quarta-feira, 18 de novembro de 2015

Relendo Doutor Fausto



O ano começou com William Faulkner e termina com Thomas Mann. Meu exemplar de Doutor Fausto, em capa dura e lançado pela Companhia das letras, me chegou há dois dias. Mandei dois e-mails à assessora de divulgação da editora perguntando se eles me enviariam mesmo o livro, pois eu havia feito a solicitação firmando-me no lançamento mensal que eles sempre me mandam pela parceria que este blog tem com a empresa, e não obtinha resposta. Mandei uma última mensagem dizendo que precisava saber urgente pois, se não me mandassem, eu iria comprar esse grande livro do Mann. Me responderam que haviam enviado, que era só eu esperar. Entre todos os livros que tenho, meu maior fetiche sempre foi Doutor Fausto. Penei de desejo por tê-lo, na minha juventude de estudante desabonado, e fiz uma economia feroz para adquirir um exemplar escangalhado. Li-o a primeira vez aos 15 anos. Fiquei profundamente maravilhado. Li-o a segunda vez aos 30, e de novo senti o poder dessa obra. E agora, releio-o pela terceira vez, e já estou na página 143. O que sinto é uma inebriante felicidade; sinto-me irmanado com Mann, e parece que estou lendo o romance pela primeira vez. Sinto que agora é que estou absorvendo plenamente toda a imensa riqueza do livro. Passa-me uma secundária preocupação de se a idade não está me fazendo um leitor misantropo como o velho Borges, que anunciava que só lia livros com a idade mínima de cem anos. Doutor Fausto tem 68 anos, mas a lógica é que os livros dos grandes me arrebatam e comovem de uma maneira única, só eles tem a legitimidade de estarem me dizendo algo realmente essencial e indispensável. Por isso minha ânsia de ter esse fetiche em capa dura, já que sempre o tive em edições mambembes e por altíssimos preços. Encontro no livro uma passagem que expressa uma certeza antiga:

"Para o adepto das Luzes, o termo e o conceito "povo" sempre conservam qualquer traço de arcaico, inspirador de apreensões, e ele sabe que basta apostrofar a multidão de "povo" para induzi-la à maldade reacionária. Quanta coisa não aconteceu diante nossos olhos em nome do povo, e que em nome de Deus, da humanidade ou do direito nunca se deveria ter consumado! Mas é um fato que, na realidade, o povo permanece sempre povo, pelo menos em determinada camada da sua índole, que é precisamente a arcaica, e que habitantes e vizinhos do beco dos Fundidores, pessoas que no dia das eleições votaram no Partido Social-Democrata, eram ao mesmo tempo capazes de vislumbrar algo demoníaco na pobreza de uma velhinha, que não tinha recursos suficientes para pagar uma habitação acima do solo, de modo que, quando ela se aproximava, seguravam os filhos para protegê-los contra o mau-olhado da bruxa. Se na atualidade se voltasse a entregar à fogueira uma mulher desse tipo, o que, com leves modificações da justificativa, não deixa hoje absolutamente de ser inimaginável, eles se plantariam atrás das barreiras erguidas pela municipalidade e olhariam, embasbacados, mas provavelmente não se revoltariam. Falo do povo, porém aqueles impulsos populares, de natureza arcaica, existem em todos nós, e para dizê-lo bem claramente, assim como penso, não considero a religião o meio mais adequado para reprimi-los com segurança. Isso se consegue, a meu ver, unicamente por meio da literatura, da ciência humanística, do ideal do homem livre e belo."

terça-feira, 10 de novembro de 2015

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Os livros que eu gostaria de ler se tivesse doze anos



Este é um dos textos pelo qual mais recebo elogios por e-mail. Escrevi-o em um ambiente de hostilidade, e longe de casa. Sentia-me então tão pra baixo, que liguei o computador e pus-me a escrever sem planejamento e intenção nenhuma. Senti que se tratava de um dos momentos pessoais raros em que a escrita vinha para me aliviar. Poucas vezes aconteceu tal coisa. Como frequentemente acontece, quando o releio, não o meço pelas qualidades literárias, as quais não vejo muitas, mas pelo grau de honestidade. Os textos honestos, inclusive com coragem para evidenciar suas fragilidades, são os mais poderosos. 

Ontem o Rui veio aqui em casa. Foi embora hoje. Saímos só nós dois, demos volta na praça, fomos a uma espécie de mirante de onde se vê toda a cidade. Não houve muito diálogo. Mas houve harmonia. Eu via no olhar dele a confiança. E as coisas estavam bem mais felizes, no íntimo. Era como se ele tivesse lido meu texto. Eu jamais lhe mostraria meu texto. Não por vergonha ou coisas afins, mas que é parte da filosofia minha que meu textos pertencem a uma dimensão pessoal irrevogável. Eu cheguei a esfregar-lhe os cabelos quando entramos no carro para a volta pra casa. Ele se deslumbrou com as três estantes da minha biblioteca. Hoje, quando ele entraria no carro para ir embora, eu o levei lá e lhe entreguei três livros. Três livros longamente pensados, os livros que eu gostaria de ler na idade dele, aos 12 anos. Dei-lhe o melhor volume de contos de Chécov que tenho, e A metamorfose, e Ratos e homens. Chécov, Kafka e Steinbeck. O primeiro lhe pega pela ternura seca, o segundo lhe desperta o esoterismo através da visão brutal dos muros do presídio, e o terceiro é a aventura humana profunda que lhe atiçará a vontade de partir para os outros tantos grandes autores que terá pela frente. Depois (juro!) que percebi que os dois primeiros foram realmente minhas leituras aos 12 anos. Só Steinbeck que li depois dos 20.

Ele não fala nada de si mesmo. Sua avó é que nos conta que ele lê muito, que ele recebeu pelo segundo ano consecutivo o diploma de melhor aluno da turma, que ele lhe confessa o desejo de ser médico e escrever um livro sobre sua vida. Eu pergunto que livros ele tem em casa, e percebo que a falta de jeito dos familiares lhe dá a velha ração de livros indigeríveis da antiga literatura nacional. Eu entrego esses livros e ele os olha, e percebo o fascínio. É como se ele mexesse um saco de misteriosos brinquedos artesanais mágicos, que é a sensação que eu sempre tenho diante livros e sempre terei aos 80 anos. Uma felicidade boba, engrandecida, ingênua. Sempre será ingênua. É a ingenuidade que não morre nunca. Eu lhe dou um abraço, nada de procurar aproximações com o abraço que ele me deu aos 3 anos, e ele me envolve molemente as costas. Tímido incorrigível.