Quando não tenho nada para fazer, visito a livraria da minha cidade. Minha cidade tem 25 mil habitantes e é um milagre que tenha uma livraria. E uma livraria de considerável porte, diga-se de passagem. Nesses 9 anos que moro aqui, ela sofreu inúmeras modificações estruturais: enlargueceu, encurtou, trocou de lugar, voltou para o antigo lugar, distendeu, tornou dependente de uma lotérica que fica ao lado, e, por final, pelo tempo que dura o ocaso da imaginação de sua proprietária, hoje descansa em um corredor de sete metros afundado entre dois estabelecimentos numa espécie de requintado mercado árabe, com suas luzes fluorescentes e estantes que nunca conseguem ter a dignidade de distinção de gêneros que a implacável atração das funcionárias para a entropia as negam. Dessa forma, as estantes são forradas de livros evangélicos, pornôs, best-sellers e clássicos de bolso, no mesmo espaço, como se fosse uma comunhão marcial de cores cândidas e lombadas desinfetadas de malícia ou intenções espirituais de qualquer tipo que se subtraem altivamente dos preconceitos que os olhares dos visitantes querem colar a elas. Nesses 9 anos, devo admitir sem modéstia, foram muitas as contribuições minhas para que o pequeno estabelecimento se mantivesse na ativa. Já sou alguém da casa, como se diz, e tenho a convicção que meu nome ali virou uma referência estatutária de gosto que tanto serve para o caminho oposto, o de espantar possíveis leitores de um livro, quanto para a benesse de aproxima-los de algumas publicações que chegam ali aventureiramente. Como sou uma das três excêntricas pessoas que são vistas constantemente na companhia de livros, alguns dizem que seria loucura levar para casa um dos calhamaços de 400 páginas que com certeza estão por detrás da minha aparência indelével de insensatez. Já os livros de história que eu recomendo às livreiras que tragam são muito apreciados pela muitas vezes facilmente impressionável classe de universitários locais.
Mas no início as coisas não eram tão fáceis assim. Como sempre repito, o casamento e a paternidade restituíram algo que meio mundo julgava perdido por completo para mim_ a outra metade acreditava que eu nunca havia possuído para poder perder_ : a normalidade cívica. Entrar na livraria como um solteirão semi-recluso, sem muita disposição à conversa além de piadinhas triviais sobre o tempo, e gastar longos minutos a ficar vendo atentamente somente e espetacularmente livros (!!!), era algo que não descia pelas gargantas em alerta das vendedoras. Mesmo na porraloquice daqueles tempos, eu tinha uma vestigial bússola de minha situação para perceber que a tão cantada reputação social dependia em parte da impressão que aquelas moças tinham de mim, daí que, somente anos depois (para minha sorte), vim a descobrir, através de uma amiga, que haviam diversos Charlles itinerantes e paralelos trafegando por essa minúscula mas sempre verbalmente ativa cidade: um consumidor contumaz de ervas proibidas pela legislação, que chegava a estocar fardos odorificamente fumáveis em sua casa; um comunista à espera de seja qual oportunidade para seja qual ato de terrorismo que iria acabar de vez com a modorra cotidiana da cidade; um pederasta ultra-discreto que se sentava nas praças trajando roupas negras e portando um dos disfarçáveis livros nas mãos; um homem sem coração a quem atribuíam gravidezes indesejadas e cujo passatempo insensato era perverter mulheres casadas, e, por último, o mais estranho, um Charlles que era um policial a paisana que estava ali para treinar a elite das polícias em técnicas ultra-secretas franquiadas pelo exército de Israel. Além da esposa e filhos, a calvície e a gordura abdominal me tornaram amplamente aceito, às custas da extirpação definitiva dessas cogitações românticas. A aproximação da velhice tem suas vantagens tristes: deixei de despertar as apreensões de bucaneiro despatriado capaz de tudo para ser apenas o dono honorável e por direito de uma confortável poltrona, que entra ali para diversificar as histórias e os enredos que irão balançar seus sonhos de fuga enquanto a digestão do jantar se realiza da maneira mais aprazível possível.
Isso sempre me pareceu parte da graça: que alguém submetido à força compulsiva da leitura se defronte com duas moças treinadas para receberem-me que veem os livros como bijuterias sem a mínima transcendência que não a de misterioso e particular uso doméstico que não lhes importa nem um pouco intuir qual seja, assim como não lhes importariam saber se ali se vendessem algemas, bastões de beisebol e incensórios, e eu toda semana comprasse maniacamente um bastão de beisebol e um incensório e elas não dirigissem entre si, enquanto empacotam a mercadoria e me perguntam pela saúde dos filhos ou assinalam na mais sincera preocupação a quantas andam as variações do clima, nenhum sorriso velado nem sinais cifrados por debaixo da mesa. Elas vivem em um tempo bíblico antes da queda e parecem inalcançavelmente felizes, não-tocáveis e imunes em suas intenções e tocabilidades e aparentes entregas. Talvez, por esse desconhecimento virginal tocante que as atuais atendentes apresentam, me passa ao entrar ali que elas são entidades flutuantes embrenhadas neste lado de cá em esmerada educação e sorrisos, mas cujas atenções reais estão dispersas em uma outra dimensão em que prescindem daqueles livros e daquelas revistas, daqueles tormentos de condensação temporal que para elas são alvo de completa indiferença. Por isso, eu penso, está aqui um compêndio de trezentas páginas dos melhores contos eróticos de uma revista masculina, o best-seller de um padre adaptado para crianças, as primeiras estórias de Guimarães Rosa, e um Vade-Mecum com o códigos inapetitosos do direito, todos lado e lado e com o semblante de inarredável impunidade. Assim, ao encomendar o Ulysses de Galindo e tê-lo em mãos, enquanto observava as caixas de livros empilhadas para serem depositados a esmo nas estoicas estantes, uma das atendentes escora-se na parede e me pergunta de que trata Ulysses. Eu fico bem meio minuto procurando com afinco o que lhe responder, penso no judeu errante pela Dublin concupiscente, as sempre maravilhosas energias espirituais transitando em incrível generosidade pelo livro, as frases as quais me dá vontade de abnegar-me fantasiosamente de tudo e me mudar para dentro delas, habitar o centro do discurso, como disse um escritor americano, o riso libertador... tento concentrar todo o amor que sinto por esse livro naquele prólogo de angustiado silêncio, que deve quase turgir meu rosto de vermelho, consciente da completa leviandade de minha parte em levar a sério o questionamento de uma moça que só me pergunta por coqueterismo comercial.
Daí, ela mostra que a pergunta era ainda mais retórica que eu imaginava, era uma ponte para que me informasse que haviam sido encomendados dois Ulysses pela livraria. Penso rapidamente nos dois ou três amigos que poderiam ter feito essa abominação, e cito em voz alta seus nomes. Não, a livreira me responde, quem encomendou-o foi a Mel. Fico transtornado e sem palavras, a mesma reação que se tivessem dito que um disco voador havia descido nos campos da cidade noite passada e dele saído uma alienígena. A funcionária fala com a mais prosaica das vozes, como se necessitasse morder as unhas para condizer-se com a sensaboria que era para ela aquela tremenda notícia que me passava. Mel?, quem é essa Mel? Aluna de Letras?, pergunto. Não, ah! Vai me dizer que você não conhece a Mel, ela está sempre por aqui olhando os livros. Questiono pela sua aparência física, ao que ela me responde: uma menina assim (aponta para a sua testa), dessa altura... não acredito que não conhece a Mel??
Daí que estou em estado de beatitude sabendo que uma moça, a Mel, está lendo Ulysses, na mesma cidade onde moro, dividindo o mesmo calor cruel de setembro, se aportando com o mesmo carinho e deslumbre para aquelas mil páginas revigorantes. A Mel reservou 47 reais para comprar Ulysses, passou na livraria antes de mim, pois seu volume já não estava lá quando cheguei, o que pode demonstrar o grau de ansiedade que estava para ter o Ulysses. Quando eu era um nababo que me intoxicava de canabis, pulava as cercas das casas das mulheres já não tão bem casadas, me deitava com rapazes capturados das dissimuladas leituras nas praças públicas, e ensinava os homens da força técnicas de muay thai, saber que a Mel existe teria despertado minha paixão platônica. Hoje, o senhor da poltrona cola os olhos e suspira, apostando que sua filha, assim como a Mel, breve estará fazendo fila entre os que amam Ulysses.
Coitada da Mel.
ResponderExcluirMuitos diriam o mesmo da Caminhante quando esta dizia que adorara Faulkner.
ExcluirA julgar pela "foto" do pézinho da Mel que encabeça essa crônica, dá-se como certo que o Charlles empertigado na poltrona não reclama um lugar tão soberano assim.
ResponderExcluirMel, que atravessa a cidade com os pézinhos elevados pelo delicado sapato alto plataforma para comprar um dos dois exemplares de Ulysses. Fetiche de homem letrado é um troço muito interessante.
Passo pra dizer que preciso depois te dar o código de rastreamento do Sabbath Theater
Hahahaha. Estava sem tempo para procurar uma ilustração melhor para o post, e me surgiu esta. Acho que a Mel deva sim ser bem articulada.
ExcluirTalvez a Mel se decepcione com o livro. Talvez ela recorra a ele como arma para acertar sua testa. Talvez ela, em seu monólogo interior, esteja a dizer sim àquele outro que adquiriu outro exemplar do livro, e talvez você esteja impulsionado por uma fantasia erótica de consequências mais funestas que aquelas descritas no livro. Talvezes são sempre ótimos.
ResponderExcluirMeu erotismo passa longe dessas fórmulas subliminares. A única coisa que realmente levo em conta de Freud é que, às vezes, um charuto é só um charuto.
ExcluirEngraçado: o entretenimento da literatura é tão sui-generis que aceita o desgosto. O que importa é o impacto que o produto inteiro causa no final. Lá no post do Milton sobre o Vermelho e o Negro, por exemplo, há relato sobre o tédio das primeiras páginas desse magistral romance de Stendhal, superados com vigor e altamente recompensados pelo que se segui na leitura. Sem soluções fáceis, é o grande tesouro que a Mel, no mínimo, tem pela frente.
Eu conheço a Mel.
ResponderExcluirOntem, em um barzinho bucólico daqui, em uma praça com palmeiras imperiais e muitas árvores, enquanto esperávamos um caldo de galinha, passa por minha mesa uma mulher assobiando o que para mim, após minutos de procura mental, era aquela frase mais terna do primeiro movimento da quarta sinfonia de Mahler. Seria a Mel?
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ExcluirComo eu dizia, se um dia você pegar um barbudinho tentando assobiar todo o solo do Coltrane da primeira faixa de Love Supreme já sabe quem é.
ExcluirE olha só o que o seu blog me fez digitar agorinha mesmo para verificar que eu não sou um robô,
Excluir169 mceporn
Mc Porn! Isso é que é miscigenação virtual completa: estampa do Mishima, adepto do jazz, leitor de literatura latino-americana, doutor em Cristo histórico (andei pesquisando sobre o seu nome completo que me ofereceu), e agora frequentador do pancadão pornô barra-pesada. Puro personagem de Thomas Pynchon!
ExcluirCara, um dos meus mantras de todo dia é assobiar aquela abertura de A Love Supreme, e Cheese Cake, do Dexter Gordon. Não há um dia que eu não faça isso, mesmo inconscientemente.
Cheese Cake do Gordon eu nunca tentei. Vou experimentar. O meu repertório no assobio vai de Prayer for a Passive Resistance, Lonely Woman (na versão de The Shape of Jazz to Come) e, quando busco algo mais para o melodioso, Scrapple from the Apple. Mas vez ou outra eu pego minha esposa rindo de mim por, absorto, estar cantarolando ou soprando Biafra ou algo que o valha.
ExcluirDoutor em Cristo Histórico... me senti agora palestrante de Teosofia...
Desde o meu mestrado não me pergunto mais sobre a existência do indivíduo. Mas o repórter da Super-interessante continua periodicamente me ligando perto da Páscoa para saber das novas sobre a tumba de Jesus.
Precisamos falar mais sobre essa sua formação fascinante aí, Luiz. Vi especulações sobre seu nome no site de revistas de história importantes, mas você cultiva uma modéstia charmosa e me reluto a investir contra ela. Tá certo, tá certo: você vai dizer que já me convidou para o Skypes (é isso?), mas eu recusei. Mas você não tem respondido emails meus, ou não os tem recebido. (DR aqui no blog?)
ExcluirAssobio muito jazz. Também ouso com o Parker, mas é muito difícil (Parker`s Mood, Star Eyes, Scrapple from apple, etc.), e meu sonho é conseguir reproduzir os solos de Coltrane e Cannonball em Flaminco Sketches. Descobri que Desmond é único em Take Five_ se nem Gerry Mulligan consegue ficar à altura, o que dizer dos assobiadores. E gosto também daquela loucura do Coltrane em "milestones", sempre me perdendo nos primeiros acordes. Uma ótima do miles para assobiar é "I Don´t Wanna Be kissed (By anyone but you)", experimente.
Minha esposa me pega_ e eu me pego_ sempre distraidamente assobiando o tema do desenho O Mundo de Bob. Tatãtã-rararã-rarãrã-rã.
Meu caro,
ExcluirNão tenho recebido nada seu. Você pode repassar os e-mails?
Você mandou para o e-mail institucional da Universidade?
Acho que o último bilhete que recebi de você data do ano passado.
Olha, as vezes o que parece modéstia não passa da mais singela tentativa de se reinventar.
Mandei, creio, uns três e-mails, dois mais para confirmar o envio do primeiro. Mandei para aquele e-mail que me passou. Mas diversas pessoas tem reclamado que meus emails não tem chegado.
ExcluirCharlles,
ExcluirEu não gosto de ficar usando a caixa de comentários do blog para esse tipo de coisa... mas recebeu aí por acaso o número de rastreamento? Continuo não recebendo nada da sua parte.
Não seria o caso de você repensar esse seu e-mail do BOL?
Recebi. Vou mudar a plataforma do e-mail, pois te enviei uma resposta agradecendo.
ExcluirO melhor dos talvezes seria - enquanto melhor dos futuros do pretérito - que tudo fosse jogo genial da esposa do Charlles. Seria um pouco TOTALITÁRIO de sua parte, é claro, adonar-se inclusive de suas fantasias, mas sem dúvida seria hilário.
ResponderExcluirMas então foi encontrar tua esposa aí no interior de Goiás mesmo?
[tbm fiquei sabendo depois de outros Rômulos... sempre são os mesmos: meus cabelos, antigos, tbm me levavam, diziam, soube depois, aos cigarrinhos do capeta. q nunca experimentei, diga-se, não sei bem por quê.]
Fiquei a pensar nesse enredo meio fantástico. Mas eu é que passo horas a confabular distrações surrealistas para a pobre da Dani (a conheci aqui nessa cidade). Certa vez, quando ela dava aula em uma cidade um quanto distante, aproveitei que ela estava em atividades na sala de aula, e liguei para o celular dela 57 vezes. Ela deixara no silencioso, e dentro da bolsa. Chamava, chamava, eu desligava e tornava a ligar. 57 vezes! Meu intento era_ que doce tolice_, quando ela visse o exagero, dizer que era por causa da minha saudade. Daí, quando ela está voltando para casa, rumo ao ponto de ônibus, ela saca o celular para confirmar as chamadas, e se assusta com 59 chamadas não atendidas. O coração dela dispara diante o preságio de alguma desgraça. Acontece que o último nome registrado no aparelho era o da sua mãe, que lhe ligara duas vezes apenas. Ela se senta na calçada, desesperada, e corre a ligar para a mãe. A mãe, numa absoluta tranquilidade, diz que ligou para saber onde ela colocara a conta de luz. "Mãe", a Dani diz, "puta da vida, e precisa ligar esse tanto de vez para me perguntar isso, tá louca?" Minha sogra, embasbacada, e a chamada é desligada...
ExcluirTantos rômulos, tantos charlles... qual os verdadeiros :-))
HAHAHA
ResponderExcluirA Mel pode ter comprado o Ulisses apenas para impressionar um pretendente intelectual. Para alguns o fetiche é um salto, para outros é um livro difícil.
ResponderExcluirNão, acho que já passei dessa fase. E não é depois de ter descoberto dolorosamente que a literatura não serve para cantadas, nas minhas desconcertantes poses de poeta laureado, que eu me veria ironicamente alvo desse mesmo tipo de erros ingênuos.
ExcluirCharlles, mesmo conhecendo q o futebol pouco te diz... venho sempre te ler, e raramente escrevo, então, já q esses dias escrevi, colo aqui:
ResponderExcluirhttp://impedimento.org/2012/09/04/volta-olimpico/