Javier Marías no lançamento do volume único, de 1328 páginas, de Tu Rostro Mañana |
Seu Rosto Amanhã é um ambicioso romance dividido em três partes do
escritor espanhol Javier Marías que juntas somam mais de 1300 páginas e que é
um amplo panorama memorialístico onde se fundem vivências pessoais transpostas
para a ficção, personagens reais dissimulados em excêntricos semi-inventados,
revisionismo histórico (que tanto é da Espanha do autor, quanto da Alemanha e
da Inglaterra do pós-guerra), e um sem fim de reflexões que vários críticos tem
visto como proustianas e que, à parte tudo o que essa obra tem de tema
objetivamente sustentável, é graças à musicalidade que Marías impregna a estas
partes que esse livro é tão cultuavelmente distinto. Esse romance tem
desconcertado à crítica mais destemida, que mesmo no paroxismo que a simples
coragem envolvendo a criação de uma obra desse porte nos dias do entretenimento
ligeiro de hoje causa, não se exime de citar, quase sem querer, que Marías tem
um estilo rebuscado, difícil, ou essa fórmula vernácula já
consolidada de que ele escreve assim para
despistar os frívolos já na primeira página. Porém, ler Marías
compulsivamente como eu venho fazendo desde que conheci, sem nenhuma
advertência, seu romance mais popular, Coração
Tão Branco, há dois anos, me serviu a ver que tal escritor não passa de um
trabalhador com amplos conhecimentos do seu ofício, desses sobre os quais a
sina do talento pesa com tanta inevitabilidade que se pode constatar que seria
um fracassado para todas as outras labutas terrenas que não fosse a da escrita,
e que nem sua obra equivocadamente é, nem ele almeja a ser, um autor
experimental que queira criar novos e intrincados idiomas, ou produzir em série
literatura que só possa ser lida por literatos. Marías é mesmo um simples, e
sua transparência deixa nítido que sua voz deve muito a três próceres
canônicos, a saber, Shakespeare, Laurence Sterne e Joseph Conrad, sendo que
tudo o mais em seu caudal de apego irrestrito à tradição literária vem do apuro
musical com que preenche suas frases das mais extraordinárias e excêntricas
meditações de uma miríade de assuntos, desde a morte, a efemeridade da
existência, até prosaísmos tais como o uso estético do botox e a utilidade de
espadas medievais em banheiros de boates como objetos de convencimento para se
manter distância de damas casadas com altos figurões ministeriais.
Ler Seu Rosto Amanhã, neste início de século (que já vai à velocidade
inapreensível das coisas que, à falta de tempo para serem digeridas e
entendidas no que querem dizer pragmaticamente,
nos digerem elas), e nesta ocupação meio calejada de leitor profissional para a
qual não se espera que vá se surpreender positivamente com algo novo, foi o
equivalente espiritual à vivência dos grandes livros da idade da descoberta
entre os vinte e trinta anos, os Faulkners, os Demônios dostoiveskianos, os
Tchecov, os Montanhas Mágicas. Sair dessas mil e trezentas páginas aproximadas
de retorno ao mundo cotidiano foi o mesmo que aceitar a decepção da verdade
recorrente dos atos sociais em que escondemos já muito acostumados e felizes
todo o universo do psiquismo das longas frases e do pensamento sutil para
sermos apenas os monossilábicos de improviso expressando o básico de nossas
alegrias hormonais e nossos ódios de primata desafiado no trânsito. O mal que a
leitura de Seu Rosto Amanhã pode
fazer _ e isso deveria ser colocado
como tarja de advertência na capa do livro, por uma obrigação ministerial e com
os seguintes dizeres: “Esse livro pode causar a impressão de que a espécie da
qual o leitor faz parte tem um mundo de formas ideias e requintadas aonde ele
poderia viver em harmonia plena com imaginosas concepções cerebrais nas quais
mesmo o ódio, a culpa e a vingança, seriam entendidas de um ponto de vista
semi-divinatório”_, é o de tornar o leitor descompassado com a então
hiperatrofiada ciência da bestialidade que são as quatro paredes primordiais de
qualquer cenário moderno e os asfaltos da cidade que simulam conduzir para algum
lugar. Pausa: note bem: alguma voz oportunista pode estar falando: mas essa não
é a impressão despertada pela maioria dos grandes romances?, e estará certo;
como eu já disse, Marías não traz nada de novo, embora ele seja, à primeira
vista, impossível de se classificar.
(Ao crítico que quer passar a
informação útil ao leitor interessado sobre o que a leitura de Marías trará de
benefício a um investimento de tempo nem um pouco irrisório, diante a visível
concentração de parágrafos que o folhear de qualquer de seus romances deixa à
mostra, fica algo solto no ar a capacidade não rotulável que se cola
incomodamente ao autor de Todas as Almas
e Coração Tão Branco: seu livro mais
ambicioso, Seu Rosto Amanhã, é
caudaloso como o são os de Thomas Pynchon e Roberto Bolaño, mas Marías não tem
o barroquismo do primeiro nem o namoro com a literatura de gêneros do segundo;
seu iberismo não se conforma à lapidação artesanal do idioma da maneira como o
faz outros conterrâneos geográficos, como José Saramago e Antonio Lobo Antunes;
ele está distante mesmo do seu gêmeo de fama literária, Enrique Vila-Matas, no
que os poderiam aproximar mais como o recurso à metalinguagem e ao uso das
picuinhas secretas da história da literatura dissidente como tema; seu
anglicismo vê os costumes seculares de uma velha Inglaterra estagnada em sua
mitomania de hierarquias doutorais oxfordianas e clubes fechados de espionagem
empresarial e política com uma percepção da decadência que em nada se assemelha
à mesma percepção de gente como Ian McEwan, John Banville, ou ao V. S. Naipaul
de O Enigma da Chegada; e, apesar de
ser o detentor de um coeficiente de vendas que o coloca na mesma posição de
grandes romancistas pop, como, por
exemplo, Philip Roth, seus livros estão longe de ceder às tabuadas de gosto
pelo erótico ou de encarnar-se como superego espetacular das culpas históricas
de grandes impérios às margens da decadência.)
Mas para facilitar a vida do
pretenso leitor de Seu Rosto Amanhã, vou intentar fazer um resumo de cada um de
seus três volumes. Segue:
Seu Rosto Amanhã [vol 1.], Febre e Lança
A saga se inicia com uma peroração do narrador ainda indeterminado sobre a natureza do discurso e do falar, em tons sombrios e admonitórios em que ele aconselha: "Ninguém nunca deveria contar nada, nem fornecer dados nem veicular histórias nem fazer com que as pessoas recordem seres que nunca existiram nem pisaram na terra ou cruzaram o mundo, ou que, sim, passaram mas já estavam meio a salvo no retorcido e inseguro esquecimento." O leitor se inicia na musicalidade da prosa de Marías, em sua ânsia contida, em sua ebulição de homem maduro que cruzou um limite da experiência e está além do estoicismo e da sabedoria; prescinde, pode-se dizer assim, do estoicismo e da sabedoria. Aliás, essas primeiras páginas de SRA é um minimalismo em síncope da conclusão que chegou o narrador sobre a importância do calar, do não dizer, do se isolar na indiferença estudada sobre o quanto é pernicioso a informação sobre o passado ou mesmo sobre os gestos cotidianos. É um tanto irônico que o narrador pregue tal filosofia, já que está a compor a primeira de mais de mil páginas de um trabalho que, praticamente, alcança o papeamento sobre grande parte das coisas que mobíliam os mexericos e os efêmeros interesses humanos. O narrador, que em seu fluxo incontido de falar, um fluxo que simula margear o psicótico e o autismo, esquece-se de se apresentar, ou não tem tempo para isso; exclui-se de se posicionar no enredo, não oferecendo sequer um enredo, cedendo apenas à paixão de juntar palavras, de povoar mais ainda a apregoada inutilidade de dizer com um labirinto de discursos metásticos que se desdobram em um sem fim de assuntos possíveis. Mas tal narrador, prodigamente, não se enquadra no filistinismo de tal contradição: tal narrador é um filho aperfeiçoado de Laurence Sterne, ou, mais exatamente, desse narrador sem freios, extraordinariamente perspicaz e preparado, extraordinariamente lúcido e provido de humor, que é a maior das criações de Sterne, Tristram Shandy. Todo Seu Rosto Amanhã é explicitamente shandyniano_ Marías é tradutor premiado de Tristam Shandy na Espanha, e em um ensaio em Literatura y Fantasma admite que, ao traduzi-lo, sentiu-se com essa possessão de co-autoria que junta escritores temporalmente impossíveis em uma irmandade centrada naquele que usufrui da contemporaneidade_ , em sua inexorável tendência à digressão, em sua lentidão voluntária de atrasar um momento em suspense muito esperado da história para cair mais outra vez na divagação, em seu respeito obsessivo às pequenas coisas, em sua filosofia dedicada ao trivialesco.
Então, o narrador se apresenta: chama-se, em resumo, Jaime Deza, mas até nesse simples fato cartorial há espaço para subentendidos e cogitações sistemáticas, já que, dependendo da localidade física, Jaime se torna Jacobo, Giacomo ou Jaques. Deza é um espanhol que estudou em Oxford, tendo sido professor nessa universidade inglesa por dois anos. Ao sair de lá, tem o convite de um antigo e venerável amigo, o emblemático Peter Wheeler, para se juntar a um clube seleto e semi-secreto de espiões remanescentes do MI-5 e MI-6 (Military Intelligence), que, com o fim da guerra fria e do ambiente do pós-segunda guerra que tanto gerou-lhes atividades políticas, passaram a ter seus serviços contratados por grandes empresas multi-internacionais e pela ainda subliminarmente forte administração estatal de alguns países (sobretudo das generálias do terceiro mundo latino-americano). Deza aceita, ao ser anunciado sobre seu talento em, escondido por espelhos falsos, ou mesmo em silente observação diante as pessoas a serem avaliadas, ter a capacidade de adivinhar, através de uma perfunctória análise de expressão e gestos, o que tal pessoa estará susceptível de fazer no futuro_ o que tal rosto será, amanhã. Junto a outros profissionais da previsão _ uma espécie de precognitivos não-paranormais do romance de Philip K. Dick_, Deza dita o destino de nações, ao avaliar que tal encarregado de pegar um empréstimo destinará tal quantia a uma usurpação do governo de um país sul-americano, ou o que acontecerá no show-business ao sentenciar que tal cantor está no final de carreira e já posicionado para a decadência, não devendo o mercado fonográfico apostar mais fichas nele.
Mas, como foi dito, o enredo fica em segundo plano. Aqui, o que interessa, e é a força motriz da grandeza de Marías, são as digressões e análises profundas, bastante poéticas e filosóficas, que intercalam incessantemente todo o livro. O que vale dizer é que, tais digressões, são menos gratuitas que as do mestre de Marías, Laurence Sterne, ou, melhor dizendo, uma hora ou outra perdem sua pureza shandyana e deixa entrar a luz trágica da outra influência capital do autor, Joseph Conrad. Grande parte desse primeiro volume se centra na história da traição sofrida pelo pai de Deza por um grande amigo, na época do ápice da glória de Franco, e de como o pai perdeu toda vida intelectual ou influente como paga pela grande sorte de ter escapado da execução. As capas dos três volumes da edição da Companhia das Letras são obras-primas à parte e sutis informações artísticas sobre o livro_ uma atenção tocante dos editores quanto ao valor desse grande romance de Marías, demonstrando o carinho de leitores transformados em editores_, e a capa dessa primeira parte mostra as marcas de tiros desferidos na Batalha de Madri contra um prédio próximo à Gran Via. Deza mostra, num dos impactos da obra, inserido em um propósito oblíquo mas solidamente organizado e seguramente conduzido na composição fechada da narrativa, ao se atentar longamente sobre os desastres espirituais e as consequências humanas terríveis advindos com a guerra. Há cenas fortes, como o literal toureamento de um professor universitário que se nega a se curvar para os militares franquistas, e tem as orelhas e o pênis cortados, e as costas perfuradas com as lanças dos touros, antes de morrer. Outra das cenas que marca o que se seguirá de mais sério no estudo da violência, a partir do segundo volume, é a descrição do pai de Deza da conversa que ouviu no bonde, certa vez, entre duas mulheres: ao passarem de frente a uma janela de um prédio, uma das mulheres fala, da forma mais coloquial e dessensibilizada possível, que foi ali que ajudou as forças franquistas a invadirem a residência de uma família denunciada como traidora da causa, e ali ela mesma pegou o bebê de colo da família e o arremessou contra a parede, o matando. Aqui, o leitor para a leitura e se persigna; aqui, Marías mostra sua astúcia suprema de executar uma das poderosas frases musicais bombásticas e veementes que se anunciará com toda sua presença pressagiadora dali em diante.
A influência de Conrad se faz mais presente, nessas desoladas paisagens espirituais sobre a danação humana, e nos retratos imbatíveis de personalidades da obra. Os retratos de rostos e entidades feitos por Marías é coisa de regalar os olhos; é inevitável pensar que se está a ler páginas ali que são instantaneamente clássicas. Esse volume se encerra também à maneira conradiana, num longo monólogo de Peter Wheeler, que faz lembrar o monólogo do capitão Kurtz, ouvido pelo narrador às margens do rio Riva, na casa de campo de Wheeler.
Esse primeiro volume apresenta ilustrações curiosas, como a reprodução dos cartazes da campanha de persuasão do governo inglês durante a segunda grande guerra para reprimir que a população entregasse levianamente informações importantes para os espiões inimigos, incorporados no disfarce de vizinhos inofensivos. Wheeler mostra a Deza sua coleção desses tais cartazes, conhecidos como Careless Talk.
Seu Rosto Amanhã [vol 2.], Dança e Sonho
A saga se inicia com uma peroração do narrador ainda indeterminado sobre a natureza do discurso e do falar, em tons sombrios e admonitórios em que ele aconselha: "Ninguém nunca deveria contar nada, nem fornecer dados nem veicular histórias nem fazer com que as pessoas recordem seres que nunca existiram nem pisaram na terra ou cruzaram o mundo, ou que, sim, passaram mas já estavam meio a salvo no retorcido e inseguro esquecimento." O leitor se inicia na musicalidade da prosa de Marías, em sua ânsia contida, em sua ebulição de homem maduro que cruzou um limite da experiência e está além do estoicismo e da sabedoria; prescinde, pode-se dizer assim, do estoicismo e da sabedoria. Aliás, essas primeiras páginas de SRA é um minimalismo em síncope da conclusão que chegou o narrador sobre a importância do calar, do não dizer, do se isolar na indiferença estudada sobre o quanto é pernicioso a informação sobre o passado ou mesmo sobre os gestos cotidianos. É um tanto irônico que o narrador pregue tal filosofia, já que está a compor a primeira de mais de mil páginas de um trabalho que, praticamente, alcança o papeamento sobre grande parte das coisas que mobíliam os mexericos e os efêmeros interesses humanos. O narrador, que em seu fluxo incontido de falar, um fluxo que simula margear o psicótico e o autismo, esquece-se de se apresentar, ou não tem tempo para isso; exclui-se de se posicionar no enredo, não oferecendo sequer um enredo, cedendo apenas à paixão de juntar palavras, de povoar mais ainda a apregoada inutilidade de dizer com um labirinto de discursos metásticos que se desdobram em um sem fim de assuntos possíveis. Mas tal narrador, prodigamente, não se enquadra no filistinismo de tal contradição: tal narrador é um filho aperfeiçoado de Laurence Sterne, ou, mais exatamente, desse narrador sem freios, extraordinariamente perspicaz e preparado, extraordinariamente lúcido e provido de humor, que é a maior das criações de Sterne, Tristram Shandy. Todo Seu Rosto Amanhã é explicitamente shandyniano_ Marías é tradutor premiado de Tristam Shandy na Espanha, e em um ensaio em Literatura y Fantasma admite que, ao traduzi-lo, sentiu-se com essa possessão de co-autoria que junta escritores temporalmente impossíveis em uma irmandade centrada naquele que usufrui da contemporaneidade_ , em sua inexorável tendência à digressão, em sua lentidão voluntária de atrasar um momento em suspense muito esperado da história para cair mais outra vez na divagação, em seu respeito obsessivo às pequenas coisas, em sua filosofia dedicada ao trivialesco.
Então, o narrador se apresenta: chama-se, em resumo, Jaime Deza, mas até nesse simples fato cartorial há espaço para subentendidos e cogitações sistemáticas, já que, dependendo da localidade física, Jaime se torna Jacobo, Giacomo ou Jaques. Deza é um espanhol que estudou em Oxford, tendo sido professor nessa universidade inglesa por dois anos. Ao sair de lá, tem o convite de um antigo e venerável amigo, o emblemático Peter Wheeler, para se juntar a um clube seleto e semi-secreto de espiões remanescentes do MI-5 e MI-6 (Military Intelligence), que, com o fim da guerra fria e do ambiente do pós-segunda guerra que tanto gerou-lhes atividades políticas, passaram a ter seus serviços contratados por grandes empresas multi-internacionais e pela ainda subliminarmente forte administração estatal de alguns países (sobretudo das generálias do terceiro mundo latino-americano). Deza aceita, ao ser anunciado sobre seu talento em, escondido por espelhos falsos, ou mesmo em silente observação diante as pessoas a serem avaliadas, ter a capacidade de adivinhar, através de uma perfunctória análise de expressão e gestos, o que tal pessoa estará susceptível de fazer no futuro_ o que tal rosto será, amanhã. Junto a outros profissionais da previsão _ uma espécie de precognitivos não-paranormais do romance de Philip K. Dick_, Deza dita o destino de nações, ao avaliar que tal encarregado de pegar um empréstimo destinará tal quantia a uma usurpação do governo de um país sul-americano, ou o que acontecerá no show-business ao sentenciar que tal cantor está no final de carreira e já posicionado para a decadência, não devendo o mercado fonográfico apostar mais fichas nele.
Mas, como foi dito, o enredo fica em segundo plano. Aqui, o que interessa, e é a força motriz da grandeza de Marías, são as digressões e análises profundas, bastante poéticas e filosóficas, que intercalam incessantemente todo o livro. O que vale dizer é que, tais digressões, são menos gratuitas que as do mestre de Marías, Laurence Sterne, ou, melhor dizendo, uma hora ou outra perdem sua pureza shandyana e deixa entrar a luz trágica da outra influência capital do autor, Joseph Conrad. Grande parte desse primeiro volume se centra na história da traição sofrida pelo pai de Deza por um grande amigo, na época do ápice da glória de Franco, e de como o pai perdeu toda vida intelectual ou influente como paga pela grande sorte de ter escapado da execução. As capas dos três volumes da edição da Companhia das Letras são obras-primas à parte e sutis informações artísticas sobre o livro_ uma atenção tocante dos editores quanto ao valor desse grande romance de Marías, demonstrando o carinho de leitores transformados em editores_, e a capa dessa primeira parte mostra as marcas de tiros desferidos na Batalha de Madri contra um prédio próximo à Gran Via. Deza mostra, num dos impactos da obra, inserido em um propósito oblíquo mas solidamente organizado e seguramente conduzido na composição fechada da narrativa, ao se atentar longamente sobre os desastres espirituais e as consequências humanas terríveis advindos com a guerra. Há cenas fortes, como o literal toureamento de um professor universitário que se nega a se curvar para os militares franquistas, e tem as orelhas e o pênis cortados, e as costas perfuradas com as lanças dos touros, antes de morrer. Outra das cenas que marca o que se seguirá de mais sério no estudo da violência, a partir do segundo volume, é a descrição do pai de Deza da conversa que ouviu no bonde, certa vez, entre duas mulheres: ao passarem de frente a uma janela de um prédio, uma das mulheres fala, da forma mais coloquial e dessensibilizada possível, que foi ali que ajudou as forças franquistas a invadirem a residência de uma família denunciada como traidora da causa, e ali ela mesma pegou o bebê de colo da família e o arremessou contra a parede, o matando. Aqui, o leitor para a leitura e se persigna; aqui, Marías mostra sua astúcia suprema de executar uma das poderosas frases musicais bombásticas e veementes que se anunciará com toda sua presença pressagiadora dali em diante.
A influência de Conrad se faz mais presente, nessas desoladas paisagens espirituais sobre a danação humana, e nos retratos imbatíveis de personalidades da obra. Os retratos de rostos e entidades feitos por Marías é coisa de regalar os olhos; é inevitável pensar que se está a ler páginas ali que são instantaneamente clássicas. Esse volume se encerra também à maneira conradiana, num longo monólogo de Peter Wheeler, que faz lembrar o monólogo do capitão Kurtz, ouvido pelo narrador às margens do rio Riva, na casa de campo de Wheeler.
Esse primeiro volume apresenta ilustrações curiosas, como a reprodução dos cartazes da campanha de persuasão do governo inglês durante a segunda grande guerra para reprimir que a população entregasse levianamente informações importantes para os espiões inimigos, incorporados no disfarce de vizinhos inofensivos. Wheeler mostra a Deza sua coleção desses tais cartazes, conhecidos como Careless Talk.
Cartazes do Careless Talk, em Seu Rosto Amanhã 1 |
Seu Rosto Amanhã [vol 2.], Dança e Sonho
A capa que a Companhia das Letras
escolheu para o segundo volume é ainda mais sutil e eloquente: uma escadaria
fotografada de maneira enviesada em que apenas os que passaram pela leitura do
primeiro volume percebem a mancha de sangue em um dos degraus. Na noite que antecede
o convite de Wheeler para o narrador ingressar no trabalho de leitura de
rostos, Deza vê no degrau da casa de Wheeler uma poça de sangue misteriosa, que,
questionando na mesa de almoço sobre o fato, tanto a governanta quanto Wheeler
demonstram um desconhecimento tão cabal sobre o assunto que o próprio Deza
passa a pensar ter tido uma alucinação. Esse acontecimento
nebuloso retorna repetidas vezes ao longo do livro, só sendo revelado no penúltimo
capítulo do volume final. Mas a insinuação muito bem construída por Marías da
imperenidade da existência com a aliteração desta cena, e do caos que se
instala quando se pressupõe a aquisição do poder através da violência, seja
esta institucional ou pessoal, dá o ensejo à entrada definitiva em um dos
principais temas do romance, sendo este a citada violência.
Quase toda a ação desse
volume se passa em slow-motion em um banheiro de deficientes físicos de uma discoteca
londrina, em que Deza acompanha passivamente a um de seus chefes atacar com um
espada a um adido cultural que perdeu a postura na pista de dança com a esposa
de um chefão. É o volume de menor número de páginas, e o único que não
apresenta gravuras, e o mais próximo das tensões esperadas pelo público leitor
que queira ver traços do cinema e da literatura norte-americana de
entretenimento de massas. Aqui Marías se revela um mestre do suspense retardatário;
atrasa o máximo ao leitor saber se haverá um assassinato por decapitação, ou se
tudo não é somente uma ameaça engendrada como imposição meramente vaidosa de
poder pessoal. Enquanto o braço de Tupra, o chefe imediato de Deza, desce com a
espada por sobre o pescoço da vítima, que está semi-desmaiada no chão do
banheiro, a verve shandyana de Marías retorna nas divagações paralelas
incontidas que misturam o trivial ao universal. A brutalidade que perfaz esse
segundo volume, mesmo revestido ainda da elegância perspicaz da música de
Marías, é um tanto impactante, e vai descambar para a ação no último volume em
que o próprio narrador se embrenha em equiparar-se àquele que antes condenava.
Seu Rosto Amanhã [vol 3.] Veneno, Sombra e Adeus
Esse é o volume que tem maior número de páginas. Inicia-se imediatamente de onde o volume 2 se encerra. Há de se falar que são muitas tramas paralelas, impossíveis de serem citadas mesmo em uma resenha tão extensamente pedante quanto esta. Daí que inicia-se de onde a principal trama se encerra. Estão, Tupra e Deza, na casa desse primeiro, tendo um tenso diálogo sobre a natureza da violência, sendo que Tupra, do alto de sua indiferença magnética, que tanto seduz e repudia a Deza, apresenta a sua teoria Mansfield-Kennedy, como lenitivo para que Deza não se assuste tanto com as demonstrações de crueldade cometidas por ele na discoteca onde se finaliza o volume antecedente. Para ilustrar melhor suas tentativas de resgatar o colega para a tranquilidade e a racionalidade corriqueiras lesadas, mostra uma foto involuntariamente cômica em que aparece Sophia Loren, sentada diante a mesa de um restaurante, na atitude entre curiosa e invejosa, olhando furtivamente para o interior do largo decote de uma atriz até então no auge da fama, chamada Jayne Mansfield, sentada a seu lado. A foto vem estampada na página 32 da versão brasileira.
Marías começa por expressar o diálogo em torno dessa foto com um aerado humor descritivo, tão típico de um sterniano carimbado. O leitor vê além da foto; vê através dos olhos de Deza, profissional treinado para enxergar o que está por detrás das armadilhas da superfície ludibriadora, e vê através do olhar incisivo do grande escritor Marías, que, partindo da graça flagrante do olhar cobiçoso de Sophia Loren, algo tão desprovido de transcendência ou de memória prolongada, deriva para a tendência humana à ruína, à auto-destruição e à violência. Com essa foto cômica, Marías constrói uma extravagante mas bem fundamentada teoria sobre a efemeridade das glórias terrestres, o que se vê como um dos temas de todos os seus outros romances ( há um belíssimo ensaio em Literatura y Fantasma, em que ele narra o que os assessores de alguns imperadores romanos assopravam nos ouvidos do monarca no momento da coroação: E no entanto, recorde-se sempre de que és mortal! ). Jayne Mansfield era uma atriz em vertiginosa acensão na época da foto, ainda que seu campo de atuação fosse a de um erotismo bem mais explícito que o de Loren; mas é irrefutável que por onde passava, lançava em uma latente invisibilidade mesmo beldades consolidadas no cânone de Hollywood como Loren, devido à sua beleza exultante, excessiva, esfuziante. Tupra passa a contar o que ocorrera com Mansfield, o que de todo não foge da via sacra das grandes tragédias pessoais de álcool, drogas e sexo que determinou a queda de tantos outros que atravessaram rapidamente o tapete da fama de aparência imorredoura. Mansfield teve seus casamentos e divórcios, suas brigas bêbadas com figurões do cinema que a colocaram nas famigeradas listas negras dos grandes estúdios, se envolveu, mesmo que tangencialmente, com um palhaço que se dizia o papa do diabo, um tal de Anton La Vey, que dizia ter escrito a Bíblia Satânica, e acabou seu último dia de vida nos destroços de um carro, num acidente fatal numa estrada que matou a ela e ao amante. Por que o nome de Kennedy nesta sua teoria?, pergunta Deza. Ao que Tupra responde:
"Teria servido qualquer um desses outros nomes (que morreram drasticamente: Lincoln, Keats, James Dean, Cristo), e muitos mais, não são poucos os que devem sua celebridade máxima ou seu não esquecimento à sua forma de morrer, ou à sua hora, quando se diria que ainda não era a vez deles, ou que era injusto. Como se a morte entendesse de justiça ou se preocupasse com ministrá-la, ou quisesse entender, é absurdo. No máximo é arbitrária, é caprichosa, quero dizer que estabelece uma ordem que nem sempre cumpre, e escolhe ou descarta: às vezes vem decidida e, com todas as probabilidades, se aproxima, nos sobrevoa, olha, e de repente decide deixar para outro dia. Há que ter muita memória para se lembrar da cada vivo sem deixar escapar ninguém. Sua tarefa é infinita, e mesmo assim a realiza com uma minúcia exemplar há séculos. Que servo eficaz, que nunca cruza os braços nem se cansa. Nem se esquece."
Marías está a nos dizer como aquele filósofo que afirmou que o grande mal da história é o homem querer sair para fora do umbral de sua casa. Deza, que sempre suspeitou que seu talento para ver o futuro no rosto dos chefes militares do terceiro mundo e artistas decadentes não passava de um engodo pessoal alimentado pela necessidade de seus contratantes, não consegue ver seu próprio rosto amanhã. Explora mesmo o psiquismo profundo e velado de há séculos falecidos rostos de condes e condessas retratados nos quadros do Museu do Prado, mas não adivinha que o repúdio que lhe causa a violência de Tupra não o impedirá de cometer a mesma extrema violência com o amante de sua ex-esposa Luisa, o pintor de falsificações Custardoy. Suspeitando que Custardoy espanca Luisa, e temendo que, em decorrência, este venha e ocupar em definitivo o espaço que a separação deixara junto a Luisa, acarretando em uma ameaça para a segurança de seus filhos, Deza se lança em um plano de vingança que ocupa o suspense de grande parte de SRA 3.
Marías conclui esse esplêndido romance contradizendo a norma filosófica que abre o livro e se repete ao longo de suas infinitas páginas, a necessidade de se calar, a vanidade da fala e o total desplante do verbo. O leitor fica querendo ouvir mais e mais as perorações de Marías/Deza. Mas Marías nos dá um ingrediente final de seu já vasto universo de recolhimento livresco: nos apresenta, enfim, os verdadeiros Peter Wheeler e o pai de Deza. Uma foto nos mostra o encanecido Wheeler, que foi Peter Russell na vida real, e o pai de Deza, com todas as suas confissões de dignidade de exilado incorruptível e estoico, é o pai do escritor, o filósofo Julián Marías.
Seu Rosto Amanhã [vol 3.] Veneno, Sombra e Adeus
Esse é o volume que tem maior número de páginas. Inicia-se imediatamente de onde o volume 2 se encerra. Há de se falar que são muitas tramas paralelas, impossíveis de serem citadas mesmo em uma resenha tão extensamente pedante quanto esta. Daí que inicia-se de onde a principal trama se encerra. Estão, Tupra e Deza, na casa desse primeiro, tendo um tenso diálogo sobre a natureza da violência, sendo que Tupra, do alto de sua indiferença magnética, que tanto seduz e repudia a Deza, apresenta a sua teoria Mansfield-Kennedy, como lenitivo para que Deza não se assuste tanto com as demonstrações de crueldade cometidas por ele na discoteca onde se finaliza o volume antecedente. Para ilustrar melhor suas tentativas de resgatar o colega para a tranquilidade e a racionalidade corriqueiras lesadas, mostra uma foto involuntariamente cômica em que aparece Sophia Loren, sentada diante a mesa de um restaurante, na atitude entre curiosa e invejosa, olhando furtivamente para o interior do largo decote de uma atriz até então no auge da fama, chamada Jayne Mansfield, sentada a seu lado. A foto vem estampada na página 32 da versão brasileira.
Foto que embasa a extravagante teoria Mansfield-Kennedy, sobre a tendência universal humana à ruína, à auto-destruição e à violência |
"Teria servido qualquer um desses outros nomes (que morreram drasticamente: Lincoln, Keats, James Dean, Cristo), e muitos mais, não são poucos os que devem sua celebridade máxima ou seu não esquecimento à sua forma de morrer, ou à sua hora, quando se diria que ainda não era a vez deles, ou que era injusto. Como se a morte entendesse de justiça ou se preocupasse com ministrá-la, ou quisesse entender, é absurdo. No máximo é arbitrária, é caprichosa, quero dizer que estabelece uma ordem que nem sempre cumpre, e escolhe ou descarta: às vezes vem decidida e, com todas as probabilidades, se aproxima, nos sobrevoa, olha, e de repente decide deixar para outro dia. Há que ter muita memória para se lembrar da cada vivo sem deixar escapar ninguém. Sua tarefa é infinita, e mesmo assim a realiza com uma minúcia exemplar há séculos. Que servo eficaz, que nunca cruza os braços nem se cansa. Nem se esquece."
Marías está a nos dizer como aquele filósofo que afirmou que o grande mal da história é o homem querer sair para fora do umbral de sua casa. Deza, que sempre suspeitou que seu talento para ver o futuro no rosto dos chefes militares do terceiro mundo e artistas decadentes não passava de um engodo pessoal alimentado pela necessidade de seus contratantes, não consegue ver seu próprio rosto amanhã. Explora mesmo o psiquismo profundo e velado de há séculos falecidos rostos de condes e condessas retratados nos quadros do Museu do Prado, mas não adivinha que o repúdio que lhe causa a violência de Tupra não o impedirá de cometer a mesma extrema violência com o amante de sua ex-esposa Luisa, o pintor de falsificações Custardoy. Suspeitando que Custardoy espanca Luisa, e temendo que, em decorrência, este venha e ocupar em definitivo o espaço que a separação deixara junto a Luisa, acarretando em uma ameaça para a segurança de seus filhos, Deza se lança em um plano de vingança que ocupa o suspense de grande parte de SRA 3.
Marías conclui esse esplêndido romance contradizendo a norma filosófica que abre o livro e se repete ao longo de suas infinitas páginas, a necessidade de se calar, a vanidade da fala e o total desplante do verbo. O leitor fica querendo ouvir mais e mais as perorações de Marías/Deza. Mas Marías nos dá um ingrediente final de seu já vasto universo de recolhimento livresco: nos apresenta, enfim, os verdadeiros Peter Wheeler e o pai de Deza. Uma foto nos mostra o encanecido Wheeler, que foi Peter Russell na vida real, e o pai de Deza, com todas as suas confissões de dignidade de exilado incorruptível e estoico, é o pai do escritor, o filósofo Julián Marías.
Tudo isso sobre Marías?
ResponderExcluirLi uma matéria quase entrevista publicada na Folha deste sábado, acerca do lançamento de Enamoramentos, onde Javier fala umas generalidades sobre literatura, e o suposto "entrevistador" o enquadra como "excêntrico".
Olha pra cara dele. Rapaz, eu não consigo gostar da cara dele. Tem um jeitão petulante, presunçoso, de quem sabe que não sabe porra nenhuma mas que, ao contrário de Sócrates, não vê isso como princípio de humildade, mas de razão soberana. Se bem que o Sócrates...
A cara dele não é uma das melhores mesmo não. Aliás, qual escritor tem uma cara simpática? (Tento lembrar de algum aqui,... mas nada).
ExcluirEu evito ao máximo ver ou ler entrevistas de escritores. Mesmo as ditas entrevistas antológicas da Paris Review me causam asco. Lembram-me os atores da Globo querendo dar uma de entendidos em política e filosofia. Acho muito digno os escritores que se negam a entrevistas, como o Rubens Alves e o Thomas Pynchon. Entrevistas são péssimos merchandising para o escritor. Lembro da entrevista que o Saramago deu no Jô, após ganhar o Nobel: a empáfia do escritor, sua grotesca arrogância, sua determinada indisposição para não rir. Se eu já não tivesse lido Saramago, após essa entrevista, talvez jamais o teria lido.
Um crítico comparou Marías a Henry James. James era aristocrata, mas um grande escritor. Penso que Marías também o seja.
Seria Rubem Fonseca?
ExcluirValeu a correção, Cassionei!
Excluirseu rosto amanhã, javier: sidney magal.
ResponderExcluirrepara só.
Os três volumes devem ser lidos em sequência?
ResponderExcluirSim, Sérgio. As histórias se completam cronologicamente.
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