Um dia os céus ficaram na conformação de nuvens adequada às elevadas expectativas de Anton. Nenhum serviço de meteorologia havia previsto aquilo; a moça do tempo em seu vestidinho collant dissera na tv que o sol reinaria incólume por todo o final de semana. Mas a graça casuística da matemática eólica desviara uma massa de escuridão eletricamente latejante de seu curso para o Atlântico e a estacionara em toda sua extensão de quilômetros por sobre a cidade, e ela pôs-se a fazer o que era de sua incumbência: soprara vetores de ar instável que se chocavam contra as casas, cabriolavam para cima e retornavam a cair na arena das ruas cada vez mais lotada de furiosas energias dissuasórias. Anton parou de preencher os formulários de mais uma das decisões dos altos escalões do poder terrestre estipulando o pagamento na casa do milhar a um homem que se acidentara no trabalho, e se entregou a olhar aquela outra potestade mais pura lá de cima, que nada tinha a ver com as preocupações comezinhas daqueles seres que, mesmo sob uma potência indizível e uma ameaça homicida iminente, não paravam com suas labutas insignificantes, ou só o fariam quando os trovões e as trombas d´água começassem a cair. Ouviu a cauda de vento passando rente à janela e volteando em torno da extensão do prédio, dando uma chibatada que fez tremer num impacto de traquinagem inamistosa os vidros nos caixilhos. As árvores balançando suas cabeleiras verdes de um lado para outro, deixando uma profusão de folhas se soltarem em elipses autodestrutivas e eternamente resilientes seguindo em debandada pelas calçadas. O coração de Anton parou: um ribombar magnífico tomou conta dos céus congestionados, calando tudo, fazendo tudo se encolher em nervosa submissão expectante. Daí a chuva começou, maestralmente disciplinada a aparecer naquele momento exato da orquestração, uma cortina de onipresença, a própria alegria materializada, a própria grandeza inominável dando suas caras naquele campo de sensações onde Anton cabia respirar. Dignava-o em acontecer onde a previsibilidade imperava em toda sua inércia pujante, como um antídoto ocasional para as pessoas não enlouquecerem. Como se sua piedosa função, se sua convergência desinteressada e brincalhona para esses graus do baixo existir algum dia representasse alguma coisa a ela, fosse recordar um estado permanente de sonhosa leveza. Anton fechou os olhos e deixou-se penetrar pela floresta de sons. A luz elétrica apagou por todo o prédio; o computador à sua frente emitiu um apito que lembrava um ponto se implodindo, e desligou. No escuro das quatro da tarde, Anton sentiu-se em seu ambiente. Eu nasci para estar aqui, pensou, sentindo o bafio gelado que a entidade em imaculada esquizofrenia lançava pelas frestas das tantas rupturas e vãos minúsculos que os pedreiros e a ruína progressiva e inerente às coisas deixaram no prédio do fórum.
(Esse é o excerto de um conto que estou escrevendo e que publicarei aqui na próxima semana, ou assim que estiver pronto. Por enquanto se intitula, horrivelmente, "Cinderela das Chuvas". Murakami tem me salvado mesmo sem eu nunca tê-lo lido. Tem feito que o ato de escrever possa ser leve para mim, e me abrindo para meus anseios por tentar fazer uma literatura distinta que misture os gêneros. Provavelmente o conto, assim que acabado, não vá agradar mais da metade das poucas pessoas que se dispuserem a passar por aqui, e as poucas entre estas que se aventurarem a lê-lo. Tenho tido um pesadelo recorrente em que acordo com uma enorme impressão de que estou gastando minha vida. Uma enorme carga de fracasso. Tenho bom emprego, uma família de amores recíprocos: no mais, a acalentadora sensação de felicidade. Mas acordo com esse fardo de infelicidade que me angustia. Desde que comecei a escrever este e outros contos, tais pesadelos não me visitam mais (sei, isso tá parecendo os testemunhos de fé das igrejas evangélicas, mas em escala oposta: eu quero que o demônio entre em meu corpo). Pelo contrário, tenho dormido muitíssimo bem, e meu humor melhorou bastante. Nada para ser publicado ainda na prensa, mas o contínuo exercício.)
Espero a continuação.
ResponderExcluirVocê não deveria ter colocado aquele adendo; ele me tirou toda concentração do conto e fico com vontade de saber mais.
ResponderExcluirAhn... muito impressionista, não?
ResponderExcluirMas realmente é um alívio quando a nossa angustiada certeza de insignificância diante do universo consegue parir alguma obra, por mais insignificante ainda que seja. Daí que, no final das contas, a literatura acaba prestando como auto-ajuda, pelo menos para o próprio autor...
Ahn... amanhã e depois d'amanhã tô publicando uns continhos meus lá no blog. Inteiros. Que esse troço de publicar metade e com meio título de Cinderela é pura viadagem.
De tanto falar de nossa renitente, insistente, exaustiva, obsessiva, hiperpresente, "insignificância diante o universo", estou quase a suspeitar que você já está começando a se valorizar além da conta neste nosso enredo cósmico tristíssimo, sem deus, completamente caótico a aleatório.
ExcluirBom, contos, ou narrativas, ou seja que nome for no contexto literário (ou não), de uma página, este blog está cheio. Minha intenção é escrever algo de maior substância, com mais páginas e mais comprometimento da concentração. E como eu disse, a leitura alheia é boa instrutora, mas meu ganho real é ver a coisa estampada aqui, e tentar por mim mesmo ver o texto através de outros olhos, o que me falta nos cadernos em que escrevo essas coisas.
Cinderela realmente é um péssimo título, o que me anima mais a usá-lo.
Ahn... mas é como diria o tal do Marcelo Gleiser: a gente é essa criatura insignificante neste Cosmos infinito mas há uma boa possibilidade de que seres como nós não existam iguais nesse infinito, de forma que talvez não passemos de nossos próprios deuses extinguíveis e... bem, o lance é que não me levo tão a sério assim não, só às vezes cismo de tratar com seriedade umas coisas, principalmente porque as pessoas umas tantas oportunidades ficam a exigir uma tal seriedade que, bem, babaquice, mas fazer o que, se não agimos a contento ficamos com a imagem de quem se desfaz dos outros enquanto temos a nós mesmos em alta conta... o que não é verdade, mas enfim...
ExcluirMas pelo que entendi seu conto virará uma novela cheia de capítulos: olha, essa é a parte 1, essa é a 2, amanhã a 3... Bom, a busca por maior substância é tua, por mim prefiro a superficialidade, que é mais própria ao que entendo por "ser humano", essa entidade feita de sentidos, não de sentido. Quanto mais pensamos em substância ou profundidade, penso eu, mais caímos numa solenidade absurda, como se anjinhos dessem voltas ao cpéu toda vez que nos dispomos a pensar e, pior, escrever.
O que disse só é que, terminada a "tarefa" do conto, do poema, do capítulo do romance, do ensaio, sei lá, a gente fica felizinho, como se tivéssemos feito algo com mais substância que nossa própria merda, enquanto nossa própria merda é matéria mais profunda e demonstrativa de nossos bons resultados do que tudo que pensamos e fazemos.
O que faz de todos nós, é claro, as melhores criaturas do mundo, à exceção dos tamanduás. Tenho enorme simpatia por esses criaturas devoradoras de formigas e cupins.
Não, é só um conto de umas lá sete páginas, nada de capítulos, mas escrito de uma forma que, digamos, requer certos esforços de outras áreas da imaginação intuitiva, um jeito de expurgar também anos e anos de leitura em que vozes de variados autores interferem na composição do texto. Neste excerto, por exemplo, notei_ sem que isso, em absoluto, fosse minha intenção_ algumas influências do Garcia Marquez, embora eu esteja, hoje, tão longe, mas tão longe da literatura criada pelo colombiano, que me parece mesmo ser algo digno de exorcismo. A escrita que pretendo aqui é a brincadeira que, em um comentário passado, você se referiu, mas com seriedade. É uma balela isso tudo que você escreveu aí acima, mas talvez você seja bipolar ou simplesmente ex-adepto de certas técnicas lisérgicas raulseixeanas que te faz uma metamorfose ambulante (aliás há um artigo delicioso do Oliver Sacks na Piauí desse mês que ele retrata os anos em que quase ficou viciado em uma variada gama de drogas pesadas).
ExcluirO que estou a dizer, em capenga lusitanismos, é que você destroçou uma experiência fortíssima, a morte de seu pai, em um livro que começou como o seu melhor e terminou como uma desistência em que você nem primava mais pelas mínimas regras da gramática. Escrever assim, como essa alegada superfluidade, é, a meu ver, uma traição a si mesmo, e um despropósito. Mas tudo bem. A merda tem que ser disciplinada; pode ser péssima aos olhos alheios, mas tem que vir do fundo, e essas lenga-lengas todas. Eu me levo muito a sério quando me lanço nestes exercícios de escrita privada (o que reflete um pouco nos textos que publico neste blog, ainda que aqui a coisa seja muitíssimo leviana e descompromissada); o único risco é eu quebrar a cara, mas aí vai ser apenas entre eu e eu mesmo.
Você tem meia razão, só no que se refere à displivcência na conclusão da história do meu pai; afinal, corria contra o tempo e perdi, e, por fim, não tive sequer vontade de concluir a coisa, então o fiz com todo o descuido possível, num estado de ânimo dos diabos. Ele não pode ter às mãos o livrinho com a história dele, devidamente pervertida em literatura, pobre cara... Também tem razão em levar a sério seus próprios textos, e nenhuma em querer que os outros levem a sério os deles. É aquela coisa, literatura é legal, mas eu prefiro comer bananas.
ExcluirPhilip Roth Says Enough: David Remnick on the author's retirement from novels
ResponderExcluirhttp://www.newyorker.com/online/blogs/books/2012/11/philip-roth-retires-from-novels.html
“To tell you the truth, I’m done.”