas forças, ouvindo-o dizer pelas suas costas com sua voz cinzenta de barítono aposentado:”ele nunca precisou de nós”, contra o que ela lhe devolveu a frase que havia segurado por tanto tempo “como não se ele está me chamando, será possível que não o escuta chamando pela casa toda”, mas não lhe saindo nada senão um esgar cansado e agudo e firme. Depois de subir as escadas, colocou a chave na fechadura, sentindo uma alegria selvagem que devia lhe acentuar ainda mais o ar de doida varrida, e destrancou a porta. Riu ao imaginar a possibilidade daquele velho dar um pulo da poltrona e escalar as escadas de três em três degraus para impedi-la. Empurrou a maçaneta e a porta se abriu lugubremente. Ele estava deitado na cama na mesma posição que o deixara. Estava acordado e a olhava com serenidade, não parecia ter duvidado que ela lhe responderia ao chamado. Ela avançou com um sorriso trêmulo, não acreditando mas sabendo que era verdade. Sua percepção de dona de casa admirando que os móveis estivessem tão limpos, e lençol e o cobertor tão brancos que podia-se percebê-los na penumbra. Caminhou com cautela até a cama, sentou-se a seu lado ao mesmo tempo em que ele se levantava das cobertas. Conteve-o carinhosamente com seus velhos braços, impondo a força necessária para mantê-lo abraçado. Sentiu o hálito característico de quando acordava pela manhã mas dessa vez não lhe lembraria de escovar os dentes ao se levantar. Queria apenas continuar a tê-lo nos braços, não o soltaria dessa vez por nada e estava determinada a esquecer de tudo, de avisar ao velho o quanto ele estava enganado esses anos todos, abraçá-lo firme e esquecer de dar asas àquela observação involuntária de como as cicatrizes no corpo dele haviam se reduzido a linhas delgadas, que haviam tornadas imperceptíveis até quase desaparecerem por completo.