quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Hungria

A belíssima foto de Werner Bischof que estampa a capa do livro


Ontem o céu passou negro o dia inteiro e choveu por longas e langorosas horas. Deixei minha filha na escola _ que na quinta-feira passada teve o pátio alagado pelas chuvas incessantes, com água pelas minhas canelas_, e passei nos correios para pegar o pequeno pacote adquirido em um sebo contendo O companheiro de viagem, de Gyula Krúdy. Minha relação com os livros é absolutamente sensual e prescinde de certas fidelidades que seriam urgentes em outros casos. Estou na metade de uma releitura de Vermelho e o negro, mas, sentado em minha biblioteca, com o Gyula na mão (estava por escrever "com o Krúdy na mão", mas percebi a inconsciente cacofonia), protelei o Stendhal e me lancei com confiança infantil nesse livro recém chegado. Iniciei pelo relato final, de autoria de Sándor Márai, de uma beleza inigualável. O clima disparatado, anacronicamente sentencioso, que permite 23 dias ininterruptos de chuvas colossais e tem a previsão de seguir até o final do carnaval, foi o ambiente perfeito para essa prosa de uma cor cinza e de uma dor apaixonada e profundamente recolhedora. Que tamanhos agradecimentos tenho para dar por esse livro ter me chegado agora! Como ele me fez feliz ontem, com sua generosa sinestesia, com sua poesia de cheiros e de detalhes inapreensíveis, com seu calor humano devastador, que tem o organizado encadeamento da grandeza de Whitman, tem a poeira e a lama e a periculosidade das entidades destemidas de Knut Hamsun, que tem uma forte insinuação de imortalidade no que desencava dos pequenos movimentos ignorados sob o véu diáfano da sublimidade. O texto de Márai fez minha alma encolher, me retirou do mundo, nada me faria deixá-lo até que eu chegasse à última página: é anunciado como umas das páginas mais belas da literatura magiar, e não ouso discordar disso. Fui ler o romance do Krúdy, com a sensação de que nada seria superior ao que seu discípulo escrevera, e eis mais uma das surpresas do volume: os estilos, as visões, os espíritos dos dois são impressionantemente iguais. O companheiro de viagem propriamente dito é da mesma maneira arrebatador. Tem frases cinzeladas que abrem mundos, como essas: "Na fenda entre os joelhos, o vento e o pensamento sem dúvida passavam livres" e "Um dia as heroínas morrerão, e o cuidado com os túmulos serão o entretenimento dos vivos". Há muitas e muitas outras frases e parágrafos inteiros que eu sublinhei até que lesse todo o livro. E daí vem aquele lamento terrível, do por que um autor como Krúdy é tão desconhecido; do por que, afora esse livro e alguns contos esparsos, aqui não se tem mais nada de sua extensa obra (ele foi desses que escrevia um livro inteiro em um mês, se esgotava por horas na escrita). Fez-me lembrar de Microcosmo, em que Magri descreve como um mago de uma história infantil a grande literatura desconhecida que existe na Itália interiorana. O quanto de literaturas desconhecidas existem no interior de cada país? Emil Cioran escreve na carta a um amigo que abre História e utopia, que ele próprio não participava desse ressentimento nacional de seu país contra os húngaros, que, pelo contrário, ele sentia uma profunda inveja desses seus inimigos, porque eles tem o espírito de senhores e na confrontação da história em que são obrigados à servidão se mostram altivos aristocratas mesmo sob as condições mais ásperas. A vida e a escrita de Krúdy, e a vida e a escrita do suicida Márai (que o excessivamente acalentado pelo ar-condicionado de gabinete do Coetzee diz não prestar como romancista, com mais um de seu lamentável acento etnocêntrico cego e apequenado), é uma limpeza na alma para qualquer leitor. São desses para os quais a ideia de que deveria haver uma vida após a morte recebe o merecimento mais justo.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Tudo muito bonito



A rainha da Jordânia fez uma charge de resposta à Charlie, em que o menino Aylan aparece como médico em um futuro ficcional e em um mundo ilusório em que os países que estão, a contragosto e providenciando uma reação, recebendo os refugiados seriam promotores de sua inclusão social e suas oportunidades de crescimento profissional. Um mundo em que esses países não tem um pingo de preconceito étnico e terror diante os arquétipos imaginados da ameaça que o menino Aylan produziria. Seria fácil uma réplica à rainha da Jordânia: "Majestade, basta ver que nem vivo Aylan chegou".

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Belos lápis triangulares e o tapete com o mundo



Vou tirar férias daqui dez dias e selecionei a companhia da Susan Sontag para passar comigo. Quando a fé nas ideias, no esclarecimento, e principalmente na literatura ameaça esmorecer, é ótimo ler Susan Sontag. Ela é uma fonte inesgotável de entusiasmo, de inteligência, de vivacidade. Aliás, já há uma semana estou com ela ao meu lado: li A vontade radical, grande parte do Diários, além de ensaios esparsos de Ao mesmo tempo. Junto a esses, planejei a releitura de Sobre fotografia. Não que minha fé nessas coisas mencionadas acima ande mal. Aliás é justo o contrário: jamais estive tão afinado à realidade de que essas coisas são essenciais. Ano passado fui na contramão das tendências dos círculos de leitores que conheço, virtuais ou não, e me recolhi em autores fora de moda. Ler autores medalhas do momento me deixam um tanto para baixo, invoca a lembrança de que minha formação como leitor e possível escritor está em gente que beira o aniversário de cem anos da data de suas produções relevantes. Alemães e russos, e norte-americanos. A leitura mais enternecedora do ano passado foi Um campo vasto, de Grass. Um livro que me prendeu em seu interior de tal forma que se inclui nessa categoria de evocação de objetos de cena, mobiliários, praças, e semblantes. Um livro que me trouxe de volta o vício de escrever à mão, não só à mão mas com o uso de lápis. É que o personagem principal da trama, um escritor da parte oriental da Alemanha dividida, recebe de seu amigo/algoz/irmão um conjunto de lápis, objeto raro vindo dos primeiros suspiros de abertura ao capitalismo ocidental. Esses lápis_ dos quais conservo a imagem precisa, inequívoca, por ter segurado-os nas mãos_, fazem a alegria infantil do velho escritor. Ele se imola em seu pequeno escritório caseiro e vai usando-os dia e noite, em total embriaguez com a escrita. Vai gastando a tinta emborrachada que os cobre por fora, vai transformando-os em tocos. Passa pela minha mente de que jamais me fora apresentado produtos tão desejáveis. Comprei lindos lápis da Faber-Castell de linhas triangulares, rosas e amarelos, com detalhes de pequenos pontos negros em alto relevo nas bases extremas às pontas. (Notei que conservo uma fidelidade à Faber-Castell desde que me reconheço como aluno e alfabetizado; a única coisa da qual bati o pé na compra dos materiais de escola da Júlia foi no tocante a que todos os lápis fossem dessa marca; compramos uma caixa de lápis de outra marca para deixarmos na escola, para uso nas tarefas de classe, contra a minha vontade, lápis que, apesar de muito bem recomendados, mostraram-se uma enganação reluzente, quebradiços, valendo-se talvez pela surpresa da descoberta tardia de que foram produzidos no Vietnã.) Hoje passei parte da tarde escrevendo com eles, em minha pequena biblioteca, ouvindo a chuva que começa a botar medo que não para de cair desde duas semanas. No livro de Grass, o escritor ganha um grande tapete, que ele coloca em seu gabinete caseiro onde escreve. Eu também tenho um grande carpete sujo e empoeirado, que pede para ser levado a um lava-jato (mas que meu amor aos livros, de certa forma impossível de descrever, principalmente em um espaço entre parênteses, o ama assim encardido, arrasado, com uma cumplicidade para sempre silenciosa e eloquente), em minha biblioteca-gabinete. O escritor de Grass anda pelo tapete antes e enquanto escreve, imagina todo o mapa do mundo nele, transita entre as fronteiras e pelo tempo, revisita livros na memória e a história, o tapete dele é muito mais eloquente, ainda, que o meu. Personagens são vistos nas reentrâncias de suas costuras, como um quadro em três dimensões de um Hieronymus ou Johannes. Grass o descreve em uma suave e exultante loucura, em uma dedicação infantil a si mesmo e à sua predisposição de entender solitariamente. É uma das mais profundas e revigorantes descrições da fé na literatura. A gente volta a ser criança e a alimentar sem vergonha a criança interior quando se depara com a possibilidade de imitar um exemplo destes.

Voltando à Susan. Daí ser direcionado pelo impulso sempre incognoscível mas fiel de meu leitor interior a ler Susan me mostra como a crença na literatura é algo sério e iluminado. Os diários dela são arrebatadores. Iniciam-se quando ela tinha 15 anos, e que mulher ela já era. Aqui eu gostaria de ter algum subterfúgio que pudesse substituir a diferença gramática de gêneros, e apontá-la sem os recursos aprisionantes de "ela" (sem utilizar o grafismo de péssimo gosto de se usar a arroba como substituição, empregado por algumas feministas). Mas... Uma menina de 15 anos que descreve suas intenções futuras, seus planos de rigor intelectual, sua enorme fome pelo conhecimento e instrução. E que escreve que o casamento é o mais bárbaro aprisionamento à mulher. E que deslinda com a coragem de quem sabe não ser lida seus desejos homossexuais. São páginas refrigeradas, com essa assinatura ímpar da Sontag de ser possuída por uma paixão pela vida, seu excesso de vida e felicidade. O prefácio de seu filho é comovente. Ele descreve que mesmo no último dia, sua mãe não acreditava que iria morrer. Ela tinha vários planos de livros de ensaios, de romances, de projetos culturais. Seu filho diz que, se tivesse tido oportunidade de falar com ela quando ela era jovem, pediria para não ter tanta soberba, para não ficar tão entristecida com as coisas naturais da idade. Mas a soberba da Sontag é a coisa mais fundamental e indispensável. (Em outra parte dos Diários ela, já adulta e escritora, afirma que não se acha uma grande pensadora, que se fez proeminente por ser sincera até o absoluto.) O filho escreve (uma parte por mim sublinhada com a régua do marca-página, usando um Faber-Castell):

Este é um diário no qual a arte é vista como uma questão de vida ou morte, no qual a ironia é tida como um vício, não uma virtude, e no qual a seriedade é o maior dos bens.

Que súmula precisa quanto ao caráter a o conteúdo da mãe! Sontag é exatamente assim. Não há muita, senão nenhuma, ironia nas coisas que ela escreve. Ela se leva matematicamente a sério. Ela sabe que o pensamento é transformador, é importante e fundamental, de forma que não deve negá-lo através da relativização meta-analítica da ironia. Em um ensaio maravilhoso sobre Emil Cioran (Pensar contra si mesmo, do volume A vontade radical), ela declara o impasse ao trabalho intelectual genuíno do século XX a fatal fixação ao historicismo. No ensaio antológico que encerra esse mesmo volume, de sua viagem a Hanói, ela aponta a parede de encenação e falsidade entre os vietnamitas que a recebem nos hotéis e eventos da cidade e a mesma falsidade e encenação que os ocidentais e americanos como ela tem que manter para o contato social. E como a realidade massacrante daquele povo, vilipendiado barbaramente pelos americanos (o povo do qual ela faz parte), é tão mais profunda e insondável pelas palavras. Ela admite o que seu amor à arte parece incapaz de admitir: que a arte falha diante as grandes injustiças e grandes catástrofes. E para isso, sua fé se mostra sobre-humana, ao conservar a vontade radical em buscar o aproximativo mais fiel que ombreie essa insolubilidade do real. E encaixa seu também antológico estudo sobre a pornografia:

"O que efetivamente está em jogo? Uma preocupação com os usos do próprio conhecimento. Há um sentido em que todo é perigoso: nem todas as pessoas estão na mesma condição como conhecedoras, ou como conhecedoras em potencial. Talvez a maioria das pessoas não necessite de "uma escala mais ampla de experiência". É possível que, sem uma preparação psíquica sutil e extensa, qualquer ampliação de experiência e de conhecimento seja destrutiva para a maior parte das pessoas."

Os temas encontram uma concordância e revelam uma pensadora coerente e simétrica. Graças à Sontag temos alguns dos melhores textos apreciadores de escritores de todas as ordens, origens e vertentes_ um outro elegíaco magnífico é Walter Benjamin. Ela aprecia com profundidade outros artistas e escritores, o que transfere a paixão para o leitor, sem o rancor e superficialidade mal humorada e estilista dos ensaios críticos de um Coetzee. Comprei Verão em Baden-Baden após ler seu belo ensaio sobre Leonid Tsípkin, Amando Dostoiévski, em Ao mesmo tempo. Impossível para mim não ser um ardoroso admirador de Sontag, e não pretender outra companhia entre meus honoráveis célebres para essas férias de fevereiro.

Chacrinização



O Brasil tem algo de Coréia do Norte. É tão fechado, e para nós que aqui moramos sem possibilidade a curto prazo de sairmos para além de suas fronteiras, parece que vive um outro tipo de realidade toda própria. A cada dia me vem a certeza de que a verdade brasileira é insondável, permanente, indevassável e aprisionante, e que nos submetemos com tal inclemência a ela que estamos em descompasso em compreender o que se passa no restante do mundo. Eu vejo, com temor profundo, que a brasilidade me distorceu a tal ponto que comprometeu minhas faculdades de entendimento. Eu só consigo entender sob a ótica acondicionante de viver no Brasil. Por exemplo, esse filósofo, escritor, ou o que quer que seja (o sinal do meu comprometimento neuromotor é não estar à altura de definir o que tal sujeito é), esse Ovalo de Caspalho... ele...o cara é tão..., mas tão ignóbil e espúrio e sem substância, que eu fico pensando com toda sinceridade: alguém como ele é possível de existir em outro país, em outra pressão atmosférica que não seja a do Brasil? Fico horas olhando o Facebook dele e fico em consequência frio de medo. O que nos tornamos? Isso foi progressivo; algum dia fomos melhores e nos degradamos nisso, ou sempre fomos assim tão insípidos, irrisórios? Porque, vamos falar a verdade, não se trata de complexo de vira-latas, quisera deus que fosse algo tão simples e contornável com o exercício sedicioso de um amor-próprio alimentado com disciplinada sofreguidão: o fato é que assim como estamos, assim como nos apresentamos, somos mesmos um povo menor, vergonhosamente menor. Eu sou daqui e não fico nem um pouco feliz em dizer isso. Me parte o coração e me enche de bile ver o desprezo despejado com tanta falta de cerimônia para cima de nós. O assunto é seriíssimo!! Esse Ovalo, filósofo, redundância encarnada... todo o Facebook dele é de uma bestialidade medonha, uma azucrinação e pornografia mental, promiscuidade sem tamanho. Leem seus textos e os dos seus absurdos seguidores e façam o exercício de como aquilo parece aos olhos de um leitor estrangeiro. Dá uma vergonha prostrante. Há um mapa da América Latina em que o Brasil aparece com a foto sobreposta de um ânus. Como alguém dá atenção a um cara desses? Toda frase do cara tem um xingamento, as palavras mais chulas. Daí, ele entremeia com pequenos textos de um lirismo tão raso, que nos comentários aparecem os celerados elogiando a beleza daquilo, a profunda poesia. Percebam a preguiça com que escrevo isso aqui; não tenho o mínimo ensejo em escrever sobre Ovalo. Um ególatra puro. A foto que estampa seu Face faz referência à serenidade ostensiva de sua cabeça ao beijar a criança (neto?), algo que lhe deve soar helênico, a estante abarrotada de livros atrás. Uma foto feita não para mostrar a criança, mas o velho. E não há o mínimo conteúdo nas coisas que ele escreve, mas mesmo assim... um caudal de seguidores! Não é para menos. Visito outros endereços virtuais e vejo, por exemplo, alguém dizendo sobre Dostoiévski, e assim, como um movimento condicionado inevitável, os comentários que se seguem são de "entendedores de Dostoiévski" que não leram nada além da wikipédia, ou conservam uma onisciência de papo de boteco. E esses, notem, são pessoas letradas, altos profissionais e gente descolada, gente de bom gosto. É por isso, será? Assim como o brasileiro adora ostentar supremacia social através de qual carro ele compra, é indispensável para o brasileiro descolado apenas arvorar cultura e esclarecimento? Pouco lhe importa ser, mas parecer? Assim explicaria muita coisa: Ovalo cai quase como uma luva, e soma-se a isso o fato de ser um filósofo com recursos high tech, o que agracia a vaidade de todo mundo que quer ser visto por todo mundo. A serotonina do ódio direcionado no espaço virtual, e do elogiar em conjunto. O único tema do sujeito é ele mesmo. Essa inelutável convergência para se ser o Chacrinha em cada área de atuação do brasileiro deveria ser fonte de estudos sérios para nos tentar salvar.

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Seria uma evolução inalcançável se tivéssemos um veículo torpe, enojante, visceral, bruto, violento, descerebrado e desentorpecente como a Charlie Hebdo. Eu já disse aqui, em outra dessas ocasiões de minhas análises sobre o país, que eu compraria uma revista masculina em que viesse um hipotético ensaio fotográfico de uma mulher que, naquela data, estava sendo investigada no incipiente processo contra a corrupção na Petrobrás, mulher cuja estética corporal notoriamente expressiva do crime que cometera a tornava incondizente com a nudez expositiva. O que eu estava a dizer é que, a afronta a que alcança o equilíbrio entre criminosos no poder e o povo que os alimenta é tão irrespirável, que eu tenho a urgente necessidade de me haver com uma outra forma de expressão. E, já que a intocabilidade desses corruptos é tão insofismável, a burrice exorbitante do povo tão encalacrada, o absurdo de ver um nu desses abriria inéditas e insuspeitas maneiras de percepção. Precisamos aqui recorrermos a novos e mirabolantes exercícios de desentorpecimento, e a Charlie Hebdo cumpre bem esse papel em seu país de origem. Isso porque ela não pretende a genialidade, não busca o amor de seus leitores, não busca, sequer, leitores; prescinde corajosamente até do humor. O que ela faz é, restringindo à definição de uma única palavra: repulsivo. E é aí que, mais uma vez, está o x da questão. A Charlie tem apenas uma ambição: ser o ponto cego. Antes dos atentados que massacraram parte substancial de seus editorialistas e chargistas, as suas vendas eram mínimas, o interesse pelo que diziam só atingia os noticiários baseado no termômetro do calor de reação que uns desocupados tinham contra o que para estes era ultrajante e ofensivo. A Charlie seguia incólume em sua personalidade imutável de ser o que era: o ponto cego. Uma vez arvorada, sem pretender ou fazer nada para isso, à condição de ícone, bandeira da liberdade e símbolo cult nacional da França, ela prova a fidelidade à sua identidade ao não se envaidecer com esse amor a ponto de traí-lo, de jogá-lo na sarjeta. Os milhões que se dedicaram a comprar seus exemplares e torná-la um frenesi de vendas agora, em parcelas representativas, se dedicam a desbancá-la do posto de bem-amada graças a uma charge recente em que ela parece a eles ter ultrapassado os limites. Como se ultrapassar limites fosse algo programático para a revista, como se uma revista que sempre foi o que é, repulsiva e burra (na acepção do termo correlacionada a uma total despretensão de ter conteúdo), tivesse ainda algo a dever à cordialidade do mundo externo a seu escritório. Com a última charge, a polêmica racista, como está sendo vista por muitos, charge em que o menino sírio afogado é imaginado em uma hipotética sobrevivência adulta apalpando a bunda de alemãs, a Charlie Hebdo ameaça perder o título de baluarte moderno da liberdade de expressão para voltar a ser apenas a Charlie Hebdo. O mundo prova um pouco da burrice que vemos na Coreia do Norte brasileira ao espelhar em franca armadilha o que a charge da Charlie tenciona: a hipócrita vociferação recheada de ódio, típica de fundamentalistas, mas partindo da Europa altamente civilizada. Os comentários daqueles que se sentiram enganados ao vestirem camisas com a frase Je suis Charlie, e agora viram o racismo e intolerância da recente charge, enchem os editores da revista de prazer por verem a missão cumprida: a burrice em estado puro, selvagem e ingênua, é genialmente confrontadora. A charge, como bem acusou alguns, faz parte de um tríptico, em que a conclusão revela a alfinetada na predisposição confortável de se chorar com a foto da criança morta na praia, desde que não se tenha que dispender um mínimo esforço para uma auto-análise de como esses piedosos espectadores no aquecimento de suas casas veem com demérito e preconceito os refugiados sírios. Como esses para os quais o choro é uma catarse estética linda do corpinho do menino afogado querem que tais refugiados se mantenham o mais distante de suas fronteiras. Não, a Charlie não tem bom gosto, é idiota e desprezível, mas está no final de uma escala de evolução dialética (para a qual mesmo o europeu para quem é escrita parece mostrar descompasso na recepção da mensagem) em que nós coreanos rastejamos ainda com nossa adoração a Ovalos. A Charlie faz da chacota o objeto de elucidação impactante; já aqui, a mensagem levada ao estado de culto de alguém como Ovalo mostra que a chacota somos nós.