quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Breno


Eu tinha 17 anos, estudava em um colégio da elite, e quase não possuía amigos. Os dois rapazes que podiam se enquadrar na categoria de amigos estavam tão envolvidos no fascínio da descoberta da idade que era uma aspereza emocional ficar na periferia de suas camaradagens distantes. Ao final do dia eu voltava para casa com a impressão de que era mantido próximo a eles só para ser testemunha da grandeza áurea de suas personalidades. Enquanto andavam de peito estufado observando por cima de todos, satisfeitos de seus destinos, a única qualidade inegável que eu tinha de ser um ouvinte perfeito me fazia parecer o escudeiro fiel no encalço dos dois, um patético Igor. Um deles se chamava Erasmus e era o que indicava que a qualquer momento nossa convivência se romperia nessas tantas amenas tragédias da juventude, e foi o que acabou acontecendo num dia em que por motivos irrisórios trocamos socos. O fato de mal termo-nos despenteados os cabelos com a briga, conferindo apenas um rubor que poderia bem ser confundido com uma carreira para não se chegar atrasado ao ônibus, e alguma poeira nas roupas, mas nada de arranhões e nem tão pouco sangue, pareceu-nos significativamente degradante. Ainda penso que foi essa inofensividade incômoda que fez com que não nos falássemos mais, depois da vergonha que ridicularizava muito de nossos planos pessoais secretos, de modo que o único recurso era esquecermo-nos para sempre um do outro. Tinha algo de alivio velado em romper com Erasmus; as visitas à sua casa eram de uma tristeza infinita, por muito tempo me perturbava a figura apática de sua mãe que se escondia no quarto e que, para meu terror, Erasmus criava pequenos e sádicos expedientes para trazê-la de volta à nossa frente como se fosse parte do exibicionismo da torpidez cotidiana que tinha que suportar para tornar-se um adulto estoico demasiadamente racional. Ela nunca nos servia lanches, como era das mais comum das praxes que as mães de colegas fizessem, e lhe faltava grotescamente a compostura de nem sequer tentar disfarçar o pânico que a presença de um amigo do filho lhe causava. O pai de Erasmus já era outra coisa: das duas vezes que o vi senti a carência conceitual que só me viria com o tempo, de maneiras que se sentar na sala junto a seu silêncio hermeticamente alheado de homem político, enquanto Erasmus tomava banho, me remeteria bem mais tarde à tensão contida de um criminoso sexual. Essas coisas juntas tornavam a insípida convivência com Erasmus em algo opressivo, que inconscientemente não via a hora de encerrar. Foram socos muito esperado, enfim. Já Breno era alguém do qual minha solidão não podia prescindir. 

Breno era uma espécie de eleito para os altos escalões sociais bem mais limitado. Era um técnico e não um filósofo. Não havia nenhuma malícia nele, fora a vaidade insular de que recebesse de mim todos os aplausos. Tinha mesmo uma cadência infantil na voz que a adolescência não conseguia esconder e que sempre recorria a ela para evidenciar seu direito à predestinação. Seu humor não resultava daquela sofisticada genialidade sarcástica da qual ele julgava vir, mas tinha uma ternura erraticamente analgésica de desenho animado. Era alguém que não nascera para as mínimas formas de sofrimento, e talvez minha segunda qualidade inegável fosse a de zelar ativamente para que essa ilusão fosse preservada. Eu ria de suas piadas como se elas fossem geniais, mostrava meu fascínio corroborador diante seu magnetismo com as meninas, e me calava em estuporado respeito diante a premência dos sinais que seu vitorioso futuro enviava. Magoá-lo seria como bater em uma criança. Alguém assim possuía por detrás pais completamente diferentes dos de Erasmus. Os pais de Breno eram um sonho de todo rebento recalcado pelos traumas de um lar desfeito. Eu que só possuía uma mãe cujo esgotamento a que tinha que se submeter para pagar as despesas de casa e o alto custo de meu colégio rendia um regimento doméstico severo cheio de espaços de laconismos, olhar os pais perfeitos de Breno era me submeter ao escapismo culposo de diálogos sorridentes e de uma adstringente lentidão. 

Não me passava pela cabeça a possibilidade de perder Breno nos três anos de colégio, mas o conhecimento de seus pais me fez temer que algum erro fechasse para mim a adesão àquele mecanismo irretocável de saúde nuclear. Depois que Breno me levou em sua casa pela primeira vez e eu fui apresentado ao homem sacerdotal de grossas sobrancelhas, bermuda bem lavada e camisa desabotoada até a terceira casa da gola para baixo, em explícita e descomplicada informalidade sentado à mesa do café, com uma calvície em que sobravam dos lados uma profusão de cabelos simpaticamente desalinhados, o seu pai, eu revi as possíveis brechas de nossa relação em que pudessem entrar os maus entendidos aos quais se atribuem as desavenças definitivas. No meio da descompressão que era ouvir a voz cheia de matizes quase insuportáveis de vagar do pai de Breno, dirigida sem derivações direta e atentamente para mim, eu senti crescendo o medo de ser posto para fora daquilo, da fragilidade que aquele arranjo inesperado poderia ter para mim. Percebi com nitidez porque Breno fora conservado numa permanente infantilização recuperativa, como aquele senhor tão cheio de brilho argumentativo, suavidade cênica, domínio do tempo e com a valorização absoluta dos primordiais poderes da palavra, havia propositadamente dado aquele recolhimento sagrado ao filho. Eu me sentia infantilizado na presença dele, o que não deixava de ser cruel ter que recolocar todo o fardo deixado na porta de volta às costas quando eu fosse embora. (...) 


4 comentários:

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    1. Uma madrugada produtiva. Escrevi metade desse pretendido conto (se bem que quase tudo é verdadeiro, exceção da minha subserviência), e ficou uma página por digitar por fastio. A única parte boa foi a descrição da mãe do "Erasmus", um amigo real do qual já tratei aqui.

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  2. Deduzi quem é o real Erasmus, por conta da briga de motivo irrisório e cujo saldo foi "alguma poeira nas roupas". Nem todas as sugestões escapam de um prosaico aspirador de pó - estou quase certo disso. Conheci um homônimo espiritual, digamos assim, do Erasmus. Rompemos sem nos falar. Eu não conheci a mãe dele que não servia lanches. Ainda bem.

    Fábio Carvalho

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    1. Bastante atento, Fábio! Há uma dose de desonestidade nesse relato, por questões de oferecer o tempero certo: o Erasmus foi um grande amigo, apesar de nossos 16 anos terem-nos atrapalhado tanto. É como o Holden Caulfield diz, dá uma saudade imensa dessas pessoas todas, de todas elas...

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