Murakami é uma raposa. 1Q84, seu mais recente romance e cujo primeiro volume da trilogia acaba de ser lançado no Brasil, é uma ardilosa peça de inteligência feita com a milimétrica precisão para cativar sua presa. Lendo-o nos três ou quatro dias que dura sua leitura_ pois isso é mais uma das estudadas táticas do autor: quem começa a ler o romance não consegue parar_, percebe-se que foi feito no mesmo forno em que são assadas as séries televisivas atuais norte-americanas. Ou seja: cada capítulo remete a uma intuição angustiante do que deve estar realmente por detrás da trama, quais as surpresas e o sentido verdadeiro que sustenta aquela estrutura suspeita em que tudo se revela apenas aparências enganadoras. 1Q84 é tão instigante e tem a importância súbita de um enigma a ser resolvido na então encolhida vida de seu leitor quanto Lost e Walking Dead. E, claro, para o leitor carimbado, isso nada tem de novo, já que Walking Dead e Lost tem como raiz conceitual os viciantes folhetins da literatura oitocentista, como O Conde de Monte Cristo e Oliver Twist. Ou seja, Murakami não está fazendo nada mais que a mais clássica e boa literatura de sempre, apesar dos tantos críticos e leitores especializados acentuarem no tom um desprezo por seu estilo enxuto e algum ou outro pedantismo moralista que o faz parecer um aluno bem comportado perto de devassos de estilos complexamente palimpsésticos como Don Delillo e Thomas Pynchon.
1Q84 é muito bem pensado e organizado, e a cada página sua trama vai ganhando novos adendos de riqueza. Como terminei o primeiro volume e os outros dois só estão prometidos para a metade e o final do ano que vem (estou a pensar em pedi-los de Portugal, que já os tem traduzidos e publicados), fica uma infinita suposição do que pode estar por detrás de tudo. A história... deixa eu tentar resumir a história: há dois personagens centrais, Aomame, a assassina profissional que também é professora de educação física, e Tengo, o jovem corpulento professor de matemática que escreve romances. No primeiro capítulo, Aomame se vê dentro de um táxi que a leva para um encontro no qual se desenrolará mais um de seus trabalhos encomendados, mas que está parado num extenso congestionamento em uma rodovia. Ela repara que o sistema de som do táxi é um tanto sofisticado, no enlevo que lhe causa a sinfonietta de Janácek que uma rádio transmite enquanto está à espera do desenrolar do congestionamento (Murakami oferece várias pistas de que tal sinfonietta tem uma importância fundamental no enredo). O motorista lhe aconselha que, se quer chegar a tempo para seu compromisso, ela deverá sair do táxi e descer as escadas da via expressa, para assim pegar o metrô. E antes que ela saia do carro, o taxista lhe aconselha: Não se deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. (Assim mesmo, em negrito.) Daí por diante a realidade em que vive Aomame vai sofrendo sutis alterações, a começar pelo uniforme dos policiais japoneses, e dali para uma visão surrealista de um céu sobre Tóquio com duas luas. Aomame, profunda entendida em História e uma leitora contumaz de notícias, se percebe aos poucos que está numa espécie de universo paralelo, e. para não se enlouquecer e perder a lucidez, rotula-o com o nome de 1Q84, em referência ao romance de Orwell e ao ano em que vive, 1984. O Q que ela sobrepõe se refere a Question mark, "um 'quê' de dúvida, de interrogação". (Gostaria de entender o por quê certa resenha mencionou o Q como um vocábulo japonês equivalente sonoro a 9.)
Até aí, pode parecer que Murakami cria uma história fantástica apenas pelo pendor do público japonês pelo inusitado, e que tal universo paralelo seja uma forçação de barra difícil de digerir. Lendo-se as equivocadas e apressadas resenhas das revistas nacionais, por exemplo a da Veja, a impressão que fica é de uma gratuidade excêntrica por parte do autor, compensada pelo magnetismo de sua escrita: é exatamente isso que a Veja diz, reproduzindo um excerto de quando Aomame descobre as duas luas no céu, e concluindo que tais excessos são desobstruídos pelo sinergismo da prosa de Murakami. O apressado resenhista, que parece não ter lido o romance, mas ido atrás de fontes googlescas para escrever o artigo, empobrece o livro ao restringir toda a complexidade psicológica e simbólica que vai se insinuando ao longo das páginas a um simples mundo de Óz. Aomame não entra, literalmente, em outro mundo: seu cotidiano é o mesmo, os fatos brutais de violência contra mulher e contra crianças (magnificamente expostos na obra), que a motiva ao assassinato, são os mesmos que compõe as estatísticas de crimes no Japão; esse universo paralelo é um descalibramento de sua percepção, em que, possivelmente, esteja entrando toda a misteriosa experiência de seu passado e do cruzamento de sua vida com as de Tengo e as de uma seita religiosa que aos poucos vai surgindo e ganhando importância no enredo, (Essa parte das suposições é a que mais instiga o leitor.)
Tengo, o outro personagem principal, é incumbido por seu editor a reescrever e transformar em best-seller uma narrativa intitulada Crisálida de ar, escrita por uma adolescente de 17 anos disléxica chamada Fukaeri. É um tanto difícil resumir 1Q84, mas basta dizer que tanto a existência de Aomame quanto a de Tengo (que não se encontram nesta primeira parte, a não ser em um distante episódio do passado), e a de todos os personagens que vão surgindo no livro, tem direta relação com a história escrita pela menina Fukaeri. Nesse ponto, me fez recordar uma crítica que o poeta e ensaísta russo Joseph Bródski escreveu sobre o romance O Pavilhão dos Cancerosos , de Soljenítsin: Bródski diz que em determinada cena de O Pavilhão, Soljenítskin está por criar algo genial e completamente novo na literatura russa _ se não me falha a memória, a cena se refere às ocupações de uma médica com os objetos e remédios do laboratório do doentes_, mas, acovardado diante essa porta para a sublimidade, Soljenítsin desiste e transforma a possibilidade em um prosaísmo. Pois Murakami passa essa impressão, de que está por criar algo sublime por sob a estrutura à vista desse extenso romance: algo que, ao contrário da maioria dessas mesmas séries televisivas em que irmana na capacidade de viciar o público, parece ser intrinsecamente coerente e organizado, que não deixará nenhuma ponta solta no final. Apesar de alguma fragilidade, como alguns diálogos esquemáticos e com cunho didático (há um que versa sobre a obrigação do uso da camisinha), o uso indisfarçado de alguns clichês cinematográficos (como o da estufa de borboletas raras e plantas em que Aomame se encontra com uma velha senhora, que lembra Minority Report), 1Q84 é tão contundente e bem escrito quanto a maioria dos festejados e tidos como grandes romances contemporâneos. Murakami se aproxima da exatidão da escrita de Bolaño, no tocante a ser um narrador autêntico, mas seu nível de envolvimento não bebe da fonte de tristeza pós-filosófica e pós-histórica do chileno. Essas fragilidades ficariam bem resolvidas se ele tivesse uma prosa tão ricamente densa e humorada como a de Pynchon, mas cair nessas comparações seria algo despropositado. A um leitor de Pynchon como eu, que ia pensando, enquanto lia 1Q84, o quanto Pynchon daria uma rasteira em Murakami em diversas partes capengas da obra, o autor japonês cativa aos poucos e mostra a sua mestria por sua incrível simplicidade, sua linearidade e sua limpidez. Características que vão na contramão das exigências estéticas da literatura moderna, mas Murakami se afirma com sua presença difícil de ser ignorada, como costuma fazer os grandes escritores que não se enquadram facilmente a esteriótipos.
Charlles, por falar no Pynchon, desistiu da leitura de Contra o Dia?
ResponderExcluirClaro que não, Jonas. Li-o inteiro. Como tudo vindo de Pynchon, é um magnífico livro.
ExcluirA propósito, dê uma olhadinha nisto:
Excluirhttp://www.tumblr.com/tagged/thomas-pynchon?before=1348779342
Charlles, você é demais cara!
ResponderExcluirsó pra constar, e não sei se te interessa, mas o 'Q' (em inglês) tem a mesma sonoridade que o 9 japonês: 九 (kyu), então, se refere tanto à 'question' quanto ao número 9 em si.
Se a resenha que citou realmente disse que era referente ao número 8, está equivocada.
Abraço.
Escrevi errado no post, Renato. Quis dizer equivalente a 9. Muito bom sua confirmação. O livro deveria vir como pequenas notas da tradutora sobre algumas questões idiomáticas (algumas vezes há explicações no corpo do texto, entre parênteses).
ExcluirMuito obrigado!
Até deu vontade de ir atrás, se informar um pouquinho e talvez gastar uma graninha, mas como comprei alguns Houellebecq (imagino que não tenhas lido por ser um francês metido hehe) que não tinha, fica na lista numa posição bem mediana. Até porque vai demorar para sair o resto mesmo (fico nervoso com isso, de esperar os seguintes com os anos, evito até filmes assim, espero sair tudo para ver; maluquice, eu sei).
ResponderExcluirE tive um certo alívio com o número de páginas (xingamentos à vista). Achei que seria uma trilogia imensa de 1000 páginas cada, de um livro com uma cara de filme japonês que passa de madrugada na TV (minha impressão superficial). Bah, sou muito chato com o Japão. Nem sushi e sashimi eu como hahahaha
E não é que já há um mês venho pensando no Houellebecq, após ler umas resenhas sobre sua obra naquele livrão dos 1001 livros para ler antes de morrer? Quem sabe depois que você der sua opinião sobre sua leitura...
ExcluirO Japão é como outro planeta para mim, Matheus. O Luiz Ribeiro que me atiçou sobre Murakami, até então nem o Mishima eu sentia muita vontade de ler. Eles transmitem uma seriedade ortodoxa quase totalmente isenta de humor. Um dos defeitos nesse 1Q84 é a falta de humor, mas parece não ser uma característica do Murakami, já que Norwegian Wood (que estou lendo) tem partes engraçadas.
Também não consigo entender essas pessoas que passam anos acompanhando séries americanas. Eu as pego quando são lançadas na íntegra em dvd. Fato raro é eu estar acompanhando o Walking Dead pela net, online, que é uma puta de uma séria fantástica, e a espera pelas atualizações me deixa angustiado.