segunda-feira, 17 de março de 2014

Um romance de Don Delillo e uma forma de compreensão pessoal



É no próprio Ruído Branco que vem escrito que o costume de se contratar carpideiras para chorarem em enterros talvez atenda à necessidade de fazer com que as pessoas conservem uma aparência de pesar pelo morto e não transformem a cerimônia fúnebre em uma festa involuntária. É fácil perceber que há um riso premente por detrás de tudo, aguardando a hora em que a nossa impostura de seriedade se distraia e ele possa aparecer, com todo seu ofensivo glamour de libertinagem.

Minha mãe, quando eu era criança, sofria horrores pelo deslocamento de seu braço direito, causado pela luxação da articulação do ombro. Bastava ela se descuidar e tentar pegar uma caixa de sapatos em cima do guarda-roupa, ou apanhar um objeto mais pesado com o braço debilitado, para que a cabeça do úmero se soltasse de seu ponto de ligação com a escápula. Eu aprendi cedo esses nomes da anatomia, que sempre me faziam pensar em formações geométricas, como peças de encaixe: se o úmero da minha mãe saía de sua composição angular perfeita, o círculo rompia seu côncavo descanso funcional, a coisa ficava muito feia. Pequenos nervos ultra-sensíveis eram esmagados e minha mãe gritava de dor. Eram os piores momentos da minha infância: vê-la dando o espasmo gutural que acionava imediatamente o alarme de que seu braço saíra fora do lugar, o que equivalia para mim em minutos eternos de aflição enquanto ela ficava encolhida, imóvel no lugar que estava, enquanto corríamos para o telefone para chamarmos a única pessoa capaz de colocar seu braço de volta, meu tio Pedro. Meu tio Pedro atendia o telefone, a qualquer hora, e eu o via vestir calmamente a camisa, apagar o cigarro ou acendê-lo, avisar minha tia Tânia de que o braço da Telma saíra novamente do lugar e que ele precisaria ir lá resolver, abotoar a camisa perguntando onde estão as chaves do carro, dizendo "ah! Achei, estão aqui na estante", apertar o botão do elevador enquanto examinava tranquilamente se os documentos do carro estavam todos dentro da carteira, descer os longos lances de 12 andares do prédio dentro do elevador vagaroso, entrar no carro e acionar a chave, aguardar com o pé no acelerador enquanto o motor a álcool se esquentasse, sair pela porta da garagem e atravessar a cidade até seu outro extremo... Era uma saga nórdica rica de movimentos lentos até que meu tio Pedro entrasse em nosso apartamento com sua cantada voz de alcoólatra abstinente que sabia profundamente sobre dor para se exaltar diante mais uma de suas infinitas manifestações no mundo, uma voz adstringente que me enchia de segurança assim que meus ouvidos atentos a ouviam soar pela porta. E era questão de segundos de uma destreza infalível para que ele colocasse o braço da minha mãe no lugar, não sem antes os acréscimos indispensáveis da coda musical do desespero final da minha mãe, com sua frase cerimonial de "Não, Pedrinho! Espera, Pedrinho! Devagar! Devagar!". E tudo estava concluído. Tão fácil que retroativamente sempre parecia absurdo tanto sofrimento. E o tio Pedro dizia algumas palavras finais de estoico consolo, relembrando que ele também tinha o mesmo problema com o braço, daí ele se sentava e mostrava mais uma vez como fazia com o próprio braço, em um movimento de simplicidade mágica, para encaixá-lo no lugar. Ele se despedia dizendo que, qualquer coisa, era só chamá-lo, e voltava em linha inversa toda a via sacra até o momento inalterável em que estava despido da camisa sentado no sofá com seu livro do Tex em mãos, ou se preparando para dormir. Mas o que eu quero dizer é que houve uma vez, uma só vez nesse martírio todo, em que, inesperada e insanamente, eu reagi às dores da minha mãe com gargalhadas; ri tanto que as minhas tias começaram a pensar o que fazer comigo, quais as possíveis consequências desse meu ato para a homeostase da família dali para frente, eu rolando no chão apontando o dedo para minha mãe encurvada na cama, tentando mostrar para o restante da platéia o quanto aquilo era flagrantemente cômico, cada grito da minha mãe repercutindo um lance de gargalhada da minha parte. Talvez fosse reação do meu desespero, talvez fosse porque aquela rotina ortodoxa em que a dor acionava uma relojoaria precisa e cerimoniosa finalmente se me mostrara em sua nudez sem sentido para que tivesse autoridade de exigir tanto comburente dramático. Depois disso, a primeira coisa que faziam quando o martírio da minha mãe começava era me mandarem passear na praça em frente ao prédio, até que eu visse o carro do tio Pedro chegar.

Dito isso, pode-se dizer que eu tenha uma antena para perceber distorções na seriedade que servem para evidenciar algum fator de risco em mim quanto ao respeito nos momentos de tragédia. Inadvertidamente algum mecanismo surgido em uma infância não muito saudável para qualquer diagnóstico psicopatológico aciona em mim uma capacidade de associação histriônica que, se eu falasse para alguém o que me passa pela cabeça enquanto o correto é um pomposo silêncio ou as lágrimas incontidas, eu cairia muito na escala social do que é tido como a sanidade civilizada. Não que eu não sofra ou que eu seja insensível, absolutamente pelo contrário. Eu sofro bastante. Mas é impossível para mim calar minha mente, minha forma de pensar. Isso tudo que eu estou dizendo é para chegar ao assunto capital deste texto: a morte na quarta-feira de cinzas de meu sogro, seu Gercino. Eu havia me levantado nesse dia de chuva um pouco mais tarde, creio que às nove horas, pois havíamos ido a uma festa na casa de um amigo na noite anterior. Sentara-me na varanda e, coisa estranhíssima e sem explicação, colocara alguns álbuns do Chico Buarque gravados em um pen-drive para tentar ouvir. Um de meus grandes amigos aqui gosta muito do Chico Buarque, e eu me esforçava para ao menos perceber alguma fímbria de conteúdo esotérico na obra desse compositor em sinal de respeito a esse amigo. Mas não saberia dizer porque escolhera essa manhã chuvosa, em que poderia está-la preenchendo melhor com Mahler do que com um exercício de atenção relativamente exigente. Ouvi o Saltimbancos, a primeira música, que minha filha gostava, mas pulei toda a narrativa que me parecia sempre empolada e pobremente doutrinária, e passei para o álbum com as únicas duas músicas as quais eu ouvia com prazer genuíno, Construção, as quais eram a música título e Cotidiano. Escutei Cotidiano, e passei para a proeza manciniana de Construção. Uma música realmente fabulosa, mas que naquela hora me fez pensar para quem era dirigida; se eu estivesse na classe econômica dos personagens e dos eventos dessas músicas, me passou o pesar de que provavelmente eu iria querer me deportar desse mundo, cair fora. Eram eventos depressivos demais, de uma realidade tão inescapável que entendi porque a música de Chico Buarque era tão elitizada: o sofrimento era emoldurado em âmbar e vendido como joia fina para alimentar um tipo de aquisição estética de uma turma de abastados, uma forma de beleza sofisticada em que planificava-se a dor em uma forma higienizada que dava a impressão digesta de se apreender um panorama da alma nacional. Ou seja, o meu exercício para gostar de Chico Buarque para agradar a um amigo estava indo ladeira abaixo com esses raciocínios e eu estava entrando mais uma vez no ciclo de conceitos que me fazia desgostar cada vez mais de Chico Buarque. 

Então surge a Dani, minha esposa, que eu não vira que acordara, no meio da música Construção (antes que começasse os extraordinários acompanhamentos de metais), e me entrega o celular dizendo que a mãe dela, dona Maria, queria falar comigo. A Dani bocejando e com os cabelos preguiçosamente desalinhados, preparada para voltar para a cama. Eu faço uma cara de tédio profundo, querendo que isso inutilmente me poupasse de falar com a dona Maria naquela hora da manhã de feriado, mas pego o telefone. A dona Maria sempre que quer falar comigo é sobre problemas ligados à saúde de alguém daquela casa ampla e cheia de vida energicamente tumultuosa em que eles vivem, algo sobre a gripe dos meninos, ou o ataque epilético da filha mais nova, ou às dores nefrálgicas do seu Gercino; algo que eu e a Dani estávamos tão acostumados a ver potencializado ao máximo pela propensão da dona Maria ao drama, que nem levávamos a sério_ e que a dona Maria salientava mais o drama por pedir para falar comigo, com receio de que o que tem para dizer pudesse afetar a estabilidade emocional da Dani. Digo: "Fala dona Maria", na hora em que o cidadão aprisionado em sua esfera de realidade determinista e imutável da música segue passo a passo a inexorável ida para a morte, atrapalhando o trânsito. Não ouço o que a dona Maria responde, devido sua voz sussurrada, e peço, com certa brusquidão, para que ela fale mais alto: "Pode falar mais alto, dona Maria, a Dani não está por perto para ouvir". (A Dani sabe que meu santo não bate com o santo da sua mãe; eu já o disse várias vezes; se há uma pessoa com a qual não consigo ficar cinco minutos perto é a mãe da Dani; sua reverberação, sua maníaca paixão pela tragédia e o crime; seu fanatismo de tabloide pelas matérias policialescas.) Aí ela repete um pouco mais alto, mas ainda com a voz condicionada pela necessidade cênica de imprimir suspense: "O Gercino acabou de ser atropelado, Charlles. Ele estava instalando uma câmera de segurança, atravessou a rua para observar o serviço, e na hora que voltava, um carro em alta velocidade passou por cima dele. Parece que está muito grave. Dá um jeito de contar com cuidado para a Dani". Eu questiono mais alguma ou outra coisa, com a voz descrente de que tenha sido mesmo algo grave, e desligamos a ligação. Conto para a Dani, dizendo "você sabe como é a sua mãe". Ela não esboça reação de medo ou receio, pois sabe como é a mãe. Mas a reação vai surgindo aos poucos, e ela decide ligar para o Fábio, genro do seu Gercino e sócio dele na pequena empresa que montaram de instalação de câmeras de segurança. O Fábio conta que, aparentemente, seu Gercino quebrou os dois braços, mas fora isso, está bem, a caminho do hospital. Vamos ao supermercado, que, como sempre, está aberto mesmo nos feriados, e compramos a carne que falta para a almoço. No caminho de volta o celular da Dani toca e a prima dela pede para falar comigo. Estaciono o carro e desligo o celular após falar, me viro para a Dani e digo com candura, mas de uma vez, que seu Gercino acabara de falecer. A Dani cai em um choro convulsivo. Morreu na contramão atrapalhando o trânsito, me diz a voz daquela criança que colocavam para fora até o tio Pedrinho chegar, agora você pode solipsismar à vontade que Chico Buarque matou seu sogro.

Os arranjos que se seguem são: eu fico em casa com as crianças, e a Dani vai ao enterro, que se realizará na cidade natal do seu Gercino, em uma cidade a 40 quilômetros de onde moramos. O restante da família espera que o IML libere o corpo, e o transportam de Anápolis até a cidade natal. Abraçamos a Dani e repetimos sobre o quanto a amamos, e isso, inesperadamente, tem um alto efeito de fazê-la se acalmar. Eu digo que a amo. O primo dela vem buscá-la já de madrugada. Enquanto as crianças dormem, eu me refugio na biblioteca e não sei por quê, por quais canais de assimilação, pego Ruído Branco, um romance de Don Delillo que comprei há mais de ano e que ainda não o li. É um desses livros do qual não faço nem a mais remota ideia sobre do que seja. Me domina uma enorme descrença cosmogônica, uma enorme falta de predisposição a acalentar pensamentos de que Deus também pode ser irônico, de que a obra Dele é tão milimetricamente rica que o que vemos como sarcasmo não passa de mais uma das circunvoluções de múltiplos significados. Me passa pela cabeça a culpa de que a última vez em que seu Gercino esteve em minha casa eu agi com certo grau de agressividade, pois eu estava estressado e me sentia meio abandonado devido à iminente cirurgia cardíaca pela qual a Dani iria passar. Lembro que eu o respondia com apressada falta de deferência de tal forma que minha intenção fora alcançada e ele sentira. A anterior cirurgia da Dani não havia surtido o efeito esperado e ela teria que passar por uma nova, muito mais agressiva, e isso me deixara bastante amargo com eles, pois, no fundo, no local mais comezinho onde estão minhas cobranças insofismáveis e pragmaticamente imediatas, eu queria que eles estivessem junto a nós e sofressem como nós. Ele sentira essa ofensa, de modos que, meses depois, no hospital, ele fez questão de me deixar descansar de uma semana de insônia e ficar do lado da Dani no hospital pelos últimos três dias. Ele sentado à cadeira dura, e eu deitado na outra cama, em um desmaio de semi-consciência atribulado. Agiu com extremo cavalheirismo, de maneira que eu vi nele o quanto era um ser nobre, o quanto era superiormente abnegado. Estava com câncer metastático há seis anos. O câncer se espalhara de seu único rim conservado após uma cirurgia de emergência para retirar o outro, e atingira fígado e intestinos. O médico havia lhe dado no máximo oito meses de vida. Amargurava-lhe a possibilidade tida por certa de que ele não conheceria nossa filha Júlia, mas ele não só a conhecera, como ela se deliciava de se deitar em seu colo e coçar-lhe a barba branca. Ele a pegava como se ela fosse um objeto de porcelana extremamente sensível, com incrível delicadeza. Se fosse alguém corpulento, eu pensaria que o fazia assim temendo a machucar involuntariamente. 

Sentado na biblioteca, à meia luz, escutando a chuva contínua lá fora, não me era possível evitar pensar que ele era um sobrevivente que sucumbira a uma distração brutal frente a mais estúpida eventualidade. Sua força de vontade em viver driblara intrincados cristais da lógica e arranjara uma fórmula matemática própria que transformara os oito meses em seis anos, e uma súbita falta de concentração, uma súbita falta de tensão e arrefecimento o fez perder os tantos anos que ainda teria pela frente para um acidente espantosamente leve. Talvez o milagre requeresse justamente a leveza para acontecer, e tal morte não fosse mais que um excesso de zelo da sua parte, um excesso de confiança. Lembro que à mesa da sala eu havia dito isso para a Dani: "Como é que seu pai faz uma coisa dessas, trai dessa forma displicente um milagre". Pois todos os médicos pelo qual ele passou jamais acreditariam que ele chegasse ao fim daquele ano em que lhe deram o prognóstico, e agora, em seu humor pueril, em sua espontânea concordância com a potestade das risíveis trivialidades teatrais das reviravoltas dessa comédia de erros, ele sucumbira tal como o bêbado da anedota clássica que não morre de seu vício, mas da intoxicação por uma empada estragada. Que grande merda!

Como acreditar em Deus depois disso?

Conversando por e-mail com um amigo, ele me pergunta se, à maneira de Philip Roth em Operação Shylock, eu também me refugiava na leitura de romances em momentos de tragédias pessoais. Me dou conta de que fiz isso, ao passar boa parte da noite lendo Ruído Branco. Há uma rima nisso; essa reação pode ser uma genética acondicionada de todo leitor, pois os romances alcançados nessa hora sempre, sempre, tem a ver com o que se está passando no mundo de interação dos vivos. Em Ruído Branco há uma droga em desenvolvimento trabalhada por um grupo de cientistas ultra-secretos, chamada Dylar, que promete a cura do medo da morte. É uma cápsula em forma de disco voador coberta por sofisticadas moléculas de polietileno, com um furo minúsculo em uma das extremidades, pelo qual a química do esquecimento da finitude é administrada lentamente, sem efeitos colaterais, através das paredes intestinais. A esposa de Jack, o narrador do livro, é uma das cobaias que se ofereceram para testar o remédio. Jack e sua esposa tem um patológico, um angustiante, medo da morte. Tem tanto medo da morte que suas vidas são vividas em supermercados e na imersão quase completa na sinestesia bruxuleante do ambiente cotidiano sem descanso de cores, sons e movimentos da vida sintética da América moderna. O livro foi publicado em 1984, muito antes pois da vida emigrada para a realidade cibernética da internet, o que pode causar um certo estranhismo ao leitor diante uma privação retrógrada tão veemente, uma falta de premeditação futura para abraçar um lenitivo com cara de mais acertada eficiência. Pois o Dylar não faz o efeito esperado em Babette, a esposa de Jack. Ele a pega parada de frente a janela, com o olhar vazio. Ela tende a esquecer os prosaísmos caseiros mais adquiridos. Aos poucos, baseado nessas reações alienígenas da esposa, Jack vai descobrindo a história do Dylar, de como Babette teve que se sujeitar às mais profundas abjeções (inclusive sexuais) para fazer parte do grupo de testes. Mas Jack tende a compreender a esposa, avaliando seu próprio terror pela morte. Ele sabe que Ivan Illich gritou três dias antes de morrer, e o próprio Tolstói nunca conviveu dignamente com sua morte. Há um amigo de faculdade de Jack, Murray, que, ao saber que Jack traz a possibilidade de um grande tumor causado pela exposição a um elemento altamente radioativo (que levou à evacuação da cidade onde Jack mora, na segunda parte do romance), lhe diz que ele tem que se manter digno, mostrar para a posteridade que aceitou a morte de forma nobre e educada; tem que ser um exemplo para conservar os que ainda tem saúde dentro de seus confortáveis mobiliários de certezas. Antes você do que eu Jack, Murray diz, ao se despedirem, sou seu amigo e como amigo tenho que lhe dizer isso, pois é o que naturalmente todos pensam: antes você do que eu. E Jack sai meio que consolado com essa sinceridade privilegiada de seu amigo.

"Alguns minutos depois, eu já estava na rua. Um garoto corria atrás de uma bola de futebol sobre um gramado público, com os pés virados para o lado. Um outro menino, sentado na grama, arrancava fora as meias, puxando-as pelos calcanhares. Que coisa literária, pensei, irritado. As ruas cheias de detalhes de vida impulsiva enquanto o herói medita sobre mais uma fase de sua agonia. Era um dia de céu parcialmente nublado, com ventos que diminuíam à medida que se aproximava a hora do pôr-do-sol."

Pois meus genes de leitor me conduziram certeiramente a um romance que é uma comédia sobre a morte. Fiquei fascinado por esse Delillo. Ele alimenta nosso próprio medo da morte, e o desconstrói com cenas impagáveis de uma ridicularia que desbasta as pretensões e certeza em quaisquer gêneros sobre nossa condição na existência. Os colegas de Jack, nas hilárias cenas de conversa na sala de espera dos professores universitários, seres altamente eruditos e intelectualizados, proferem um sem número de frases desconexas sobre assuntos soltos no espaço. Diálogos rápidos de um jogo verbal que não diz nada, só trivializa. Primeiras experiências, nomes de filmes. Uns jogam bolas de papéis nos outros. Capítulos do livro se encerram com nomes de marcas industriais: Toyota Celica, Panasonic. O longo exame médico a que Jack se submete se finaliza com uma conversa em que o médico não faz nada além de um xadrez verbal com Jack. Tudo não passa disso, da manutenção do ruído de fundo da existência, da enorme distração que acoberta tudo, da trilha sonora caótica que encobre o único conhecimento que nos faz diferentes dos outros animais: somos os únicos que sabemos que vamos morrer. Não dividimos o potencial divino de um cão em ter o limite lúcido de que vive um um instante perpétuo e infinito. Só as crianças, no livro de Delillo, é que são genuínos e vivem um um estágio de felicidade plena selvagem. Por isso Jack se abstrai observando suas filhas e filhos dormindo à noite, por isso a cômica e bela cena final em que o filho de cinco anos de Jack enfrenta a avenida movimentada montado em seu triciclo. Há uma outra cena histriônica perturbadora em que Jack é acolhido em um hospital de freiras, no bairro alemão de sua cidade. De frente a um enorme quadro em que Kennedy passeia de mãos dadas por um campo celestial com o papa João XXIII, Jack pensa agradecido no bem de existirem ainda freiras e seres dedicados a crenças conservadas pela tradição religiosa, e diz isso à freira. Segue então um diálogo ensandecido em que a freira ri enfurecidamente de Jack por achar que ela acredita em anjos e campos celestiais, enquanto Jack se encolhe de indignação dolorosa pela mulher não representar a esperada fé na transcendência, mesmo a transcendência impossível. Nós apenas cumprimos nosso papel de simular acreditar para que os que não acreditam possam dormir em paz, diz a freira: os descrentes sentem necessidade de que alguém creia.

Pois este livro me adstringiu sobre os eventos da morte de meu sogro. Me fez compreender, ou intuir uma futura e progressiva compreensão sobre esses acontecimentos. Mais tarde, outro dia, sentados à mesa do jantar, eu disse à Dani que talvez essa sucessão de desgraças tenha sido cambiada para a vida da família de seus pais e irmãs através da dona Maria, sua mãe. Eu disse que talvez fosse bom que alguém instruísse à sua mãe para que fosse uma pessoa menos compulsiva por consumo de violência e aberrações policialescas. Há pesquisas científicas que falam sobre o poder da palavra e do pensamento impositivo e positivo. Um certo chinês ou japonês que ficou anos monitorando grupos de testes que xingavam potes de arroz, e outros grupos que, ao mesmo tempo, elogiavam e proferiam palavras gentis para outros potes de arroz. E que o arroz ofendido murchava e se decompunha, e o arroz agraciado pelas palavras emotivas vicejava e ficava mais vistoso. É isso: de dez palavras que sua mãe fala, nove são xingamentos, são ofensivos. Sua mãe é um tacógrafo para palavrões. Eu disse isso tudo. Em minha acepção ralé primária sobre a verdade da vida, eu via a dona Maria como uma bruxa que transformava por forças negativas a vida de quem morava à sua volta, e, injustamente, acabara por acabar com um milagre alcançado.

A Dani então me contou a história de sua mãe. Me lembrei que ela já tentara fazer isso antes, contando fragmentos da história da dona Maria, que eu pouco dava ouvidos por absoluto desinteresse. Passei meia hora ou mais a escutando dessa vez, e se não fosse a ojeriza muito cultivada que sempre tive por sua mãe, eu senti que eu acabaria fazendo uma cena de choro na frente da Dani, o que seria terrível em tais condições. Foi uma das vezes em que a Dani foi mais literalmente lúcida e humana desses anos todos em que a conheço. Ali não estava a Dani de coração bombástico que uma vez me instigara a processar a empresa de ônibus porque, grávida, ela fora a única sensível que se levantara para dar lugar a uma velhinha se sentar. Não estava a Dani passional e avaliativa, mas a Dani que me expressava uma experiência profundamente sedimentada, intocada já por ter dado tudo de si em seu núcleo memorialístico. Algo que fazia parte dela de maneira calma e finalizada, sobre a qual sua voz se harmonizava para passar para mim o quanto aquela aparente tempestuosidade já estava acalentada por seu registro no tempo. Um mérito antigo e sagrado. Uma forma de eternidade. Pareceu-me, naquele momento à mesa, que a Dani me mostrava registros do mesmo nível de valor que os que Faulkner escreveu sobre seus demônios degastados de maldade em seus livros soberbos. A Dani me contou que a mãe da dona Maria morrera no parto. Por não ter mais ninguém, uma vizinha acabou cuidando da dona Maria. Ela não tinha pai, desconheceu sempre o pai. A família que a criou tinha o receio de que aquela intrusa levasse parte da herança. Martirizaram ela a vida inteira. Colocaram-na para lavar o chão e cuidar das velhas e das crianças. Batiam e desprezavam ela todos os dias. Passou fome. Essas coisas todas a Dani falando com aquele tom acima da indignação e da benevolência, além da vingança e das compensações temporais pacientemente à espera. Tratava-se de uma dor legítima demais para ser diluída com derivativos cogitáveis. Daí a dona Maria se engravidou da Dani, e o pai da Dani se escafedeu. A Dani não conhecia seu pai. Continuaram batendo na dona Maria, até que a mãe adotiva dela se enterneceu pela Dani e acabou com aquilo. Mas então, a dona Maria se casou com o seu Gercino. A Dani me disse que o seu Gercino espancava sem dó a dona Maria. Bateu nela certa vez que tiveram que levá-la ao hospital. Aquele homem que pesava 50 quilos, que no atropelamento disseram os jornais ter 70 anos mas que tinha na verdade 55, e que era sempre amável com todos. E que segurava a Júlia com uma delicadeza como se temesse que algum mal involuntário partisse de seu corpo mirrado de avô bondoso. 

domingo, 16 de março de 2014

Ruído Branco


Há quase duas semanas perdemos o pai da Dani. Morreu na quarta-feira de cinzas. Recebi um e-mail de um amigo que me lembrava: "Philip Roth conta em Shylock que sempre mergulhava na leitura de romances em momentos de tragédias pessoais". Eu mergulhei em Ruído Branco, pegando-o a esmo e sem premeditação da estante em que ele esperava há mais de um ano pela leitura. Compreendi muita coisa com esse livro excepcional. Reservei sua leitura para que eu o fosse consumindo aos poucos, de modos que concluí a última página hoje. Vejo que Delillo está com 78 anos. Um livro que fala sobre o medo da morte. De todos os escritores americanos vivos, começo a pensar que ninguém merece mais o Nobel do que Delillo. Amanhã, assim que chegar de meu serviço, por volta das nove da manhã, sentarei-me diante essa máquina e me porei a colocar para fora todas as aflições e incertezas que me tomaram conta nesses dias complexos, e que este romance de Delillo aprofundou ainda mais as cargas de interpretações.

"Na escuridão, o cérebro dispara como uma máquina voraz, a única coisa acordada em todo o universo." (Don Delillo)

terça-feira, 4 de março de 2014

De arrepiar!



Esse álbum foi gravado em 1974, durante a passagem de Dizzy pelo Brasil, mas teve que esperar 30 anos para ser lançado (segundo seu produtor, não era "comercial"). Quero ver quem ouvir essa música e não sentir uma expansividade feliz na alma.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Simplesmente Wislawa





Possibilidades

Prefiro o cinema.
Prefiro os gatos.
Prefiro os carvalhos sobre o Warta.
Prefiro Dickens a Dostoiévski.
Prefiro-me gostando das pessoas
do que amando a humanidade.
Prefiro ter agulha e linha à mão.
Prefiro a cor verde.
Prefiro não achar
que a razão é culpada de tudo.
Prefiro as exceções.
Prefiro sair mais cedo.
Prefiro conversar sobre outra coisa com os médicos.
Prefiro as velhas ilustrações listradas.
Prefiro o ridículo de escrever poemas
ao ridículo de não escrevê-los.
Prefiro, no amor, os aniversários não marcados,
para celebrá-los todos os dias.
Prefiro os moralistas
que nada me prometem.
Prefiro a bondade astuta à confiante demais.
Prefiro a terra à paisana.
Prefiro os países conquistados aos conquistadores.
Prefiro guardar certa reserva.
Prefiro o inferno do caos ao inferno da ordem.
Prefiro os contos de Grimm às manchetes dos jornais.
Prefiro as folhas sem flores às flores sem folhas.
Prefiro os cães sem a cauda cortada.
Prefiro os olhos claros porque os tenho escuros.
Prefiro as gavetas.
Prefiro muitas coisas que não mencionei aqui
a muitas outras também não mencionadas.
Prefiro os zeros soltos
do que postos em fila para formar cifras.
Prefiro o tempo dos insetos ao das estrelas.
Prefiro bater na madeira.
Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando.
Prefiro ponderar a própria possibilidade
do ser ter sua razão
(Wislawa Szymborska, tradução de Regina Przybycien)