segunda-feira, 19 de março de 2018

Um desabafo

Minha esposa teve duas paradas cardíacas quando estava grávida de nossa primeira filha, a Júlia. A Dani sempre foi muito saudável, mas desenvolveu uma doença grave na válvula mitral, que só se manifesta na gravidez, e os médicos disseram que as chances dela e de nossa filha chegarem vivas no final eram poucas. Fomos em vários médicos e todos nos falaram isso. A junta médica para conseguir minha dispensa de acompanhamento_ que eu achava que me trataria com extrema burocracia e me concederia uma semana apenas_, ficou tão espantada com a situação que me deu 3 meses, o que me pareceu um prognóstico ainda mais soturno.

Recordo como se fosse agora_ e isso faz quase oito anos_, minha irmã e eu comprando o primeiro vestidinho, uma peça linda, azul, para a Júlia vestir_ lembro do sorriso compungido e do silêncio de nós dois. Recordo dos movimentos na barriga; nós passávamos Mozart para ela ouvir. Uma vez a Júlia deu um chute tão grande durante um exame, que o cardiologista deu um pulo com a mão na barriga da Dani. Eu nunca fui um homem de fé. Sempre fui de um pessimismo prostrante. Minha primeira reação a tudo é o escape. Mas eu nunca, nem sequer por um segundo_ e isso é a coisa mais verdadeira da minha vida_, eu tive nem a sombra de dúvida que a Júlia ia nascer e de que a Dani estaria lá para recebê-la nos braços.

A Dani passou por tanta coisa, tomou uma batelada de remédios devastadores, que havia a chance bastante real de que a Júlia nascesse com algum problema. A Dani ficou magérrima durante a gravidez, com as maçãs do rosto salientes, por causa de um diurético que ela tomava todos os dias para suavizar o coração (um amigo me confessou depois que, ao vê-la, perdera toda a esperança). A Júlia podia ter nascido na forma de um rabanete que eu a amaria acima de todas as coisas. Podia ter nascido com o problema que fosse, mental, teratogênico, que eu a amaria com toda minha alma. E eu sequer pensava nisso, sequer dediquei uma pestana em me preocupar com isso. Pelo tanto de anos que me resta viver, essa temporada de angústia foi o mais próximo de um sentimento religioso profundo que eu tive, o mais próximo a uma descansada e paradoxal fé que eu tive de que um deus agiria em meu favor. Qualquer coisa que ele nos entregasse seria maravilhoso e eu estaria profundamente agradecido.

No dia do parto eu só não aguentei esperar no hospital. Eu pedi licença a toda família e saí, fui passear em um parque vizinho majestoso. Eu iria desmaiar se ficasse ali, o que seria ainda pior para todos. Fiquei sentado em um banco diante um riacho, calmamente olhando à distância uma moça lendo um livro, em uma sexta-feira em que o mundo continuava girando em absoluta indiferença. Ouvi uma buzina, me virei e vi a obstetra me gritando do carro: "O papai fujão não vai lá pegar a filha no colo não? Deu tudo certo". Eu saí correndo, chorando muito, até o hospital, e vi pela primeira  vez a Júlia. Ela era minúscula, quase cabia na palma da minha mão, era sequinha, frágil a ponto que parecia ir se desmanchar, de tal modo que eu tive muito receio de machucá-la ao pegá-la no colo. A sensação que eu tive ao vê-la envolta em uma manta, deitada de lado no berço do berçário, com um filete de vômito escorrendo pela boca, foi_e eu jamais vou deixar de parecer piegas ao tentar verbalizar essa impossibilidade_ como se eu estivesse tocando o sol: eu estava diante um mistério extraordinário do cosmos, um vulcão em erupção, um buraco negro, um tufão. Uma criaturinha cujo tornozelo tinha a espessura de meu mindinho, e era um milagre cromossômico devastador.

A Dani passou por duas cirurgias, abriram-lhe o tórax, e ela está curada. Tanto que nos permitiram ter um segundo filho. Eu brinco dizendo à Dani que a Júlia é minha alma gêmea. A Júlia cresceu, dá sinais de que vai ser uma moça bastante alta. Ela tem uma inteligência apurada, um gosto estético recolhido, uma curiosidade e uma paixão pela vida que me deixa continuamente deslumbrado. Mas foi o bebê mais magro e minúsculo que eu já vi, e esteve ali no prisma das deficiências e dos resultados da falta de oxigenação cerebral suficientes para que fosse uma criança excepcional_ o que teria transformado o meu amor e o da Dani em um amor também excepcional, nem maior e nem menor do que nosso amor de hoje, mas um amor especial (muito provavelmente ainda mais intenso).

E por que escrevi todo esse relato? Porque assisti ao Fantástico a matéria sobre a morte da Marielle e do seu motorista, Anderson. Porque li as opiniões que a desembargadora Marília Castro Neves veio repetindo insistentemente sobre sua cruel e insípida visão de mundo. A desembargadora, além de todos os absurdos que disse sobre a morte da Marielle, escreveu desmerecendo uma professora com Síndrome de Down. E aí eu vejo, na matéria que o Fantástico fez sobre o Anderson, que o filho dele nasceu com problemas, com algum tipo de má formação (isso foi anunciado na reportagem). Eu estava sozinho na sala e fui acometido por uma crise de choro, que foi o estopim de desabafo a tudo isso que vem acontecendo no país, ao ver a foto do Anderson ao lado de seu filho, um bebezinho minúsculo (assim como a Júlia ao nascer). E a desembargadora, em cima de sua vida de privilégios que no final são vantagens medíocres, em cima de sua paupérrima e lamentável impressão de superioridade, com sua cara plasticiada que depende de exercícios de auto-aceitação que só ela deve saber o quanto são inglórios, botoxiada nas tentativas falhas de esconder o galope avançado e inevitável da idade, vem despejar insistentemente sua deformação interior. Por isso tudo, minha explosão de choro e meu desabafo diante a foto do Anderson e seu filho: o amor na cara do pai, a alegria inocente e plena na cara do bebê_ o sol ali, o buraco negro, o tufão, a imensa, irrefreável e invencível manifestação da Lei.

sábado, 3 de março de 2018

Justificativas



A vizinha, mãe de dois meninos, abandonados pelo pai, que se mudou semana passada para a casa ao lado, gritando com os filhos: "Não mexe em lixo do quintal não, suas pestes! Já não basta que todo mundo nos ache um lixo, que todo mundo nos trata como lixo, e vocês ainda ficam brincando com lixo!"

Um senhor alto, muito velho, em pé sozinho no fundo do elevador, olhos aguados, alguns instantes depois em que responde meu cumprimento quando me adentro: "Meu maxilar se partiu e fechou o canal dos meus ouvidos. Se o senhor falou alguma coisa para mim e eu não respondi, peço que me perdoe, não estou ouvindo."

O catador de ferro-velho, de idade indefinida, cabelos e bigode tingidos de preto, que me grita um cumprimento onde nos vemos como se já tivéssemos trocado alguma palavra antes, e que eu surpreendentemente vejo andando em volta da represa empurrando em uma cadeira de rodas um menino loiro de um ano e meio. O "boa tarde" radiante que ele lança para mim, para minha esposa e meus filhos.

E o sorriso do menino loiro.