sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Uma Lista Despudorada de 20 Melhores Contos (I)

Os prazeres da literatura são amplos e comportam os extremos dos casamentos prolongados dos romances de mil páginas e os casos de amor ligeiros dos contos de dez parágrafos. Contos se vendem como coisas descompromissadas, que nos custam o tempo de uma sesta ou da hora que precede o sono da noite, mas que, os melhores deles, tem uma provisão de pequenas armadilhas que reverbera em nosso interior por toda a vida e por vezes nos vemos retornando à intensa presença que incorporaram em nossa lembrança. Os contos relacionados abaixo são o que pude pensar de melhor que já me fora apresentado ao longo de quatro décadas, muitos deles sendo minha iniciação na leitura, e muitos deles sendo ligados ao gênero de contos de terror, o qual está diretamente por detrás da fundamentação dessa espécie de narrativas. A lista abaixo contém apenas contos, não comportando narrativas mais extensas que, antigamente, costumava-se chamá-las de novelas.



1. Uma História Simples, de Anton Chécov.

Esse conto apresenta diversos títulos em suas traduções para o português. Encontrei-o com o nome Nadja, outra vez como Brincadeira. É dificílimo, senão impossível, escolher o melhor conto de Chécov; poderia fazer uma lista dos meus 50 contos preferidos desse maior contista de todos os tempos, e ainda assim teria a impressão de incompletude. Mas esse conto, além de ter sido uma das primeiras incursões minhas na leitura, tem uma carga de emoção, uma nostalgia, e uma perfeição estilística que pode bem representar toda a grandiosa obra desse autor. Primeiro, por ser um de seus contos mais curtos (tirando os contos quase crônicas da primeira fase de Chécov, esse talvez seja mesmo o seu conto mais conciso), tendo uma página e meia; segundo, por condensar nesse milagre espacial o ultraje de ter todos os maiores temas de Chécov: sua ironia, seu coração terno, seu compadecimento pelos mais simples, seu humor doloroso, e até uma de suas subliminares críticas sociais. A história é sobre as descidas de trenó entre o narrador indeterminado e a moça Nádia, em que, no auge da velocidade da descida, o narrador interpõe a brincadeira de dizer aos ouvidos de Nádia a frase Nádia, eu te amo. A moça, repetidas e repetidas vezes, insiste para que os dois desçam novamente, para confirmar se tal declaração vem mesmo do narrador. É uma sonata, e deixou em mim a marca perpétua da beleza da escrita de Chécov.



2. O Coração Denunciador, de Edgar Allan Poe.

Poe foi um genial escritor irregular. É um autor para adolescentes, mas isso diz mais que o errático pejorativismo inerente ao rótulo. Não conheço adolescentes que se iniciaram na leitura através dos contos de terror e detetivescos de Poe que não sejam adultos apaixonados em leitura. Poe foi grande poeta, (na minha lista de maiores poemas, O Corvo ocuparia o segundo ou terceiro lugar), um ensaísta fraco, e um produtor regrado de poucos contos que se tornaram fundadores de uma das escolas da literatura. Nunca vi nenhum escritor dizer ser influenciado por Poe (tirando seus filhos estilísticos como H. P. Lovecraft), mas o débito que se tem às suas atmosferas, à sua maldade extraterrena, a seu inferno particular generosamente oferecido em suas ruas parisienses soturnas (curioso que o fog londrino clássico criado por Poe aconteça, na verdade, na Paris de Auguste Dupin) e seus assassinos perturbados pela culpa. E o Coração Denunciador me afigura como exemplo dessa tensão e desse fator inesperado que tanto foi imitado pelos contistas que se seguiram a Poe.



3. A Pata do Macaco, de W. W. Jacobs.

W. W. Jacobs é um autor desconhecido por completo, afora esse conto de terror que é um verdadeiro tesouro raro e uma maravilha indiscutível. Em três páginas ele constrói um crescendo que enche de esperança aos pobres pais de um filho morto, para se transformar em uma ameaça inenarrável que parece vai levar os personagens e ao leitor a se defrontar além do limite que consegue suportar a razão. Um dos contos mais perfeitos e impactantes que conheço.


4. Eles, de Rudyard Kipling.

Não saberia expressar o quanto amo esse conto de beleza indescritível. É um conto mais longo dessa lista. Escrito pouco depois da morte da filha do autor, cada linha tem uma intensidade e uma carga emocional única. A história é narrada em primeira pessoa, começa com o narrador dirigindo seu carro pelos campos da Inglaterra (Kipling foi um dos primeiros automobilistas da Europa), e chegando involuntariamente a uma casa suntuosa aonde mora uma mulher cega que tem como companhia ruidosa um grupo de crianças que nunca são vistas, mas entrevistas. No meio do conto, quando estão a mulher cega e o autor conversando no jardim, tomando chá, acontece uma dessas reações de atemporalidade suspensiva no leitor, um desgaste severo da linha da realidade: um efeito de estocada rápida de uma verdade inapreensível que sugere um infinidade de oportunidades ao pensamento. A conclusão do conto é arrebatadora, mostrando o quanto a desolação pessoal do autor se interligava à tragédia suscitada das perdas humanas para a guerra. Um importante crítico sentenciou que estas páginas são as maiores da literatura inglesa; não ouso contradizê-lo. Kipling é um contista genial, em toda acepção do termo; não à toa Borges anunciou ser uma das felicidades de sua vida.



5. Montes como Elefantes Brancos, de Ernest Hemingway.

Hemingway, se não está esquecido por completo como romancista, caminha a passos largos para isso; mas poucos contistas foram tão certeiros quanto ele no século passado. Este conto, também muito curto, repete de forma eficaz o poder de não-dizer do estilo insinuador de Henry James. Toda sua força se concentra no diálogo entre um homem e uma mulher, enquanto esperam o trem chegar na estação. O homem aos poucos tenta persuadir à mulher que o aborto que ela está por fazer é seguro e a melhor coisa para o futuro de sua relação. É estupendo como Hemingway, um potro-macho muitas vezes ególatra e narcisista, que tratava a literatura como sendo um prosseguimento sem ruptura da prática da caça e do boxe, e que dedicou boa parte de sua produção a falar sobre os sabores dos drinks infinitos que tomava e sobre culhões, consegue transmitir tanta densidade emotiva e tanta miríade de interpretações, utilizando o que há de mais prosaico e coloquial na escrita. Estas três ou quatro páginas concentram um universo dramático que remete às guerras, ao existencialismo, à paz em separado, ao exílio, à efemeridade das relações humanas, à violência dos atos sociais instituídos. Páginas como esta, e outras como as de Os Assassinos, Gato na Chuva, Fora de Estação, estão acima de Hemingway, no mesmo nível da arte esotérica mais refinada produzida em qualquer tempo.



6. Arábia, de James Joyce.

Um dos contos de Dublinenses e uma pílula onde está embalada em poucas páginas o estranhamento, o flaneurismo, a Dublin mítica, a falsa frieza impassível diante a imensidão da existência, e a escrita inigualavelmente plena que viria em Ulysses. Tal como nos outros contos do volume, há uma lucidez aqui de arrepiar os cabelos da nuca; é dado uma visão translúcida de manhã após a chuva (uma chuva irlandesa) ao leitor, e todos os objetos são vistos em sua integridade infinita (para citar Morrison e, em decorrência, William Blake). A história fala de alguns garotos que cabulam a aula para vadiarem pelos portos e vielas de Dublin. São nesses contos com enganosa estrutura pueril que os milagres acontecem, e Joyce é o maior santo milagreiro da literatura. No núcleo do conto está o mal entendido de um encontro entre o garoto principal da história com uma espécie de marujo mendigo, onde tudo se insinua mas nada fica claro, e por mais que se continue pensando por todos os anos que ainda durar a vida do leitor, as interpretações se complicam e tudo se obnubila. Fala-se tanto das maravilhas de Ulysses, que o gigantismo de Joyce_ talvez o maior escritor do século XX_ escamoteia a beleza de suas obras que ficam à sombra de seu grande romance, como é o caso destes contos.



7. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, de Jorge Luis Borges.

Borges, como é de conhecimento geral, nunca escreveu romances (apesar de certo presidente que alegou ter lido todos eles escritos pelo argentino), mas é o único contista que tem como característica mais significativa ter produzido contos que contradizem a própria norma de episodicidade e foco que define o gênero. Os contos de Borges valem por romances, outros valem por epopeias e tratados científicos, outros bebem com igual fecundidade nas fontes que criam as religiões, outros ainda estacionam numa região anterior à ironia e parecem objetos consolidados na realidade e não as brumas de sonhos retóricos que realmente são. Todos tem a marca do labirinto que forjou os sonhos desse cabalista que dizia não ser factível ao homem conhecer os mistérios da existência, e o orientalismo setecentista das listras do tigre nas quais esse mistério se revela em todo seu enigma inalcançável. Por isso seus contos são infinitos, e os que estão em Ficções e O Aleph possuem a mesma perfeição e assombro. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius me parece ser um dos mais maravilhosos e instigantes, em que Borges se coloca como narrador e personagem central, junto a seu amigo Bioy Casares, e descobridor por engano de páginas da British Encyclopedia que existem em variantes geográficas e nas quais conta-se sobre a cultura, a política, a religião e varias particularidades da terra de Uqbar. Todo o conto é o estudo centrípeto e periférico de nações e povos que escolheram para si uma realidade alternativa, com valorações que são quase o negativo das nossas, tanto no contar das horas do dia quanto das intermitências de sua metafísica.



8. Uma Coisinha Boa, de Raymond Carver.

Um magnífico conto. Desses que limpam a alma. Desses que trazem apaixonados para a literatura. Uma peça de delicadeza e sensibilidade tocante. Tem aqui um texto meu dedicado a este conto integral e a seu espelho assombroso produzido pelo editor de Carver.



9. Na Colônia Penal, de Franz Kafka.

Relutei se o melhor conto que já li de Kafka é este, ou O Artista da Fome, ou Diante da Lei. O que exerceu maior impacto sobre mim foi, indubitavelmente, Diante da Lei, por sua inércia desesperadora, sua impotência total. Aquele indivíduo diante os enormes portões do palácio da justiça, com o vigilante impávido que lhe diz que aqueles portões foram feitos para ele e por isso ele jamais poderia entrar por eles, é, talvez, o símbolo mais poderoso do século XX; daí suas inúmeras interpretações políticas, religiosas, divinatórias, filosóficas. Tal passagem, que tem força em si mesma, na verdade é o cerne do romance O Processo, o que, óbvio, não tira em nada o mérito do conto (existem vários contos em que seus autores os estendem em obras maiores). Mas este Na Colônia Penal realmente é uma das produções mais estilisticamente perfeitas de Kafka; os personagens estão desenhados com tanta propriedade que vemos os gestos que fazem com as mãos e as idiossincrasias de suas feições. Nestes efeitos de cena acontece o humor um tanto pérfido do conto, pois estamos diante uma máquina diabólica de tortura, que tatua no corpo de miseráveis famélicos, internos da colônia penal, os crimes pelos quais estão sendo acusados. Kafka chegou a realizar uma leitura pública deste conto na Galeria Goltz de Munique, ocasião na qual duas senhoras desmaiaram com o impacto. 



10. A Enxada, de Bernardo Élis.

Já é muito gasta a informação nas contracapas das coletâneas de contos do Bernardo Élis o anúncio que Guimarães Rosa fez de ser computado a Élis a criação de cinco dos maiores contos do mundo, em qualquer língua e em qualquer época. Rosa estava sendo absolutamente sincero _ não havia razão para que ele gastasse um preciosismo com um autor que vinha de uma das áreas da federação menos literarizada, como Goiás. A Enxada é um desses cinco contos. A história do trabalhador rural Supriano, que tenta de todas as maneiras adquirir uma enxada para realizar suas labutas no campo, e nunca consegue, é uma obra de gênio, inigualável, ácida e violenta em sua denúncia da opressão humana medieval que acontece nas tantas searas do coronelismo do país. Mas esse não pode ser reduzido à categoria de literatura regional, mas inserido entre as melhores páginas da literatura latino-americana do século XX. A tragédia dessa obra alcança uma proporção clássica, universal. Sua escrita é dura, direta, sem meios termos; o final é tão chocante quanto grandes outras obras políticas carregadas de feridas abertas típicas dos países sub-desenvolvidos como os das Américas, os africanos, asiáticos e do leste-europeu. É uma das maiores penas Élis ter sucumbido a esse sub-desenvolvimento: deixou que perdesse seu talento, foi acometido por uma enorme afasia literária em que chegou a produzir obras oficiais do estado, e no fim da vida lamentou em público, em uma entrevista para um jornal, não ter dinheiro para comprar as obras de José Saramago. Mas A Enxada ficará como uma das obras mais poderosas da literatura.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Malignidade Infinita



Ontem acompanhei meu sogro na capital para que ele fizesse certos exames médicos. O juiz, o terceiro pelo qual passa em mãos a já longa saga de seu pedido de aposentadoria, instituiu que ele refizesse todos os exames. Alguns homens bons cercam meu sogro, apesar de tudo, e o melhor deles é, contra todas as probabilidades, seu advogado. Esse homem é um senhor de 60 anos que vive na verdade dos rendimentos de uma lanchonete de comida mineira e não praticava a advocacia há 30 anos, mas pela amizade que deposita no cordato sr. Gercino, prontificou-se a pegar a causa sem cobrar nada. Pelo puro exercício da filantropia da boa vizinhança, esse senhor retirou-se dos afazeres pessoais e bateu nas alas do prédio do Ministério Público durante meses, na tentativa de fazer com que meu sogro tivesse o direito constitucional de parar com a labuta e viver seus últimos dias sobre essa terra garantidos por uma fração ínfima do espólio que por toda vida rendeu ao Estado. É um homem gordo, com uma raia de cabelos brancos que cai por sobre sua face esquerda quando está suado e com a respiração parecendo uma locomotiva prestes a soltar os pistões antes de chegar à estação_ e sempre está suado, com uma pasta marrom desgastada presa à mão que na certa é a mesma que julgara nunca mais precisar em que levava os pedidos de vistas de antigos e esquecidos clientes, antes de se desiludir com aquilo e se ocupar apenas com o paraíso dos temperos do arroz com galinha. A sua abdicação ao direito o cerca num grau espiritual tão inequívoco que as pessoas não conseguem, por puro instinto diante um dissidente convicto, dirigir-se a ele com o tratamento ditado pelo pedantismo formal: não é Doutor Joaquim, mas Seu Joaquim. Minha esposa quando fala com ele por telefone, diz "Seu Joaquim, como está o processo?", ao que ouço de longe a sua voz barítona agitada, o seu rosto sanguíneo dando os indicativos de que desta vez a caldeira da máquina explodirá sob o calor inclemente de sua desesperançada milésima visita à ante-sala do Juíz: "Hoje o juíz pediu para ver mais uma vez os laudos médicos"

Meu sogro, Seu Gercino, apesar dos agentes da estúpida e desumana e brutalmente negligente burocracia, ainda cativa mais homens bons em seu martírio. Os exames que exigiu que se repetissem um juiz que nunca viu o sr. Gercino, que se algum momento se ocupou em pensar sobre esse nome não foi além do mero léxico de sete letras iniciais grudadas em um ofício, tem o custo de mais que dois mil reais pelos laboratórios particulares. Mas o médico que o atendeu desde que foi dado o diagnóstico de seu problema realizou todos esses exames pelo sistema público de saúde, gratuitamente, desde que o Seu Gercino ficasse internado por quatro dias no hospital. Os exames ficaram prontos hoje, e o médico disse que só os mostraria para o advogado, Seu Joaquim. Assim foi. O Seu Joaquim me comunicou no corredor do hospital, quando estávamos para levar de volta meu sogro para sua casa, que dessa vez a aposentadoria se resolverá de forma imediata. E o médico disse à minha sogra, à minha esposa e suas irmãs, que o Seu Gercino pode comer de tudo, beber de tudo, passear, ficar noites sem dormir cantando, dar cabriolas. Lembrei imediatamente de um texto lido nos bancos da escola, que na época eu não pude descobrir seu significado e por isso me pareceu um texto profundo, com alguma singeleza cruel, em que o paciente pergunta ao médico  o que lhe sobrava fazer, e este responde algo assim: "dançar um fandango". 

Ontem em casa me caiu em mãos a referência de um há muito esquecido escritor que me entusiasmara na adolescência. Sheridan Le Fanu. A referência falava de um conto que tive a oportunidade de ler (cujo volume era um montículo azul de papel publicado nos Açores, por si mesmo bastante misterioso, e que fiz a graça de acentuar o mistério perdendo-o nas minhas mudanças), mas que me lembro vagamente ou quase nada, a não ser o impacto que me produziu a impressão do mal absoluto que agora via no comentário de um crítico. A história do conto era sobre um doutor que se vê perseguido incessantemente por um macaco que não para de rondar em cima de sua cabeça. Algo de "uma malignidade infinita", diz o comentarista. Li-o há 25 anos ou mais, e ainda me ficara a sugestão dessa força incansável e obcecada, surgida com o único propósito de ser o mais excepcional e idôneo possível na ação de levar tormento a um homem. Essas palavras por pouco não me reativaram todo o conto, ou pareceu ser capaz de fazer isso, tamanha a presciência que aos 15 anos tive de que existe a malignidade infinita, que dita a loucura, a indiferença e a alucinação. Há muito disso em Kafka, mas não da forma tão maniacamente sem contenção como em Le Fanu; há um conto de Kafka em que duas bolinhas saltitantes surgem do nada e seguem um funcionário de um cartório, determinadas a não abandoná-lo jamais. E não sei bem porque isso me abalou ontem. Minha atitude quanto a meu sogro é o não me envolver, não dar opinião, mas minha esposa insistiu tanto para que opinasse se seria certo aceitar que lhe fizessem quimioterapia, que só pude dizer: Se pudesse voltar, não admitiria que fizessem tal coisa a meu pai. Não precisou; o médico já vira isso. Me abstive de me meter no assunto porque, de forma que nunca supus antes, o sofrimento de meu pai me desestabilizou muito além do que estava preparado. Tenho uma desconfortável certeza de que não sou um dos homens bons a cercar meu sogro. O único exercício bem conseguido por mim foi o de parar de ver por detrás de sua presença humilde o marido e pai excessivamente severo que foi quando tinha saúde exagerada e energia descomunal. Há algo aí severamente intenso ou insustentavelmente leve, que pode ser muito eloquente ou não dizer nada, que quando penso me deixa cansado de ter um cérebro. Fica a imagem um tanto simplória demais, e que nego a explorar, de que o macaco não para de rondar a cabeça de um homem que pesa igual a uma pluma, e que pelos corredores dos tribunais e das bancadas dos juristas, vai um homem com uma esfacelada pasta de couro e sem títulos reais, tresandado de suor, em cujo encalço seguem duas bolinhas saltitantes.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Eu e a Charlize Theron em uma Ilha Deserta



Tenho um grande amigo que gasta uma substancial parte de seu tempo e uma considerável quantidade de seu dinheiro em apostar religiosamente em um dos jogos da lotérica. Quando eu era solteiro, e não havia qualquer impedimento para que ele viesse à minha casa a qualquer hora, mesmo nas horas que os povos ocidentais arranjaram para coincidir o translado do planeta com a conciliação do sono, ele chegava já do batente da porta falando em voz alta: "Agora achei! Agora não me escapa! Não, não! Agora pode ficar tranquilo que dessa vez é tiro e queda!" E eu, que sabia pela exposição exacerbada a tais jactâncias de exclamações do que se tratava, afastava a cadeira para que ele se sentasse e desdobrasse por cima da mesa o seu novo código sonambulicamente rascunhado por todas umas cinco páginas de um caderninho de espiral, onde ele arvorava sempre haver conseguido arrancar da sorte os números que daria na semana o prêmio de dois milhões de reais. Ele aparecia com uma miscelânea das mais disparatadas somas algébricas tiradas de fontes tão tresloucadas quanto frases de João Figueiredo ouvidas em programas de televisão, ou quantas vezes uma mulher desconhecida dissera a palavra "somenos" em uma conversa de rua quando ele passava, ou quantas placas de carro com o final 6 ele vira transitando de frente à sua casa em uma fração de meia hora, ou quantos dias haviam se passado desde que seu filho não lhe telefonava, e quando seu filho o fazia, quais números correspondiam às cinco primeiras letras da palavra dita inicialmente por ele pelo telefone; de forma que, se seu propósito não se sustentava além de sua inexorável fé quando os verdadeiros números eram anunciados no resultado do prêmio, ao menos ele demonstrava que sua genialidade extravagante o eximia do tédio, pois era só as apostas se abrirem para o novo jogo que ele já se embrenhava em seu universo de decodificador de sinais cifrados do destino. Certa vez questionei a ele se não tinha medo que, numa dessas, ele errasse numa intuição terrivelmente certeira e descobrisse a face de Deus nos números, ao que, com o olhar arguto perdido no ar, talvez somando os algoritmos dessa minha frase para ver se satisfazia sua estética de apostador, respondeu: "Rapaz, se eu ganhar a bolada nessa semana, eu dispenso Deus; será um a menos para ele se preocupar. Aliás, Ele pode até passar a agir contra!"

Mas duas vezes ele acertou os números corretos. A primeira estava em um boteco em São Paulo e de tanta felicidade, arremessou o antigo rádio do dono do bar pelo qual conferira o prêmio direto na rua, passando por cima dele com o carro até reduzi-lo a uma pasta, e anunciara que todos iriam beber e comer ali o dia todo por conta dele. O dinheiro ganho, ele disse, não deu para pagar o rádio, pois o campeonato de futebol que gerava os resultados fora tão previsível que meio estado acertara junto com ele. A segunda vez ganhara o equivalente hoje a 50 mil reais, que os irmãos levaram um ano depois quando a loja de tecidos que tinham em sociedade falira e só sobrara ele, dispensado da realidade pela compulsão das adivinhas matemáticas, para pegar a bomba no colo.

Eu nunca joguei na lotérica e nunca ganhei prêmio algum, até o natal do ano passado, quando a distribuidora de vinhos aonde compro meu Gato Negro me sorteou com duas garrafas de Pata Negra. Depois, passados três meses, meu advogado me liga dizendo que conseguiu um mandado de penhora on-line por parte do ministério público, com o qual eu tinha o direito de retirar um valor substancial das contas de um banco pelo processo ganho de danos morais que eu havia aberto contra este banco. O mesmo advogado, um ou dois meses depois, me liga dizendo que o outro processo que eu havia movido para revisar os juros cobrados no financiamento de meu carro havia sido dado causa para mim, com o que eu já saía ganhando a restituição de uma outra bolada. Eu abracei minha esposa na noite desse dia, perguntando-me se minha estrela havia mudado inadvertidamente e eu passara a ter azar no amor e sorte no jogo, e não o oposto, que havia sido demonstrado por quatro décadas de bilhetes de amor recebido por moças abnegadas que aceitavam sair comigo a pé, sem que eu tivesse ganho nenhum carro em lugar algum.

Pois nesse ano ganhei livros de amigos, como disse em outro texto, e a Companhia das Letras me contactou com a proposta de me enviar dois livros por mês, sob a minha escolha, para que eu os resenhe, sendo que os primeiros serão o assim manifestamente desejado por mim em outro post, Joseph Anton, do Salman Rushdie, e Os Enamoramentos, do Javier Marías. Tenho absoluto receio de que meu senso de humor desavergonhado me leve a apostar na mega-sena, só por brincadeira, para não passar pelo pesadelo de ver minha esposa saindo com meus dois filhos pela porta da frente, me deixando sozinho para sempre em uma mansão no Guarujá adquirida com a fortuna do prêmio. E este é o propósito deste post: contar essas últimas boas novas. Sinal um tanto demonstrativo do incansável ser humano mesquinho que hora em hora surge de mim; pois, semelhante àquela batida piada de que do que serviria a alguém ficar naufragado em uma ilha deserta com a Charlize Theron, se não tivesse a quem contar a imensa sorte, do que valeria para mim se não contasse a alguém?

O Carpete



Neste sábado compramos um carpete para colocarmos no chão da biblioteca aqui de casa. A ideia de comprá-lo surgiu de supetão na noite de sexta-feira, enquanto a Dani e eu víamos nossa filha Júlia deitada ao lado das estantes, de bruços, a folhear o muito manuseado Asterios Polyp. A revolução mais impactante que tanto a Dani como minha mãe viram na minha personalidade após eu me tornar pai, foi a súbita despreocupação que surgiu não sei de onde em mim quando meus filhos vão até as estantes e pegam um de meus livros. Todos sabem do fanatismo fundamentalista que eu tenho quando qualquer outra pessoa pega em meus livros; eu mudo minha fisionomia, algo do lobo se encorpora em mim e eu fico rondando o intruso intrometido até subtrair de suas mãos o volume recolhido e recolocá-lo na estante. A Dani percebe imediatamente o sinal de alerta quando alguma visita inadvertida se aproxima com ineptas intenções de manuseio dos livros aqui de casa. Uma tensão de catástrofe passa pelo semblante dela e seus olhos dançam entre a visita em estado de paulatina ameaça de aproximação e meu paralisar paranoico.

Certa vez, recebíamos um casal de tios da Dani, e a recepção ia bastante bem, dentro da mais cordial normalidade, quando, num daqueles oásis de silêncio que beira o constrangimento, após todos os assuntos diplomáticos sobre escândalos das vidas dos vizinhos, casamentos, chuvas e aquele defunto que todas as tias trazem com alegria para nos surpreender e que só agora sabemos que deixou esse nível de existência fazia meses foram repassados, e que tudo, enfim, poderia acontecer, a tia da Dani inventa de olhar fixamente e de forma prolongada para uma estante pequena de livros que ficava no canto da sala, e solta essa: "Dani, por que você não limpa aquela estante desses livros e não coloca uma coleção de peças de cristais ali! Ficaria tão bonito." Só me cortou o humor para prosseguir naquela farsa, e eu me abstive a ficar apenas nas margens da coqueteria dali para diante, pensando em colocar as três vassouras da casa atrás de uma porta para ver se a mandinga arranja de funcionar pelo menos dessa vez. Pior mesmo foi a vez em que um dos primos da Dani veio nos convidar para seu casamento (não é birra contra a família dela; eles moram mais próximos de nós que os integrantes da minha família), e, com uma admirável capacidade de prestidigitação, o rapaz cata sem nenhum de nós vermos um livro que eu havia deixado sobre a mesa da cozinha e, com um pedaço de folha apoiada na capa, põe-se a desenhar o mapa que nos levaria até a fazenda onde se realizaria a cerimônia. A Dani ficou pálida e eu fui adotando um aveludado tom azul, devido ao momentâneo interrompimento instintivo de fluxo de oxigênio, e, culpados por nossa falta de atenção, não pudemos dessa vez fazer nada além de esperar que o dito terminasse o seu trabalho de GPS na capa do livro. Até hoje está ali gravada, na capa prateada de um Michael Chabon, quantos mata-burros e quantas porteiras deveríamos atravessar, e o primoroso traçado do rio que o inspirado noivo desenhara para nosso maior esclarecimento, para chegarmos à festa que, por vingança tardia, não fomos.

Assim, quando o Eric começou a pegar os livros da estante, e a Júlia o repetiu mais tarde, qual foi o espanto da Dani ao ver que meu comportamento não mudava em nada, como se nada de perigoso estivesse acontecendo. A Dani comunicou tal prodígio pelo telefone à minha mãe, ao que o pasmo foi equivalente. E isso ficou sendo a maior alteração indiscutível que a paternidade fizera em mim. Meus filhos já amassaram capas, já riscaram à caneta uma folha da Mafalda Completa, já destruíram literalmente um volume raro e muito amado das viagens do Cousteau pela Amazônia, já sujaram de molho de tomate a auto-biografia de Gunter Grass, e já deixaram um copo com água cair por sobre um Cees Nooteboom. Agora que estão mais grandinhos, não oferecem mais grandes perigos (afinal, o que faltam fazer?). Passam as páginas com cautela, já são manuseadores treinados, e tal sacrifício, penso com orgulho, valeu a pena: cada vez mais demonstram que serão grandes leitores. Eu me vi como esses pais que não planejam as carreiras profissionais dos filhos; que eles sejam o que quiser; nada mais distante que a preocupação que sejam juízes de direito ou cirurgiões plásticos; só os deixo à mercê plena dos livros, da música, de alguns filmes, de tudo que 40 anos me abalizaram saber que pode conduzi-los para um discernimento mais independente e eficaz sobre o mundo que os espera, e que eles estejam muito bem preparados. Assim, eles terão pouquíssimas chances de caírem no equívoco do filho de 16 anos do meu dentista, que deixou os  estudos e partiu para uma escola de treinamento de jogadores de futebol em São Paulo, sob o olhar impotente e chantageado do pai.

Daí que a ideia do carpete partiu da cabeça da Dani, pois as chuvas e o frio estão chegando, e o carpete protegerá nossos filhos enquanto eles passam longas horas na biblioteca. Mas devo confessar que o que primeiro passou pela cabeça desse pai contido aqui, foi: Por que não pensei nisso antes? O branco da capa do Asterios Polyp estaria bem menos encardida!

domingo, 23 de setembro de 2012

Bob Dylan, Poeta Laureado


Mais uma vez a espera da data sempre antecipada de outubro em que se revelará o às vezes muito insuspeito ganhador do Nobel de literatura, e mais uma vez a bolsa de apostadores Ladbrokes coloca suas fichas despirocadas em Bob Dylan como o provável vencedor. Ainda que o mundo nunca deixe de estar de ponta cabeça e as ainda mais desmedidas sandices estejam sempre na iminência de acontecer, me parece bastante improvável que, apesar de Dario Fo, os juízes de Estocolmo cometam o desplante de arregaçarem as barras dos fardões, colocarem os pés por sobre a mesa, e ouvindo o revirar das garrafas de whisky vazias pelo piso dos salões da Fundação Nobel (ou assistindo a fumaça vestigial das substâncias mais ilegalmente odoríferas subindo pelos cinzeiros), decidam pegar a cédula ou seja qual método próprio de marcação de voto, e rabiscarem em consenso um "sim" do lado da foto de Dylan, enquanto acompanham em uníssono pelo MP3 a todo volume em cima de uma das veneráveis estantes de cedro (provavelmente a que sustem o busto de Hermann Hesse), o refrão "how many roads must a man walk down before you call him a man?".

Minha veia fiel de roqueiro já maduro, mas que parte do mobiliário espiritual é composto pela catarse dos tempos de juventude em que uma letra de música tinha níveis eclesiásticos de arrebatamento, sabe do enorme valor que Dylan tem como artista superior, seja o que isso queira dizer (o que superior queira dizer), mas não ressente de afirmar sem o mínimo desconforto que o que ele faz não é literatura. É natural que grandes mercados editoriais alimentem esse tipo de paródia criada por parte do público de leitores que leem apenas o trivial de listas de mais vendidos ou de livros descolados da hora, como os mercados ingleses e, sobretudo, o gigante mercado americano; isso, no mínimo, é divertimento na certa para consumidores mais exigentes que sabe discernir sem dificuldade entre um Ian McEwan e E. L. James, ou entre Margareth Atwood e Bono Vox; e, no máximo, é ótima propaganda para as vendas da legítima literatura de qualidade. Ter um quadro de ânsia mundial em torno de quem ganhará o maior prêmio de literatura é algo tão proporcionalmente equivalente quanto a final de um campeonato de futebol. E as honras do bom senso estão asseguradas visto que, entre os apostadores do Ladbrokes, Dylan está em segundo lugar: perde para um escritor que, apesar de eu ainda não o ter lido (me ressinto muito por isso), é alguém de peso e qualidade inegável: Haruki Murakami.

O Brasil, em que as letras são tão pouco efervescentes, ainda assim tem cenário em escala suportável para repetir tais arroubos de uma lisergia militante em que frequentemente apontam Chico Buarque como o escritor mais calcado para receber honrarias e prêmios literários. Como eu poucas as vezes fui exposto à música de Chico em minha fase formativa _ meus amigos de escola gostavam mesmo de tudo que vinha ou se relacionava com o que Dylan fazia, numa ampla gama que englobava os Beatles, Joan Baez, Led Zeppelin, até Jethro Tull_, vejo essa apologia a Chico como uma institucionalização pobre e forçada, firmada em uma espécie de paroxismo de massas em que mesmo o machismo menos condescendente parece se derreter diante os olhos verdes irresistíveis. Vejo o quanto a aposta em Dylan é compreensível para grandes apaixonados mas leitores medianos, assim como vejo o quanto as pessoas que tiveram os ouvidos calibrados pelas letras de Chico dão de ombros e afirmam que se a língua portuguesa não fosse tão periférica, Chico estaria garantido também em Estocolmo.

O fato é que Salman Rushdie deu a melhor explicação para o que representa a letra de rock na cultura escrita e cantada. Tais letras são valiosas, canônicas, no universo íntimo a que se limitam representar, que tem muito mais a ver com encaixes na melodia, atitudes pessoais do cantor, leveza e humor, do que com o distante e inapropriadamente comparativo universo da literatura. Vejo como um reforço ao interesse à literatura as aproximações das histórias em quadrinhos (ou Graphic Novels, em sua nomenclatura que se esforça para ser mais condizente com tal aproximação) com a literatura, ainda que para mim sempre haverá uma enorme distância entre Watchmen, ou Maus, ou Asterios Polyp, e livros como os escritos por Philip Roth e Gunter Grass. Eu gosto muito de quadrinhos e já li estes citados como muitos outros, mas vejo com humor benfazejo e inofensivo que certas revistas coloquem Watchmen entre os cem maiores romances do século passado.

Minhas apostas para o Nobel desse ano estão em Philip Roth _ torço para que eles deixem Javier Marías em paz por bons dez anos, antes de darem-lhe o seu, para a felicidade do que virá da pena dele sem as intervenções notórias do enfado da criação que advém com o prêmio_, mas me imagino inabalável se as expectativas mais malucas se confirmarem e as editoras tenham que preparar as pautas e as capas enseladas dos Poemas Escolhidos de Bob Dylan.

sábado, 22 de setembro de 2012

Seu Rosto Amanhã, a Trilogia

Javier Marías no lançamento do volume único, de 1328 páginas, de Tu Rostro Mañana


Seu Rosto Amanhã é um ambicioso romance dividido em três partes do escritor espanhol Javier Marías que juntas somam mais de 1300 páginas e que é um amplo panorama memorialístico onde se fundem vivências pessoais transpostas para a ficção, personagens reais dissimulados em excêntricos semi-inventados, revisionismo histórico (que tanto é da Espanha do autor, quanto da Alemanha e da Inglaterra do pós-guerra), e um sem fim de reflexões que vários críticos tem visto como proustianas e que, à parte tudo o que essa obra tem de tema objetivamente sustentável, é graças à musicalidade que Marías impregna a estas partes que esse livro é tão cultuavelmente distinto. Esse romance tem desconcertado à crítica mais destemida, que mesmo no paroxismo que a simples coragem envolvendo a criação de uma obra desse porte nos dias do entretenimento ligeiro de hoje causa, não se exime de citar, quase sem querer, que Marías tem um estilo rebuscado, difícil, ou essa fórmula vernácula já consolidada de que ele escreve assim para despistar os frívolos já na primeira página. Porém, ler Marías compulsivamente como eu venho fazendo desde que conheci, sem nenhuma advertência, seu romance mais popular, Coração Tão Branco, há dois anos, me serviu a ver que tal escritor não passa de um trabalhador com amplos conhecimentos do seu ofício, desses sobre os quais a sina do talento pesa com tanta inevitabilidade que se pode constatar que seria um fracassado para todas as outras labutas terrenas que não fosse a da escrita, e que nem sua obra equivocadamente é, nem ele almeja a ser, um autor experimental que queira criar novos e intrincados idiomas, ou produzir em série literatura que só possa ser lida por literatos. Marías é mesmo um simples, e sua transparência deixa nítido que sua voz deve muito a três próceres canônicos, a saber, Shakespeare, Laurence Sterne e Joseph Conrad, sendo que tudo o mais em seu caudal de apego irrestrito à tradição literária vem do apuro musical com que preenche suas frases das mais extraordinárias e excêntricas meditações de uma miríade de assuntos, desde a morte, a efemeridade da existência, até prosaísmos tais como o uso estético do botox e a utilidade de espadas medievais em banheiros de boates como objetos de convencimento para se manter distância de damas casadas com altos figurões ministeriais. 

Ler Seu Rosto Amanhã, neste início de século (que já vai à velocidade inapreensível das coisas que, à falta de tempo para serem digeridas e entendidas no que querem dizer pragmaticamente, nos digerem elas), e nesta ocupação meio calejada de leitor profissional para a qual não se espera que vá se surpreender positivamente com algo novo, foi o equivalente espiritual à vivência dos grandes livros da idade da descoberta entre os vinte e trinta anos, os Faulkners, os Demônios dostoiveskianos, os Tchecov, os Montanhas Mágicas. Sair dessas mil e trezentas páginas aproximadas de retorno ao mundo cotidiano foi o mesmo que aceitar a decepção da verdade recorrente dos atos sociais em que escondemos já muito acostumados e felizes todo o universo do psiquismo das longas frases e do pensamento sutil para sermos apenas os monossilábicos de improviso expressando o básico de nossas alegrias hormonais e nossos ódios de primata desafiado no trânsito. O mal que a leitura de Seu Rosto Amanhã pode fazer _ e isso deveria ser colocado como tarja de advertência na capa do livro, por uma obrigação ministerial e com os seguintes dizeres: “Esse livro pode causar a impressão de que a espécie da qual o leitor faz parte tem um mundo de formas ideias e requintadas aonde ele poderia viver em harmonia plena com imaginosas concepções cerebrais nas quais mesmo o ódio, a culpa e a vingança, seriam entendidas de um ponto de vista semi-divinatório”_, é o de tornar o leitor descompassado com a então hiperatrofiada ciência da bestialidade que são as quatro paredes primordiais de qualquer cenário moderno e os asfaltos da cidade que simulam conduzir para algum lugar. Pausa: note bem: alguma voz oportunista pode estar falando: mas essa não é a impressão despertada pela maioria dos grandes romances?, e estará certo; como eu já disse, Marías não traz nada de novo, embora ele seja, à primeira vista, impossível de se classificar.

(Ao crítico que quer passar a informação útil ao leitor interessado sobre o que a leitura de Marías trará de benefício a um investimento de tempo nem um pouco irrisório, diante a visível concentração de parágrafos que o folhear de qualquer de seus romances deixa à mostra, fica algo solto no ar a capacidade não rotulável que se cola incomodamente ao autor de Todas as Almas e Coração Tão Branco: seu livro mais ambicioso, Seu Rosto Amanhã, é caudaloso como o são os de Thomas Pynchon e Roberto Bolaño, mas Marías não tem o barroquismo do primeiro nem o namoro com a literatura de gêneros do segundo; seu iberismo não se conforma à lapidação artesanal do idioma da maneira como o faz outros conterrâneos geográficos, como José Saramago e Antonio Lobo Antunes; ele está distante mesmo do seu gêmeo de fama literária, Enrique Vila-Matas, no que os poderiam aproximar mais como o recurso à metalinguagem e ao uso das picuinhas secretas da história da literatura dissidente como tema; seu anglicismo vê os costumes seculares de uma velha Inglaterra estagnada em sua mitomania de hierarquias doutorais oxfordianas e clubes fechados de espionagem empresarial e política com uma percepção da decadência que em nada se assemelha à mesma percepção de gente como Ian McEwan, John Banville, ou ao V. S. Naipaul de O Enigma da Chegada; e, apesar de ser o detentor de um coeficiente de vendas que o coloca na mesma posição de grandes romancistas pop, como, por exemplo, Philip Roth, seus livros estão longe de ceder às tabuadas de gosto pelo erótico ou de encarnar-se como superego espetacular das culpas históricas de grandes impérios às margens da decadência.)

Mas para facilitar a vida do pretenso leitor de Seu Rosto Amanhã, vou intentar fazer um resumo de cada um de seus três volumes. Segue:

Seu Rosto Amanhã [vol 1.], Febre e Lança

A saga se inicia com uma peroração do narrador ainda indeterminado sobre a natureza do discurso e do falar, em tons sombrios e admonitórios em que ele aconselha: "Ninguém nunca deveria contar nada, nem fornecer dados nem veicular histórias nem fazer com que as pessoas recordem seres que nunca existiram nem pisaram na terra ou cruzaram o mundo, ou que, sim, passaram mas já estavam meio a salvo no retorcido e inseguro esquecimento." O leitor se inicia na musicalidade da prosa de Marías, em sua ânsia contida, em sua ebulição de homem maduro que cruzou um limite da experiência e está além do estoicismo e da sabedoria; prescinde, pode-se dizer assim, do estoicismo e da sabedoria. Aliás, essas primeiras páginas de SRA é um minimalismo em síncope da conclusão que chegou o narrador sobre a importância do calar, do não dizer, do se isolar na indiferença estudada sobre o quanto é pernicioso a informação sobre o passado ou mesmo sobre os gestos cotidianos. É um tanto irônico que o narrador pregue tal filosofia, já que está a compor a primeira de mais de mil páginas de um trabalho que, praticamente, alcança o papeamento sobre grande parte das coisas que mobíliam os mexericos e os efêmeros interesses humanos. O narrador, que em seu fluxo incontido de falar, um fluxo que simula margear o psicótico e o autismo, esquece-se de se apresentar, ou não tem tempo para isso; exclui-se de se posicionar no enredo, não oferecendo sequer um enredo, cedendo apenas à paixão de juntar palavras, de povoar mais ainda a apregoada inutilidade de dizer com um labirinto de discursos metásticos que se desdobram em um sem fim de assuntos possíveis. Mas tal narrador, prodigamente, não se enquadra no filistinismo de tal contradição: tal narrador é um filho aperfeiçoado de Laurence Sterne, ou, mais exatamente, desse narrador sem freios, extraordinariamente perspicaz e preparado, extraordinariamente lúcido e provido de humor, que é a maior das criações de Sterne, Tristram Shandy. Todo Seu Rosto Amanhã é explicitamente shandyniano_ Marías é tradutor premiado de Tristam Shandy na Espanha, e em um ensaio em Literatura y Fantasma admite que, ao traduzi-lo, sentiu-se com essa possessão de co-autoria que junta escritores temporalmente impossíveis em uma irmandade centrada naquele que usufrui da contemporaneidade_ , em sua inexorável tendência à digressão, em sua lentidão voluntária de atrasar um momento em suspense muito esperado da história para cair mais outra vez na divagação, em seu respeito obsessivo às pequenas coisas, em sua filosofia dedicada ao trivialesco.

Então, o narrador se apresenta: chama-se, em resumo, Jaime Deza, mas até nesse simples fato cartorial há espaço para subentendidos e cogitações sistemáticas, já que, dependendo da localidade física, Jaime se torna Jacobo, Giacomo ou Jaques. Deza é um espanhol que estudou em Oxford, tendo sido professor nessa universidade inglesa por dois anos. Ao sair de lá, tem o convite de um antigo e venerável amigo, o emblemático Peter Wheeler, para se juntar a um clube seleto e semi-secreto de espiões remanescentes do MI-5 e MI-6 (Military Intelligence), que, com o fim da guerra fria e do ambiente do pós-segunda guerra que tanto gerou-lhes atividades políticas, passaram a ter seus serviços contratados por grandes empresas multi-internacionais e pela ainda subliminarmente forte administração estatal de alguns países (sobretudo das generálias do terceiro mundo latino-americano). Deza aceita, ao ser anunciado sobre seu talento em, escondido por espelhos falsos, ou mesmo em silente observação diante as pessoas a serem avaliadas, ter a capacidade de adivinhar, através de uma perfunctória análise de expressão e gestos, o que tal pessoa estará susceptível de fazer no futuro_ o que tal rosto será, amanhã. Junto a outros profissionais da previsão _ uma espécie de precognitivos não-paranormais do romance de Philip K. Dick_, Deza dita o destino de nações, ao avaliar que tal encarregado de pegar um empréstimo destinará tal quantia a uma usurpação do governo de um país sul-americano, ou o que acontecerá no show-business ao sentenciar que tal cantor está no final de carreira e já posicionado para a decadência, não devendo o mercado fonográfico apostar mais fichas nele.

Mas, como foi dito, o enredo fica em segundo plano. Aqui, o que interessa, e é a força motriz da grandeza de Marías, são as digressões e análises profundas, bastante poéticas e filosóficas, que intercalam incessantemente todo o livro. O que vale dizer é que, tais digressões, são menos gratuitas que as do mestre de Marías, Laurence Sterne, ou, melhor dizendo, uma hora ou outra perdem sua pureza shandyana e deixa entrar a luz trágica da outra influência capital do autor, Joseph Conrad. Grande parte desse primeiro volume se centra na história da traição sofrida pelo pai de Deza por um grande amigo, na época do ápice da glória de Franco, e de como o pai perdeu toda vida intelectual ou influente como paga pela grande sorte de ter escapado da execução. As capas dos três volumes da edição da Companhia das Letras são obras-primas à parte e sutis informações artísticas sobre o livro_ uma atenção tocante dos editores quanto ao valor desse grande romance de Marías, demonstrando o carinho de leitores transformados em editores_, e a capa dessa primeira parte mostra as marcas de tiros desferidos na Batalha de Madri contra um prédio próximo à Gran Via. Deza mostra, num dos impactos da  obra, inserido em um propósito oblíquo mas solidamente organizado e seguramente conduzido na composição fechada da narrativa, ao se atentar longamente sobre os desastres espirituais e as consequências humanas terríveis advindos com a guerra. Há cenas fortes, como o literal toureamento de um professor universitário que se nega a se curvar para os militares franquistas, e tem as orelhas e o pênis cortados, e as costas perfuradas com as lanças dos touros, antes de morrer. Outra das cenas que marca o que se seguirá de mais sério no estudo da violência, a partir do segundo volume, é a descrição do pai de Deza da conversa que ouviu no bonde, certa vez, entre duas mulheres: ao passarem de frente a uma janela de um prédio, uma das mulheres fala, da forma mais coloquial e dessensibilizada possível, que foi ali que ajudou as forças franquistas a invadirem a residência de uma família denunciada como traidora da causa, e ali ela mesma pegou o bebê de colo da família e o arremessou contra a parede, o matando. Aqui, o leitor para a leitura e se persigna; aqui, Marías mostra sua astúcia suprema de executar uma das poderosas frases musicais bombásticas e veementes que se anunciará com toda sua presença pressagiadora dali em diante.

A influência de Conrad se faz mais presente, nessas desoladas paisagens espirituais sobre a danação humana, e nos retratos imbatíveis de personalidades da obra. Os retratos de rostos e entidades feitos por Marías é coisa de regalar os olhos; é inevitável pensar que se está a ler páginas ali que são instantaneamente clássicas. Esse volume se encerra também à maneira conradiana, num longo monólogo de Peter Wheeler, que faz lembrar o monólogo do capitão Kurtz, ouvido pelo narrador às margens do rio Riva, na casa de campo de Wheeler.

Esse primeiro volume apresenta ilustrações curiosas, como a reprodução dos cartazes da campanha de persuasão do governo inglês durante a segunda grande guerra para reprimir que a população entregasse levianamente informações importantes para os espiões inimigos, incorporados no disfarce de vizinhos inofensivos. Wheeler mostra a Deza sua coleção desses tais cartazes, conhecidos como Careless Talk.

Cartazes do Careless Talk, em Seu Rosto Amanhã 1

                                                  



Seu Rosto Amanhã [vol 2.], Dança e Sonho


A capa que a Companhia das Letras escolheu para o segundo volume é ainda mais sutil e eloquente: uma escadaria fotografada de maneira enviesada em que apenas os que passaram pela leitura do primeiro volume percebem a mancha de sangue em um dos degraus. Na noite que antecede o convite de Wheeler para o narrador ingressar no trabalho de leitura de rostos, Deza vê no degrau da casa de Wheeler uma poça de sangue misteriosa, que, questionando na mesa de almoço sobre o fato, tanto a governanta quanto Wheeler demonstram um desconhecimento tão cabal sobre o assunto que o próprio Deza passa a pensar ter tido uma alucinação. Esse acontecimento nebuloso retorna repetidas vezes ao longo do livro, só sendo revelado no penúltimo capítulo do volume final. Mas a insinuação muito bem construída por Marías da imperenidade da existência com a aliteração desta cena, e do caos que se instala quando se pressupõe a aquisição do poder através da violência, seja esta institucional ou pessoal, dá o ensejo à entrada definitiva em um dos principais temas do romance, sendo este a citada violência. 

Quase toda a ação desse volume se passa em slow-motion em um banheiro de deficientes físicos de uma discoteca londrina, em que Deza acompanha passivamente a um de seus chefes atacar com um espada a um adido cultural que perdeu a postura na pista de dança com a esposa de um chefão. É o volume de menor número de páginas, e o único que não apresenta gravuras, e o mais próximo das tensões esperadas pelo público leitor que queira ver traços do cinema e da literatura norte-americana de entretenimento de massas. Aqui Marías se revela um mestre do suspense retardatário; atrasa o máximo ao leitor saber se haverá um assassinato por decapitação, ou se tudo não é somente uma ameaça engendrada como imposição meramente vaidosa de poder pessoal. Enquanto o braço de Tupra, o chefe imediato de Deza, desce com a espada por sobre o pescoço da vítima, que está semi-desmaiada no chão do banheiro, a verve shandyana de Marías retorna nas divagações paralelas incontidas que misturam o trivial ao universal. A brutalidade que perfaz esse segundo volume, mesmo revestido ainda da elegância perspicaz da música de Marías, é um tanto impactante, e vai descambar para a ação no último volume em que o próprio narrador se embrenha em equiparar-se àquele que antes condenava.

Seu Rosto Amanhã [vol 3.] Veneno, Sombra e Adeus

Esse é o volume que tem maior número de páginas. Inicia-se imediatamente de onde o volume 2 se encerra. Há de se falar que são muitas tramas paralelas, impossíveis de serem citadas mesmo em uma resenha tão extensamente pedante quanto esta. Daí que inicia-se de onde a principal trama se encerra. Estão, Tupra e Deza, na casa desse primeiro, tendo um tenso diálogo sobre a natureza da violência, sendo que Tupra, do alto de sua indiferença magnética, que tanto seduz e repudia a Deza, apresenta a sua teoria Mansfield-Kennedy, como lenitivo para que Deza não se assuste tanto com as demonstrações de crueldade cometidas por ele na discoteca onde se finaliza o volume antecedente. Para ilustrar melhor suas tentativas de resgatar o colega para a tranquilidade e a racionalidade corriqueiras lesadas, mostra uma foto involuntariamente cômica em que aparece Sophia Loren, sentada diante a mesa de um restaurante, na atitude entre curiosa e invejosa, olhando furtivamente para o interior do largo decote de uma atriz até então no auge da fama, chamada Jayne Mansfield, sentada a seu lado. A foto vem estampada na página 32 da versão brasileira.
Foto que embasa a extravagante teoria Mansfield-Kennedy, sobre a tendência universal humana à ruína, à auto-destruição e à violência

Marías começa por expressar o diálogo em torno dessa foto com um aerado humor descritivo, tão típico de um sterniano carimbado. O leitor vê além da foto; vê através dos olhos de Deza, profissional treinado para enxergar o que está por detrás das armadilhas da superfície ludibriadora, e vê através do olhar incisivo do grande escritor Marías, que, partindo da graça flagrante do olhar cobiçoso de Sophia Loren, algo tão desprovido de transcendência ou de memória prolongada, deriva para a tendência humana à ruína, à auto-destruição e à violência. Com essa foto cômica, Marías constrói uma extravagante mas bem fundamentada teoria sobre a efemeridade das glórias terrestres, o que se vê como um dos temas de todos os seus outros romances ( há um belíssimo ensaio em Literatura y Fantasma, em que ele narra o que os assessores de alguns imperadores romanos assopravam nos ouvidos do monarca no momento da coroação: E no entanto, recorde-se sempre de que és mortal! ). Jayne Mansfield era uma atriz em vertiginosa acensão na época da foto, ainda que seu campo de atuação fosse a de um erotismo bem mais explícito que o de Loren; mas é irrefutável que por onde passava, lançava em uma latente invisibilidade mesmo beldades consolidadas no cânone de Hollywood como Loren, devido à sua beleza exultante, excessiva, esfuziante. Tupra passa a contar o que ocorrera com Mansfield, o que de todo não foge da via sacra das grandes tragédias pessoais de álcool, drogas e sexo que determinou a queda de tantos outros que atravessaram rapidamente o tapete da fama de aparência imorredoura. Mansfield teve seus casamentos e divórcios, suas brigas bêbadas com figurões do cinema que a colocaram nas famigeradas listas negras dos grandes estúdios, se envolveu, mesmo que tangencialmente, com um palhaço que se dizia o papa do diabo, um tal de Anton La Vey, que dizia ter escrito a Bíblia Satânica, e acabou seu último dia de vida nos destroços de um carro, num acidente fatal numa estrada que matou a ela e ao amante. Por que o nome de Kennedy nesta sua teoria?, pergunta Deza. Ao que Tupra responde:

"Teria servido qualquer um desses outros nomes (que morreram drasticamente: Lincoln, Keats, James Dean, Cristo), e muitos mais, não são poucos os que devem sua celebridade máxima ou seu não esquecimento à sua forma de morrer, ou à sua hora, quando se diria que ainda não era a vez deles, ou que era injusto. Como se a morte entendesse de justiça ou se preocupasse com ministrá-la, ou quisesse entender, é absurdo. No máximo é arbitrária, é caprichosa, quero dizer que estabelece uma ordem que nem sempre cumpre, e escolhe ou descarta: às vezes vem decidida e, com todas as probabilidades, se aproxima, nos sobrevoa, olha, e de repente decide deixar para outro dia. Há que ter muita memória para se lembrar da cada vivo sem deixar escapar ninguém. Sua tarefa é infinita, e mesmo assim a realiza com uma minúcia exemplar há séculos. Que servo eficaz, que nunca cruza os braços nem se cansa. Nem se esquece."

Marías está a nos dizer como aquele filósofo que afirmou que o grande mal da história é o homem querer sair para fora do umbral de sua casa. Deza, que sempre suspeitou que seu talento para ver o futuro no rosto dos chefes militares do terceiro mundo e artistas decadentes não passava de um engodo pessoal alimentado pela necessidade de seus contratantes, não consegue ver seu próprio rosto amanhã. Explora mesmo o psiquismo profundo e velado de há séculos falecidos rostos de condes e condessas retratados nos quadros do Museu do Prado, mas não adivinha que o repúdio que lhe causa a violência de Tupra não o impedirá de cometer a mesma extrema violência com o amante de sua ex-esposa Luisa, o pintor de falsificações Custardoy. Suspeitando que Custardoy espanca Luisa, e temendo que, em decorrência, este venha e ocupar em definitivo o espaço que a separação deixara junto a Luisa, acarretando em uma ameaça para a segurança de seus filhos, Deza se lança em um plano de vingança que ocupa o suspense de grande parte de SRA 3.

Marías conclui esse esplêndido romance contradizendo a norma filosófica que abre o livro e se repete ao longo de suas infinitas páginas, a necessidade de se calar, a vanidade da fala e o total desplante do verbo. O leitor fica querendo ouvir mais e mais as perorações de Marías/Deza. Mas Marías nos dá um ingrediente final de seu já vasto universo de recolhimento livresco: nos apresenta, enfim, os verdadeiros Peter Wheeler e o pai de Deza. Uma foto nos mostra o encanecido Wheeler, que foi Peter Russell na vida real, e o pai de Deza, com todas as suas confissões de dignidade de exilado incorruptível e estoico, é o pai do escritor, o filósofo Julián Marías.

"No limiar da gordura, ou nem tanto (uma mulher larga, em todo caso), sua expressão era muito ausente ou nada vivaz, embora tivesse em seu olhar um vestígio de sossego, de quase indiferente determinação", Deza usa seus poderes para deslindar a há muito falecida Condessa de San Segundo, Camilla Gonzaga.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Um Presente

Eu postei esse texto aqui ontem, a título de agradecimento ao Luiz que, de todas as outras maneiras virtuais, não conseguia (ou parecia que não conseguia) comunicar-me com ele para informar o recebimento do livro. Como algumas pessoas devem ter visto, o texto durou uma ou duas horas e, logo após, o retirei "do ar". Tocou aqui na cachola o alarme de que talvez eu tivesse me excedido e o humor com propósito simpático era apenas e tristemente um deboche mal educado. Muitas vezes meu nível de alacridade é descompassado ao andamento cotidiano e essas más interpretações acontecem. Mas, ufa!, o Luiz me respondeu por e-mail e deu mostras de que entendeu a brincadeira, me fazendo ver que o exagerado estava sendo eu, por ver assombrações. Posto-o de novo. É uma bobagem! Tirando a parte do agradecimento e a alegria do presente.

Olha, seu eu fosse empresário e me visse enrodado com o mercado livresco, aproveitaria a grande ideia que meu amigo Luiz Ribeiro me mandou, muito provavelmente de forma involuntária, e que me foi entregue hoje pelo carteiro na hora do almoço. Luiz me mandou a primeira edição canadense (Luiz mora em Toronto), em capa dura com sobrecapa radiante, de Sabbath`s Theater, o inigualável grande romance de Philip Roth_ um volume belíssimo, suntuoso! A encomenda veio cercada de mistérios, a começar pelo distante anúncio de Luiz de que iria me presentear com o romance, mas que os meses iam se passando e ele demonstrava certo constrangimento diante a demora da chegada do presente, e eu, a parte passiva prometida, era acometido pelo constrangimento em feedback de ver que o Luiz ficava constrangido pela suspeita levantada de que não poderia corresponder ao trato da oferta. Blog é uma coisa recompensadora; cada um dos que comentam aqui há algum tempo e com certa constância para alimentar a crença de que não são simples visitantes mas leitores do blog, traz uma personalidade própria que me dá a certeza de intimidade, ainda que nós, os leitores e eu, não nos conheçamos pessoalmente. A presença do Luiz nos comentários sempre foi edificante e bastante desejada, não só pelo autor do blog, mas, com certeza, pelos outros quatro frequentadores desse espaço (não ouso dizer que eu esteja no mesmo patamar de sete leitores do Milton Ribeiro), de forma que eu queria, a título de acabar com quaisquer pressões subjetivas, por mais singelas que fossem, arranjar uma maneira de desobrigar o cavalheiro Luiz de cumprir a sua promessa anunciada, acabando, pois, com certas e avoadas atmosferas de que houvesse uma pressão senciente de obrigação de débito. 

Mas como disse, o Luiz é um cavalheiro, e eu já imaginava que seria difícil desmotivá-lo da aventura de mandar um volume pesado por meio mundo, sem que isso deixasse de ser um presente e fosse um rombo em suas contas particulares diante a exorbitante despesa que envio de tal objeto suscitaria. E aqui a segunda parte do mistério: minha esposa recebe a grande caixa quadrada dos correios, enquanto eu estava no banho, e me grita na porta do banheiro: "Quem é essa tal de Barbara Baby, e o que é isso que ela te mandou?". Eu, curioso compulsivo, entremeio a porta e pego o pacote, olho-o assustado, pois o nome do remetente era mesmo Barbara Baby, e a coisa vinha de Brasília. Fico aflito quanto ao tom de voz da Dani, brincalhão mas com aquela brecha de desgraça anunciada em que tudo poderia virar de ponta cabeça se eu, em pleno meio dia, não sustentasse o clima de humor inofensivo e viesse atrapalhar o cotidiano com alguma confissão dramalhona de que eu tinha uma vida secreta incorporada por uma amante com o nome de artista de pole dance. Tento achar algum ponto de contato, mas nada me vem: eu não conhecia ninguém em Brasília que pudesse me mandar uma encomenda de tal porte, nem tampouco uma Barbara Baby. Me enxugo rapidamente e rasgo a caixa para acabar logo com aquilo, e eis que vejo lá o vermelho da pintura do judeu maquiavélico que é a capa mais conhecida mundialmente do Sabbath de Roth, e respiro aliviado. É o Luiz, amor! Respondo. Ela já intui que é coisa do blog. A Dani viveu um período de alucinação em que me achava mais fatal que o Brad Pitt, e tinha uma ciumeira danada; passou; e hoje o melhor exemplo de que curou sua miopia conjugal é que tudo que vem do blog é digno de absoluta confiança (o que tem algo de inerentemente insultuoso, pois na entrada da meia-idade, eu deveria despertar nela ao menos o temor de que alguém pudesse ficar apaixonado por mim pelas minhas ideias...). A Caminhante já me mandou dois livros, e o segundo já me foi entregue pela Dani como da sua amiga de Curitiba. Pois bem, voltando ao assunto, o livro é belíssimo, e imagino que o Luiz solucionou o impasse enviando-o por algum amigo que partiu do Canadá até Brasília e lhe fez o valioso favor de traze-lo na mala e, em consequência, postá-lo do DF até minha cidade, Itapuranga, o que diminui consideravelmente os custos. E esse amigo (ou amiga, o que me parece mais provável), num arroubo de desconfiança ou simples humor do cerrado, usou o pseudônimo de remetente Barbara Baby. Fim do mistério.

O último mistério, e o que despertou meus nunca sonhados dotes empresariais, é que o Sabbath, além de formidável objeto de mesa de centro em sala de estar, também expele um delicioso odor de tutti frutti quando é aberto, por todas as páginas. Repito: todas as quase quinhentas páginas emitem uma suave e acalentadora informação nasal de tutti frutti. Minha filha, que adora cheiros e, principalmente, cheiros de livros, sendo que a primeira coisa que faz quando tem um livro em mãos é cheirá-lo, se embriagou com a novidade e me olhava admirada ao dizer: "Morango! Morango!". E isso me deixou fascinado! Não sei se é uma coleção em que, deliberadamente, o editor quis fazer viajar o leitor para instâncias ainda mais inusitadas que a carga de convoluções que esse Roth traz, através de aromas_ e se for isso, o volume é uma primeira edição (o Luiz sabe mesmo dar presentes), de 1995; em 17 anos o odor não deveria ter se mitigado? A outra hipótese, mais plausível, é que, na mala da Barbara Baby, havia algum outro objeto acompanhante muito próximo do Roth, um perfume, um desodorizador, um creme para pele, uma calcinha comestível (para o caso de que, afinal, realmente exista uma Barbara Baby, com todos os insurgentes esteriótipos que tal verdade inclua), e que tal fragrância tenha cambiado para o livro nas tantas horas em que esses vizinhos ficaram compactados no voo entre Toronto e Brasília. A outra hipótese, um tanto paranoica, é que os shoppings do Canadá tenham um sistema de calefação interna contra os invernos rigorosos e que com isso, algo do brilho mercadológico das lojas se instala osmoticamente em uma transcodificação campesina de frutas em objetos de materiais tão porosos quanto páginas de livros. 

Mas, independente dessas questões, a ideia é fenomenal e deveria ser desenvolvida por alguma editora: pegando o mote dos idiomas aromáticos do Walt Whitman. Livros aromáticos. Imagine ler Thomas Bernhard sentindo odor de canela; Hemingway com odor de daiquiri e abacaxi; Faulkner com um bem tolerável cheiro de couro de boi, ou de suor de cavalo; Thomas Mann com cheiro de neve; Bellow com o cheiro do jardim meio abandonado do Herzog, ou com o odor de apartamento fechado, meio mofo e poeira, do sr. Sammler; Ulysses com cheiro de mar, ou com o perfume da Molly Bloom; Proust com cheiro de madeleines...

Mandei um e-mail pelo bol agradecendo ao Luiz, e abri um endereço de e-mail pelo hotmail (charllesfaulkner@hotmail.com) para também mandar meu agradecimento. Fica aqui, no caso dessas mensagens terem se perdido pela malha ectoplásmica entre dois continentes, mais no mesmo intento: muito obrigado pelo carinho, Luiz! O livro_ junto ao Kobo Abe, que lerei no mês que vem_ é parte indissociável e um dos melhores componentes da minha biblioteca. Forte abraço!

Na Espera


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

A Mel Está Lendo Ulysses



Quando não tenho nada para fazer, visito a livraria da minha cidade. Minha cidade tem 25 mil habitantes e é um milagre que tenha uma livraria. E uma livraria de considerável porte, diga-se de passagem. Nesses 9 anos que moro aqui, ela sofreu inúmeras modificações estruturais: enlargueceu, encurtou, trocou de lugar, voltou para o antigo lugar, distendeu, tornou dependente de uma lotérica que fica ao lado, e, por final, pelo tempo que dura o ocaso da imaginação de sua proprietária, hoje descansa em um corredor de sete metros afundado entre dois estabelecimentos numa espécie de requintado mercado árabe, com suas luzes fluorescentes e estantes que nunca conseguem ter a dignidade de distinção de gêneros que a implacável atração das funcionárias para a entropia as negam. Dessa forma, as estantes são forradas de livros evangélicos, pornôs, best-sellers e clássicos de bolso, no mesmo espaço, como se fosse uma comunhão marcial de cores cândidas e lombadas desinfetadas de malícia ou intenções espirituais de qualquer tipo que se subtraem altivamente dos preconceitos que os olhares dos visitantes querem colar a elas. Nesses 9 anos, devo admitir sem modéstia, foram muitas as contribuições minhas para que o pequeno estabelecimento se mantivesse na ativa. Já sou alguém da casa, como se diz, e tenho a convicção que meu nome ali virou uma referência estatutária de gosto que tanto serve para o caminho oposto, o de espantar possíveis leitores de um livro, quanto para a benesse de aproxima-los de algumas publicações que chegam ali aventureiramente. Como sou uma das três excêntricas pessoas que são vistas constantemente na companhia de livros, alguns dizem que seria loucura levar para casa um dos calhamaços de 400 páginas que com certeza estão por detrás da minha aparência indelével de insensatez. Já os livros de história que eu recomendo às livreiras que tragam são muito apreciados pela muitas vezes facilmente impressionável classe de universitários locais.

Mas no início as coisas não eram tão fáceis assim. Como sempre repito, o casamento e a paternidade restituíram algo que meio mundo julgava perdido por completo para mim_ a outra metade acreditava que eu nunca havia possuído para poder perder_ : a normalidade cívica. Entrar na livraria como um solteirão semi-recluso, sem muita disposição à conversa além de piadinhas triviais sobre o tempo, e gastar longos minutos a ficar vendo atentamente somente e espetacularmente livros (!!!), era algo que não descia pelas gargantas em alerta das vendedoras. Mesmo na porraloquice daqueles tempos, eu tinha uma vestigial bússola de minha situação para perceber que a tão cantada reputação social dependia em parte da impressão que aquelas moças tinham de mim, daí que, somente anos depois (para minha sorte), vim a descobrir, através de uma amiga, que haviam diversos Charlles itinerantes e paralelos trafegando por essa minúscula mas sempre verbalmente ativa cidade: um consumidor contumaz de ervas proibidas pela legislação, que chegava a estocar fardos odorificamente fumáveis em sua casa; um comunista à espera de seja qual oportunidade para seja qual ato de terrorismo que iria acabar de vez com a modorra cotidiana da cidade; um pederasta ultra-discreto que se sentava nas praças trajando roupas negras e portando um dos disfarçáveis livros nas mãos; um homem sem coração a quem atribuíam gravidezes indesejadas e cujo passatempo insensato era perverter mulheres casadas, e, por último, o mais estranho, um Charlles que era um policial a paisana que estava ali para treinar a elite das polícias em técnicas ultra-secretas franquiadas pelo exército de Israel. Além da esposa e filhos, a calvície e a gordura abdominal me tornaram amplamente aceito, às custas da extirpação definitiva dessas cogitações românticas. A aproximação da velhice tem suas vantagens tristes: deixei de despertar as apreensões de bucaneiro despatriado capaz de tudo para ser apenas o dono honorável e por direito de uma confortável poltrona, que entra ali para diversificar as histórias e os enredos que irão balançar seus sonhos de fuga enquanto a digestão do jantar se realiza da maneira mais aprazível possível.

Isso sempre me pareceu parte da graça: que alguém submetido à força compulsiva da leitura se defronte com duas moças treinadas para receberem-me que veem os livros como bijuterias sem a mínima transcendência que não a de misterioso e particular uso doméstico que não lhes importa nem um pouco intuir qual seja, assim como não lhes importariam saber se ali se vendessem algemas, bastões de beisebol e incensórios, e eu toda semana comprasse maniacamente um bastão de beisebol e um incensório e elas não dirigissem entre si, enquanto empacotam a mercadoria e me perguntam pela saúde dos filhos ou assinalam na mais sincera preocupação a quantas andam as variações do clima, nenhum sorriso velado nem sinais cifrados por debaixo da mesa. Elas vivem em um tempo bíblico antes da queda e parecem inalcançavelmente felizes, não-tocáveis e imunes em suas intenções e tocabilidades e aparentes entregas. Talvez, por esse desconhecimento virginal tocante que as atuais atendentes apresentam, me passa ao entrar ali que elas são entidades flutuantes embrenhadas neste lado de cá em esmerada educação e sorrisos, mas cujas atenções reais estão dispersas em uma outra dimensão em que prescindem daqueles livros e daquelas revistas, daqueles tormentos de condensação temporal que para elas são alvo de completa indiferença. Por isso, eu penso, está aqui um compêndio de trezentas páginas dos melhores contos eróticos de uma revista masculina, o best-seller de um padre adaptado para crianças, as primeiras estórias de Guimarães Rosa, e um Vade-Mecum com o códigos inapetitosos do direito, todos lado e lado e com o semblante de inarredável impunidade. Assim, ao encomendar o Ulysses de Galindo e tê-lo em mãos, enquanto observava as caixas de livros empilhadas para serem depositados a esmo nas estoicas estantes, uma das atendentes escora-se na parede e me pergunta de que trata Ulysses. Eu fico bem meio minuto procurando com afinco o que lhe responder, penso no judeu errante pela Dublim concupiscente, as sempre maravilhosas energias espirituais transitando em incrível generosidade pelo livro, as frases as quais me dá vontade de abnegar-me fantasiosamente de tudo e me mudar para dentro delas, habitar o centro do discurso, como disse um escritor americano, o riso libertador... tento concentrar todo o amor que sinto por esse livro naquele prólogo de angustiado silêncio, que deve quase turgir meu rosto de vermelho, consciente da completa leviandade de minha parte em levar a sério o questionamento de uma moça que só me pergunta por coqueterismo comercial.

Daí, ela mostra que a pergunta era ainda mais retórica que eu imaginava, era uma ponte para que me informasse que haviam sido encomendados dois Ulysses pela livraria. Penso rapidamente nos dois ou três amigos que poderiam ter feito essa abominação, e cito em voz alta seus nomes. Não, a livreira me responde, quem encomendou-o foi a Mel. Fico transtornado e sem palavras, a mesma reação que se tivessem dito que um disco voador havia descido nos campos da cidade noite passada e dele saído uma alienígena. A funcionária fala com a mais prosaica das vozes, como se necessitasse morder as unhas para condizer-se com a sensaboria que era para ela aquela tremenda notícia que me passava. Mel?, quem é essa Mel? Aluna de Letras?, pergunto. Não, ah! Vai me dizer que você não conhece a Mel, ela está sempre por aqui olhando os livros. Questiono pela sua aparência física, ao que ela me responde: uma menina assim (aponta para a sua testa), dessa altura... não acredito que não conhece a Mel??

Daí que estou em estado de beatitude sabendo que uma moça, a Mel, está lendo Ulysses, na mesma cidade onde moro, dividindo o mesmo calor cruel de setembro, se aportando com o mesmo carinho e deslumbre para aquelas mil páginas revigorantes. A Mel reservou 47 reais para comprar Ulysses, passou na livraria antes de mim, pois seu volume já não estava lá quando cheguei, o que pode demonstrar o grau de ansiedade que estava para ter o Ulysses. Quando eu era um nababo que me intoxicava de canabis, pulava as cercas das casas das mulheres já não tão bem casadas, me deitava com rapazes capturados das dissimuladas leituras nas praças públicas, e ensinava os homens da força técnicas de muay thai, saber que a Mel existe teria despertado minha paixão platônica. Hoje, o senhor da poltrona cola os olhos e suspira, apostando que sua filha, assim como a Mel, breve estará fazendo fila entre os que amam Ulysses.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Aqueles Estúpidos 4 Metros



Ontem li um maravilhoso artigo de David Foster Wallace, intitulado Pense na Lagosta, e publicado na edição deste mês da revista Piauí. Conheço pouquíssimo de Wallace _ o quanto, apenas, o mercado editorial nacional permite conhecer, por enquanto _, mas o suficiente para ceder ao seu inevitável carisma, à sua voz deslocada de jovem precocemente envelhecido que suporta bem e lucidamente as emanações de uma verdade senciente quase secreta, quase indeterminada, mas que lhe permite ver claro demais a grande intrusão da barbárie e da burrice que se fez no núcleo do se portar humano. Wallace tem esse talento dos grandes xamãs da escrita em revelar o alienismo institucionalizado e aceito sem previsões e auto-críticas nas trivialidades de uma espécie que vem descartando o poder das altas intuições para se refestelar no óbvio babilônico. Seus textos falam de um Homem com o qual o constrangimento diante sua ausência legitimada no mundo o faz o mais inerte  dos seres, com sua pura existência protocolar, sua ira, sua festividade tribal incontornável, sua desfaçatez autóctone e robótica dirigida por uma gratuidade sem drama e sem o mais relativo ou eufemístico dos méritos. Cada vez que eu estou em meu carro, parado ao longo de uma extensa fila de congestionamento, à espera, e vejo algum outro carro acelerando brutalmente e ultrapassando uma migalha de asfalto à frente, penso na frase de Wallace em um discurso que se tornou famoso por ser quase seu canto de despedida, penso naqueles estúpidos 4 metros que meu parceiro de espécie, instalado em seu veículo automotivo poluente, em seu cotidiano insípido imposto por uma pressa estúpida atrás de propósitos ainda mais estúpidos, julga ganhar como vantagem em uma tripa de 20 quilômetros de carros imóveis. Todo dia que tenho que enfrentar o trânsito de uma grande cidade, ou mesmo da pequena e agora não tão pacífica cidade interiorana onde moro, acontece de alguém furar a fila de carros e avançar seus estúpidos 4 metros à frente, me fazendo lembrar automaticamente da vacina de Wallace, de seu engolir em seco e sua súbita prostração. Sabemos que Wallace, afinal, não tolerou bem, não suportou o peso de todo seu gigantesco estoicismo; sua enorme energia verbal, a grande alegria que transparece em seu texto pelo pensar e pela dissuasão, repete a febrilidade extasiante de todo suicida que repudia o suicídio e diz que viverá até o fim, até a idade avançada e a cama na UTI; repete o hinário de Maiacóvski em dizer que o verdadeiro desafio é a vida e as desgraças que se colam a ela. Difícil mesmo acreditar que Wallace se privou do inferno para o qual estava tão bem preparado, tão vantajosamente municiado em relação à maioria das outras pessoas que se contenta como o cão que persegue o automóvel em movimento mas quando esse para ele não sabe o que fazer (os estúpidos 4 metros). Neste texto da Piauí, escrito, olhem só, para uma revista de gastronomia, Wallace expõe de maneira épica a carnificina da Festa da Lagosta do Maine, a crueldade da fervura da lagosta viva, que tenta escapar pelas bordas da panela e que o cozinhante tem que se esconder na sala até que o animal esteja morto, tamanho a carga de sofrimento que a lagosta revela e que retóricas e concepções relativizantes da dor em sistemas neurológicos primitivos não consegue acobertar. Deste texto retiro  o excerto abaixo, bem condizente à expectativa das matanças que as estatísticas dos feriadões inevitavelmente reportará na segunda-feira.

"Minha experiência pessoal não é a de que viajar pelo país seja relaxante ou amplie os horizontes, ou de que mudanças radicais de lugar e contexto tenham um efeito salutar, mas sim de que o turismo intranacional é radicalmente constritivo e humilhante da pior forma _ hostil à minha fantasia de ser um indivíduo genuíno, de viver de algum modo fora e acima de todo o resto. Ser um turista massificado, para mim, é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores sem a sua presença. É confrontar, em filas e engarrafamentos, transação após transação, uma dimensão de si mesmo tão inescapável quanto dolorosa: na condição de turista você se torna economicamente significativo mas existencialmente detestável."

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Lanço meu Brado Selvagem por Sobre os Telhados do Mundo



As manifestações do espírito não escolhem onde acontecer.

Todas as Almas, de Javier Marías



O mítico ambiente de saber da Oxford inglesa, com sua sisudez esmerada e seus méritos científicos , sua imobilidade secular de produzir eruditos especialistas em Shakespeare para governar o mercado financeiro mundial, é traduzido por Javier Marías em seu misto de romance e ensaio psicológico, Todas as Almas. Nesse romance, Oxford é uma fortaleza desolada em que os mendigos são em igual ou maior número que o de professores, com jantares cerimoniais maçantes, lotada de personagens entre dickensianos e as entidades hirsutas e pomposas de Henry James. Marías empreende uma visão de estrangeiro exilado entre aqueles ferruginosos portões patrícios, sem direitos efetivos de prorrogação de tempo e mesmo sem pretender a isso, e alcança a profundidade de tom que reivindica para si desse hermetismo de classe, para sua voz de escritor, um entendimento pessoal poderoso da solidão, da transitoriedade da existência, da erraticidade dos convívios humanos, das falhas congênitas da ternura, da riqueza interior entrevista nos semblantes presos e empobrecidos nas armadilhas da distinção institucional. Os que identificam uma semelhança no modo de escrever de Marías com o de Thomas Bernhard_ naquilo que os dois tem de um distanciamento semântico da coisa manejada, a ponto de poderem estender a visão da coisa por páginas e páginas onde a repetição produz minimalismo musical requintado_, poderão distinguir que o que em Bernhard é raiva condensada e uma quase santificação da resistência contra o prosaísmo patológico de qualquer ambiente humano (dos mais triviais aos mais campesinos castelos das famílias tradicionais alemãs), em Marías assoma como uma espécie de ironia basal serena, da mesma forma bernhardiana não-coaptável mas sem sua acidez anti-social, sem o abatimento combativo diante a ruína espiritual refletida na geografia e na arquitetura. Para Marías, Oxford é uma terra de abandono, onde os domingos "desterrados do infinito" (expressão baudelariana empregada pelo narrador inominado) tem a capacidade de concentrar tanto desamparo que leva os menos preparados à loucura. Uma das melhores e mais sublimes partes do romance é sua descrição dos professores outrora famosos e veneráveis, que escreveram livros de elevada importância, mas  cujo marasmo opressivo e os domingos desterrados decaíram em mendigos. É a narrativa densa sobre o teólogo que perde família e prestígio e se refugia nas ruas oxfordianas, ou do historiador que compôs três tomos capitais sobre determinada época medieval e agora briga com os outros esfarrapados por um canto para dormir, que oferece a verdadeira divisa de pensador independente de fórmulas e atos de ofício que é esse antigo oxoniano chamado Javier Marías, ele mesmo se revelando ali como sobrevivente na figura de seu narrador que enfrenta o tédio de maneira estoica.

Marías, aqui, se aproxima das não de todo involuntárias escolas literárias modísticas aperfeiçoadas por Sebald e Vila-Matas. Embora Todas as Almas seja contemporâneo às obras desses dois autores_ o romance foi lançado em 1988_, nesta obra vemos o flaneurismo dos principais livros de Sebald, a maneira de Sebald de redigir uma prosa do ambiente em que os personagens servem para evidenciar a perpetuidade da locação e serem agentes de uma história que não passa de uma sistemática vaidosa inventada para dar uma validade esotérica para a efemeridade de suas existências; o que vale em Sebald e neste Marías é a indiferença primordial da paisagem, seja ela povoada ou não pelo homem, sua constância selvagem que aparece no que tem de frio e indiferente às mentes mais calibradas para a percepção do que está acima das regras cotidianas, o que está acima do trabalho e da civilização. Essa selvageria, pois, é similar em cenas como a de Austerlitz, em que o narrador, dentro de um bote em um extenso lago, imagina toda a cidade submersa pelas águas abaixo dele, apresentando as fotos das crianças e pais em preto-e-branco que não mais existiam e posaram um dia para uma lente que os registrou diante a casa que seria levada pela futura hecatombe; similar à estação ferroviária entre Londres e Oxford onde o narrador de Todas as Almas espera por um trem que sempre se atrasa, e que seus mudos e desconhecidos colegas de espera tem como norma inviolável jamais falarem um com o outro e mesmo demonstrarem que se percebem, e que o narrador explora as sombras das cercas ao longe, no campo escuro, o povoado morto que parece pertencer à estação, e a indefinível mulher sentada em um banco a alguns metros dele e que ele procura pelas ruas de Oxford e julga vislumbrá-la em uma perdida oportunidade em uma boate, mas que nunca realmente a vê. Esse niilismo além da filosofia_ não se presta, felizmente, a incorporar uma dogmática acadêmica, como o existencialismo sartreano_, expõe-se algo cansado de orgulhos ou proezas espirituais, cansado das genuflexões diante altares da ciência e dos compêndios de qualquer tipo, cansado_ e aqui há a ponta de uma provável revolução_ de ser descrito como pós-século XX, como pós-morte das ideias ou princípios ou sonhos. Marías se revela com a total independência do escritor superior que, apesar de sua gravata, seu terno, seus títulos, suas amplas estantes recheadas de livros, está à frente desse comodismo egrégio, num local de absoluto silêncio e solidão: não há alienismos kafkianos, nem distorções beckettianas, somente a mente imaginosa trabalhando por si mesma, o pulso realizando as obrigações de reverter para a escrita o que a extenuação da percepção pega dessa supremacia da leveza. Nisso a explicação de Sebald e Marías, tirado raras exceções, empregar sempre a primeira pessoa em seus livros: afora as leituras tecnicizantes, eles tem apenas o eu para se firmarem. A mais solitária e independente das funções: a escrita, para a qual se pode valer apenas um lápis e uma folha; daí que a escrita de Marías parece ser feita apenas no recolhimento do lápis e da pauta em branco, sem se importar com a compreensão imediata de seu emissário_ porque, não é feita para se ter um emissário_, daí seu erroneamente definido rebuscamento. (Daí, também, a semelhança entre Proust e Marías, no que tem de absoluto recolhimento, pois reconstroem o mundo dentro da total entrega a si mesmos que, num caso, a iminência da morte avalizava, e noutro, avaliza a propensão inexorável de morar no vagar das coisas inapreensíveis.)

De Vila-Matas, Marías tem, neste romance mais que nos demais (mesmo na continuação deste, Seu Rosto Amanhã, que este é um prólogo, à maneira de o Hobbit o é para o Senhor dos Anéis_ comparação valiosa que devo ao fã incondicional de Marías, Aguinaldo Medici Severino) o uso não superfaturado da metalinguagem e do culto a escritores fracassados e quase definitivamente esquecidos. As duas fotos que Todas as Almas apresenta tem a impressionante força retórica da escrita que as deslindam: a foto do jovem escritor John Gawsworth, no auge de sua passageira fama, quando era amante da mãe da amante oxoniana do narrador e um diplomata que viajava por Túnis, Argélia, Itália, Egito e Índia, e a foto de sua máscara mortuária, em que a argila não esconde o inchaço do álcool e a crueza das desditas. O narrador lembra de uma visão do já derrotado escritor, maltrapilho e sem teto, empurrando um carrinho de bebê cheio de garrafas de bebidas, pelas ruas de Londres. A dor e o sonambulismo da existência aparecem em Todas as Almas com um impacto das grandes obras. Desde quando conheci Marías, através de Coração Tão Branco, na metade final do ano passado, venho compulsivamente lendo tudo dele, e Todas as Almas exerceu um poder de calar diante o mistério do homem que só penso no peso semelhante daquele único grande romance de Kundera. Ao contrário do porteiro nonagenário Will, que aparece no livro guardando uma das faculdades de Oxford, e que tem surtos de memória que o retornam ao dia longínquo em que morreu sua esposa, ou ao dia da capitulação do Eixo, ou a dias de sua infância de bermudas_ e para cada qual os professores tem que adivinhar o sumo da viagem do tempo e dar-lhe os pêsames, ou fingir que soltam fogos pelo anúncio do fim da guerra_, eu posso afirmar que por boas décadas não esquecerei desse inigualável romance.