quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Topografia ( tipos brasileiros comuns)



Um colega de trabalho me mostra, orgulhoso, um vídeo pelo celular em que ele filma seu filho de dez anos com uma jiboia enrolada no braço. Estavam indo para a fazenda, se depararam com a cobra, ele parou e obrigou seu filho a pegá-la. É nítido a cara de terror do menino, enquanto fala "chega, pai", e o pai admoesta: "deixa de moleza home". Mais tarde fico sabendo de um amigo que ele faz esse tipo de disciplina radical porque teme que a voz fina do filho não seja apenas um traço da idade.

Ontem esse colega estava defendendo o Bolsonaro. Eu lhe digo sobre o posicionamento dessa figura quanto à educação dos filhos, que eles devem levar uns bons tabefes para engrossarem a voz, e esse colega me responde: "Mas não é assim que tem que ser? Você não tem um filho homem?" Eu lhe digo que é um tanto estranho ele, um homem negro, defender um racista, e ele me responde, literalmente: "Alguns negros merecem o racismo".

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Hoje minha esposa me relata o episódio que aconteceu na escola militar de nosso sobrinho, o Rui. O ônibus escolar chegou dez minutos mais cedo ao colégio, e os alunos foram barrados na entrada: não podiam entrar tão adiantados. Uma chuva os pega e ficam Rui e seus amigos enfrentando-a diante os portões rigidamente fechados da instituição. A farda encharcada, fora dos padrões da impecabilidade marcial militar, faz com que eles não possam entrar no colégio em definitivo nesse dia. Alguns telefonam para os pais, mas o Rui não tem pai e as únicas pessoas que o podem buscar são a avó, que não pode porque está acamada com labirintite, e a mãe, que não pode sair do trabalho. O Rui, que já foi assaltado e levaram-no o relógio, que é uma criança ressabiada e algo assustadiça, fica rondando pela cidade por cinco horas até dar o horário de entrar no ônibus de volta. Sua mãe paga 150 reais de mensalidade para isso que é tido como colégio público e gratuito, gasta 750 reais por ano com a farda, e mais 500 reais por mês do transporte vendido pelos próprios administradores do colégio. Eu sempre falo para a Dani que não consigo imaginar o Rui nesse tipo de instituição, e ela me diz que sua irmã prefere isso à escola pública convencional, com o tráfico de drogas, o bullying, a violência e a ingerência e a péssima qualidade do ensino.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

O quadro em branco na parede

Anselm Kiefer, Heroic Symbols, 1969


Chego ao escritório hoje e tenho que ouvir os mesmos clichês, as mesmas ladainhas, as mesmas ideias fixas e o mesmo ódio que pretende ser debochado. Me resta concordar com tudo, rir e levar na esportiva; não dói nada ser falso, tamanha a minha consciência de que contestar esse muro é não só inútil quanto demasiadamente desgastante. Eu não estou certo, não me ponho nessa situação em momento algum, apenas optei por descartar o máximo de relativismo que me seja possível. Já expliquei isso antes para alguns colegas, mas ou parece que eu é que estou num estágio de fundamentalismo, ou eles é que são incapazes de enxergar algo que não seja o desesperado utopismo. Querem um futuro que não cabe em nossa medida como povo, uma redenção vinda de não se sabe de onde. A vingança que estão tendo nestes dois últimos dias não lhes parece mais doce; eles esperavam uma catarse completa, uma expiação que proporcionasse a simplicidade inquestionável da dicotomia bem/mal, e não tiveram. Estão em um desbaratino tão delicado que não podem se por como logrados, porque isso destruiria de uma vez as suas já frágeis certezas. Me recordo então do Herzog, um dos personagens do grande Saul Bellow que moram comigo eternamente, ele andando por Chicago se questionando se realmente lera os livros certos e se ao lê-los não fora um tanto preguiçoso, se a verdade lhe escapara. Cogito se eu não estou errado; diante essa malta de pessoas que se regala com o conforto da certeza comunitária, se eu não deveria fazer o mesmo, a história não se avultará para provar que a voz de deus é a voz do povo e eu não passo de um esnobe tolo. Afirmar isso seria jogar no lixo todos os livros de história e toda a impactante literatura política que me passou pelas mãos, eu os entendendo ou não. Capitular seria mentir para toda a minha vida em que me preparei, mesmo não tendo a consciência disso na maior parte do tempo, para a ocasião inevitável em que eu estaria absolutamente sozinho. A busca do esclarecimento não passa disso: se preparar para o momento inevitável em que a solidão o segregará do poderoso senso comum; tornar-se mestre do silêncio. Muitos indícios de que o momento está chegando, e agora eu tenho filhos, uma esposa, agora tanta gente que eu amo que falar não me parece uma boa coisa. Lembro do jovem Elias Canetti na Kristallnacht, quando o terror de estar no meio de uma massa enfurecida ditou todo seu tema de como evadir-se do pecado do coletivismo_ escreveu Massa e poder, uma bíblia e uma vacina não devidamente lida. Lembro do conto A bandeira inglesa, em que um Kertész demasiadamente lúcido descreve a euforia de meros segundos que foi a sarcástica revolução de um carro metralhado com a bandeira inglesa da libertação abortada. Aqui eles estão falando de Bolsonaro, de militarismo; um colega negro chega a falar que certa expressão do racismo é mesmo legítima. E me sobra o orgulho de conhecer uma nova força em mim, a da dissipação, a da não importância, pois espero dar a hora propícia para ligar para minha esposa para perguntar se o plano que fizemos ontem para facilitar o sono de nosso filho de 10 meses, Eric, funcionou: o de colocar um aparelho de som no quarto tocando as músicas que o fazem desmaiar durante a noite: uma partida noturna efetiva às custas de Bach e Mozart, de Mogwai e Explosions in the sky. Não sei até que ponto esse meu desinteresse corrobora com alguma coisa, se isso também não é seguir as massas. Talvez eu esteja me achando ingenuamente astucioso demais.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Facebookcionismos



Eu poderia dizer que, "a meu favor", eu percebi a grande besteira que estava para se produzir e tomei partido, mas não consigo me vangloriar disso, visto que todos estamos no mesmo Titanic. Eu era ardorosamente crítico ao PT, etc, vide no blog do Milton as discussões em que participei; de modos que todos assustaram com a minha súbita "virada da casaca". Meus amigos acham até hoje que enlouqueci, ou que me tornei alienado. Não é isso: foi algo puramente egocêntrico. Foi tipo aquela história do sujeito que reclama da casa em que está preso e quando tem a oportunidade de abrir uma porta, descobre o abismo. Melhor ficar com o que já tem e ter a maturidade de se aperceber em um grupo_ uma nação_ e batalhar pelas mudanças. E, Nelson, você deve saber o quanto te admiro, etc etc, mas desde meus 5 anos eu escuto esse humor "judaico brasileiro" (eu o chamo assim porque todo humor personalíssimo de um povo, o humor repetitivo compulsivo cujo único tema é a sina desse povo, tem algo de judaico), Jô Soares com a gaiola do pássaro "corrupto", o Chico Anysio, as tirinhas do Piratas do Tietê, e tantas e tantas outras: são quase 40 anos ouvindo a mesma coisa, meu chapa! De modos que eu me vi perguntando: peraí, o humor exige uma catarse que o destrua? Durante quantos séculos vai se rir desconsoladoramente da mesma coisa, da mesmíssima coisa por aqui? Tem um limite em que o otário ficar rindo de si mesmo, de sempre ser um otário, cansa, desespera, dá vontade de morder a testa, espuma a boca. Daí eu ter nojo, repulsa, asco, do nosso judaismo auto-penitente hoje, de nosso passo marcial seguindo alegremente para o holocausto (e aqui a figura que tenho em mente é a da natureza do carneiro em oferecer o pescoço para a faca, uma abnegação chocante e nojenta, e não a Shoá), desse humor sempre inteligente mas que, para mim, não tem mais graça. Eu tive que optar pelo posicionamento. Andei escrevendo alguns textos defendendo o Lula, e fui muito xingado, quiseram me matar. Vi que o relativismo estava fodendo nós todos, nos transformando em assassinos cibernéticos carregados de ódio, de prepotência. Admiro sim o Fernando Horta aí de cima, já compartilhei textos dele, assim como compartilhei textos seus. Talvez eu também o defenestraria porque ser alvo não é mesmo a minha praia, mas o conheci aqui e o cara tem ótimas ideias e uma visão radical cujo radicalismo me espanta por ser radical e não a atitude de procurar a mudança que deveria ser a atitude cotidiana de todos. Mas o Brasil, creio eu, vai voltar a ser o que era (se alguém tiver interesse, meu texto sobre isso se chama "Moral em pareidolia", só digitar isso acompanhado de "Charlles Campos", e pimba, o Google mostra), e a esquerda acabou. Aqui eu repito a frase do Zizék: "com essa esquerda, quem precisa da direita?". Sim, grande parte dessa ruína, principalmente a ruína moral, vem da dita esquerda nacional. Mas quando penso nisso eu me policio e estaco, porque sinto o judaísmo querendo fazer os mesmos discursos clichês, pois penso que agora o brasileiro vai se aposentar aos 70, as desproteinação das leis trabalhistas pretende demiti-lo aos 67 para que não lhe paguem a aposentadoria, seu poder aquisitivo vai desmoronar consideravelmente , e o estado vai ser vilipendiado, e já estão proliferando os Gilmar Mendes, e etc, e etc. E nem o humor mais nós temos, porque perdeu miseravelmente a capacidade de produzir riso.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Um texto ruim


                                                                 (phew for a minute there i lost myself ilost myself

Estou num processo de depressão progressiva e minha ação de abrir uma conta no Facebook só fez com que ela ficasse mais grave. Nota-se que minha capacidade de síntese também ficou muito afetada com essa ação, pelo que de imediato se vê na frase acima. Eu abri minha página no F e todo aquele ritual de montagem da minha existência entre os adeptos foi acontecendo, fato que eu contribuí fazendo apenas o que me cabia fazer, que era ficar absolutamente inerte e deixar que o organismo do F fizesse tudo por mim, me incorporasse. Coloquei as fotos que eram para ser colocadas, para que a coisa ficasse minimamente apresentável, algo que executei sem qualquer traço de empolgação, e fui respondendo até onde minha paciência aceitava as perguntas automáticas de praxe. Pronto, eu já tinha um F. Olhei a superficialidade da página, sua grotesca intranscendência, sua gritante breguice, sua fundamental ausência de interesse humano... um desinteresse tão explícito que até quando a máquina me joga suas opções de gelados contatos com outros usuários, ela me informa que fulano "comentou sua foto", pois é aceito irrevogavelmente pelo aparelho que ninguém tem conteúdo suficiente para mostrar a não ser o clichê vazio de uma foto pessoal ortodoxa, sorrisos, poses descoladas, a felicidade em falsete. Pronto, minha impressão amargurada de que ninguém está aí para a porra do outro ficara mais forte. Um bando de coitados tentando ser interessante, inteligente, intrigante, genuíno, charmoso e engraçado. É isso, meu Deus? O quanto eu estou defasado e continuarei assim até a morte, o quanto sou negativo e inadaptável. Acesso meu F, e a jornada se inicia. Antes, a construção de meu quadro de amigos, e, como não deveria deixar de ser, a necessidade de rebater aquele tanto de pornografia e más intenções que se oferecem aleatoriamente para serem meus amigos. Então a coisa está feita. Sento-me à mesa, abro meu notebook, e acesso a minha página do F. É um filme de terror. Um pavor fundo. Não dá para ler nada, para ter a empatia e o recolhimento de angariar algum valor com os tantos posts, os tantos links para matérias da hora, para textos de vários jornais do mundo, para cada oferecimento produzido pelas vaidades retumbantes dos meus amigos do que eles julgam fundamental. Não leio nada; só fico muito tempo puxando o cursor para baixo para dar uma panorâmica em tudo, embora tudo seja uma impossibilidade inalcançável. Não consigo ler mais que 4 linhas de um post. Se um post tem 5 linhas, não leio. Mas, pela boa educação_ uma cordialidade estúpida e sem sentido, visto a extrema velocidade e extrema ausência de concentração da coisa_, eu vou apertando a tecla curtir. No segundo dia, já estou em um debate com vários usuários, falando sobre livros, uma montanha de livros. Parecem-me apaixonados pela leitura, ardorosos pretendentes a intelectuais: mas onde acharão tempo para a devoção aos livros, se, pelo que se me afigura, não saem do F? Entro numa roubada de instalar o aplicativo de conversa em meu celular, e daí mesmo quando estou caminhando meus 10 quilômetros diários a parafernália não para de apitar, avisando das mensagens recebidas. Estou dirigindo, e o celular apita. De madrugada, apita. Onde essas boas pessoas acharão lugar em suas compulsões para a leitura? Alguns almejam a carreira literária, sonham com rebeldias explosivas. Há uma garota que até me espanta com a alta qualidade de seus poemas. Mas cadê o recolhimento? A depressão aumenta. Hoje eu passei cabisbaixo, envelhecido, sem energia. Li as páginas que eu escrevo em meu livro, e de repente parecem estúpidas; a estupidez é tão visível nelas que eu esmoreço, vou tomar um suco, ligo a televisão num noticiário. Me espanta meu conformismo. Tudo bem, se eu não consigo, tudo bem, deixo de lado. A negação da chama, por mais que ela seja pequena. Escrever, ora bolas, para quê? Para quem? Aquela velhas perguntas, só que bem mais fodas, bem mais realistas e acachapantes. Há tantos gênios pelo F.; tantas palavras da ordem, tanta ideia fresca e motivacional. Onde eu caibo nessa? Algumas vezes, quando eu consigo ler um texto inteiro de um desses grandes formadores de opinião de 20 mil curtidas e um milhão de amigos, eu penso: para que o mundo precisará mais do que isso? Esse cara, ou essa mulher, com suas estantes de livros ao fundo, com seus posts anteriores falando o que comeram no jantar, esses bem humorados divinatórios, limpos e perfeitos, asseclas da boa aventurança de um novo lugar comum da saúde midiática, já são o auge do esclarecimento, o que se pode exigir mais do que isso? Eles escrevem com agilidade, graça, ferocidade, tudo muito bem medido, sem pompas, como se eu batesse na porta de seus apartamentos vizinhos ao meu e eles me dessem essa incomensurável demonstração de calor biológico me explicando tudo o que eu não sei, tão acessíveis; e fazem vídeos caseiros complementado o ensinamento, em que um lance de sobrancelhas já tem o poder de ficar nas mentes por meses, abrindo espaços de significância. Literatura para quê? Diante deles, escritores como Dostoiévski, por exemplo, é um completo doente. Imagino o quanto Dostoièvski seria execrado se tivesse um F. Doente, imoral, infeliz, perverso, avesso, desconstrutivista, CHATO. Na verdade, Dostoiévski passaria batido, ninguém se importaria com ele. Mas Dostoiévski é um ponto limite, talvez não sirva como exemplo. O que quero dizer é que isso, esse simpaticismo radiante, me deixa numa tristeza só. Fico pensando se, assim como vemos hoje pela série Madmen o quanto o cigarro era incorporado na vida cotidiana de 50 anos atrás, o F futuramente seria visto como um vício extremamente perigoso que a sociedade não percebia. Porque é de uma aberração sem igual ficar todo o dia e noite acessando o F para ver essa caravana de futilidades, essa procissão de vaidades vazias e recalques desbaratados pela fantasia do conteúdo, essa inadvertida construção de uma nova razão para se ter remorso na velhice pela ostentação de não ter feito. Esse fogo fátuo das ideias. O que me assombra mais é o quanto o F prescinde de toda estética, em sua forma quadrangular, sua descansada admissão de que seus usuários são efêmeros, lembra folhetos de propaganda de supermercados e lojas de eletrodomésticos, aliás, não só lembra, mas é um folder de propaganda contínua; é como cultivar a acachapante ilusão de imprimir o espírito entre as cores aberrantes que anunciam as televisões das Casas Bahia, escrever nos interstícios do vermelho e da foto do homem gozado gritando "esse preço só até sexta-feira" a confissão pura e recolhida no fundo da alma. É uma dificuldade procurar as postagens anteriores do usuário, porque o F não foi criado para ser uma reserva progressiva de conteúdos além daquele do dia. Mas não tenho a esperança e o otimismo de acreditar que vá acontecer algum dia essa lucidez libertária de se perceber o quanto o cidadão atual virou uma besta acéfala, regido por fantasias estúpidas de pertencimento a uma comunidade global, ensandecido pelo puxa-saquismo mútuo de que é um gênio e um grande ser humano; mas não acho que vai ficar pior; o F vai acabar, sendo naturalmente substituído por outras roupagens, e o ser humano vai estacionar em sua afasia, o que tal realidade, pode-se dizer, já está acontecendo agora: o ser humano vai se limitar a ser apenas essa vontade não pragmatizada, esse ectoplasma insuflado pela promessa de que pode ser tudo através de uma masturbação cibernética, sem nunca ser nada. Não se pode dizer que se será cada vez mais inumano, porque a lógica é a inércia harmonizar tudo em um mesmo patamar de ausência de valor. Não seria tão terrível se se pudesse transferir tudo para o universo inaugurado pelo F, se tudo fosse da mesma maneira plástica e de sensibilizações amorfas e instantâneas; mas acontece que o mundo do lado de fora, o que antes era tido por mundo real, vai continuar a existir. Inteligências tornadas peculiares pelo corte da amplitude, ternuras excisadas e altruísmo atrofiado até o desaparecimento, vão propiciar um estado de dominação política e social e econômica que, pelo que tudo indica, alcançará níveis de brutalidade inéditos, em uma miríade de formas. E não haverá nada que poderia reverter essa situação, uma vez os seres humanos terem se tornado o homem apascentado e frouxo predito pelo Nietzsche. Isso são pensamentos de um depressivo, que vê a distopia como a realidade corrente, e que escreveu esse texto ruim. Sempre foi um erro e uma ingenuidade imensa acreditar que a dominação viria após revoluções sanguinárias, baderna e anarquismo, que se proibiria ler livros queimando-os todos para que a população não tivesse esclarecimento, que se arrebanharia pessoas em laboratórios e se as produziria em série; a dominação não veio com a censura, mas com a liberdade total; oferecendo-se livros e música de graça para pessoas distraídas a um nível tão extremo que já não conseguem ler livros e ouvir música. Distraídos da distração pela distração, como disse Eliot. E como ele também disse, o fim do mundo não vem com uma explosão, mas com um murmúrio.

domingo, 7 de agosto de 2016

Ninho



Minha alma eterna (me permitam que o diga assim), minha alma eterna está me deixando aos poucos e quase estou sentindo sua resignação decepcionada: mais uma casa onde não consegui fazer meu ninho... (Imre Kertész, Eu, um outro)

Gráfico



Eu sempre achei fascinante esse deslumbramento provocado pelo futebol (e outros esportes) no Brasil; basta uns fogos de artifício e umas coreografias para que se instale a impressão de que tudo está bem, de que nosso amor pátrio é intacto e justificadamente alimentado. Essa capacidade que o futebol tem por aqui de despertar o ufanismo acrítico mais retumbante faz ver que esse tipo de dominação está instalada no gene nacional. Na Copa foi a mesma coisa: críticas no começo, daí  vem o time nacional e ganha de algumas seleções pés-de-chinelo, e todo mundo fala que é "a Copa das Copas", esquece-se das mortes recordes com o despencamento de viadutos e trabalhadores da construção nos projetos faraônicos superfaturados, esquece-se da segregação dos pobres arrastados pelas patrolas dos estádios, esquece-se da sempre reinante divindade da emissora de televisão que coloca seus apresentadores de sempre e suas anittas da hora para representar os eventos, na mais abissal encarnação do panis et circenses, de tal forma que a anitta da hora é tida com a unanimidade mais estúpida como uma "grande intérprete da tradição do samba"; aí vem o 7 a 1 e acaba com tudo, esquece-se de se continuar esquecendo o que já se esqueceu e não sobra mais nada senão o mesmo vexame de reconhecermos o quanto esse tipo de coalizão nacional é falho e desproteinizado, volta a ânsia das diferenças e o grande ódio recíproco que infesta a internet, e ficamos com os rabinhos entre as pernas, envergonhados, prometendo a nós mesmos não cairmos mais tão facilmente nesse tipo de engodo, de sermos mais maduros, e aí vem a Olimpíada e se repete os mesmos sintomas, a mesma ciclicidade resumida na fórmula da veneração descerebrada. O brasileiro pode ser colocado em gráficos de mensuração de comportamento altamente precisos e calibrados. Seja quais forem os próximos eventos futebolísticos globais que o Brasil tiver, a situação se repetirá eternamente.