quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Segunda lei de Newton



Na metade da década passada recebi via celular esta mensagem: "Atende. Minha mãe morreu". A autora do pedido era minha mãe e a mãe relacionada, lógico, era minha avó Mirtes, que deveria ter, à época, oitenta e nove anos. Quem lesse aquelas palavras e as interpretasse sem o devido envolvimento familiar, acharia que eu era o mais desalmado dos canalhas, para que a própria mãe tivesse que me pedir direito de atenção. Mas acontece que, de maneira incontornável e gerada por anos de atritos, choques e desmandos irracionais, eu havia firmado a decisão de não mais falar com a minha mãe. Não estabelecera um prazo para esse afastamento, mas estava com a paciência tão exacerbada que bem me parecia que o tempo ideal de um rompimento desse porte fosse para sempre. Passaram-se dois anos de belíssimo sossego, no final dos quais minha mãe havia demonstrado que enfim desistira, não me telefonando, não me mandando mensagens, não obrigando que algum de meus amigos_ ou mesmo alguém completamente desconhecido_ intercedesse para que eu quebrasse o que, para ela, era meu "coração de gelo". Todas as suas tentativas batiam contra minha mais sincera indiferença, mas ela havia insistido demasiadamente. Aproveitara de sua influência jurídica e mandara em caráter de urgência duas viaturas da vigilância sanitária até minha casa para acabar com focos de mosquito da dengue; passava horas no telefone com algum colega de serviço, chorando; mandava-me presentes através de entregadores a domicílio, que acompanhavam longos bilhetes misericordiosos que pareciam escritos por uma freira da idade média. Mas eu já estava além do vexame e dos mais refinados pudores: eu abria a casa para os agentes da vigilância para que investigassem a denúncia e servia-lhes misto-quente; interrompia o colega intercessor, dizendo, com a alma leve, que eu nada tinha a ver com o fato dele ter que dar atenção à minha mãe; e ficava com os presentes, jogando os bilhetes na cesta de lixo, pois devolvê-los era também uma forma de mostrar que me importava.

De maneiras que era óbvio que algum fato terrível me aguardava por detrás daquela bonança de liberdade em que, finalmente, eu fazia jus à realidade de ter mais que 30 anos e ser independente. A morte de minha avó me pegou em cheio. Aquelas frases concisas da mensagem insinuavam tantos estados de espírito, tantos arrependimentos e necessidade de consolo efetivo, que, no meio da perplexidade de ter que aceitar o encerramento da única entidade no meio das individualidades enfadonhas que compunham minha família, tinha que aceitar também a hipótese de que aquele tom calmo, superiormente digno que minha mãe impusera naquelas palavras mudavam minha concepção dela. Era como se, com a morte de minha avó, minha mãe enfim encontrara o seu remanso na existência, suavizara-se. Mas eu já estava longe de qualquer caminho de retorno, e por isso, desliguei o celular, não informei a ninguém o meu paradeiro, e procurei um refúgio. Um amigo que conhecera a minha avó ainda conseguiu me encontrar, antes que eu saísse, ao que informei-o da verdade: minha avó falecera.

Sempre tive imensa curiosidade por meus antepassados. O pai de meu pai era índio. Gostaria de saber de qual tribo, como ele se miscigenara, em que ele acreditava, como era a sua voz, como ele tratava as mulheres de sua vida, qual a verdadeira concepção que meu pai tinha dele. Conheço em excesso o que se pode conhecer da família por parte da minha mãe, mas nada, ou quase nada, das inúmeras derivações regressas de tios, avós, primos, que compôe as miríades de parentes do meu pai. A mãe de meu pai, que faleceu aos 95 anos, era descendente de espanhóis, tinha belos olhos azuis e traços tão finos e delicados que sempre me ajudavam a cogitar os fabulosos acidentes da sensibilidade que fizera com que, há 3 gerações, os conluios de casta aceitassem que um silvícula arrombasse suas rígidas crenças sociais pela porta da frente. Ela tinha o encantador nome de Dercídia, que nunca vi mais em nenhum lugar, e ele se chamava pura e simplesmente João. No funeral do meu avô, a lembrança de meus oito anos retêm a sala de sombras taciturnas no velho casebre em que sempre moraram, o caixão estendido numa mesa de centro, as velas tristes que eufemizavam a cena aludindo à certeza muito mais terrível de que nunca haveria um reencontro; um casal de pobres para quem a pobreza nunca assustara e nunca lhes representara nada. Entre tantos mistérios da ignorância que dominava os ocupantes daquelas esquecidas cidadezinhas do interior, o que mais me chama atenção é o do poder indefectível para que fizessem sempre as escolhas erradas, que acabariam, assim que dado o primeiro e inconspícuo passo em direção aos seus destinos encerrados, com o restante de suas vidas. Nunca existiram duas pessoas tão incomensuravelmente incompatíveis quanto meu pai e minha mãe. Eu sou fruto de uma coalizão errática e impossivel. Apenas às minhas custas prova-se o desastre de duas retas paralelas que nunca se encontrariam terem se tocado no infinito. A unica comunhão que aquela criança de oito anos tem com seu avô, por isso, foi a do medo, o banal e ridículo medo do morto, que minha mãe incutiu na minha cabeça à custa de me proteger da influência daquela pobreza acentuada que só ela via. Tantos recados e sinais perdidos, tantas fotos que meu olhar deixara de apreciar _ o casal jovem e belo pintado em tons de azul claro na moldura abaulada_ apenas porque era fresca a impressão da importância da experiência que eu representava entre dois universos avessos, e quanto antes trouxessem a mim para o lado certo, melhor seria.

Eu puxei em tudo a família do meu pai, o que serviu a dar ares de arte superior às condenações que minha mãe me infligiu por toda a vida pela minha preguiça, a minha falta de ambição, o meu descaso corporal, a minha propensão doentia à lentidão, ao meu olhar vagaroso, à minha índole do músico em substituição à selvageria ostensiva do comerciante. Mesmo me formar numa faculdade foi o resultado de muita determinação castradora por parte dela, porque o Velho Índio sem nome e desconhecido o qual o distante cadáver proibido representava me acenava a deixar tudo e me enfunar num desaparecimento filosófico em algum lugar suave e perigoso no caminho oposto daquilo tudo. 

E minha avó Mirtes, somente ela, oferecia o grau de semelhança que permitia que me identificasse como pertencente à família de minha mãe. Minha avó Mirtes era uma exilada, alguém que perdera tudo, fora reduzida à estaca zero, a um impossível recomeço. Ela era professora doutorada, naquele tempo em que as professoras eram respeitadíssimas, falava três idiomas, era o que se chamava uma mulher de casta, vinda de uma família patriarcalista composta de juízes, advogados e médicos. Depois de ter dado 5 filhos a meu avô, meu avô a trocara pela empregada doméstica da casa. Isso foi algo pior do que a morte para uma mulher carregada de princípios católicos, de preconceitos de classe. Qualquer outra mulher desmoronaria. Seu filho mais velho tinha 11 anos, os outros quatro mal a viam por estarem confinados nos célebres e europeizados internatos daquela época. Ela abandonou tudo, recusou-se à disputa judicial impossível, à menção de desforra violenta por parte de seu pai e seus irmãos, ao apego doentio baseado na lástima eterna a seus filhos. Chamara dois advogados da capital e, educadamente, sem alterar as feições, fizera meu avô assinar o divórcio. O divórcio, na década de 50! Deixou o cargo de professora/diretora que tinha na escola, e, com o pouco de  dinheiro que tinha, foi para os Estados Unidos. Escolheu esse país pelas razões óbvias de a América ser, naquela época, A América_ e por dominar o inglês. Passou fome durante um massacrante período, mas a vejo invergável em suas roupas distintas de professora, seus grandes óculos escuros, sua maquiagem impecável, seu arsenal de palavras bem pronunciadas, sua incapacidade para a lamentação. Enquanto penava por lá, a esposa substituta de seu ex-marido fazia a cabeça de seus 5 filhos a aceitarem a inversão de verem nela a madrasta má, que renegara e abandonara os filhos, a mulher sem sentimentos, a alienígena. Por todos os anos em que minha mãe a mencionara e eu apreendia a conversa alheia entre adultos com minha atenção curiosa, minha mãe a tratava como "a Mirtes", aquela mãe convertida em madrasta que era obrigação odiarem-na, um judas para a malhação. Das poucas vezes em que a Mirtes atravessara o continente com o único propósito de visitar aos 5 filhos, estes eram escondidos dela, a empregada usurpadora já tendo-lhes inflamado tanto ódio e terror que não sobrava nem a mais leve consideração humanista.

Eu fui, por muitos anos, seu primeiro e único neto, mas não a conhecia. Como seu nome era raramente falado, e o ódio fora suplantado pela indiferença, a impressão que eu tinha era que ela não era desse mundo, ela era uma espécie de fantasiazão exuberante para a qual esgotara-se todo tipo de piada e curiosidade. Ela era a Mirtes que fora para os Estados Unidos, alguém em franco estágio de esquecimento coletivo. Quando tinha dez anos, surpreendentemente, começaram a me chegar as cartas. Longas cartas em papel apergaminhado amarelo_ ou o amarelo se firmou para mim pelo efeito do tempo_, escritas em uma letra bonita e disciplinada, que mesmo naquela época já me parecia antiquada, e assinadas, ao final das caudalosas 5, 6 ou 10 páginas, com seu nome e sobrenome. Ela achara, finalmente, alguém a quem pudesse quebrar o silêncio, o seu neto miscigenado que, assim como ela, também partira de uma aventurosa estaca zero, também era um alienígena. Não sei por quais bases ela intuira a minha sensibilidade, mas vejo isso como uma prova cabal de sua inteligência superior. Ter sabido, sem um traço de dúvida (como via nas cartas), que eu representava um novo começo, o fim de todas as vagas de sofrimento e atraso do passado do qual ela fugira e o qual lhe era violentamento ofensivo, era de uma lucidez extrema, e tanto era mais certo isso porque ela me alertava que isso não era nenhum privilégio, eu sofreria horrores por ser incompatível tal como ela o era.

Essas cartas eram vistas como coisas inofensivas por minha mãe. Cartas singelas de uma avó ausente ao neto que nunca iria conhecer. Deveriam falar as trivialidades das cartas, os "oi como vai", "abraços com carinho". Mas eram cargas de desforra acentuadas para uma criança de minha idade. Talvez esses textos foram meu primeiro contato com a literatura séria, ou mais, com as verdades fundamentais do homem, as torpezas, as injustiças, a crueza das relações familiares, a farsa do amor constitucionalizado, os dogmas do povo antigo que só geravam ódio e hipocrisia. Eu reconhecia a grande confiança que minha avó depositava em mim ao me erigir o receptor daquelas confissões. A ausência, o tempo, a geografia, haviam me dado, em compensação ao amor da avózinha dos pães de queijo, o tesouro de uma avó maquiavélica, na mais genuína e vantajosa acepção do termo. Suas cartas, que eu ainda as conservei as principais, formam o único testamento genealógico que tenho da história da minha família_ mais, formam o único testamento da minha família inteira.

Ali estão os 5 benéficos anos em que ela trabalhou com Vladimir Horowitz, o "mais gentil dos homens", o tempo em que trabalhou para João Gilberto, o" mais desprezível dos homens", suas viagens pela Europa e Canadá, seus estudos de aperfeiçoamento universitário, o dia em que ganhou a cidadania norte-americana, nos mais de 35 anos que vivera nos EUA antes de retornar em definitivo para o Brasil, no começo dos anos 90, quando a conheci pessoalmente. Por isso o meu impacto diante a informação de sua morte, e minha decisão de que pouco representaria ir vê-la naquele momento. Duas semanas depois, o meu amigo ao qual mencionei a morte de minha avó me telefona, simulando ira. Por algum motivo de consulta jurídica ele telefonara para minha mãe, e, findo o diálogo, aproveitou para dirigir a ela os seus pêsames. "A morte de minha mãe?", minha mãe retrucara, surpresa, e logo lhe respondera: "mas a dona Mirtes não morreu, ela está viva. Quem lhe disse isso?". Eu fui dominado por uma onda de surrealismo e caí numa gargalhada convulsiva ao telefone. Meu amigo chorava de tanto rir. "Quer dizer então que você está este tempo todo acreditando que sua avó está morta! Puta que pariu!". O ùltimo estratagema da minha mãe.

Há duas semanas a Mirtes me ligou, aos 96 anos, perguntando se havia algum perigo de que uma das araras que lhe bicara o braço pudesse lhe transmitir raiva.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Ápice


É hora de os cristãos deixarem de ter medo da história. (Jean Delumeau, da introdução de História do Medo no Ocidente.)

Emaconhado


Há uns três meses recebemos aqui em casa um casal de amigos que não víamos há muito tempo. Pelo telefone já havíamos, eu e e meu amigo, arrumado a celebração do reencontro com o compromisso de que cada um de nós dois levaria uma garrafa de vinho do Porto, nossa bebida de compadres preferida. Assim foi. Sentamos os quatro_ a esposa dele e a minha juntas_, num barzinho aprazível ao qual sempre íamos quando ele morava nessa cidade, um pub que já desmente o conceito por ser a céu aberto e tomar o espaço de uma magnífica praça de frente em que colocamos a mesa e ficamos ouvindo as copas das palmeiras antigas sendo assoladas pelo vento. Dali víamos o boteco que tem na outra esquina, e que tem um valor emocional fundamental pois seria ali que abriríamos um bar temático de boa música que se chamaria Dig A Pony, se esse meu amigo não tivesse se mudado para a capital. Abrimos os vinhos e fizemos os pedidos ao garçom. Das minhas bebedeiras, nunca perco o controle sobre mim mesmo e nunca tenho o desmemoriamento sobre minhas ações que é costume entre outros bêbados, mas o que seguiu nessa noite não me recordo em nada. Isso porque, após os cálices de educação que cada um dos quatro bebeu, apenas eu fui sorvendo o vinho enquanto conversava. O resultado é que deixaram, inconscientemente, que eu tomasse praticamente sozinho as duas garrafas dos Porto.

Apesar de eu ter provado maconha em duas ocasiões, e ela não ter feito nenhum efeito sobre mim que não uma diarreia nababesca, sempre assimilei o grau de beatitude que o Porto me causa como um psicotropismo canabiliano. Eu fui um inveterado tomador de vinhos do Porto antes de me casar, o que resultou em rituais que me levavam próximo a uma percepção xamânica. Com duas garrafas na cabeça, feito que nunca havia testado antes, esses meus amigos e minha esposa disseram que eu fiz discurso, contei piadas além da conta, olhei com atenção despropositada às mínimas observações sociais feitas pelos integrantes da mesa, como se eles estivessem dizendo uma verdade sobre a existência. E, o pior dos piores, os três que estavam ali deixaram que eu entrasse no carro e dirigisse de volta à casa, tendo antes feito um tour pela cidade. Eu escutei todas essas coisas com um espanto estático, tentando perceber logo o momento que eles revelariam que tudo era uma brincadeira da parte deles, mas me dei conta do diagnóstico assustador de que era uma mera reportagem de eventos fieis à realidade, pois eu não me lembrava em definitivo da noite anterior. Mas eles me acalmaram, quando viram a gravidade da minha amnésia, ao dizerem que eu fiquei extrovertido além da conta, mas não fiz nenhuma besteira. A esposa do meu amigo, uma mulher que dos três havia maior anterioridade de conhecimento comigo, e por isso é a amiga por direito que pode falar tudo sem direito a melindres e ofensas, titubeou um instante antes de abalizar tal sentença, como se, afinal, eu tivesse subido na mesa ou mijado em uma das palmeiras na frente de todos, cantando We´re not gonna take it. Mas não; ela disse: é, você estava um tanto intenso em  excesso, o tipo de coisa que só vemos ser anormal em retrospecto

Pois o vinho do Porto me causa um grau que me lembra uma serotonina demasiadamente açucarada sendo liberada na região de trás da minha cabeça, anestesiando a minha nuca. Eu fico emaconhado. Coisa parecida, entre todos os discos de jazz que mais amo, acontece só quando ouço Go, do Dexter Gordon. DG apita de um jeito por aquele saxofone que tem sobre mim o mesmo efeito bestializante de um antigo desenho da Disney, que não me recordo senão do enorme urso que se docilizava quando ouvia uma determinada sinfonia. Assim quando escuto a primeira frase de sax despreocupado de Cheese Cake, e seguindo adiante até a bateria de mesa de botequim de Love for Sale. Cioran escreveu, em um de seus aforismas: "para que reler Platão quando um saxofone pode nos fazer entrever igualmente outro mundo?". Ontem estava ouvindo, à noite, Go, mas tomando um cabernet e não um Porto. Nessas extremas alegrias que a leveza da existência, a falta de conhecimento mínimo sobre qualquer mistério, provoca nessas horas, fez com que eu seguisse o conselho que um dia vi num adesivo colado acima do lugar aonde fica o motorista do coletivo, com o aviso: SÓ FALE AO MOTORISTA O ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO; ao que um chargista fez um passageiro se virar para o motorista e dizer eu te amo. Mandei um e-mail para um amigo virtual com a pergunta acreditas em Deus?. Tal amigo havia me enviado um e-mail clamando do tédio que é a neve e a bonomia eterna de um país tão diferente do nosso. Dessas coisas que a falta de um companheiro de bebedeira causa mesmo nas incruentas noites de sexta-feira.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Já esgotou!


Solicito o que seriam "meus pedidos do mês" para a gatíssima funcionária do departamento de divulgação da Companhia das Letras, e recebo a informação auspiciosa de que O Professor do Desejo, de Philip Roth, um de meus pedidos, está esgotado na editora. Não deixo de ficar meio que tomado por uma pontinha de bobo orgulho ufanista: pô, em poucos meses de lançamento, e um livro de Roth teve toda a sua edição vendida no Brasil! Corro à Livraria Cultura e o encontro lá, ainda à venda, e compro-o imediatamente. Vai que ele se torna o novo Leilão do Lote 49, um objeto de disputa que tem-se que economizar uma pequena fortuna para adquiri-lo em sebos?

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Fantasmas de ocasião


Eram dois velhinhos muito velhos. Eram tão velhos que olhá-los desmerecia qualquer pensamento de continuidade, como se ficasse claro na mente do observador que o momento ocupado no tempo e no espaço por eles era tão indelével que já no outro dia eles não teriam o direito de estarem na memória imediata. E foi assim que desapareceram por completo da minha memória, após ter transcorridos uns dois meses da minha juventude em que os via descendo no elevador quase todos os dias, com suas surpreendentes caras estereotipadas de judeus sefarditas itinerantes, vestidos de  casacos cinzas e com absurdos sacos pesados nas costas. E voltei a pensar neles por algum remanejamento do olhar ontem no apartamento de minha mãe, quando observava pela janela o pátio de estacionamento dez andares abaixo, com seu falso ar de abandono que a chuva contínua outorgava ignorando os tantos carros em placidez imóvel estacionados por sobre os números das vagas. Lembra daqueles dois velhinhos judeus muito velhos que moravam, acho, no sétimo andar?, perguntei à minha irmã. Ela olhou pouco abaixo do teto, enquanto arrumava o zíper da bagagem a ser levada para um congresso em São Paulo, procurando pela lembrança, e só repetiu velhos muito velhos no lugar da negativa. Descrevi-os por alto, a excessiva educação quando me viam entrar no elevador, uma subserviência pungente de abaixarem as cabeças quando eu perguntava se me davam licença para entrar, que eu passei a sempre perguntar para apreciar novamente seus sotaques de deserto e suas inflexões gnômicas em dizerem em suas costuras de português, poir favor, entrre, esteje a vontáde. Eram tão educados que me passavam a impressão que queriam se livrar de mim o mais rápido possível, uma humildade de foragidos que ofereceriam o lombo para serem deixados em paz, com o cimentado contentamento dos sobreviventes que se adaptaram à invisibilidade. Quando eu entrava eles se calavam por completo e mantinham as cabeças baixas; dois irmãos cujas dessemelhanças se evidenciavam por debaixo da linha de uniformidade das roupas cinzas, da fragilidade cujos sacos pareciam ir quebrá-los em diversos fragmentos. O mais novo transmitia a pureza desnorteada dos idiotas da família, tinha olhos vesgos que exumavam um tipo de docilidade oriental que era o suprassumo da inocência. Como um comerciante sobrevivia com aquela aparência?, eu pensava, e um comerciante com o gene da astúcia judaica! Talvez fosse o poeta desmerecido, a ovelha negra. Por isso, por ter que chamá-lo às honras do sangue, que seu irmão_ um tipo enfezado com olhos aterrados no solo insofismável da realidade_ sempre lhe passava as mais cortantes reprimendas, que eu presenciava em esporádicas ocasiões em que os via nas ruas próximas ao prédio, eles estando certos de terem desaparecidos no ar e seguros dos olhares alheios. Não, definitivamente eu não me lembro deles, minha irmã disse.

Na janta, lembrei-me de tascar essa pergunta à minha mãe, completando a descrição do segundo irmão com rompantes sensíveis que sempre me odeio depois por ter agido inadvertidamente como um homem apartado demais para o mundo literário_ um homem que lê em excesso, vejo a crítica subjuntiva nos cantos de enfado dos olhos de minha mãe, enquanto ela sustem o garfo próximo à boca. Acentuo que o irmão mais velho tinha uns olhos crivados dos fanáticos, mas os fanáticos pela vida, por tudo que seja tocável, material, sistematizado, o sujeito dos números mas não do universo nupcial da matemática com as especulações metafisicas. Deveria tratar deus como um mero sintoma inquestionável da geometria sólida pela qual transitava beneficiado pela permanência aguerrida no mundo. Um homem de certa forma perfeito, em sua obliquidade a todos os julgamentos. Não, não me recordo desse senhor, sentencia minha mãe, retornando ao jantar e ansiosa por passar para outro assunto. Hoje, antes de retornar para casa, paro no casebre da viúva do zelador que mora no prédio desde os primórdios e puxo os assuntos triviais até que o clima esteja maleável para lhe encaixar a pergunta. Dois senhores?, a viúva repete olhando para o topo das plantas no jardim. Ela faz uma lista ligeira dos muitos velhos que habitaram ali uma vez ou outra, mas nenhum sendo esses dois profetas bíblicos dissidentes. Lembra de tantos outros os quais eu não me recordo. Me dá um sorriso de desistência, antes recordando que houve alguns meses que ele e seu marido saíram de licença prêmio, tendo passado períodos distantes do prédio. Entro no carro cogitando da teoria dos kardecistas de que os mundos do aquém e do além não dividem uma fronteira precisa, havendo quem de um e outro desses mundos penetre no que julgamos ser a fase de sonho que transcorre em cada um deles. Me vem as disparidades tardias que eu não havia cogitado antes, do porque verdadeiramente dos dois levarem aqueles sacos pesados nas costas, qual feira comportaria entidades tão desenraizadas da urbanidade citadina do final do século XX?; por que se vestiam com tecidos que pareciam rústicos sacos de batatas?

Na conversa pela webcam agora a pouco, entre minha esposa e minha mãe, eu torno a perguntar simulando brincadeira pelos velhos. Minha mãe me lembra as febres cerebrais que eu tinha na infância, o gigante que brincava de ciranda com crianças na esquina, a teimosa certeza de que eu voava até os postes de luz e me sentava nos fios elétricos até me dar na telha voltar. Rio sem  naturalidade mas solto a seguinte frase, que ela não ouvirá mas a deixará enfadada até o nível da irritabilidade: Tenha paciência comigo, mãe, que estou esquecido. Podes segurar abertos mais um pouquinho esses teus olhos tão pesados e tocar teu instrumento, nem que seja dois acordes?

Nesse domingo desterrado do infinito (relendo "O Leilão do Lote 49")

PELO AMOR DE DEUS, COMPANHIA, REEDITEM ESSE LIVRO!


Esse é um dos livros mais pedidos para que seja reeditado no site da Companhia das Letras. E um dos livros esgotados mais caros disponíveis no site da Estante Virtual _ tirando, claro, as pequenas fortunas cobradas por coisas como a primeira edição de Mein Kampf e a primeira edição de Grande Sertão: Veredas. Como parece acontecer na editora, os funcionários responsáveis pelas indicações de relançamentos esperam até o último nível do martírio para saciar os leitores; fico imaginando-os sentados torcendo as mãos e dando grandes gargalhadas sádicas diante mais uma solicitação incauta de "pelo amor de Deus, reeditem esse livro". Eu mesmo, sempre que via o Teatro de Sabbath pelo preço de 120 reais em oferta nos sebos, tornava a enviar um pedido que, após uns segundos intermináveis de riso compulsivo, os referentes senhores literários da Companhia simulavam responder: "Essa porta foi criada única e exclusivamente para você e nunca será aberta. E agora que me perguntastes, vou embora". Dois casos que mostram incrível renitência: os muito cobrados Extinção e O Náufrago, de Thomas Bernhard, continuam fora do prelo, por mais que o potencial de vendas desse grande autor austríaco seja um fato inexorável. (Ano passado a editora, finalmente, relançou, ainda que em pockett, o Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt.)

Pois bem, O Leilão é uma maravilha. É o Pynchon brincando com as palavras em estado de plenitude. Suas duas primeiras páginas são tão perfeitas, brilhantes e iluminadas, que sempre me causam uma espécie de desobstrução mental quando as leio. É ler o assombro da personagem diante o que o destino consubstanciado na ortodoxia cartorial da realidade americana do final da década de 60 lhe apronta, e um descongestionamento ampliando pela nuca acontece em minha cabeça. Leio essas palavras sentindo a felicidade extrema que toma Pynchon ao escrevê-las. Ali ele já propõe, traça a trilha da intuição do roteiro, e executa com uma leveza mestre tudo o que aprendeu nos campos literários e na percepção do esoterismo da existência. Há uma profundidade bastante séria na leveza desse livro, que só se assemelha à exploração filosófica de Kafka e William Blake. E a grandeza de O Leilão está, paradoxalmente, na contra-mão da grandeza dos outros monumentos literários do autor: é um jogo de enigmas que não esconde ser uma narrativa pura. É o mais flaubertiano romance do mais sterneano dos romancistas. Eu faço constantemente o teste: abro em uma página a esmo e leio, e o quanto me surpreende ver que são as frases mais simples e diretas de Pynchon. 

A leitura de Pynchon sempre me causa uma alegria praiana, como se eu revivesse lembranças de uma reencarnação passada que me encontra no meio da simpatia conjunta dos hippies sessentistas e dos out-siders arthurianos que os gerou. E essa alegria é a mais depurada quando leio O Leilão. Harold Bloom, um dos propagandeadores de Pynchon, disse que esse romancinho está entre os maiores do século XX. Eu concordo em absoluto.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Memorial dos vagões escuros


Há uma diferença de visão quanto a assassinos seriais que revela o tipo de fixação iconográfica pela cultura de morte violenta tida nos Estados Unidos e em alguns países da América Latina. Os EUA, país por natureza onde esses assassinos ganharam uma personificação elegante que os aproxima de anjos sentenciadores atrás de catarses pessoais na escolha de suas vítimas, alimenta uma indústria em torno de seus matadores seriais que parte da vedetização de rostos estampados em camisetas até o leilão de objetos periciais de cena de crimes_ o que revela a prestimosidade e corrupção das instituições do estado na séria e organizada exploração desse nicho de mercado. Tudo é feito num nível de elevada sofisticação do fetiche, numa mestria em depurar todo sinal de tragédia e sofrimento de vítimas e sobreviventes, oferecendo a assepsiada plasticidade com a mesma inofensiva beleza da logomarca, de tal forma que essa vanguarda do gosto transfundido para o campo sem culpa muito além da moral é uma das revoluções de marketing que os EUA pode vangloriar ter criado. O assassino serial é vendido com a mesma catarse com ligações imediatas com a felicidade que uma Coca-Cola; mesmo consumidores que não adquirem a reprodução direta do rosto de Charles Manson em uma caneca usufrui do produto pelas inúmeras formas de compras derivadas de jornais, dos filmes, dos livros, música e dos canais a cabo, dedicados em primeira instância a repercutir o êxtase do assassino.

Uma das cenas clássicas no imaginário americano do angelicismo do assassino serial é um homem solitário andando a pé por uma das grandes rotas continentais que cortam o país, usando jeans e cabelos compridos, óculos redondos e barba, transmitindo o anacronismo perigoso mas irresistivelmente sedutor de alguma antiga ideia morta, o hippieismo, a dissolução sexual novidadeira, as aventuras do mar de um marujo caído em desgraça expulso da corporação, a abstinência voluntária ao capitalismo. Esse homem é um desagregado social e um justiceiro cuja falta de profundidade filosófica em  seu gosto para matar é parte de sua liberdade e sua ausência de peso (ele próprio é a lei e não a hermenêutica em torno da lei), e por isso é tão imprescindível parar o carro e deixá-lo se sentar no banco do passageiro. É tentador se submeter a ele, no isolamento do deserto idílico do país onde os sonhos são creditados à predisposição histórica da miscigenação racial e de uma geografia para a qual convergem os perseguidos e os desgarrados; o povo revolucionário sob a crença redentora da democracia e do protestantismo, a terras ilimitada por onde vagabundos inominados transitam por todos os cantos antes de se tornarem executivos dirigentes de mega-empresas. Aceitar que um assassino serial entre no carro é entrar em contato físico com os poderes da história, ter a oportunidade de uma conversa com Deus, como no episódio de Star Trek em que os tripulantes da Interprise atinge os limites do universo onde Deus mora; Deus com sua pureza de intenções cuja mente inapropriada de seus interlocutores não consegue perceber nada além de uma maldade apurada e ultra-exponencial.

Essa característica divinatória do assassino serial vem tanto da sensação de plenitude anestesiada da ideia de viver-se na Jerusalém do consumo americano, em que a aproximação desarmada ao assassino nos retira do torpor, quanto do desdobramento último a que chega a progressão dessa catarse na fulgurante revelação de que ele_ o assassino_ representa a acusação de nossa falsa posição, de nossa queda em um engodo que simula plenitude mas é apenas a simples corporificação da compra e venda rotineira. A astúcia do produto não consegue ir além do esgotamento de seu conteúdo teológico supérfluo; o saciamento nunca oferecido do arrebatamento que o assassino tem a oferecer nos alivia da supressão súbita da carga de serotonina, e o pico da depressão advinda por se defrontar com a pobreza insubstancial da imagem esgotada exige que um outro prosseguimento do fetiche seja oferecido imediatamente. De nossa poltrona e do refúgio caseiro, nos agarramos a um novo pacote de aquisição que traga a sensação de pertencimento das Távolas Redondas, dos desertos inóspitos lá fora e dos cavalheiros templários de um mundo ideal e legitimo. Precisamos de recapitulações urgentes do assassino, do vagão escuro e da lâmina em riste que Manson disse quase numa abusada lírica da catarse em uma de suas entrevistas mais conhecidas.

A segunda cena clássica é a do assassino urbano, menos poético e menos independente, cujo excesso de vínculos com o material exuberante da cidade o torna atrativo por outros meios, pelo que ele consegue mostrar de animal inteligente totalmente adaptado à vida moderna. Se o primeiro é um escape para a volta da primeira utopia, o assassino urbano, em seu furgão e sua janela aberta através da qual ele alveja a vítima com um disparo acionado pela mão esquerda, é o socorro da distopia. O primeiro é uma emersão, o segundo é uma imersão. O segundo não quer fugir de lugar nenhum e não é um anjo; ninguém mais que ele está instalado com absoluto domínio e conforto em seu habitat natural. Não é um assassino esotérico como o assassino caçador das estradas, mas um assassino que tem uma similaridade com os abutres e seres decompositores do reino fúngico, através de sua função social de fazer sumir um certo padrão de lixo humano. O assassino serial urbano é o herói errático das estatísticas, o desvio padrão que na mente do consumidor é responsável por parte das cifras numéricas correspondentes a um hipotético controle populacional que não vem do câncer, dos acidentes de trânsito e dos assassinatos domésticos. Seu louvor popular calmo vem de que ele é um deus ex-machina para a solução de enredos das depravações naturais das metrópoles, para fazer abduzir prostitutas, homossexuais e cidadãos na escala mais baixa do darwinismo que sucumbem pela distração e falta de sorte. Ele é o gladiador de certa forma muito cansado, que tem algo do servidor de expediente que bate o ponto e anseia pelo sofá de casa e pela aposentadoria, que faz a tarefa de saneamento que intimamente necessita o consumidor que observa a arena de suas casas fechadas das quais nunca saem após as 18 horas. Daí que perceber a preferencia nacional por um ou outro revela em que estágio está a sociedade. Nas décadas de 40, 50 e 60, por exemplo, o assassino caçador esotérico das estradas predominava, o assassino que fez a fortuna de Truman Capote, de Cormac McCarthy futuramente, os Doors e do comércio em torno dos assassinatos Tate-LaBianca. Quando o bucolismo beatnik ficou defasado e a América entrou em sua era Reagan e seu avanço modernizador para as grandes cidades, o assassino decompositor suplantou por completo o primeiro como objeto de culto, por seu eficientismo, por seu pragmatismo contra-romântico, fazendo a fortuna de Norman Mailer, Easton Ellis, das séries televisivas metalinguísticas como Dexter, e do cinema como nunca antes visto.

Há dois casos memoráveis de assassinos serias urbanos na literatura contemporânea. O assassino que dispara do carro em Submundo, de Don Dellilo, e o assassino por detrás das centenas de mortes de mulheres na fronteira entre os Estados Unidos e o México, em 2666, de Roberto Bolaño. O assassino de Dellilo nos é mostrado de maneira muito corriqueira, muito humana, bastante longe do naturalismo opressivo e soturnamente patológico dos assassinos de A Besta Humana, de Zola. Podemos conviver com ele e compartilhar seus conflitos, na comunidade de desabafos clínicos da psicopatologia cotidiana em que todo mundo tem uma anomalia mental compartilhável. Delillo nos confronta com nossa falta de suspense quando ele faz digno de que nos espelhemos em um matador absorvido pela luminosa solidariedade da tarde. Sua compulsão por matar é regredida em importância a um nível prosaico de desconserto de perspectiva em que está submetido a artista plástica que pinta sucatas de aviões no deserto e do empresário que trabalha com a reciclagem de toneladas de lixo internacional. É o assassinato depurado de fetiche que David Fincher quis passar em Zodíaco e Spielberg em desprezar o amuleto excitável da representação do assassinato de Lincoln. Poderíamos nos identificar com um serial killer, nesse estágio de ultra-humanização motivada por nossa posição como consumidores incontroláveis para quem especulações livrescas já não conta em nada?, é a pergunta perigosa que Dellilo nos faz no excepcional Submundo, ele que pensa seus livros trancado por seis meses em quartos escuros, como disse um crítico. Já Bolaño nos oferece o assassino serial das Américas subdesenvolvidas, como nos oferece Juan José Campanella no maravilhoso O Segredo dos Seus Olhos: uma aberração de nossas moléstias do passado de aceitação política, um fantasma do sub-consciente de nossa história que se encorpora e ganha força em cada vez que os ditirambos de nosso destino traça o ato cômico de mais uma subserviência coletiva.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

O Dickens de Bogotá



Devo confessar que a literatura produzida na juventude dos grandes escritores_aquela escrita fresca, ainda exultantemente desequilibrada e carregada de uma auto-indulgente pretensão_ não me atrai muito. A maior parte dos "primeiros romances" que desova nas livrarias em reedições festivas por algum advento literário em torno de um velho escritor recém premiado com o Nobel, ou o Booker Prize, ou o Pulitzer, não apela a nenhuma curiosidade de leitor em mim. Basta lembrar o quanto são tristes as primeiras investidas de um Faulkner nas letras, e já me ponho bem distante dessa linha de estudo antropológico de desencavar da terra bruta da adolescência os vestígios premonitórios de como o organismo dali derivado se aprumou e conseguiu se manter em sua envergadura adulta. Porém, tenho uma exceção sentimental: os textos do Gabriel Garcia Márquez de quando ele era um efebo de 19 anos, compilados no Brasil pela editora Record no volume 1 das obras jornalísticas do autor, intitulado Textos do Caribe. Leio-os desde que eu mesmo tinha 19 anos_ foi a primeira obra do colombiano que li após Cem Anos de Solidão_ e volta e meia retorno à minha edição antiga, publicada pela mesma editora, em dois volumes. São textos frescos, muitos de uma ingenuidade corajosa em que, inadvertidamente, se revela a falta de escopo interior disfarçada pelo desbravamento algo desesperado do autor pelos seus talentos literários. Alguns, ou muitos, são francamente ruins, mas existem pérolas que podem ser colocadas entre o que GGM escreveu de melhor em toda sua bibliografia, e mais um sem número de crônicas soltas e que não falam absolutamente de nada, mas que se lê com deslumbramento.

Essas crônicas foram apelidadas pelo jovem GGM de "jirafillas", pois eram publicadas em colunas pescoçudas do jornal colombiano "El Herald". O mais curioso e gratificante delas é a energia de Márquez, sua fé inabalável na escrita, o quanto a pressa de entregar um texto por dia oferece ao leitor conhecedor de sua futura grandeza uma generosa visão na oficina de rascunhos do romancista. Há mostras claras de que Márquez já trabalhava em Cem Anos de Solidão desde essa época, o que confirma suas declarações de que a escrita dessa obra lhe custou um ano e meio de exercício físico, mas trinta anos de maturação da ideia. Tais mostras são os vários rascunhos publicados no jornal, em que aparecem os personagens ainda sem nome, ou com reparos de nomes que deixam antever suas encarnações finais, ou com nomes trocados, mas que, por mais que sejam diáfanos na concepção de seu criador, apresentam as condições básicas da solidão e da loucura triste do selo garciamarqueano. Na época, GGM oferecia seus rascunhos como sendo de "uma novela em que estou trabalhando já faz anos" (aos 19 anos!), e que tinha o nome provisório de "A Casa". Afora essas maravilhas, assinadas com o nome verdadeiro do autor, há as tantas fantasias despirocadas em que ele, talvez para marcar o caráter experimental, assinava com o pseudônimo "Septimus".

Esses outros textos tem a frescura dos sketches by Boz do Charles Dickens adolescente. Vemos nas proezas verdes de Garcia Márquez o mesmo ilimitado tiro no escuro da investida no terreno da criação que vemos no inglês, de forma que a incompreensão e o rebuscamento de algumas partes de pura febre literária perdem em clareza mas ganham em ousadia e falta de pudor, em transgressão juvenil às normas. Daí que os retratos de personagens bogotanos são deliciosos, os redatores madrugadores dos jornais; as velhas matronas das casas desoladas de sol; os feiticeiros dos povoados assolados pela chuva eterna, perdidos na floresta tropical; a índia de pano colorido na  cabeça que viaja no trem, altiva e esnobe; os tantos intelectuais shawnianos que transitam temporariamente pela cidade colonial onde nasceram mas cujos destinos é deixarem o jovem cronista esbaldado na mais profunda nostalgia ao emigrarem em definitivo para Nova York ou Paris. Esses textos são cheios de chuva, de uma graça tocante e uma certeza da predestinação  inabalável (todas as promessas feitas pelo jovem GGM são cumpridas), carregados de móveis de madeira em hospedarias transitórias. Uma certa vez, antes da internet, planejei mas não realizei a proeza quixotesca de escrever ao velho Máquez para que ele voltasse a essa imperfeição e liberdade salvadora de sua juventude, e parasse de vez com as fúteis besteiras perfeccionistas e sem gosto que vinha produzindo após Nos Tempos do Cólera

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Bolaño no livro de Javier Cercas


O começo de Soldados de Salamina, o livro baluarte de Javier Cervas, me provocou desânimo. Avancei devagar pela primeira das três partes do romance, a leitura estacava, meus olhos percorriam as estantes atrás de algum outro livro que me retirasse da obrigação daquilo. Não havia nada de novo na empreitada do autor em desvendar um evento muito secundário da história de seu país, em desencavar um escritor mediano já esquecido das hordas do passado e investi-lo de interesse pela perfídia de ter sido um misto de traidor e alguém filosoficamente consciente da inutilidade em ter escapado da morte certa para ser um mero vivente cotidiano. A narrativa de Cercas é competente nessa primeira parte, seu diálogos são precisos, suas observações mostram aqui e ali mensagens de um grande arte escondida, de um talento que ameaça desdobrar-se da linguagem jornalística e transcender da reportagem requintada para uma obra genuína, e é justamente essa suspeita que me irritava, pois a via recrudescer sempre, sem cumprir a promessa. O que atrapalhava que eu gostasse de Cercas é a enorme sombra de seu conterrâneo e homônimo, Javier Marías, e a expectativa inercial de que eu fosse obter a mesma imersão profunda dos livros de Marías nesse livro de Cercas. Mas tudo bem: enfrentemos a narrativa despretensiosa e leve, fluida tal qual um rio dos bosques espanhóis pelos quais se refugiou o personagem Rafael Sánchez Mazas. Aceitemos a grande humildade de Cercas na escrita.

Ganha-se na perseverança. A segunda parte do livro, a que se centra de vez na vida de Sánchez Mazas, oferece um Cercas excessivamente seguro de si, um Cercas apaixonado pelo tema e pela escrita, a ponto da excelência encontrada aqui formar um descompasso com aquelas 75 páginas iniciais. A segunda parte, intitulada Soldados de Salamina, é soberba, de enorme beleza e sensibilidade. Acredito que seja uma das mais satisfatórias entregas que tive nesses últimos anos. Cercas simplesmente se apresenta exultante nessas páginas. O que se poderia dizer em desfavor dele aqui seria sua desmascarada entrega à voz de Garcia Márquez: há vários períodos que emulam com abuso os cacoetes epidêmicos da leitura desprotegida do autor de Cem Anos de Solidão, chegando Cercas a copiar parte da famigerada primeira frase deste romance em alguns pontos (além de arremedos borgeanos evidentes mas não deletérios, como essa frase, encontrada na página 117: "O fato, que pode parecer estranho, não é totalmente inverossímil.") Mas Cercas, talvez involuntariamente, traz essas características (que estão longe de serem limitações) para seu lado, provocando deslumbramento no leitor quando consegue mostrar sua própria voz naquelas que são as passagens mais belas do livro. A conclusão estoica e irredimida da vida de Mazas, por exemplo, é comovente (páginas 140-1), e em nada fica a dever às melhores coisas que Márquez e Borges escreveram.

A terceira parte do livro é um deleite para os amantes da literatura latino-americana, sobretudo os leitores de Roberto Bolaño. Uma das famas de Soldados de Salamina é o fato quase errático de Roberto Bolaño ser um de seus personagens, antes de Bolaño chegar a ser o portento das letras que é hoje e antes mesmo de chegar a ser conhecido fora de um círculo restrito de literatos. Tanto que Cercas apresenta Bolaño desta forma: "Um de meus primeiros entrevistados foi Roberto Bolaño. Bolaño, que é escritor e chileno, vivia já fazia muito tempo em Blanes, um povoado litorâneo situado na fronteira entre Barcelona e Gerona; tinha 47 anos, um bom número de livros nas costas e esse ar inconfundível de camelô hippie que aflige tantos latino-americanos de sua geração exilados na Europa." E os diálogos entre Cercas e Bolaño são impagáveis. É impossível não se emocionar com Bolaño aqui (Cercas diz que as falas do chileno aparecidas no livro foram gravadas, o que sugere que são apresentadas ipsis litteris). O que imediatamente chama a atenção são as diferenças entre esses dois autores: Cercas é um escritor indissociavelmente humilde, sem nenhum pudor em reconhecer sua medianidade, tanto que se assombra ao descobrir que Bolaño leu seus dois primeiros livros obliviados (eu leio até papel caído na rua, explica Bolaño). O Bolaño de Soldados de Salamina, quando recebe o diagnóstico médico de pancreatite, diz que sonhou estar um um ringue diante um imenso lutador de sumô, e sentiu uma tristeza infinita por ver que iria morrer antes de escrever tudo que tinha na cabeça, todas as pessoas que conheceu pelo mundo e foram mortas na tentativa de externarem suas vozes jovens contra a realidade, e que não poderiam ganhar através dele a página escrita porque ele seria morto por um oponente oriental implacável. As falas de Bolaño aqui, sendo literalmente dele ou não, são obras-primas por si mesmas. Lê-se isso com lágrimas nos olhos, um aperto no coração, uma certa saudade ilógica, e um quê de felicidade incompreensível. Ouso pensar que Bolaño deve muito de seu despertar a essa sua revificação promovida por Cercas. O chileno aqui se mostra um cara simpático, acolhedor, falando de tudo com "uma estranha paixão gelada, que no começo me fascinou e depois me incomodou" (Cercas)

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Não me contou essas coisas por quê?

Didatismo perdoável da foto diante a falta de tempo em procurar uma mais condizente


O que um objeto de consumo não faz! O fato é que depois que trouxe a nossa televisão de quarenta polegadas LED da loja para casa (na verdade trouxeram-na, naqueles caminhões), e a coisa estava bem instalada em seu pedestal por sobre o raque da sala, como uma evidência da mais perfeita e sofisticada matemática alienígena, minha esposa suspira, olha para mim agradecida e diz: "e pensar que quando nos conhecemos você tinha uma televisão de quatorze polegadas, com disco rotatório para a mudança de canais, e queimada de um lado...". Eu olhei-a de volta um tanto desconfiado, ou mais precisamente um tanto tendente à decepção, pois tanto ela quanto eu e as crianças afinal pouco ligamos para ébanos formidáveis e as luzes coloridas, e era estranho ver que ela estava por começar um discurso bem consumista do tipo "como éramos antiquados e não sabíamos". Mas a Dani, mantendo as expectativas de caráter desses oito ou nove anos em que nos conhecemos, arrumou a conversa, ainda que meu espanto mudava de rumo para uma cômica lucidez em me mostrar o quanto eu era um personagem de Thomas Pynchon e não sabia. Rimos bastante; eu caí numa sucessão de gargalhadas compulsivas que me tirou lágrimas dos olhos e me fez doer o diafragma. A Dani: "geralmente, ou em quase absoluta percentagem dos casos, as mulheres são levadas a terem interesse pelos caras que tem carro, que demonstrem um certo poderio financeiro, uma certa expectativa futura; daí que você nunca poderia duvidar de meu amor, pois na época em que passamos a namorar você morava em uma casa que havia sido um puteiro, aonde cinco pessoas haviam sido assassinadas; nós andávamos por toda a cidade à pé; e quando nos deitávamos no colchão da sala, assistíamos a uma tv queimada de um lado."

Olhando a cena como um evento isolado não se pode culpar de dar-se ouvidos aos tantos diagnósticos analíticos de que tais revelações se façam diante um aparelho de televisão. Passei uma semana em progressivo arrependimento por ter comprado a tv e ter sido engolido por um surto de consumo: comprei, um dia depois, um aparelho de blue-ray, e assinei canais a cabo. Enquanto mantinha a satisfação semi-risonha da posse, cada vez mais eu percebia a nova tv como uma ameaça ao trabalho de três anos de educação que eu vinha promovendo com meus filhos. Imaginava-os definhando em seus interesses demasiadamente sinceros em virem para meu colo carregando um livro e pedindo para que eu lesse para eles. Pensava com amargura cada vez mais acentuada que eu acabara de decretar o fim de uma etapa festiva, e outra começava, em que a vulgaridade da tela tomaria conta dali para a frente. A Dani e eu ríamos, e na minha versão do que ela dizia, ela aparecia como uma mulher a qual a providência me enviara em uma época em que eu estava enojado do tipo de mulher em que os utensílios comezinhos da sedução financeira eram as peças indispensáveis para a atração. Há tantas coisas que eu não falo para ela, e que ela ficaria cheia de estranhismo se eu falasse. Não o falo pela minha predisposição inconsciente de não falar muito de mim (escrever sobre mim é outra coisa). 

De forma que me peguei contando para ela sobre  as últimas moças com quem tive um affair, antes de que nosso namoro começasse. Eu estava  passando por uma espécie de crise dos trinta anos, me sentia envelhecendo rapidamente. Essas mudanças súbitas sempre ocorreram comigo; eu era um magricela chamariz de assaltantes quando andava pelo centro da capital, e em um mês de férias do segundo ano de faculdade, de repente, como o Capitão América, uma série de hormônios se ativou em mim e eu ganhei corpo; perguntavam se eu estava malhando e consumindo esteroides. Assim foi com meu profundo cansaço com as mulheres, em meus trinta anos. Não tinha mais um pingo de paciência em enfrentar as preliminares, as conversas sobre nada, os sorrisos cosméticos, as mentiras e danças avestrusinas de acasalamento. Uma dessas moças me chamou atenção pela beleza desprotegida, e por ter me dito, enquanto servia o café no bar de manhã, que seu plano de vida era estudar jornalismo. Senti um reascender de interesse ao descobrir que ela tinha Aurora no nome. Saímos um fim de semana e como foi difícil engolir aquele pedaço de peixe frito com goles de cerveja enquanto escutava ela falar sobre o concurso municipal de miss que havia ganho em seu povoado natal; faltava-me assunto, e eu me vi com todo o peso da idade que se me apresentava como uma verdade insofismável na frente daqueles campos de sol em que a juventude dela se mostrava despudoradamente. Meus recursos literários se apresentavam em overdose: para cada frescor da moça, me vinha a certeza de que eu gastara muito tempo da minha vida com os livros,  e agora estava perdido em definitivo para aquele tipo de trivialidade. Lembrei do repúdio de V. S. Naipaul olhando a pele branca de uma mulher nua que acordava de seu lado, "como um pudim"; lembrei das memórias de Camus no Brasil, sentindo um tédio mortal diante uma mulher que se esfregava libidinosamente nele. Eu olhava para o rosto lindo, os olhos recém entrados no emprego da astúcia e do auto-conhecimento do poder que tinha com seu corpo, mas já mestre por intuição em todas essas artes, e só me vinha a imaginação calma de como era possível entender em primeiro plano um assassino serial a quem não interpunha nenhum sentimento de remorso em estrangular aquele pescocinho sobre o qual pairava uma cabecinha tão estúpida, tão corrompida desde cedo pela influência fácil das exigências da velha mídia. Dois dias depois ela bateu em minha casa com uma cara de choro, um biquinho da boca disposta a tudo, desde que eu pagasse um ensaio fotográfico para ela em um estúdio local, algo imprescindível para a sua carreira de modelo e que a livraria das labutas do emprego de garçonaria.

Minha esposa ouvia enlevada e em completo silêncio (uma reação assustadora vindo dela, e que só me motivava e falar mais, visto o perigo de tentar compreendê-la tão rapidamente). Passei para o segundo caso de campo, uma moça linda, alta (omiti a enfática sobre esses detalhes), com quem saí por uns dois meses em um relacionamento aberto e sem compromisso, mas que tive qualquer vestígio de vontade de encontrá-la novamente desaparecido quando ela me mostrou um álbum de retratos. Ela tinha uma fimbria mais enérgica e mais estoica diante a realidade do que a primeira, o que me fez suportá-la por mais tempo. Era um tanto louca e abusada, sem biquinhos; deixava a porta de casa aberta para mim e eu a encontrava de bruços no tapete em sono profundo, o short meio deslocado da cintura, a camiseta mostrando a lisa barriga morena, e a cara de absoluta entrega ao sono. Era muito natural e tinha indícios de deficiências saudáveis de higiene (nada inusual, mas correspondente àquilo que um escritor cubano da moda disse ser inerente e indissociável ao sexo). Mas aquele álbum de retratos... uma mãe e um pai de rostos tão desarmados, uma casa com móveis de fundo mostrando tanta disciplinada luta pela aquisição, um banho conjunto em um rio em que as pernas e seu corpo escultural acusavam um não sei o que em que ela não se esforçava muito em disfarçar, uma infância impossível de desaparecer mesmo aos 22 anos, uma linha vestigial nítida demais que a ligava àquelas antigas necessidades, tanto que para isso ela saíra de casa e para isso ela julgava que tinha que conduzir a sua vida, para a supressão necessária do idílico_ uma forte e quase doentia lucidez filosófica de que tudo era transitório e ela deveria se aprumar o quanto antes possível para não ser destruída pelas mudanças. Mas ela era tão suavemente despreparada para isso. Eu olhava para aqueles velhos rostos de seus pais nas fotos, que apostavam em uma capacidade de competência a nascer nela do nada, e sentia uma bruta de uma vontade de sair dali e não vê-la nunca mais. E foi o que fiz; só voltei a vê-la na fila que se formou na capela onde acontecia o velório de um rapaz, um dos filhinhos de papai da cidade morto a tiros em uma de suas desforras de poder, em que ela parou por um momento diante do cadáver posto no caixão, tocou com sua mão o ombro da mãe que chorava e olhava a todos com um descompasso de incredulidade, e de seu rosto mesmo corria tantas lágrimas que não pude evitar de pensar nos graus de catarse pública daquilo.

Nunca me contara essas coisas porquê?, a Dani perguntou, se achegando em meus braços, a grande televisão como o monólito kubrickiano observando tudo com uma sultanesca indiferença de frente a nós. Sei lá, às vezes os personagens reais de Thomas Pynchon precisam de motivadores do fino lixo mercadológico para se fazerem mais legítimos.