sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Nostalgia



Eu li muitos romances neste ano de 2012. Não vou cair no pedantismo de enumerar um por um aqui, mas nesse ano tive descobertas valiosas, como os nove livros de Javier Marías que me caíram nas mãos, Javier Marías que é o escritor que mais comporta o epíteto de maior escritor vivo da atualidade. Li a trilogia magnífica de Seu Rosto Amanhã, uma jornada insuperável nas mais nostálgicas qualidades clássicas do romance, uma experiência que tenho como uma das mais fundamentais de minha carreira de leitor. E no entanto, cheguei à conclusão de que o melhor livro de Marías, seu trabalho mais delicado e transcendente, o que ele conseguiu criar uma impactante sutileza crítica, é Os Enamoramentos, essa obra que não me sai da cabeça e me vejo retornando a ela a cada dia tentando compreender, tentando captar todos seus sinais sublimes e subliminares. E nostalgia é a palavra que mais define o que está a acontecer com o gênero do romance e com os níveis de inteligência de hoje. Tenho a incômoda suspeita de que um romance como Os Enamoramentos não tem serventia nenhuma no universo do pensamento atual. Mesmo Marías, nas tantas manifestações públicas sobre essa ficção, parece se mostrar cético, auto-depreciativo, um tanto já ultrapassado a linha de cansaço. Intuo que logo Marías vai entrar nessa categoria estoica de escritores que declaram sua aposentadoria. Li algumas resenhas sobre Os Enamoramentos, e a maioria delas se divide entre o elogio plástico, de quem parece que não leu o livro mas leu sua sinopse, e dos que realmente leram mas não demonstram uma atenção à altura do que o livro tem a oferecer. Poucas revelam uma leitura cuidadosa e, em consequência, a apreciação exata da sua grandeza.

Em contrapartida, os romances tidos como revolucionários, deliciosos, canônicos e fundadores, que tem aparecido por aí, me causam espanto. Estou a 50 páginas de terminar A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, um romance que vem com adendos de odes à sua excelência, retirados das tantas resenhas maravilhadas dos mais importantes jornais do globo, e me sinto constrangido de não compartilhar da festa generalizada em torno desse recente bezerro de ouro das letras. Os blogs literários fizeram frente também em decretar que A Visita... é uma obra-prima moderna. A nota principal dessas loas é sobre a agilidade da escrita de Egan, seu domínio excepcional das técnicas da ficção, etc, etc. E, contudo, a mim, tal livro não parece mais que uma competente (mas um tanto superficial) ferramenta de entretenimento, sem nada que destoe disto para bem e para mal. A Visita... me consumiu a tarde toda de ontem. Uma historinha bem montada, com doses certas, cronometradas, de ternura, a velha solidão do envelhecimento, os velhos suicidas revelados quando estamos por nos interessar pela paixão pela vida demonstrada por eles, e, o que é a lei inexorável de tal forma que se transformou em uma praga da literatura atual: as manjadas cenas de sexo, desde boquetes a torto e a direito, até as penetrações esfuziantes que ocupam longas e langorosas tardes suarentas de verão. E a tal prosa sofisticada de Egan, não é mais que o uso de uma aluna muito bem treinada e profundamente conhecedora da história da ficção, em que emprega a já manjada técnica de recuo e avanço no tempo para mostrar o choque sensorial de um personagem no auge de sua força física e, no capítulo seguinte, mostrá-lo em uma cama, entubado após dois derrames, e tão velho e vulnerável que a única saída natural que lhe resta é a morte. Coisa que gente como Virgínia Wolf e William Faulkner já fazia quando Egan ainda estava nos testículos do pai. E A Visita é tão pateticamente moldado para agradar e ser relevante, que se torna chato; é tão inevitavelmente linear em sua astúcia de ser bombástico, que a mim é evidente que com a mesma febre com que o veneram, o esquecerão no mesmo prazo recorde que levaram para calar sobre Liberdade, romance "mais importante do século" sobre o qual já ninguém mais fala.

A Visita é todo composto em cima da receita de Como Fazer um Grande Romance que a serialização da cultura produz nos cursos de escrita criativa. Fala sobre o universo traumático ultra-descolado do rock do final dos anos 70; tem um rebanho de personagens identificáveis pelo leitor que procura uma catarse para suas insuficiências de indivíduo urbano e inserido na ética do consumo; tem a homeostase matemática de profundidade cuja linha de controle nunca é ultrapassada para que a coisa não fique cabeça demais; é, em resumo, um romance feito na mesma fábrica dos seriados da tevê americana, com aquela inteligência coloquial cheia de insigths pretensamente iconoclastas que causam uma imediata impressão de ganho estético no espectador, mas cuja pobreza estrutural acobertada joga tudo no lixo da memória em pouco prazo. Romances como esse servem muito à sociologia americana, é uma ferramenta poderosa para compreender sobre a atual proficiência técnica do capitalismo que funde a mídia com as tendências controladas das modas de consumo, e sobre os mecanismos de escape e escoamento das frustrações comezinhas geradas por esse ciclo desespiritualizado_ é a forma mais funcionalmente grandiosa da utilização da arte para o apacentamento das massas, incluso aí parte das massas que se dedica a uma noção auto-elogiosa do apuro intelectual. Egan pode mesmo ser a maior escritora do que vem pela frente na mutação adaptativa do romance; ela tem a excepcionalidade da funcionária fiel altamente especializada; ela é o que escritores como Daniel Galera gostariam de ser: rápidas, situadas além da necessidade compulsiva de ter profundidade, que já teve a coragem madura e fenomenal de não pretenderem ser o novo Dostoiévski, para serem si próprias. E muito dessa excelência vem pela osmose de estarem no centro do mercado cultural mais efervescente do planeta, o que por si só já satisfaz grande parte dos fetiches da grande arte.

Ler esse romance ao mesmo tempo que se estuda a fundo a literatura russa de Dostoíévski e Tolstói é uma bruta de uma sacanagem com o livro. Mas é inevitável não sentir uma nostalgia profunda quanto aos romances que, na definição de Nietzsche, eram escritos com sangue. A Visita garante boas horas de diversão, esteja claro, mas não o envolvimento espiritual e perene de um livro como os de Marías, e tampouco como os dos russos pré-revolucionários. E não tem como não pensar em crise do romance quando se vê tal obra alicerçada como clássico instantâneo.

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

As Boas Convenções



NÓS
by Ramiro Conceição
.
.
Vem pequenininha,
qual uma florzinha:
inocente… cresça
em nós.

Vem pequerruchinho,
feito uma andorinha,
brinque e voe sobre
nós.

Vem feito luzinha,
qual a lamparina:
ilumine todos nós.
PS.: Feliz Natal a todos!

sábado, 22 de dezembro de 2012

Nu Para as Chamas de Deus


O velho polemista Alexander Cockburn, provocando o ateísmo às vezes beirando o fundamentalismo de seu amigo Chistopher Hitchens, disse: "um contestador hoje em dia seria alguém que argumentasse pela existência do Ser Supremo". As épocas são cíclicas, como observam muitos, e a concentração de uma força que pretende ser dissuasória à tendência ideológica da maioria acaba por se tornar uma estagnação também mantida pela inércia. O ateísmo culto e superior que é vendido das academias se transformou há muito em uma forma solidificada de filtrar a compreensão através de um só óculo de visão, que é a renitente, combativa, militarizada negação quase a nível de rancores pessoais contra Deus. Me faz recordar uma antiga anedota, bastante sem graça, de um clube de poderosos mnemônicos que por si mesmos não perdiam tempo em decorar piadas e recitá-las para a turma, apenas as diziam em seu números correspondentes: bastava um deles olhar para o outro e dizer 437, e logo se caía na gargalhada ao se recordar a piada rotulada pelo número. O ateu carteirizado chega a um nível de certezas indiscutíveis e proficiência da memória dogmática que pouquíssimas vezes mesmo os melhores deles estão em condições para o debate: apenas reafirmam, em maior ou melhor retórica, que a posição de lucidez em que estão é a única digna de um certo primor cerebral, que para eles, por mais que disfarcem conforme exige a ética interna, é o primor dos seres superiores, dos que estão distintos em altíssima elevação da ralé cega e bestialidade dos crentes. Basta a eles citarem os números correspondentes às suas já em franco processo de enferrujamento ideias feitas sobre seus heróis canônicos, Dawkins, Darwin, o Macaco Antropológico, o Cientista Estoico À Procura da Melhora da Vida Terrena. Assim, o que eles deveriam combater em uma dialética brutal contra as diversas formas de realidades deletérias provindas do uso de Deus por aqui, se transforma em uma infantil e sem sentido luta contra um fantasma, tão cômica que sempre escapa a eles o tanto que, subliminarmente, parece que são eles os crentes, eles os abalizadores da existência de um deus-pai cujos filhos mimados se revoltaram contra. Eles se anulam no que teriam de poder de mudança em uma sociedade globalizada cada vez mais sem uma voz sincronizada contra a bandidagem do igrejismo, ao nunca verem que o que se combate aqui são os homens por debaixo de deus, as organizações ultracapitalistas pactualizadas com dirigentes corruptos de estados sem representações críticas sociais, que se beneficiam obscenamente com os lucros cósmicos dos utensílios deísticos vendidos para a prosperidade econômica do homem médio sem educação, os tetzéis aproveitando da extrema ignorância reinante para vender suas indulgências, suas madeiras da cruz. Os ateus, que na verdade é a mais inofensiva classe intelectual desde há muitas décadas, são raquíticos demais para irem contra as tantas igrejas vilipendiadoras, as leis que isentam essas empresas do medo de impostos e assim promulgam suas legitimidades, os cartéis mafiosos de líderes do pastoreio que a mídia televisiva deixa quieto também por medo ou para a manutenção da homeostase de chantagens e crimes recíprocos entre os poderosos donos de jornais e redes de tv, estes mesmos vinculados intimamente à extorsão gigantesca das igrejas. O que os ateus fazem é colocar cartazes nos ônibus vermelhos de Londres convidando idioticamente para um carpe diem anacrônico, já que deus não existe, um retorno às modas existencialistas e aos anos hippies que em escala mais avançada fecham com bebedeiras eternas em bares e desistência de tomar banho, sexo em praça pública e apreciação da beleza que o acaso engendrou e as atribulações cotidianas vazias nos impedem de ver, isso enquanto o mundo passa por uma de suas maiores crises financeiras e morais, e cujo silêncio em torno deixa intactas as novas igrejas que surgirão para comportar os novos estelionatos aos homens desesperados.


E isso se trata apenas dos erros da única coisa que o ateu consegue ver. Os erros maiores são sobre o que eles não veem. O contestador de Cockburn é um homem culto que sabe, com sua parte inconsciente, que a concepção deísta está por detrás de bem mais coisas que estão por aí e compõe a identidade humana que um rápido olhar discriminatório não conseguiria ver. A simples menção a essas nuances já coloca em febre o ateu rosa-cruz de armas em punho, como se estivesse diante a mais uma enunciação da virgem Maria ou das chagas de Cristo. Nada mais triste que a regra da conduta das pessoas sofisticadas e esclarecidas seja a de descartar tudo que se refere a deus como uma bobagem obsoleta. Essa tendência, que não foi criada pelos ateus mas eles a utilizam como raiz comportamental, é a única voltagem carregada de perigo que o ateu possui, a sua única contribuição de peso, ainda que passiva, para a mudança do mundo. Mas acontece que essa mudança já está em curso, dirigindo-se mesmo para sua conclusão peremptória, e não é nada vantajosa. É sobre a não-conformação à essa mudança planificadora que o Cockburn interpôs o seu contestador que cogita o Ser Supremo. O mundo está cada vez mais acabrestado à moral funcional que sobrou da devastação da procura primordial pela transcendência, a moral do dinheiro e do entretenimento eletrônico que regimenta apascentando toda pulsão contrária de desforra ao moderno sistema escravagista. Com a ausência insensibilizada de deus numa sociedade devotada ao embrutecimento das nuances e à falta de tempo, o que sobra são seres atinados apenas às emergências ganglionares, à evasão da atenção para setores de escapismo que as alimentam sobre os planos imediatos de forma tal que seja menor o sofrimento das horas de engarrafamento para se chegar ao escritório ou à fábrica. É fácil ver que os ateus já são os vitoriosos há tempos, não há motivo para que eles se preocupem com o revide do fantasma. Nada mais determinante para a descrença em sinergismos sagrados do que a incapacidade de comportar qualquer intuição do esotérico em gares de metrô, em grandes avenidas de pistas quádruplas atulhadas da disputa dos modelos automobilísticos do ano, em ninhos de edifício com as letras de aço pressurizado por sobre o exército de homens de terno. A uma mente paranoica seria tentador supor que tudo foi maquiavelicamente pensado para retirar deus da jogada numa violenta assepsia programada, como aquelas histórias da conspiração satânica em que no alto dos edifícios de Wall Street estarem escondidos o número da besta do apocalipse. Mas como disse um escritor americano, há muito que seres espirituais superiores como Lúcifer ou os arcanjos não se preocupam mais com seres tão irrisórios como nós. Nesta solidão de desinteresse redencionista, estamos relegados ao desamparo de nós mesmos. Fomos nós mesmos que empobrecemos as estruturas de todo tipo que nos cercam até um limite intransigente de realidade, até um nível de cinismo em que tudo que esteja além dos reflexos da caverna seja ridículo e infantilóide. Nossa forma mais alta de religiosidade é ditada pela consumação do aproveitamento do tempo em prol de satisfações hormonais puras, desde a hora para se respirar um pouco do cafezinho à busca dos filhos na creche para acompanhá-los na comunhão silenciosa noturna do programa de televisão antes do sono intersticial para um outro dia repetitivo até à medula. Em recente artigo da Le Monde Diplomatique se analisa as consequências das pretendidas novas reformas na semana de trabalho francesa diminuída para 30 horas, se seria realmente positivo para indivíduos embrutecidos pelo relógio ter mais tempo livre, se isso não aumentaria a criminalidade e as taxas de suicídio. Viver para quê?

Entre os contestadores cockburnianos está o filósofo esloveno Slavoj Zizék, que em várias partes proveitosas de seus longos livros sobre a crise utópica da modernidade rendida à unidimensionalidade do capitalismo, faz uma apologia embasada da necessidade do grande Outro. Zizék cita fartamente o grande escritor católico Chesterton, em especial seu livro clássico Ortodoxia. Não é um simples artifício retórico em defesa da alienação consoladora ao sagrado como método social de dominação popular.  Zizék vai fundo na análise do nonsense e da estupidez  contra a inerente disposição biológica humana pelo abstrato que são as correntes de ateísmo organizado. Ou Zizék só é lido por jovens nostálgicos dos movimentos revolucionários da memória de seus avós e pais, ou é lido insuficientemente pelas academias, pois nunca se menciona o caráter dele para o debate ateu, sendo um disparate colocá-lo no mesmo nível que Dawkins e Hitchens, em posição contrária. Certa vez me disseram que Zizék não era a pessoa certa para falar sobre a procura por Deus, como se houvessem universidades milenares que detêm o conhecimento secreto do Nada aproveitada apenas para credenciados. Me vejo pensando na questão epistemológica de que tudo que se produz ideologicamente pelo homem, na arte e nas ciências e em qualquer outro campos, é o resultado da procura por Deus. Me confrontei com isso quando lia ontem o maravilhoso e indispensável livro de George Steiner intitulado Tolstói ou Dostoiévski. Abaixo, um excerto do livro de Steiner.

"O nó da questão é, como em qualquer questionamento maduro do enigma da linguagem e do significado, teológico. A desconstrução reconhece plenamente essa verdade quando postula que os marcadores semânticos só poderiam aspirar ao sentido estável, à intencionalidade, se fossem subscritos por alguma origem ou autoridade final, transcendente. Não pode haver, para o desconstrutivismo, pós-estruturalismo, pós-modernismo, tal garantia. Em Presenças Reais (1989) argumentei que uma aposta pascalina na transcendência é o fundamento essencial para a compreensão da linguagem, para a atribuição de significado ao significado. Essa aposta, além do mais, caracteriza implícita ou explicitamente a grande arte e literatura desde Homero e Ésquilo quase até o presente; ela por si só nos permite "fazer sentido" da música. Os clássicos, as obras de literatura dominantes na modernidade, são "religiosos" em sentido específico. Eles vinculam a questão da existência ou não-existência de Deus. Apesar dose exemplos serem bastante raros (Leopardo, Mallarmé), um ateísmo consequente pode produzir imponentes alturas de visão. A alta poesia e arte podem ser construídas construídas a partir da "morte" ou ausência do transcendente. Como pode, e espantosamente tem sido, das diversas ordens de confronto com a possibilidade da "presença real" de Deus. O que me parece condenar a imaginação questionadora, o poder da forma significante, à trivialidade, é o abandono da questão da existência ou não existência de Deus ao absurdo semântico, a algum jogo de linguagem infantil que não é mais relevante ao homem.  

Somente quando terminei Presenças Reais me dei conta de como esse argumento já havia sido inevitavelmente colocado trinta anos atrás. Tolstói ou Dostoiévski procura mostrar que a estatura desses dois romancistas é inseparável do seu engajamento teológico. Se Anna Kariênina é, como Henry James percebeu, algo "tão maior" do que até mesmo Madame Bovary, se Os Irmãos Karamazov excede de maneira tão formidável Balzac e Dickens, a razão é a centralidade para Tolstói e Dostoiévski da questão-Deus. Por sua vez, o que torna legítima a afinidade de Tolstói com Homero e Dostoiévski com Shakespeare é uma intimação compartilhada das realidades, individual e coletiva, física e histórica, além do alcance do empírico. Para ambos os mestres russos, assim como para Pasternak e Solzhenitsyn depois deles, a assunção de D. H. Lawrence de que, para ser um grande artista ou escritor era preciso se ficar "nu para as chamas de Deus" (ou do não-ser de Deus), era auto-evidente. O constante recurso de Tolstói ao mysterium da ressurreição, as figurações de Dostoiévski de um niilismo apocalíptico, são simultaneamente atos incomparáveis de concepção narrativa e dramática e de filosofia religiosa. Esse livro evoca as afinidades profundas entre a realização russa e o cenário teológico em Hawthorne ou Melville."


George Steiner

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

348 páginas


Não chegou a ser um debate. Nessa hora do ano, em que no Brasil institui-se o costume de suprimir o pensamento de qualquer tipo até depois do carnaval? Mas, posto aqui esse mimo porque realmente fiquei surpreso com esse texto de Ernani Ssó, um escritor que respeito e que dele já publiquei algumas coisas aqui. O que me surpreendeu é ele pegar o melhor livro de Bolaño, 2666, entre tantas coisas menores e francamente ruins que Bolaño publicou, e divagar sobre seu número de páginas para concluir a mesma coisa, a banalíssima coisa que críticos apressados concluem em respeito dos grandes livros caudalosos: que o livro deveria ter tantas páginas cortadas para ficar mais digerível. No caso de Ernani, ele cismou com as 348 páginas de sua edição de 2666 correspondente à "Parte dos crimes", que se dedica a reproduzir, em linguagem empobrecida de jornal criminalista, os infinitos assassinatos de mulheres acontecidos na fronteira mexicana. Minha visão e a visão de Ernani sobre o que motivou Bolaño a proceder assim, destoam por completo. E... Ernani usa isso tudo para validar um livrinho de umas 70 páginas, chamado Festa no Covil, concluindo :  "2666 é muita digitação e pouca literatura, a Festa no covil é pouca digitação e muita literatura". Roubo, pois, o texto do Ernani, e abaixo coloco meus comentários e a resposta de Ernani. Segue.

FESTA DO COVIL, por Ernani Ssó

"Ando me sentindo muito chato ultimamente. Leio os livros badalados na imprensa e acho tudo uma droga. Aí venho aqui e escrevo notinhas sarcásticas. Isso piora meu humor. Se sigo assim, vão achar que não gosto de nada, nem de filé com fritas e mulher bonita. Não lembro bem, mas acho que o único autor de quem falei bem este ano foi o Kazuo Ishiguro, mas com ressalvas. Ou foi ano passado? Droga, será que minha sina é reler os clássicos?
Então, dia desses, me emprestaram a Festa no covil, do Juan Pablo Villalobos. Li numa sentada. Villalobos é fluente e engraçado, pra quem gosta de humor negro, como eu. Mais: faz uma coisa que o pessoal que mexe com literatura parece ter esquecido, contar de modo indireto, aludir, não discursar. Se o livro não fosse bom, a cena final o salvaria. Coisa de mestre a coroação. Certo, não direi mais uma palavra. Vão ler antes.
Vejamos. Em 2666, Roberto Bolaño empilha dezenas de cadáveres em La parte de los crímenes. São 348 páginas, na edição da Anagrama. São sem dúvida as 348 páginas mais chatas que li na minha vida. Mais: estão entre as menos eficazes. É óbvio, me parece, que se Bolaño contasse direito a história de um assassinato, apenas um, teríamos uma visão mais profunda da violência no México. Resumindo a história de dezenas, não temos nada. Não temos gente, não temos drama. Só temos estatísticas. É preciso uma imaginação monstruosa pra se emocionar com estatísticas. Estatísticas ficam bem em gráficos, no jornal. Num romance o que fica bem são personagens levados às últimas consequências. É o que vemos na Festa no covil.
Villalobos não mostra nenhum assassinato direto. Mostra um menino, que não entende direito o que se passa, falando de sua vidinha trancado em casa, do seu aprendizado do machismo, das brincadeiras com o pai, como contar o número de furos de bala nas paredes das casas. Villalobos não precisou de muito mais. Sentimos nessas poucas páginas um México assustador e um menino no meio dele, sem poder confessar o medo nem a si mesmo.
Querem contas? Com 73 páginas bastante arejadas, na edição da Companhia das Letras, Villalobos bota no chinelo as 348 compactas do Bolaño. Isso me alegra, como uma boa vingança. Porque em 2666, escondido atrás de um personagem, Amalfitano, Bolaño faz a defesa dos romanções torrenciais. Traduzo o trecho: “(o jovem farmacêutico) preferia claramente, sem discussão, a obra menor à obra maior. Escolhia ‘A metamorfose’ em vez de ‘O processo’, escolhia ‘Bartleby’ em vez de ‘Moby Dick’, escolhia ‘Um coração simples’ em vez de ‘Bouvard e Pécuchet’, e ‘Um conto de Natal’ em vez de ‘História de duas cidades’ ou de ‘O clube Pickwick’. Que triste paradoxo, pensou Amalfitano. Já nem os farmacêuticos ilustrados se atrevem com as grandes obras, imperfeitas, torrenciais, as que abrem caminho no desconhecido. Escolhem os exercícios perfeitos dos grandes mestres. Ou o que dá na mesma: querem ver os grandes mestres em sessões de esgrima de treinamento, mas não querem saber nada dos combates de verdade, onde os grandes mestres lutam contra aquilo, esse aquilo que nos atemoriza a todos, esse aquilo que nos acovarda e confronta, e há sangue e feridas mortais e fetidez”.
Que papo é esse de que contos e novelas são exercícios, aquecimentos, e que romanções são os combates de verdade? A grandeza e a pequenez de uma obra não são medidas pela quantidade de palavras, mas pela eficácia com que essa obra dá conta do seu tema, ou “daquilo”. Se eu precisasse de provas pra refutar a tirada de Bolaño, bastava comparar La parte de los crímenes com a Festa no covil. Querem uma frase? Lá vai: 2666 é muita digitação e pouca literatura, a Festa no covil é pouca digitação e muita literatura.
Eu andava interessado nos textos críticos do Bolaño. Depois dessa, esfriei. Como alguém capaz de um raciocínio desses pode ser considerado um dos grandes herdeiros do Borges? Acho que sei. As vuvuzelas da crítica não leram Borges direito.
Arca de Noé
Uma história que me dava o que pensar, na infância. Quarenta dias de chuva, Noé sem baralho, a mulher dele sem tricô. Pra piorar, as roupas úmidas, o cheiro do cocô dos bichos. As histórias bíblicas são sensacionais, mas são como desenhos animados, onde se pode dobrar uma casa inteira e botar dentro da carteira. "

Comentário meu:

Não li o Festa no Covil, ainda.
Sobre 2666 e o mérito superior dos romanções, discordo em número e grau. “A parte dos crimes” funciona justamente pelo que tem de excesso e enfastio, e só é eficaz em um romance de mais de 800 páginas (na edição da Cia), como 2666. Seria completamente fora do propósito de Bolaño narrar um único crime para mostrar o cenário de violência no México. Bolaño não quis isso; sua intenção clara era chatear o leitor, tirá-lo do sério, instigá-lo a pular várias dessas 348 páginas de insossa prosa estatística e jornalística, era fazer uma não-literatura, investir contra a eufonia e as regras de entretenimento do romance moderno. O que ele queria_ e realizou-o muito bem_ era cansar o leitor, mostrar a ele o quanto os números afundavam os significados humanos terríveis de tantas mortes em um abstracionismo banal, insensibilizado. Há um início de conto de Bolaño, em Putas Assassinas, que ele começa com uma frase magistral falando sobre a violência da América Latina e a inserção anestesiada do latino-americano nela. Talvez essas 300 e tantas páginas seja o que há de mais impactante nesse livro já monumental do chileno: tem o efeito das repetitivas cenas de pessoas reduzidas a formiguinhas urbanas subindo escadas rolantes e atravessando ruas em uma cidade feérica nas imagens aceleradas de Koyaanisqatsi. Em mim, pelo menos, tais páginas teve a catarse de, em reverso genial, me des-dessensibilizar quanto à violência brutal transformada em serialismo fábrico, os assassinatos disparados pela roldana do contabilizador da máquina que reduz uma vivencia interrompida a um número. Tenho muito o que apontar de imperfeição e equívocos em outras obras de Bolaño ( só gosto mesmo de 2666, que é uma criação superior, de Monsieur Pain, e Noturno do Chile), mas 2666 é maravilhoso e insuperável justamente pelo que tem de excesso, de excêntrico, da ilimitabilidade das grandes obras inacabadas, de imperfeito.

E os romances caudalosos são sim muito melhores que os romancinhos de 100 páginas. Posso numerar 100 livros de mais de 500 páginas fabulosos, em contrapartida e uns poucos que não se sustentam no peso das próprias pernas. (O próprio Quixote.)

Resposta de Ernani:

Charlles, não entendi bem. Quer dizer que um romancista gasta seu tempo escrevendo pro leitor pular centenas de páginas de chatice, superficialidade, personagens rasos, encheção de linguiça? Era mais fácil deixar essas páginas em branco mesmo. Se há uma coisa que realmente me estranha são as explicações mirabolantes pra justificar maus livros. E que regras de entretenimento são essas do romance moderno? A literatura está ligada ao prazer desde seu nascimento. Quanto ao número de páginas, se extensão fosse documento, a poesia não seria considera o gênero mais profundo. Eu também escrevi minha resenha de 2666. Está lá no Coletiva. Posso mudar de opinião, claro. Quando me provam com argumentos claros que errei, sou o primeiro a reconhecer.

Resposta minha:

Não é uma explicação mirabolante, Ernani. Olha só a quantidade de leitores que amam 2666. Você parafraseará Bernard Shaw dizendo “eu estou certo, mas o que sou eu diante milhares?”. Será que estamos errados? Para mim está muito claro que as 300 páginas da Parte dos crimes foi feita para mostrar o quanto a violência na América Latina é narcotizante. Deixar estas páginas em branco? Outros escritores usaram o mesmo artifício da fadiga para passar uma determinada mensagem de excesso aos leitores: Saramago gasta duas páginas apenas com nomes de pessoas que foram mortas na inquisição católica, em "O evangelho segundo Jesus Cristo". Ele poderia ter deixado essas páginas em branco anunciando antes, “imagine esse branco preenchido com nomes de assassinados pela igreja católica”? Não teria o mesmo efeito. Joyce usa o recurso da enumeração prolongada de objetos na posse de Bloom, e também os tantos nomes de santos irlandeses historicamente irrelevantes, em Ulisses. Pedir para editarem e retirar isso, nas próximas edições de Ulisses? Em “O Urso”, excerto do romance-contos “Desça, Moisés”, Faulkner usa o pedantismo da exposição de recibos e notas de compra de armazém para mostrar, genialmente, como uma micro-sociedade rural era absorvida pela urbanidade, perdendo o escopo de suas tradições e a religiosidade minuciosa de seus costumes consuetudinários.
“A literatura está ligada ao prazer desde seu nascimento”. Claro! Não nego. Mas que tipo de prazer é esse? De modo algum é o mesmo prazer imediatista que divide “entretenimento” e “chatice” das tantas formas de mídia baseada na velocidade que temos por aí, desde jogos da internet a filmes de violência gratuita da televisão. O prazer da leitura está ligado a um tipo muito específico de recolhimento, a leitura é uma espécie de tabagismo. 2666 foi um livro que me deu intenso prazer de leitura, inclusiva o desfastio das 300 páginas da “parte dos crimes”. Li esse calhamaço em 4 dias, se bem me lembro. E está para soar o clique que me fará relê-lo a qualquer momento.

E querer comparar poemas com romances não me parece coerente. A leitura de poemas cobra um tipo de envolvimento completamente diferente de leitura.
Acho que o problema aqui é que você está ignorando o aspecto estético do romance enquanto objeto (frase irritantemente acadêmica, reconheço; desculpe). E não foi Bolaño que inventou isso, de maneira alguma.

Ernani:
Você garante que 300 de tédio, muitas vezes mais superficiais que a seção de polícia dos jornais, sem um personagem lembrável, são grande arte. Não está mais aqui quem falou. Boa releitura. 

Eu:

O conjunto é uma ótima leitura, Ernani. O conjunto! Tipo: o livro “Passagens” de Walter Benjamin, é todo de compilações de notícias jornalísticas, cartazes de propaganda, fichas de estatísticas, e é grande no CONJUNTO, é um dos livros mais aclamados de Benjamin. Mas, pegue alguma desses recortes e o publique separado, e a coisa não presta. 2666 é grande por inteiro, com seu livro maravilhoso da parte dos crimes.
msm

Espaço para ser preenchido com as palmas.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Van Gogh


A biografia de Van Gogh lançada pela Cia das Letras, escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, é um regalo em todos os sentidos. Tem capa dura, e a reprodução em cores (claro!, seria um pecado com Van Gogh se fosse em preto e branco) da obra desse brilhante artista. Tem também as reproduções em preto e branco dos rascunhos do pintor neerlandês, no corpo do texto, além de muitas fotos de época. Chegou-me quinta-feira última e o volume é desses que se fica pegando da estante e folheando, enamorado, a todo instante. A crítica mundial ressalta ser uma biografia ímpar, em alcance e excelência, sendo inclusive revolucionária ao propor, após 10 anos de investigação pelos autores, que Van Gogh não suicidara. Felizmente, nenhuma das resenhas que li oferece spoilers sobre a causa de sua morte, ficando reservado a descoberta para quem queira ler as mais de 1000 páginas do livro. Vou me lançar na leitura a partir do feriado do natal.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Natal no Gabinete do Sr. Hightower


Apesar de tudo, gosto do natal. Há alguns dias uma amiga de infância da minha irmã teve um AVC. Ela tem 26 anos, é médica. As duas passaram por todas as etapas colegiais e da faculdade juntas. Recordo levando-as às boates e a shows musicais, enfrentando quilômetros de congestionamento na ida e na volta, quando elas me ligavam e pediam para ir buscá-las. Essa amiga tem o pai riquíssimo. O pai foi prefeito de determinada cidade durante vários mandatos. O nome dele está relacionado a determinados escândalos de desvio de verbas públicas que, como é de praxe, caiu no esquecimento jurídico e nunca mais se ouviu falar deles. Uma mansão de 16 quartos, fazendas, carros de luxo. Quando as duas eram estudantes e eu estava com meus 30 anos, essa amiga uma vez me disse que não namorava comigo apenas por eu ser um sujeito muito reservado e que não gostava de festas. Apenas por isso. Eu ri, surpreso, pois nunca a vira mais que uma amiga da minha irmã e uma semi-irmã minha a qual nunca cogitara possibilidades além disso. Ela se casou, teve dois filhos. O segundo, uma menininha, nasceu no começo do mês. Poucos dias depois, essa amiga sofreu um quadro de hipertensão altíssima, um dos vasos do cérebro se rompeu, ela teve que passar por uma cirurgia de emergência para drenar o sangue da cabeça, e está em coma, em estado grave. O facebook dela está cheio de mensagens sobre virgem marias, sobre seus sorrisos, sobre sua força de vida, sobre anjos arregimentados em seu quarto da UTI, sobre a providência infalível de deus. O pai dela foi atendido certa vez pela minha irmã Aline, em sua clínica de fisioterapia. Dois dias depois a mãe dela apareceu na clínica dizendo à minha irmã que não aceitaria que ela continuasse seduzindo seu marido, com aquele jaleco fino e com insinuações corporais. A Aline ficou muito chocada. Havia passado estadias na grande mansão, em companhia da amiga, desde quando era criança. A Aline disse que só me contava agora, depois de muito tempo, receosa que eu fosse tomar satisfações com a mulher. E ela não contara à minha mãe pois sabe que minha mãe iria mover todo o judiciário e um arsenal de palavras sem a mínima compostura que só ela tem um talento legítimo para criar, para cima da mulher. Meu sangue ferveu, mas vi que a Aline estava bem e levara a história com humor. Sua delicadeza e elegância é tal que ela nunca externou o que ficara evidente: a velha mulher patronal decaída mortalmente enciumada da jovem mulher no esplendor da beleza.

O natal é uma das épocas do ano em que acontecem mais suicídios. Para a festa aqui em casa, virá apenas a minha irmã. Minha esposa fica procurando alguma receita especial para fazer na ceia. Ela encomendou como presentes para mim os livros A Visita Cruel do Tempo, da Jennifer Egan, e Tolstói ou Dostoiévski, do George Steiner, enquanto para ela eu comprei dois vestidos. Para as crianças, DVDs do The Backyardigans e não sei mais o que de última hora. Para minha irmã, daremos um celular de 50 reais com chip da Oi, para que ela não perca a comunicação com a gente, visto que ela quebra ou some ou é furtada todos os celulares de 500 reais que compra. Minha mãe não virá. Os 60 anos não andam fazendo bem para ela. Tememos um Alzheimer. Ela manda mensagens de alegria para nós, e minutos depois uma lista de acusações. No começo assustava, mas agora desperta um estranho enternecimento. É como se ela se visse numa batalha reincidente com todos os seus antigos fantasmas. Está absolutamente sozinha. O tipo de solidão contra a qual não há o que terceiros possam fazer. Triste realidade a qual um filho relaciona-se com a mãe como terceiro. Leio o diário da Susan Sontag e vejo o quanto a relação dela com a mãe foi turbulenta. Mas ela dizia para a mãe o tempo todo que a amava. Eu nunca disse isso para minha mãe, e a meu pai eu só o disse num momento de covardia que invalidou o efeito, beijando-o na testa seca quando ele estava poucos dias para morrer. Eu só disse à minha esposa que a amava quando ela estava em situação de risco com a última gravidez. A meus filhos eu digo todos os dias. 

Ontem sonhei que estava respondendo perguntas em um programa de televisão, Marília Gabriela ou algo assim. P: Você bate em seus filhos? R: Nunca bato, mas não sou contra o pai amoroso que tem que fazer isso. Meu pai nunca me bateu, mas minha mãe acabava comigo na pancada. Eu era um diabo. Sumi na missa um dia e me acharam na sacristia comendo todas as hostes do saco. Outro dia invadi a despensa da casa da minha avó e enchi minha mão de doce de coco e os enfiei na boca. Não era doce de coco, mas soda cáustica. Não morri por um milagre. Limpeza estomacal, e o trauma de nunca mais comer nada que tenha coco_ ou soda cáustica. Foi a unica vez que minha mãe não me bateu. Eu vi, vingativo, a gana dela em não poder me retirar da cama do hospital e me aplicar uns cascudos. Na sacristia, pelo contrário, ela salivou de satisfação. Gritei na frente do padre enquanto ela socava minhas costas, o diabo do padre feliz e com alguma daquelas reações freudianas de compensar o que ele mesmo queria fazer em mim, se tivesse chance. Outra vez não quis tomar uma injeção e fugi da farmácia, com um carrilhão de gente atrás de mim e minha mãe monitorando da esquina com pega o desgraçado!; um moleque pouco maior do que eu que estava passando por lá me deu uma rasteira e eu me ralei todo no chão. Me levaram de volta para a saleta da injeção como se eu tivesse assaltado o local e fosse enfrentar um linchamento público_ havia mesmo um monte de curioso do lado de fora torcendo para que fosse isso que acontecesse mesmo. O rapaz me aplicou a agulha e, depois que minha mãe confirmou que estava tudo bem comigo e eu balançava a cabeça em concordância convalescida, ela me desce o cacete na frente de todo mundo. A multidão de fora por pouco não dando um hurra! de prazer orgástico. Um dia, apanhei de um garoto bem maior do que eu, fingi que o desculpava o fazendo ir até lá em casa, sedento por reparação, e fechei a porta quando ele entrou, mostrando-o para minha mãe que era ele que me batera covardemente. Minha mãe me desce o sarrafo, pede desculpas ao garoto e o dispensa, não sem antes ele me lançar um olhar de repúdio por eu ser tão mesquinho.

P: Você guarda mágoa de sua mãe por isso?; R: Nem um pouco. Minha mãe me teve quando tinha 19 anos. Todos a abandonaram, desde longa data. Não lhe ofereceram treinamento nenhum para a vida. Internaram-na numa dessas escolas de tortura dirigidas por freiras, na qual ela apanhou, na qual a colocaram de castigo, a torturaram sob a conveniência da aceitação regimentaria, a privaram do vagar e da lentidão. Minha mãe deveria ter sido tão diabolicamente avessa a regras quanto eu sou. Genético. Nos parecemos muito, fisicamente, espiritualmente. A arte e a leitura teriam feito um bem tremendo para ela, mas a privaram disso também. Seu tédio infinito hoje cobra o Proust que a mutilaram de forma definitivamente nos quartos escuros, os tantos quartos escuros pelos quais passou. Ela deve ter dado tantos problemas por sua indisciplina quanto eu, e quanto meus filhos, que também são a cara dela, dão. R: a única consequência disso é que nunca, em hipótese alguma, eu conseguiria dizer eu te amo para minha mãe, tanto que é um assunto resolvido, não precisa vir com conselhos psicologicamente bonitinhos para que eu o diga agora, nem ela espera isso, seria aterrorizante demais para ela ouvir isso de mim. Mas eu bater em meus filhos, isso sim seria um crime. Demorei para ser pai, me treinei 35 anos para isso, 35 anos aprendendo o vagar e a lentidão que minha mãe perdera. De forma que essas leis intrusivas de violência doméstica não serviriam para grande parte das famílias. Grande parte das famílias é fragmentada, destruída, imperfeitas, fragilizadas ao extremo. Tirem a surra da minha mãe quanto a mim e tirariam a própria mãe de mim. Era a única maneira de me controlar. Mas eu não. Eu tenho o dever de resgatar o que minha mãe perdera, e isso ela espera de mim. É a forma de dizer que eu a aprovo e não a censuro por nada, que a compreendo, o que é muito melhor, mais forte e verdadeiro do que uma frase de revista vazia e sem sentido de eu te amo. Meu filho aos dois anos derrubou a máquina de lavar, e eu peguei-o no colo, dei-lhe uma bronca pontual, e expliquei o que havia de errado nisso.

Quando eu trabalhava em uma cidade de mil habitantes, em um de meus primeiros empregos, vi meu primeiro suicida. Dependurou-se pelo pescoço em sua casa aonde não ia ninguém. O homem mais solitário da cidade. 50 anos. Sem filhos, sem esposa. Faltavam 10 dias para o natal.

A ganância, a usura, o egoísmo, a loucura do suicídio conjunto da espécie (um genosuicídio), continua à toda. Minha vizinha de frente é uma professora de quase 40 anos. Arranjou de namorar um homem de cor escura, dois metros de altura, ex-presidiário e canavieiro. Parecia tão fartamente clichê, que eu achei mesmo que iria dar certo. Há um mês que não a vemos. Luzes apagadas, garagem vazia. Há três dias uma velha senhora bate à porta aqui de casa. A mãe dela. Como o senhor é alguém respeitado na rua, queria que nos ajudasse. O homem voltou a usar drogas, invadiu a casa da professora e disse que iria matá-la se ela a abandonasse. Desde então ela está foragida em algum local, com medo do homem.

Semana passada foi aprovada aos juízes de direito do estado o auxílio-moradia e o auxílio-livro. Cerca de 2.100 reais o primeiro, e 2.700 reais o segundo. Para uma classe que ganha 42 vezes mais que o trabalhador padrão brasileiro, que, só com salários, ganham cerca de 24 mil por mês, o que se acrescentam gratificações às tantas, isso seria um insulto em qualquer outro país mais esclarecido que não o nosso. 2.700 reais para uma classe que se situa no mais alto patamar do funcionarismo público, que não precisa de livros para melhorar o atendimento ao público _ se a teoria do aumento passasse por essa exegese. Precisaria que dessem segurança a que a professora acima_ que ganha seus 3.000 reais sofridos por mês quando na carga máxima de 60 horas semanais, e que jamais tem um centavo de gratificação para a compra de livros_, para que ela não fugisse, mas tivesse segurança em confrontar junto aos direitos civis oferecidos pelo estado aquilo que absurdamente a ameaça.

Mas o natal ainda é a época do ano que mais gosto. Ainda que a sensação seja a de que passo cada vez mais os natais no gabinete do sr. Hightower, o padre decaído e exilado em sua casa soturna do romance Luz de Agosto, de Faulkner.

sábado, 8 de dezembro de 2012

F.




"A única coisa que a literatura é capaz de fazer é o mesmo que um fósforo que se acende no meio da noite no campo: só nos ajuda a ver melhor como são grandes as trevas ao redor." (William Faulkner)

sábado, 1 de dezembro de 2012

Camisa de Força


No jornal Sul 21, vejo que uma escritora ganhou uma causa judicial contra uma escola maternal que fica do lado de sua casa, para que o volume de som que transcende desta escola não vá além do limite permitido por lei e não perturbe a ela e a outros vizinhos reclamantes. Escrevendo a coisa assim, como fiz nesta primeira frase, a tendência do leitor é colocar a escritora na fogueira das inimigas recalcadas da infância, o que não é bem o caso. Sou inteiramente a favor da escritora, nesse caso. Para maiores informações, o post do Milton Ribeiro, em que há uma réplica bastante convincente da escritora. Mas, a título de gracinha, escrevi esse aconselhamento à administração da escola e a seus alunos. Segue:

Proponho à administração e aos professores da escolinha que realizem performances diárias no pátio da instituição, para que uma furtiva (e progressivamente assustada) escritora assista pela janela de sua casa. Algumas ideias (lembrando que tudo deve ser ensaiado exaustivamente para que pareça o mais natural e não programado possível):
Segunda-feira: todas as crianças brincando, pulando, correndo pega-pega, as meninas com os uni-du-ni-tês, os meninos com os jogos de futebol, os professores sentados nos bancos conversando e rindo entre si alegre e despreocupadamente. Apenas um detalhe: tudo NO MAIS ABSOLUTO SILÊNCIO, na mais inexorável mudez. Assim o dia inteiro, até ouvirem um grito vindo da casa ao lado e a ambulância chegando para atender a escritora notada subitamente surda.
Terça-feira: Todas as crianças vestidas de negro, deitadas no pátio, simulando estarem mortas. No meio dos corpos, ter o cuidado de selecionar aquele entre os fedelhos que seja indiscutivelmente, por conhecimento geral, o que mais retirava a adesão das musas da inventiva cabecinha da escritora, o que mais gritava e tinha a vozinha de lâmina de vidro; pois este menino, ou menina_ esse diabo vestido de uniforme_ em determinada hora milimetricamente sincronizada com a hora que a reclamante judicial olhar pela janela mais uma vez, irá esticar o braço e apontar um dedo acusador para o vulto na janela, durante cinco minutos (ou até ouvirem mais uma vez o grito e as sirenes do manicômio dobrando a esquina).
Quarta-feira: Instalar-se-á um grande pano por sobre o muro que divide a casa da querelante e o prédio da creche, que será descortinado em horário próprio em que a escritora, temporariamente restituída de seus juízos cerebrais, estará de frente à janela, o que, então, esta poderá ver a fila de meninos e meninas vestidos de estigmatizados uniformes listrados seguindo em marcha para uma câmara improvisada no pátio, aonde todos desaparecerão no interior sombrio, enquanto uma fumaça sobe pelo ar e do outro lado cai no chão um dos livros da escritora, no qual as crianças, com todos seus silêncios e ausência de felicidades, se transformaram.
Quinta-feira: a escritora respira fundo, faz o nome do pai, se benze, toma um diazepan com suco concentrado de alface e maracujá, e, enfim, tem uma trêmula coragem de olhar pela janela…
…ao que encontra todo o pátio da creche transformado em fumódromo de crack, com todos aqueles zumbis semi-nus envolvidos com trapos que um dia foram os uniformes das crianças…
…EM ABSOLUTO, SAGRADO E IMPONENTE SILÊNCIO…

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Franz Kafka, Hannah Arendt e o Menino Medieval


Eu conheci Franz Kafka quando tinha 13 anos. Geralmente a porta de entrada para esse magnífico autor costuma ser sua novelinha mágica chamada A Metamorfose, que um colega de escola me definira ser sua descoberta de uma história maluca de um homem que acorda transformado em inseto, mas o meu ingresso foi através daquele protótipo de pesadelo opressivamente burocrático intitulado O Processo. Eu passava as férias de julho com meu pai em uma cidadezinha de Minas Gerais e nós dois, ele já um leitor inveterado e eu ansioso para honrar meus óculos de míope, encontramos uma bucólica biblioteca circular feita de tijolos e centrada entre um amplexo de árvores. Nela encontramos um monte de livros que nos fez descartar a pretensão de viagens mais longas pela paisagem mineira, e nos manteve enfunados na casa de dois andares situada em cima de um morro e com vista para os trilhos do trem onde nos hospedara o irmão de meu pai. À noite saíamos para as festas e os bares e as tantas casas de amigos de meu tio, e enquanto meu pai tocava violão, eu tentava sair de minha gritante timidez conversando com as garotas. Voltávamos radiantes para o sobrado, meu pai com a tez avermelhada pelo vermute e a felicidade ostensiva daqueles anos, e eu possuído pela febre da descoberta das possibilidades do universo feminino. Parte considerável desse êxtase atmosférico que sentíamos se devia aos livros que nos esperava, eu lendo O Processo e os contos de O Muro, e meu pai lendo O Exorcista e Manuel Scorza. Eu sabia intimamente que estava passando por um aprendizado e uma educação muito superior ao que tinha na escola. Não entendia Kafka como iria entender futuramente, nas minhas tantas releituras, mas prestava uma atenção descomunal e ao mesmo tempo relaxada, consciente de que estava tocando algo de uma verdade e lucidez extremas, algo que era real e intenso e que nada tinha a ver com as tantas dissimulações inúteis e pomposas da escola, algo que me transformava em um ser humano por abrir todas as sensibilidades e sofrimentos inerentes à condição humana. Não um técnico, como me queria a idiotização da escola.

Fiquei tão fascinado com O Processo que não consegui desvincular-me daquela frequência de como ver o mundo através de interstícios simbólicos. O mundo apresentado por Kafka era doloroso, soturno, irracional, claustrofóbico, mas, estranhamente, me deixava feliz, sem eu conseguir descobrir por quê. Passei a olhar cômodos pequenos e apertados com uma apreciação recolhida, com uma certa nostalgia espiritual. Não saberia explicar, mas Kafka me fazia lembrar, em última e infalível instância, a filologia de antigos clãs dinásticos, como se por detrás da solidão insuportável de Joseph K. houvesse a intuição de uma Avalon completamente destituída e apagada dos registros mas que, por uma distração do acaso, deixara vestígios quase invisíveis. Assim eu compreendia Kafka. Ler O Processo era uma proteção, era uma forma eficaz de entender aquilo que transcendia o positivismo das categorias sociais que cada vez mais me pareciam inadiáveis. Mais tarde, bem mais tarde, eu veria explicado, surpreendentemente, essa sensação de despropósito lisérgico em apreciar ambientes degradados em um livro de Slavoj Zizék, em que esse escritor analisa as cenas de silêncio e natureza atulhada dos filmes de Tarkóvski. Zizék explica o que eu sempre senti com enorme intensidade mas jamais imaginava que tal nível de apreensão sensorial pudesse ser verbalizada: descrevendo uma cena de Tarkóvski, em que carros fragmentados e peças de metal retorcidas aparecem em uma paisagem natural selvagem (a paisagem em ruína), às margens de um rio e na ausência ecoante de presença humana, o filósofo esloveno diz que tal sensação advêm pela pulsão capitalista em descanso. Alargando mais esse conceito específico, Kafka me mostrou a beleza da ruína por me revelar a pulsão do mundo que importa em descanso, a pulsão em descanso da história e das compulsões da vida prática, a pulsão em descanso do absurdo e da barbárie transvestidos de sociedade democrática progressista, da ciência e da tecnologia festivamente evolucionistas na melhora da espécie. O descanso da inexorável hipocrisia de ter a estimativa de vida de 70 anos e gastá-la na labuta sem razão do acordar diário para degladiar-se furiosamente pela obtenção de angústia e tristeza capitalizável. Eu, aos 13 anos, não entendia Kafka assim, mas esse meu desentendimento era muito educativo, pois as grandes obras não tem um manual de trilha perfeita a ser seguida.

Quando perguntado por seu amigo Max Brod se existiria esperança "fora desse mundo de aparência que conhecemos", Kafka ri e responde: "Há esperança suficiente, esperança infinita_ mas não para nós." Talvez por isso me vinha_ e me vem_ a intuição de que por detrás dos pesadelos de Kafka exista uma Avalon adormecida, onde, antes, muito antes, as coisas fizessem realmente sentido, as coisas realmente existissem. Como na frase ouvida pelo deão no metrô, de um homem que havia sido ateu a vida inteira, no romance de Saul Bellow (Dean`s December): "Nada é suficientemente absurdo para existir; talvez, então, deus exista!" E foi isso que Kafka sempre me disse, desde quando eu era jovem o suficiente para não entendê-lo (ou jovem o suficiente para entendê-lo, no paradoxo vaidoso de Wilde), que Joseph K., que Gregor Samsa, que K., eram seres vestigiais, órfãos de um universo supraciente de sentido pleno, de mérito absoluto, apartados nessa prisão demasiadamente empobrecida em que nada se comunica, em que as vozes são aparelhos de distúrbio e perturbação e não de aproximação; seres dotados de uma infinita liberdade, mas que na pressuração desse mundo não suportam o peso dessa liberdade e estão sempre atrás do aguilhão que lhes escravize para dar-lhes um sentido eufemista de pertencimento. K., personagem de O Castelo, é desbragadamente livre, absolutamente ilimitado, mas não suporta a ausência de direção aflitiva vinda da indiferença dos senhores do castelo, que se negam a inseri-lo na lógica da aldeia ao serem reticentes quanto se vão contratá-lo ou não como agrimensor. E Joseph K., nascido na plenitude de sua independência, não tolera sua leveza em não conhecer as cláusula do vazio que lhe imputam na forma de um processo passivo e inofensivo, mas que só cresce e se demonstra em resposta à sua reação a ele.

Estou relendo O Castelo, na tradução de Modesto Carone. Ao mesmo tempo leio Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt. Uma das minhas felicidades é Hannah Arendt, mas ainda não tinha lido por inteiro esse misto de reportagem e análise estupenda sobre a natureza do mal. São dois livros que pretendo que meus filhos leiam antes de chegarem a seus 15 anos. Só esses dois livros garantiriam uma larga margem de possibilidade de que eles se tornem pessoas distintas intelectualmente e humanistas inveterados, com empenho em não caírem em clichês das ideias nefastas e deterioradas do politicamente correto. Grande parte do livro de Arendt versa sobre os clichês aprisionadores da sociedade, que poupam as pessoas do pensamento real e as tornam indivíduos animalizados moldados para qualquer condução que lhes queira dar os poderes instituídos: até mesmo para o assassinato. Eichmann, o nazista raptado por agentes secretos israelitas em seu refugio na Argentina, no começo da década de 1960, e julgado em um tribunal em Israel por crimes de guerra, é o protótipo desse indivíduo correto, bom pai e vizinho perfeito,  pedante seguidor de regras e comandos de ordem. E Arendt, que assistiu e participou ativamente de todas as fases desse julgamento, é o cérebro que transcende as tantas formas que o clichê intelectual desse enredo apresentam para cimentar o pensamento de uma escritora, mulher, judia, e distanciada apenas 15 anos desses eventos cheios de passionalidade. Arendt, diga-se em primeiro lugar, foi um dos maiores escritores do século passado. Quanta sofisticação em sua escrita, quanta lucidez e força, quanta beleza e limpidez. Ela começa atacando os esquemas pérfidos de Israel em transformar o julgamento em uma causa pessoal, em esteriótipos de condução do ódio popular contra os alemães e a pena a favor dos judeus europeus. Foi uma das primeiras, senão a única, intelectual a fazer isso, naquela primeira década após o fim da segunda guerra: a se indispor com os atos de ofício laudatórios que o povo do qual formalmente pertencia poderia lhe oferecer, caso ela se predispusesse a ser um dos mitificadores da miseração judaica. Assim como faz em Origens do Totalitarismo, em que apresenta um quadro pouco festivo sobre o quanto os judeus ricos eram impiedosos e indiferentes ao destino dos judeus pobres, em Eichmann ela reporta o quanto a matança dos judeus poloneses pelos nazistas pouco foi considerada pelo establishment moral de Israel, e o quanto Israel se esforçou para enfocar o genocídio apenas nos judeus europeus, deportando o restante do mundo e reduzindo os crimes de crime contra a humanidade para crime contra o povo judeu.

Mas o melhor e mais impressionante desse indispensável livro de Arendt, é a sua desmistificação do monstro assassino e impiedoso que intentarem fazer de Eichmann, apresentando-o como um homem medíocre, simples, mesmo de bom coração, que, paradoxalmente, foi um dos poucos nazistas que fizeram algo efetivamente válido para salvar milhares de judeus antes dos massacres. Seu diagnóstico é tão fantástico que o livro ultrapassa as fronteiras mesmo da filosofia desconstrutivista para ser um dos retratos mais profundos da natureza humana formalizada pela sociedade. A ironia finíssima de Arendt é um deslumbramento: a Eichmann bastou ler dois livros, seus dois únicos livros lidos na vida inteira, para torná-lo um progressivo homem poderoso do führer; dois livros que versavam sobre o movimento sionista de deportação dos judeus e criação de um estado independente para eles; em determinada parte do volume, Arendt descreve a incrível vaidade de Eichmann pelo poder no sentimento de superioridade que ele tinha frente a seus subalternos, afinal, "em parte porque eram ignorantes, nunca haviam lido um ou dois 'livros básicos'". Outro momento revelador é quando um dos policiais da carceragem oferece a Eichmann, para livrá-lo do tédio, o Lolita para ler, ao que o alemão o devolve depois de um dia alegando ser um livro imoral e contra seus princípios. Para um Brasil de hoje, uma pensadora como Arendt seria impossível no que vemos nessa frase definitiva que comportaria grande parte da intelectualidade e a mídia nacional: "esse horrível dom de se consolar com clichês não o abandonou (Eichmann) nem na hora da morte".

Pediram-me por e-mail para que eu escrevesse um texto de auto-ajuda sobre meus tempos de gagueira extrema. Percebi que ainda não sou capaz de fazer isso da maneira séria como gostaria, por isso, por enquanto, escrevi apenas uma frase: o mundo pré-galilêico da criança gaga, em que ela está para cair de suas bordas planas em direção ao abismo a cada grande vergonha de sua incapacidade vocálica por que passa. 


quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Os Dez Mandamentos do Escritor, na Opinião de Zadie Smith




Zadie Smith é uma escritora que nunca me interessou, mas essas dez regras tem muito a dizer:
1. Ainda na infância, assegure-se de ler um monte de livros. Passe mais tempo fazendo isso do que qualquer outra coisa.
2. Quando adulto, tente ler seu próprio trabalho como um estranho o leria, ou melhor ainda, como um inimigo o leria.
3. Não romantize sua “vocação”. Ou você consegue escrever boas frases ou não consegue. Não existe nada parecido com uma “vida de escritor”. A única coisa importante é o que você deixa na página.
4. Evite seus pontos fracos. Mas faça isso sem dizer a si mesmo que aquilo que é incapaz de fazer não merece ser feito. Não mascare sua insegurança com o ressentimento.
5. Deixe um espaço de tempo decente entre escrever e editar o que escreveu.
6. Evite panelinhas, grupos, gangues. A presença de uma multidão não tornará seu texto melhor do que é.
7. Trabalhe num computador desconectado da internet.
8. Proteja o tempo e o espaço em que escreve. Mantenha todo mundo do lado de fora, mesmo as pessoas que são mais importantes para você.
9. Não confunda honrarias com realização.
10. Diga a verdade através de qualquer véu que esteja à mão – mas diga. Conforme-se com a tristeza de uma vida inteira que advém do fato de nunca estar satisfeito.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

1Q84, de Haruki Murakami


Murakami é uma raposa. 1Q84, seu mais recente romance e cujo primeiro volume da trilogia acaba de ser lançado no Brasil, é uma ardilosa peça de inteligência feita com a milimétrica precisão para cativar sua presa. Lendo-o nos três ou quatro dias que dura sua leitura_ pois isso é mais uma das estudadas táticas do autor: quem começa a ler o romance não consegue parar_, percebe-se que foi feito no mesmo forno em que são assadas as séries televisivas atuais norte-americanas. Ou seja: cada capítulo remete a uma intuição angustiante do que deve estar realmente por detrás da trama, quais as surpresas e o sentido verdadeiro que sustenta aquela estrutura suspeita em que tudo se revela apenas aparências enganadoras. 1Q84 é tão instigante e tem a importância súbita de um enigma a ser resolvido na então encolhida vida de seu leitor quanto Lost e Walking Dead. E, claro, para o leitor carimbado, isso nada tem de novo, já que Walking Dead e Lost tem como raiz conceitual os viciantes folhetins da literatura oitocentista, como O Conde de Monte Cristo e Oliver Twist. Ou seja, Murakami não está fazendo nada mais que a mais clássica e boa literatura de sempre, apesar dos tantos críticos e leitores especializados acentuarem no tom um desprezo por seu estilo enxuto e algum ou outro pedantismo moralista que o faz parecer um aluno bem comportado perto de devassos de estilos complexamente palimpsésticos como Don Delillo e Thomas Pynchon.

1Q84 é muito bem pensado e organizado, e a cada página sua trama vai ganhando novos adendos de riqueza. Como terminei o primeiro volume e os outros dois só estão prometidos para a metade e o final do ano que vem (estou a pensar em pedi-los de Portugal, que já os tem traduzidos e publicados), fica uma infinita suposição do que pode estar por detrás de tudo. A história... deixa eu tentar resumir a história: há dois personagens centrais, Aomame, a assassina profissional que também é professora de educação física, e Tengo, o jovem corpulento professor de matemática que escreve romances. No primeiro capítulo, Aomame se vê dentro de um táxi  que a leva para um encontro no qual se desenrolará mais um de seus trabalhos encomendados, mas que está parado num extenso congestionamento em uma rodovia. Ela repara que o sistema de som do táxi é um tanto sofisticado, no enlevo que lhe causa a sinfonietta de Janácek que uma rádio transmite enquanto está à espera do desenrolar do congestionamento (Murakami oferece várias pistas de que tal sinfonietta tem uma importância fundamental no enredo). O motorista lhe aconselha que, se quer chegar a tempo para seu compromisso, ela deverá sair do táxi e descer as escadas da via expressa, para assim pegar o metrô. E antes que ela saia do carro, o taxista lhe aconselha: Não se deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. (Assim mesmo, em negrito.) Daí por diante a realidade em que vive Aomame vai sofrendo sutis alterações, a começar pelo uniforme dos policiais japoneses, e dali para uma visão surrealista de um céu sobre Tóquio com duas luas. Aomame, profunda entendida em História e uma leitora contumaz de notícias, se percebe aos poucos que está numa espécie de universo paralelo, e. para não se enlouquecer e perder a lucidez, rotula-o com o nome de 1Q84, em referência ao romance de Orwell e ao ano em que vive, 1984. O Q que ela sobrepõe se refere a Question mark, "um 'quê' de dúvida, de interrogação". (Gostaria de entender o por quê certa resenha mencionou o Q como um vocábulo japonês equivalente sonoro a 9.)

Até aí, pode parecer que Murakami cria uma história fantástica apenas pelo pendor do público japonês pelo inusitado, e que tal universo paralelo seja uma forçação de barra difícil de digerir. Lendo-se as equivocadas e apressadas resenhas das revistas nacionais, por exemplo a da Veja, a impressão que fica é de uma gratuidade excêntrica por parte do autor, compensada pelo magnetismo de sua escrita: é exatamente isso que a Veja diz, reproduzindo um excerto de quando Aomame descobre as duas luas no céu, e concluindo que tais excessos são desobstruídos pelo sinergismo da prosa de Murakami. O apressado resenhista, que parece não ter lido o romance, mas ido atrás de fontes googlescas para escrever o artigo, empobrece o livro ao restringir toda a complexidade psicológica e simbólica que vai se insinuando ao longo das páginas a um simples mundo de Óz. Aomame não entra, literalmente, em outro mundo: seu cotidiano é o mesmo, os fatos brutais de violência contra mulher e contra crianças (magnificamente expostos na obra), que a motiva ao assassinato, são os mesmos que compõe as estatísticas de crimes no Japão; esse universo paralelo é um descalibramento de sua percepção, em que, possivelmente, esteja entrando toda a misteriosa experiência de seu passado e do cruzamento de sua vida com as de Tengo e as de uma seita religiosa que aos poucos vai surgindo e ganhando importância no enredo, (Essa parte das suposições é a que mais instiga o leitor.)

Tengo, o outro personagem principal, é incumbido por seu editor a reescrever e transformar em best-seller uma narrativa intitulada Crisálida de ar, escrita por uma adolescente de 17 anos disléxica chamada Fukaeri. É um tanto difícil resumir 1Q84, mas basta dizer que tanto a existência de Aomame quanto a de Tengo (que não se encontram nesta primeira parte, a não ser em um distante episódio do passado), e a de todos os personagens que vão surgindo no livro, tem direta relação com a história escrita pela menina Fukaeri. Nesse ponto, me fez recordar uma crítica que o poeta e ensaísta russo Joseph Bródski escreveu sobre o romance O Pavilhão dos Cancerosos , de Soljenítsin: Bródski diz que em determinada cena de O Pavilhão, Soljenítskin está por criar algo genial e completamente novo na literatura russa _ se não me falha a memória, a cena se refere às ocupações de uma médica com os objetos e remédios do laboratório do doentes_, mas, acovardado diante essa porta para a sublimidade, Soljenítsin desiste e transforma a possibilidade em um prosaísmo. Pois Murakami passa essa impressão, de que está por criar algo sublime por sob a estrutura à vista desse extenso romance: algo que, ao contrário da maioria dessas mesmas séries televisivas em que irmana na capacidade de viciar o público, parece ser intrinsecamente coerente e organizado, que não deixará nenhuma ponta solta no final. Apesar de alguma fragilidade, como alguns diálogos esquemáticos e com cunho didático (há um que versa sobre a obrigação do uso da camisinha), o uso indisfarçado de alguns clichês cinematográficos (como o da estufa de borboletas raras e plantas em que Aomame se encontra com uma velha senhora, que lembra Minority Report), 1Q84 é tão contundente e bem escrito quanto a maioria dos festejados e tidos como grandes romances contemporâneos. Murakami se aproxima da exatidão da escrita de Bolaño, no tocante a ser um narrador autêntico, mas seu nível de envolvimento não bebe da fonte de tristeza pós-filosófica e pós-histórica do chileno. Essas fragilidades ficariam bem resolvidas se ele tivesse uma prosa tão ricamente densa e humorada como a de Pynchon, mas cair nessas comparações seria algo despropositado. A um leitor de Pynchon como eu, que ia pensando, enquanto lia 1Q84, o quanto Pynchon daria uma rasteira em Murakami em diversas partes capengas da obra, o autor japonês cativa aos poucos e mostra a sua mestria por sua incrível simplicidade, sua linearidade e sua limpidez. Características que vão na contramão das exigências estéticas da literatura moderna, mas Murakami se afirma com sua presença difícil de ser ignorada, como costuma fazer os grandes escritores que não se enquadram facilmente a esteriótipos. 

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, de David Foster Wallace


Há uma cena no ensaio que dá título ao livro em que a acompanhante de Wallace à visita a uma feira agrícola no interior de Illinois se submete a um dos brinquedos de "quase morte" do parque. É uma minuciosa descrição de tortura: a mulher é aprisionada em um cubículo gradeado de ferro, içada a uma altura exorbitante, e sacolejada por minutos que parecem infinitos. Em um determinado momento, Wallace concebe a ideia audaciosa de que a vida da mulher depende de sua intervenção junto aos dois rapazes que controlam as alavancas do brinquedo, visto que sua racionabilidade em não ver nenhum tipo de motivação saudável para alguém se submeter a tais extremos o mantêm seguramente em terra. Os dois rapazes começam a revelar níveis de sadismo ao manterem a mulher dependurada de cabeça para baixo só pelo intuito de verem suas saias caídas e a calcinha à mostra. Wallace, até então carregando o texto com análises filosóficas distanciadas  beirando um compêndio alienígena sobre uma espécie bestial, assinala um marco de terror no meio do tom secamente cômico ao avaliar-se covarde demais para enfrentar os dois caipiras bêbados, mesmo essa incapacidade feminilizante parecer custar a vida de sua colega. A cena termina com os maníacos voltando a cabine para o chão e a mulher, que Wallace imagina reduzida a um trapo, pulando para fora e festejando a maravilha daquilo com uma série de palavrões incitatórios aos rapazes. Wallace, abismado, conta à moça sobre a agressão pela qual ela acabara de passar, e sua nítida crueldade sexual, mas ela se mostra completamente avessa a entender, enxergando a coisa como algo trivial e ingênuo. Ao leitor ainda possível de se lembrar das obras de Stephen King que lera na adolescência,  é inevitável admirar o quanto Wallace esbarra na mais pura literatura de terror ao mostrar-se desabrigado e indefeso em um mundo em que a maldade se revela nas beiras de normalidade comezinha apenas para ele. Ninguém vê o diabolicismo por detrás das crianças gordas sendo doutrinadas pelos pais obesos a comerem as mais aberrantes guloseimas gorduras e gotejantes de óleo de fritura, nem o campeonato de vale-tudo entre garotos de dez anos que são induzidos a quebrarem um o nariz do outro por pais sedentos por violência, ou os tantos símbolos fálicos e palhaços bêbados e com não apenas imaginárias propensões ao crime, que são os personagens e as situações que povoam a feira.

A lucidez de Wallace, de tão pura, chega a converter-se por convecção e involuntariamente a essa maldade translúcida. Não há nenhum sinal de moralismo ou transcendência em suas palavras, mas apenas a sequidão científica do colecionador de insetos raros, que os vai afixando com agulhas em um quadro. Em determinado momento, sua incansável predisposição ao conceitualismo traça uma causa a essa brutalidade desinibida que o afronta pelos vários dias que dura sua estadia no parque: as pessoas dos insípidos povoados do centro dos Estados Unidos são indivíduos recolhidos, mutilados pelo tédio, enfurnados em um cotidiano previsível e insosso, e essas festas agropecuárias é a forma da catarse anual que os liberta por um momento da maldição da geografia. Só que eles não conseguem libertar-se de si mesmos, do que anos de prostração fizera a seus espíritos: daí que nesses períodos de oásis eles se lançam em uma espécie de hiper-realismo esquizofrênico, em que os antigos traços de seus humanismos são substituídos de vez por caricaturas do que neles existem de molestadores sexuais, assassinos potenciais, escravos da indústria de fast-foods e pais alienados. Nas mãos de um Bernhard ou de um Camus, esse retrato do inferno alimentaria-se de contundência e linguagem decantadamente combativa, e virulência e repúdio, mas nas mãos de Wallace essas características são preenchidas por uma forma de humor destituída de qualquer engrandecimento trágico, um humor que se revela nas palavras mais como um ato físico de estoicismo por estar no centro das labaredas do que por indicar-se superiormente capacitado a olhar tudo de um mundo hipotético melhor e mais seguro; um humor pós-riso e uma observação ativa e muscular que não abraça nenhuma escola filosófica: um exaurimento filosófico como se a América dos tempos atuais não comportasse mais nenhuma trégua e nem tão pouco alguma fagulhar e eventual redenção desse inexorável trivialismo. Wallace escreve como um jovem envelhecido precocemente por sua capacidade não vantajosa de ver além desse jogo faustiano de hedonismo e frivolidade que encoberta a realidade, após ler toda a filosofia, a ensaística e a ficção atrás de sucedâneos menos terríveis, e se conforma em não criar mais uma roupagem inédita de verdade, se comprazendo a abraçar apenas a originalidade de sua fidelidade à sua voz. E assim ele escreve todos os formidáveis seis ensaios compelidos neste livro.

Javier Marías, grande aficionado à literatura de terror, escreve que o relato do terror pelo terror enfraquece o texto, pois uma vez exposta, a atrocidade soa convincente, mas as repetidas vezes mais em que ela aparece, a "tensão se perde e o efeito se desvanece". Por isso, ele continua (no curto ensaio Contra la Truculencia, do livro Literatura y Fantasma): "a frase que maior horror me produziu na literatura não está em Lovecraft, mas em Flaubert: no final de Madame Bovary, com ela já morta e em seu ataúde, enquanto vários personagens lhe colocam por cima uma coroa, Flaubert diz: 'Teve-se que levantar-lhe um pouco a cabeça, e então uma onda de líquidos negros saiu, como um vômito, de sua boca'". Assim é o horror que se tem nessas páginas de Wallace, tanto neste longo relato da feira de Illinois, quanto do cruzeiro que faz pelo Caribe, quanto na descrição do sofrimento de uma lagosta no processo de ser cozinhada viva, quanto do seu famoso discurso sobre a paciência diante a inutilidade salvadora de todas as coisas e todos os gestos em Isto É Água. O horror sem sombras e sem sentenças conradianas, que a própria arquitetura em que tais ensaios foram feitos, a maioria para revistas de gastronomia e de turismo (não literárias), favorece uma liberdade coloquial em que a efemeridade é uma primeira máscara enganosa. Recomendei a um amigo que lesse o ensaio Pense na Lagosta, ao que ele me disse, após a leitura, que o texto começa desinteressante, sem que se dê nada por ele, descrevendo os eventos da feira da lagosta do estado americano do Maine, mas que logo entra em uma comovente e quase insuportável acusação da crueldade que jaz por detrás das tradições culinárias as quais entregam ao consumidor uma carcaça embalada em inofensivas embalagens coloridas que não deixam intuir a enorme dor e indizível sofrimento pelos quais passou o animal antes de se tornar alimento. A lucidez mais impactante desse grande escritor que é Wallace, a sua escrita soco no estômago que não se curva a formulações fáceis, pode ser resumida nesse diagnóstico da alienação reinante e opulenta do homem consumidor a que se reduziu antigas ilusões iluministas, em sua frase: "Elas (essas pessoas) não estão prejudicando ninguém".

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Um Anúncio


“Escrever é estar sempre errado. Todos os nossos rabiscos contam a história de nossos fracassos. Não tenho mais a energia da frustração, nem a força de me confrontar. Porque escrever é se frustrar: passamos todo nosso tempo escrevendo a palavra errada, a frase errada, a história errada. Nos enganamos sem parar, falhamos sem parar e, assim, precisamos viver em uma frustração perpétua. Passamos o tempo dizendo a nós mesmos: isso não está funcionando, preciso recomeçar. Agora estou numa fase diferente da minha vida: perdi toda forma de fanatismo. E não sinto nenhuma melancolia.” (Philip Roth, ao anunciar que não vai mais escrever)

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Murakami e a Reverberação da Linguagem (Uma Previsão de Empatia)


Ontem o carteiro me entregou o Norwegian Wood, de Haruki Murakami, e a previsão é que hoje ele me entregue o 1Q84. Fiquei feliz e envaidecido que a tradução da Alfaguara seja direto do japonês e, segundo algumas fontes, mais confiável que as traduções apressadas feitas pelo mercado livreiro dos Estados Unidos ao perceber a emergência de aproveitar os milhões de exemplares vendidos no Japão na ocasião dos lançamentos do autor. Li por longas horas madrugadinas o romance tido como de mestre sobre o amor no final dos anos 60. Pareceu-me que Murakami é por demais convencional e sem muitos arroubos linguísticos, com forte acento da tradição japonesa (e chinesa) de relatar com esmero episódico e com uma poética com suas tipicidades trágicas um tanto anacrônicas para a velocidade da literatura ocidental. Uma narrativa sem experimentalismos de qualquer tipo, bastante convencional. Seu monocromismo me pareceu isento de eufonismo, mas pensei que afinal essa é uma das pretensões declaradas de Murakami, extinguir o beletrismo da ficção japonesa e torná-la eficiente, prática, voltada para algum fim doutrinário de descobrimento espiritual. Também ficou claro para mim a indisposição que vi entre admiradores de Pynchon quanto a Murakami, o desprezo que nutrem por ele: Murakami perto de Pynchon me soa um tanto japonês, um tanto certinho e engomado, como soa estranho o rock japonês e o cinema de ação japonês. Pynchon nasceu antes para a literatura, com uma enorme carga de perigo e inconveniências; já Murakami é um neófilo com um seguro ar de pedantismo oitocentista, suavizado em muito pela decantação da prosa pop. Talvez isso não tenha passado batido para Murakami e essa lentidão démodé tenha lhe incomodado, o que fez com que partisse para o canivete em punho de seu últimos livros fantasiosos e lisérgicos, onde se juntam universos paralelos e releituras de antigos mitos.

Mas, percebo, isso não desmereceu Murakami para mim, e sua leitura segue sendo bastante prazerosa e instrutiva. Com o tempo pode ser que eu veja nele a sua estatura iniludível de mestre, o seu direito certo de grandeza artística. Li apenas umas cem páginas, precipitação escrever essas palavras. O que achei mais libertador é o que me motivou a procurar por ele: a paixão da escrita como um dever e não como um artesanato radical de traços impecáveis. Para um oriental e nipônico isso deve ser um tanto mais difícil, com todas aquelas escolas caligráficas as quais são talvez as encarnações mais singelas do rigor da beleza da escrita. Penso em A Montanha da Alma, o livro de perfeição ofensiva do chinês Gao Xingjian que li há dez anos. Essa aproximação doutrinária da literatura japonesa e chinesa do gesto coreografado deve ter sido uma dura pena a ser superado por Murakami. Por isso é muito bom ver os descuidos tolstoianos de Murakami em usar profusamente os advérbios, a repetição enfática da mesma palavra em um mesmo parágrafo, do favorecimento da expressividade do sentimento sincero e não da disposição enganosa da poesia bombástica, as imagens e metáforas de gosto duvidoso mas sem solenidades e por isso surpreendentemente eficientes (algo como faz genialmente Günter Grass). Murakami na certa vai causar em mim o mesmo que causa os escritores puros, John Fante, Jack Kerouac, Charles Bukowski, Cortázar com seus infinitos defeitos e obsolescências, o mais próximo e amador Marcos Nunes: a grandeza inerente à insuportabilidade que seria abnegar-se da escrita, o que os torna relevantes compulsoriamente. De forma que ler Murakami não deixa de ser uma incrível libertação.