domingo, 24 de março de 2013

Yukio Mishima na morte



(Texto de Javier Marías; tradução do espanhol por Charlles Campos)

A morte de Yukio Mishima foi tão espetacular que quase fez com que fossem esquecidos os numerosos absurdos em que ele incorreu ao longo da vida, como se seu constante exibicionismo prévio tivesse sido apenas a maneira de assegurar atenção no momento culminante, o único que provavelmente lhe interessava de fato. Assim deve ser entendido, ao menos, a raiz de sua inveterada fascinação pela morte violenta, que _ se o morto era jovem e tinha bom corpo_ considerava o cume da beleza. É verdade que esta ideia não era inteiramente original, e menos ainda em seu país, o Japão, onde, como é notório, sempre existiu uma apreciada e consistente tradição em apunhalar dramaticamente as próprias entranhas e perder a cabeça com um talho executado por um amigo ou um subordinado. Em épocas não muito distantes, ao término da Segunda Guerra Mundial, foram não menos que quinhentos os oficiais que se suicidaram (assim como um bom punhado de civis) para "responsabilizarem-se" da derrota e "apresentarem desculpas ao imperador". Entre eles se encontrava um amigo de Mishima, Zenmei Hasuda, que antes de honrar "a cultura da minha nação, que é a de morrer jovem" e fazer estourar o cérebro, teve tempo ainda de assassinar a seu imediato superior por este ter criticado o imperador divino. Talvez se compreenda então porque 25 anos depois o exército japonês seguisse deprimido, vendido e sem capacidade de reação, segundo as acusações do próprio Mishima.

Seu desejo de morte, nascido em tenra idade, não era indiscriminado, e se bem pode-se entender seu terror em ser envenenado, já que o finar-se por este procedimento dificilmente poderia ser "belo", é, porém, menos explicável que quando com 20 anos, tendo sido convocado para as fileiras, em 1945, aproveitou da momentânea febre de um surto de gripe para mentir ao médico militar que lhe fez os exames, e apresentar-lhe um tal histórico de sintomas fictícios que propiciaram um errôneo diagnóstico de tuberculose incipiente que o livrou do serviço. Não que Mishima não estivesse consciente do que isso incorreria para a veracidade de seus ideais: pelo contrário, em sua famosa novela autobiográfica Confissões de uma máscara, questiona-se em vão e longamente a respeito. Como não poderia ser menos em um homem de considerável astúcia, por fim encontrou uma justificativa estética por ter evitado o que em princípio desejava tanto (a saber, "o que queria era morrer entre desconhecidos, sem intromissões, debaixo de um céu sem nuvens..."), e concluiu que "em vez disso, preferia pensar em si mesmo como alguém que havia sido abandonado pela Morte... Me deleitava imaginando as curiosas dores de alguém que queria morrer mas a quem a Morte havia rejeitado. O grau de prazer mental que assim obtinha parecia quase imortal". Seja como for, o certo é que Mishima não padeceu de grandes nem curiosas dores até o dia de sua verdadeira morte, o que significa que quando a prova se lhe chegou tinha suas forças e sua determinação intactas graças à ignorância. Em vez disso, seu pavor anteriormente de ser envenenado era tão obsessivo que quando ia a um restaurante só pedia pratos inadequados para venenos e depressa lavava os dentes freneticamente com refrigerante ou soda.

Tudo isso não lhe impediu de fantasiar o quanto quis, não apenas sobre sua própria supressão erótica (a saber, violenta), mas sobre a de muitos outros personagens de ficção, todos eles muito parecidos: "A arma da minha imaginação matou a muitos soldados gregos, a muitos escravos brancos da Arábia, príncipes de tribos selvagens, ascensoristas de hotéis, garçons, jovens valentões,  oficiais do exército, saltimbancos circenses... Beijava os lábios dos que tinham caído e ainda se moviam espasmodicamente". Como é natural, tampouco se privou de devaneios canibais, dos quais fez como objeto predileto um companheiro atlético do colégio: "Ele cavou seu garfo diretamente no coração. Um jato de sangue o golpeava por completo no rosto. Com a faca na mão direita, começava por cortar a carne do peito, suavemente, ligeiramente no início...". Certamente tais fantasias alimentícias faziam desaparecer o temor de ser envenenado, o que sem dúvida era uma vantagem.

Essa fascinação erótica por corpos viris torturados, rasgados, esfolados, trinchados ou  feridos por setas, marcou Mishima desde a adolescência. Foi um escritor impudico o suficiente para colocar a posteridade a par de suas ejaculações, pelas quais se infere que lhes outorgava extrema importância; assim, não nos sobra outro remédio que o de estarmos inteirados de que sua primeira ejaculação ele a teve contemplando uma reprodução do torso de são Sebastião perfurado por flechas, pintado por Guido Reni. Não é de se estranhar, portanto, que quando já adulto, cometendo algumas fotografias artísticas-fisiculturistas, Mishima representava-se em algumas delas com o mesmo vestuário, ou seja, um xale atado à cintura e um par de flechas fincado dos lados, os braços para o alto e as mãos atadas por cordas. Este último detalhe não carece de transcendência, tendo-se em conta que a imagem preferida de sua masturbações (entre as que deixou em bom número de registros) era de axilas cheias e_ temivelmente__ malcheirosas. Assim, essa célebre fotografia devia prestar consideráveis serviços a seu narcisismo.

Não menos cósmicos resultam outros retratos que chegaram aos entusiastas mais infantis por sexo de calendário: Mishima observando seu esquálido peito diante um espelho, Mishima com um olhar piromaníaco com uma rosa branca entre os dentes, Mishima levantando pesos para obter bíceps decentes; Mishima semi-desnudo com o estômago à mostra, uma fita nos cabelos e uma espada de samurai nas mãos, a cara de quem beira uma falsa apoplexia; Mishima com uniforme paramilitar, surpreendentemente discreto para tratar-se de um modelo idealizado por ele mesmo para seu exército privado, o Tatenokai. Também fez alguns papéis no cinema em filmes amadores de baixa produção, sobre a yakuza ou gângster japoneses; gravou canções, e um disco em que interpreta os quarenta personagens de uma de suas obras para teatro. Sua imagem lhe preocupava tanto a ponto de passar a impressão nas fotos em que aparecia junto a homens mais altos que ele, de que ele era quem pareceria um gigante.

Não se deve inferir, entretanto, que Yukio Mishima passara sua vida ocupado com esses folclorismos e ninharias. Tinha necessariamente que escrever sem parar, já que em sua morte deixou mais de cem títulos, e se sabe que um deles, de oitenta páginas, o escreveu durante uma reclusão de apenas três dias em um hotel de Tóquio. A esta atividade há que adicionar a de suas promoções no estrangeiro, que o levou a fazer numerosas viagens à Europa e à América e a preparar uma cuidadosa e frustrante encenação quando em 1967 se rumorejava que o Prêmio Nobel iria recair pela primeira vez em um autor japonês. Fez coincidir seu regresso de um périplo  internacional com a data em que deveria ser anunciado o ganhador e reservou um luxuoso apartamento em um hotel no centro da cidade. Mas quando o avião aterrizou e ele saiu antes de todos os passageiros com um enorme sorriso, encontrou-se com um aeroporto cabisbaixo, já que o galardoado foi um irritante escritor guatemalteco. Um ano depois sua depressão aumentou: o Nobel foi por fim ao Japão, mas para as mãos de seu amigo e mestre Yasunari Kawabata. Mishima não se fez de rogado: saiu correndo à casa de Kawabata para ser o primeiro a felicitá-lo e pelo menos aparecer nas fotos. Não é necessário dizer que Mishima se considerava não só digno do Nobel, mas_ sem mais delongas_ um gênio. "Quero identificar minha própria obra literária com Deus", disse uma vez a um fanático de extrema direita, possivelmente acostumado aos delírios de grandeza.

Segundo contam os que tiveram-lhe trato, Mishima era um homem de grande simpatia e com afinado sentido do humor, ainda que seu riso soasse bestial e estridente e o prodigasse em excesso. Suas relações com as mulheres foram mais escassas, exceção feita à sua avó (que praticamente o sequestrou na infância, para desespero de sua filha), sua mãe, sua irmã, sua mulher e sua filha, o elemento feminino imprescindível até para os mais misóginos. Se se casou foi por um falso alarme: acreditou que sua mãe morreria em breve de câncer, e Mishima pensou em fazer-lhe como último agrado seu matrimônio: ela morreria mais tranquila supondo assegurado sua descendência. O câncer resultou em uma fantasmagoria e a mãe sobreviveu ao filho, mas quando ainda se supunha o primeiro Mishima já havia desposado Yoko Sugiyama, jovem de boa família que, é de se supor, cumpriu com os 6 requisitos prévios impostos pelo noivo aos casamenteiros, a saber: a noiva não deveria ser nem uma sabichona nem uma mosca morta; deveria querer casar-se com o cidadão particular Kimitake Hiraoka (seu verdadeiro nome), não com o escritor Yukio Mishima; não devia ser mais alta que o marido, nem usando salto alto; devia ser bonita e com o rosto arredondado; devia prestar-se a cuidar de seus sogros e ser capaz de administrar a casa; por último, não devia incomodar a Mishina enquanto este trabalhasse. A verdade é que pouco se sabe dela depois das bodas, ainda que os hagiógrafos do escritor (entre eles a tão tiete como também tietada Marguerite Yourcenar) contam com fervor de como Mishima levava frequentemente a Yoko em suas viagens ao estrangeiro, o que não era costume entre os japoneses de seu tempo. Com isso, na opinião de Yourcenar e outros, parece ter cumprido: ao final das contas, poderia perfeitamente tê-la deixado em casa.

Foi no último período de sua vida que Mishima criou a organização paramilitar Tatenokai, da qual gostava de referir-se por suas siglas em inglês, SS (Shield Society ou Sociedade do Escudo). Tratava-se de um pequeno exército de cem homens, tolerado e fomentado pelas Forças Armadas japonesas. Os cem eram, sobretudo, estudantes e admiradores incondicionais, todos devotos do imperador e de um Japão mais retrógrado. Durante um tempo limitaram-se em fazer acampamentos, exercícios táticos, manobras pseudo-militares e abrirem a pele para misturar e beber seus sangues. Sua primeira e última ação verdadeira teve lugar em 25 de novembro de 1970, quando Mishima e quatro acólitos se apresentaram com seus uniformes amarelados na base de Ichigaya, em Tóquio. Ali teriam audiência com o general Mashita, ao qual iriam cumprimentar e apresentariam uma valiosa espada antiga de samurai, em posse de Mishima e sem dúvida muito digna de ser vista. Uma vez na presença do general, os cinco falsos soldados o algemaram, fizeram piquete com suas armas brancas e exigiram que as tropas se concentrassem diante a varanda para ouvir um pronunciamento de Mishima. Alguns oficiais desarmados (era proibido ao exército japonês usar armas contra civis) tentaram rendê-los e levaram uns tantos golpes de espada (Mishima quase cortou a mão de um sargento). Quando por fim pôde dirigir-se às tropas, o discurso de Mishima não foi bem recebido: os soldados o interrompiam continuamente gritando barbaridades como "Beijo-te a bunda!", ou Bakayaro!, de difícil tradução, embora o mais aproximado seria "Foda-se sua mãe!" (há quem, contudo, lhe dá um significado equivalente a "cadeirudo").

As coisas não saíram como havia planejado. Retornou para dentro do escritório e se preparou para o harakiri. Ao seu homem de confiança e possível amante, Masakatsu Morita, pediu que o decapitasse com sua valiosa espada depois que ele abrisse suas tripas, sem deixá-lo sofrer muito. Mas Morita (que em seguida também faria o harakiri), falhou o golpe nada menos que três vezes, atingindo-lhe os ombros, as costas, o pescoço, mas sem acertar-lhe a cabeça. Outro dos acólitos, Furu Koga, mais versado ou menos nervoso, arrebatou-lhe a espada e se encarregou da decapitação. Logo fez o mesmo com Morita, quem, faltando-lhe forças desde o princípio, só conseguiu fazer um arranhão em sua barriga com a adaga. As cabeças caíram sobre o tapete. Mishima tinha 45 anos, e dizem que, sempre teatral, nessa mesma manhã havia entregue sua última novela a seu editor. Em certa ocasião havia dito sobre o harakiri que era "a masturbação definitiva". Seu pai se inteirou do ocorrido pela televisão: ao ouvir a notícia do assalto a Ichigaya pensou: "Agora terá que ir pedir desculpas à polícia e tudo o mais". "Pois que vá!". Logo escutou sobre o restante, harakiri e decapitação, e confessou mais tarde: "Não me senti muito surpreendido: meu cérebro rejeitava a informação".

(Javier Marías, Yukio Mishima en la muerte; Vidas Escritas)

sábado, 23 de março de 2013

Nesta manhã de sábado desterrada do infinito

Neste momento me comovo com o segundo movimento da belíssima Sinfonia No. 11 de Shostakovich, efusivamente recomendada pelo Carlinus. Mas ontem, estava com a Júlia nos braços dançando ao som de Watching and Waiting, esta magnífica música desta magnífica coletânea de uma das mais elegantes bandas de progressivo da história.


sexta-feira, 22 de março de 2013

O que me irrita em Haruki Murakami



Haruki Murakami é bom. Gostei muito do primeiro volume de 1Q84. Instigante, imaginativo, prazeroso. Quando acabei a leitura, me veio aquela angústia em saber quando a Alfaguara iria lançar os outros dois volumes. Já quanto a Norwegian Wood e Kafka à beira-mar, iniciei-os e parei, um na página 100, outro na página 30, respectivamente. Não são ruins, mas não estava no humor adequado (e, reconheço, a paciência adequada), para enfrentá-los agora. Um outro dia. A Alfaguara lançou o volume 2 de 1Q84. Assim que chegou às minhas mãos, comecei a devorá-lo. Daí eu percebi porque não consigo, ainda, ler esses outros títulos do autor japonês. 1Q84 é mais Dan Brown que literatura séria. Murakami é um Dan Brown mais conscientemente comprometido com a escrita, por isso que fantasias cinematográficas como 1Q84 funcionam melhor que seus romances filosóficos, seus cenários de desolação pré-suicida e seus anseios juvenis de fuga. E o que mais me atrai em Murakami é justamente o que ele tem de mais fraco: a sua ingenuidade, sua crença de que seu leitor não é muito inteligente e necessita ser melhor guiado por explicações e redundâncias, a predisposição quase magnética de seus personagens em serem bidimensionais e rasos. O pretendente de escritor em mim, quando diante de Murkami, respira aliviado: se não puder ir com Pynchon, pode-se ir com Murakami. Bastaria que esse pretendente de escritor em mim tivesse uma enorme, quase colossal fé em si mesmo, e a mesma proporção em disciplina. Murakami é um escritor pré-Joyce, e ter a coragem, a fé e a disciplina dele, revela muito da capacidade nipônica em superar as expectativas mercadológicas de qualquer nicho do consumo, mesmo o das letras. Bastaria que o escritor em mim se livrasse de sua auto-crítica e visse o leitor na outra ponta como um ser mais simples, mais feliz, mais pragmático.

Mas algumas coisas em Murakami me irritam a ponto de eu pensar em largar a leitura. Sou um leitor combativo, e sei que não vou abandonar Murakami. Mas vamos a essas coisas irritantes:

1. Os diálogos nãos são os pontos fortes de Murakami. Muitas vezes parece que os personagens decoraram suas falas e as pronunciam com a mesma temeridade que em teatros infantis da escolinha. Já nas trinta primeiras páginas de 1Q84, II, existe uma profusão de exemplos. A assassina de violentadores de mulheres, Aomame, pede ao guarda-costas particular Tamaru, que este lhe arranje uma pistola. Tamaru lhe questiona por quê. Aomame informa que está para realizar a missão mais perigosa de sua vida, e, no caso de ser pega, usará a pistola para se suicidar, impedindo assim que seja torturada e revele segredos de sua contratante. Tamaru, então, faz um discurso sobre as leis que regem a posse de armas de fogo no Japão, algo muito pedante em seu didatismo, para, no final, dizer que vai ver se consegue arranjar a arma. Aí vem o primor do diálogo abaixo:

_ Segundo Tchekhov_ disse Tamaru, levantando-se lentamente_, se uma arma aparece na história, ela tem de ser disparada.
_ Como assim?
Tamaru ficou de frente para Aomame. Ele era um pouco mais alto que ela.
_ Ele quer dizer que não se deve inserir numa história um objeto desnecessário. Se aparecer uma pistola, em algum momento ela deve ser disparada. Tchekhov gostava de escrever histórias sem ornamentos supérfluos.

E Aomame faz a constatação que evidencia a pouca fé de Murakami na inteligência de seu leitor:

_ Pelo visto, isso te preocupa. Você acha que, se eu tiver uma pistola, vou ter de necessariamente usá-la em algum momento.

2. Murakami falta sublinhar, ou percorrer com a cor amarela, as partes da narrativa em que se deve prestar mais atenção, como a indicar: olha, gente, isso aqui vai ser necessário páginas adiante, vamos parar de mascar o chiclete e ler pausadamente. Em um parágrafo curto, ele repete por TRÊS VEZES o longo nome Nova Fundação Japão para a Promoção das Ciências e das Artes. Três vezes!

3. Muitas vezes parece que Murakami fala para uma turma de aluninhos japoneses de uniforme azul e branco sobre o quanto o mundo é deslumbrante e perigoso. No volume I de 1Q84, há um diálogo completamente doutrinário sobre o uso da camisinha, feita entre a assassina profissional e sua amante policial. E é um tanto desconexo que Murakami esteja preocupado com a educação sexual básica de seus leitores adolescentes recorrendo a tantos clichês da regra do sexo desatinado e sem reservas da mídia moderna.

4. As cenas de sexo de 1Q84 são constrangedoras, forçadas. Alguém disse para o jovem Murakami, barman de um pub de jazz, que para se ter sucesso na literatura tem-se que temperar com altas doses voláteis de sexo, e então ele se esforça para ser o cara mal, pervertido e sem amarras. E da-lhe felação, ejaculações em peitos grandes, masturbações furtivas, insinuações pedófilas, lesbianismos. O resultado: páginas de tédio que, puladas, não farão a mínima falta à narrativa.

5. A espontânea reformulação dos personagens. É o caso da amante de 40 anos de Tengo, uma mulher sem atrativos, casada e mãe, que se presta a sexo descompromissado com Tengo em uma rotina semanal. Por todo o volume I, sua profundidade psicológica não passa disso, com metade dos prodígios sexuais apontados no item acima. Mas, então, num súbito acréscimo de qualidade, no início do volume II ela se revela uma erudita conhecedora de jazz antigo, dedicando a dar uma profunda aula sobre jazz antigo para Tengo (enquanto faz carinho em seu testículo: mesmo aqui Murakami teme perder o compasso de escritor moderno ultra-sexuado transitando por um desvio erudito, e não larga o calejado saco de Tengo por nada). Uma mulher que se comprazia às ortodoxias do sexo oral, de repente faz uma análise sobre a transcendência de um solo de Barney Bigard em Atlanta Blues, de Louis Armstrong, que não deixa nada a dever a Alex Ross.

Há alguns outros itens, mas paro por aqui.


quarta-feira, 20 de março de 2013

Virgens Suicidas


Há coisa de um ano eu conversava com uma amiga por e-mail. Era um assunto do qual não me recordo, mas presumo que fosse sobre literatura ou, talvez, algumas das infinitas picuinhas inúteis mas interessantes que existem pela net. Na minha segunda resposta a essa amiga, eu lhe pedi desculpas pela demora do meu retorno, justificando que era por ter sabido que uma menina desaparecida numa cidade próxima de onde eu moro fora encontrada morta. A menina era vizinha da tia da minha esposa, de forma que já há quatro dias estávamos inteirados pelo facebook da notícia de seu desaparecimento, e que espanto e tristeza ao, naquela hora, a Dani me informar que o corpo fora encontrado abandonado em um canavial. Disse isso tudo a essa amiga, e a resposta dela foi "sinto muito", e continuou, no mesmo e-mail, a conversa trivial que estávamos tendo. E a reação instintiva que tive a essa recusa dela em participar de um sofrimento distante, que nada tinha a ver com ela, foi a de constrangimento por tê-la incomodado. Meu primeiro pensamento foi "o quanto fui provinciano e infeliz estragando nossa alegria inocente com algo tão descompassado e brutal". Ela tinha todo o direito a se negar a envolver-se nisso, mesmo o mais periférico possível: não era assunto dela, ela tinha lá seus enormes problemas de violência para digerir, os quais ela sempre havia sido educada o suficiente em não me incomodar com eles. Como consumidora, em um mundo onde o que se mais precisa é o respeito às leis que ditam o que é oferecido honestamente a ser consumido (sem nenhum adendo desconfortável e nenhuma letrinha miúda de enganação no pé da página), ela tinha o direito a ter o que a plataforma que estávamos consumindo em nossa conversa virtual prometia: trivialidade inofensiva e um passageiro e descompromissado afeto. Não seria ali que nos tornaríamos cúmplices de uma vivência tão pesada como o assassinato de uma criança. Ela me ofereceu uma lição elegante: a de que veículos previstos para o formato de anedotas simpáticas são assepsiadamente desprovidos da mínima profundidade, ali não se deve entrar indícios do real; eu, lhe havia antecipado uma notícia que na noite daquele dia estaria em todos os telejornais do país. A lucidez dessa amiga quanto a utilidade formal das comunicações pela internet foi tão certeira que, hoje, já não somos mais amigos.

Existem mais dois casos que me vieram à cabeça que se relacionam à minha leitura de Virgens Suicidas. O primeiro é que nesse exato momento em que escrevo, ouço o barulho de uma serra elétrica em frente aqui de casa, do outro lado da rua. Meu vizinho está, ao que tudo indica, construindo um bunker. Desde um ano que o movimento de pedreiros, eletricistas, e toda espécie de funcionários de construção, é intenso e ininterrupto ali onde esse vizinho determinou que se erguesse seu escritório de advocacia e, mais atrás, a sua residência. Esse vizinho é dono de uma rede de dez lotéricas, distribuídas por várias partes do estado, e, aos 50 anos, se formou em direito. Praticamente não se vê nenhum movimento em seu escritório, mas ele o abre e cumpre suas oito horas de expediente todos os dias, enquanto sua esposa toma conta da verdadeira fonte de renda, que são as casas lotéricas. A Dani espia pela janela e me pergunta o que ele está construindo, e eu lhe digo, seriamente (apesar dela achar que é brincadeira), que ou nosso vizinho é um adepto de alguma seita que crê que em uma data próxima para o fim do mundo, e está juntando toneladas de cimento na construção de um bunker de sobrevivente, ou ele faz parte de alguma facção terrorista e a qualquer momento esse aparato todo vai se abrir com um grande estardalhaço e uma bomba de urânio vai se projetar da terra na ponta de uma cauda de fogo. A Dani diz que ele não tem onde gastar dinheiro, como os faraós, e ergue e re-ergue infinitamente uma espécie de pirâmide sepultural em honra a seu nome. A única pessoa que sei que entrou no escritório me disse que lá existe uma ampla estante forrada de livros, e que, o ilustre lotérico diplomado, perguntado se leu algum deles, disse que não tem tempo para essas besteiras.

Tudo bem, vou chegar lá, peço paciência. O último caso é um processo judicial já citado por aqui, em que o prefeito da cidade onde moro ganha o direito de retratação por parte de um rapaz que o havia caluniado pelo twitter. A retratação foi publicada no twitter do rapaz da seguinte maneira: "O sr..., foi condenado a pagar 1.500 reais, em dez parcelas, por danos morais, ao prefeito..., por ter dado publicidade via twitter a improbidades administrativas do referido prefeito". Essas mesmas palavras foram publicadas em um jornal impresso local, que foi onde as li; mostrei aquilo para vários amigos e conhecidos, pedindo o favor de que eles interpretassem o que estava escrito ali; digamos que de dez pessoas a quem inquiri (pessoas com curso superior e certa proeminência intelectual na cidade), apenas duas notaram que havia algo de errado na retratação, pois a nota reafirmava o que o tuiteiro havia escrito na mensagem caluniosa sobre a qual caíra a condenação da justiça: o prefeito.... cometera improbidades administrativas. Achei aquilo de uma astúcia genial por parte do tuiteiro, e não descansei enquanto não o achei pelas ruas para dar-lhe os parabéns. E que espanto o dele ao ouvir essas minhas palavras; ele não reconhecia nenhum mérito na coisa, não havia percebido nada da ironia que eu atribuía àquelas palavras; me olhava com a tristeza consumada de quem jamais iria entrar novamente naquelas refregas caras contra o poder, que havia lhe custado tanto dinheiro; e me comunicara que recebera a retratação pronta, feita de próprio punho pelo prefeito.

Agora podemos chegar ao livro do senhor Eugenides. Li-o duas vezes_ olhem só que perda de tempo exorbitante_, e digo, para minha total derrota, que foi uma das cinco obras que me causou um nostálgico recolhimento espiritual em épocas mortas da minha juventude, a me chegarem às mãos nesses últimos dois anos. Li-o na tradução da Rocco, e, depois, nessa tradução que se mostra na ilustração ao post, da Cia das Letras (como sempre me ocorre, me agarro mais ao primordialismo da experiência, e por isso gostei mais da primeira_ mas ambas são ótimas). Recordei do meu peripatetismo pela metrópole, meu casaco flutuador que minha esposa apelidou de "tô em todas" (por sempre aparecer nas fotos minhas do período, as fotos assustadoras em que um rapaz raquítico com triste ar de presa distraída me olha sem se importar a mínima com o futuro), meus cabelos grandes, e mais: minhas andanças autistas pelas bibliotecas, as estantes empoeiradas, as velhas funcionárias iletradas, donas de casa com uma tristeza equinodérmica cujos maridos dariam glória a Deus diante a disparatada imaginação de verem-nas com um amante, que tinham a obrigação de só colocar os nomes dos livros nas fichas de empréstimo, sem que precisassem olhar aqueles objetos com o mínimo amor ou a mínima previdência defensiva. Foi ali, na biblioteca da praça principal, enquanto o som da cidade não parava, que eu me dedicava ao propósito morto de ler o que me caía às mãos, e sempre me caía às mãos obras assopradas por anjos da inutilidade, objetos de esquemas de uma ocasionalidade que não beneficiava a segurança pragmática de uma vida utilitária. Ali eu li meus Hemingways; li uma belíssima coletânea de contos de Cholokov, com capa esfacelada e cheiro de pó de leprechau, que me enterneceu diante a fantasia de que Lênin era o grande pai que o garotinho perdido da família procurava; li poetas locais que nunca mais apareceram e que na certa me devem esse momento de mediunidade por tê-los resgatado do indevassável limbo, e que me ficaram dois poeminhas singelos que os tenho como os mais belos da minha vida: "Hoje vi soldados cantando por estradas de sangue'", e esse outro: "Cresci trocando sonhos por realidade, e senti calafrios". Li meu primeiro Faulkner, que achei ser o último. Li Kazantzakis, uma peça de Ibsen que julguei ter me fulminado inconsolavelmente; li um livrinho de Richard Ford, esse escritor vivo norte-americano já esquecido, que é o que de melhor se tem em novelas naquele país, Vida Selvagem.

Pois bem. Não quis fazer comparação entre eu, o cara certo e coerente, e eles, as pessoas auto-enganadas. Só tenho claro em mente, de maneira muito triste, a certeza de que obras como Virgens Suicidas são inúteis hoje em dia_ ou assim me parece. É um romance que trata com tanta arte, com tanta sutileza e elegância sobre a incondicionabilidade da mulher na sociedade, que me assusta.  Muitos tem-na comparado a Nabokov, o que julgo preciso pela linguagem elevada e o alto nível da inteligência geral empregada, mas, de certo ponto de vista, supera Nabokov. Se Lolita, essa geometria perfeita das letras, é puro prazer estético, Virgens Suicidas é uma antítese à gratuidade inerente às perfeições extremas (ou as quase perfeições, já que nas letras não se encontra perfeições mozartianas e rubensianas), pois oferece, num grau de astúcia inatingível para o padrão de leitura comum, esse objeto anacrônico e aberrante chamado moral. Virgens Suicidas dialoga com Lolita, e ambas as obras são tão fortes que se tornam independentes de seus autores. Mas Lolita confirma o que diz Bellow em seu ensaio Escritores, intelectuais, políticos: sobretudo reminiscências, de que escritores raras as vezes são intelectuais. Em Lolita nós vemos um exercício literário, uma virtuose das qualidades do talento de seu autor, um uso de tal forma pleno da inteligência artística que causa no leitor essa supressão do julgamento que as grandes obras de arte causam. Só alguém muito equivocado veria em Lolita uma apologia à pedofilia, mas, por mais paradoxal que seja, não excluo a legitimidade do equívoco de que leem dessa forma a esse romance. Em um belo artigo sobre Proust, Marcelo Backes salienta que o grande romance de Proust é muito, mas muito mais que os clichês de salão das madeleines molhadas no chá, que o grande romance de Proust é uma riqueza que transcende sua forma física, é um ganho espiritual único sobre o mundo, a existência, o homem, e todos os assuntos pertinentes a esses sujeitos. Proust não é apenas literatura, mas um alargamento poderoso da consciência. Proust é, então, uma enorme responsabilidade, pois o que poderemos fazer depois para a manutenção desse espólio nos oferecido? Lolita é todo um belo caso clínico, não angaria nenhuma responsabilidade em quem o lê: vemos a derrocada mental de Humbert Humbert como quem vê a cena da formação do magma do vulcão em documentários extraordinários sobre as leis da natureza, como Planeta Terra, algo que deveria acontecer assim para fechar um ciclo lógico que serve a determinado fim inevitável, a formação de novas paisagens geográficas, no primeiro caso, ou a relojoaria estética da decadência significativa no romance, no segundo. Lolita não nos cobra pelo lado moral, é um romance amoral (não imoral, como querem uns poucos); nós, os adeptos à sua relevância palatável, o defendemos ardorosamente no que tem em sua íntegra e imprescindível gratuidade, contra a adjetivação pornográfica e pedófila do grande império das más intenções e más interpretações que se formou em torno dele. Nabokov não é um intelectual, é, tão e somente, um escritor. Ele não tem a mínima responsabilidade sobre o que escreve, pois não exige nada mais de ninguém a não ser o deleite sobre o que escreveu.

Virgens Suicidas vai num caminho oposto. Posso afirmar que Eugenides pretende ser mais que um escritor aqui. Eugenides almeja ser um intelectual moralista. Não há nada de condenável nisso, já que os maiores escritores da historia são moralistas. O que soa anacrônico é para quem Eugenides escreve, em uma realidade moderna em que o romance está na berlinda e apenas uma pequena classe de adeptos se importa com ele, e uma pequeneza menor ainda entre adeptos pretende que o romance atual comporte grandes revelações totênicas proustianas. Mas, na contramão dos prognósticos negativos, os escritores atuais ainda continuam, fervorosamente até, compondo romances.  Há os que falam sobre a banalidade do mal durante o nazismo (As Benevolentes), sobre a banalidade do atraso político revertido na banalidade do assassinato em série (2666), os que falam sobre a dessensibilização colorida e cosmética das relações humanas (Os Enamoramentos), os que falam de abraços entre renegados pela exaustão da vida, como paliativo contra a História (Soldados de Salamina), os que falam da dança e da amizade, como paliativo contra a História (Dia de Finados), os que falam sobre reinos metafísicos instalados na mais profunda esperança do mais profundo coração estoico (Contra o Dia). Pois a nenhum desses grandes romancistas por detrás desses livros mencionados escapa que suas mensagens devam ser enviadas por entre montantes de arte irônica, figurativa, sarcástica, metastaticamente imagética, prolixamente neônica, sexualmente instigante. A mensagem subliminar deva vir como um código por entre miasmas de satisfação imediata. Mas eles o fazem apenas até o limite a que vai a motivação moral que os levaram a optar pela escrita em um mundo em que as ciências humanas estão se apagando (me lembro agora que nesse ano sobrou um número recorde de vagas na Federal de Goiânia, para os cursos de humanas). 

Há uma parte em Virgens Suicidas em que um médico pergunta para uma das cinco irmãs por que ela tentara o suicídio, ao que a menina responde: "O senhor não sabe o que é ser uma garota de 13 anos". Na inesquecível cena final, é com uma artimanha sexual que as garotas conseguem realizar seu propósito, graças à eterna objetificação que os meninos da rua fazem delas. É graças à teatralização do sexo, que os meninos esperam ter, que as meninas conseguem atingir seu objetivo. O romance é narrado em primeira pessoa do plural, pelos adultos em que se tornaram esses meninos. As irmãs Lisbon, as virgens suicidas, são lembradas no que tem de fetiche consumível, seus cheiros estomacais, suas olheiras, seus cabelos louros desgrenhados, suas calcinhas usadas ajuntadas no inquérito policial e vistas após anos dos eventos. Por mais que os narradores tentem entender o motivo das mortes, é só com a extenuação das tantas hipóteses levantadas que eles conseguem vislumbrar uma razão, já no final do livro: "No final, as torturas que haviam dilacerado as Lisbon apontavam para uma recusa simples e lógica de aceitar o mundo como lhes era oferecido, tão cheio de falhas." Há na contracapa da edição da Rocco essa avaliação sobre o romance, como um lenitivo mercadológico: "ao contrário do que possa parecer, este livro é tudo menos triste". Se trata de uma enorme mentira, que o autor diagnostica no meio da narrativa, ao escrever "o que minha tia nunca conseguiu entender na América é por que todo mundo finge ser feliz o tempo todo". O livro é tristíssimo, e de um beleza inigualável. Mas para quem Eugenides fala, em um mundo onde a percepção da ironia se atrofia à velocidade assustadora, em que as sutilezas do discurso se perdem pela exposição massiva a reality shows grotescos, em que mesmo as pessoas que tiveram a melhor educação ortodoxa (ou, em razão disso), são treinadas a não se importarem mais com o próximo, a não ser através de redes sociais em que podem simular o amor de maneira efêmera e confortavelmente anestesiadas, sem compromisso? Talvez a lógica desse exercício contínuo da escrita não esteja de todo no controle consciente do autor, e ele é movido por um moto universal que esteve por detrás das estatuas da idade média cujos feitores as colocavam no alto das catedrais justamente para não serem vistas_ a mensagem sendo algo invisível e intocável, mas ainda assim não perdida, sentida por um cambiamento palimpséstico de alguma forma pertencente à espécie inteligente. 

terça-feira, 12 de março de 2013

Gatinhos

Silvia Viana

Os reality shows são brutalidade em forma de programa, são mal-estar enlatado. Enquanto a brutalidade dos reality shows é escancarada e ninguém parece se importar com isso (ainda outro dia , enquanto zapeava a TV, escutei parte de uma chamada do A Fazenda, na qual o narrador dizia: "O cerco fecha, o medo aumenta..."), o sofrimento que se desenrola no mundo do trabalho não tem visibilidade em razão de sua privatização. Apenas quando esse mal nosso de cada dia toma proporções de "escândalo" podemos entrever o que se passa a portas fechada, como no caso dos suicídios de trabalhadores da France Telecom. Tais casos não são a exceção, mas a regra do trabalho no capitalismo flexível, como apontam inúmeros estudos de sociologia do trabalho a respeito dos mais diversos setores produtivos. As avaliações nas empresas, por exemplo, não passam de delação premiada; processos seletivos se tornaram gincanas, das mais às menos humilhantes, todas elas despropositadas; o assédio moral entre trabalhadores se tornou problema estrutural; isso para não falar nas tantas gambiarras jurídicas a fim de burlar as leis trabalhistas... E a criatividade dos gestores para arrancar até a última gota de mais-valia e obediência é, de fato, impressionante: um amigo que trabalhou no telemarketing me contou que tinha seus horários de ir ao banheiro controlados pelo computador. Disse-me também que, certo dia, um de seus colegas não conseguiu "gerenciar" seu tempo biológico e urinou na estação de trabalho, sendo prontamente ridicularizado pelos demais. Há alguns meses fui a um dos principais rituais corporativos: uma palestra motivacional. O cerimonial foi oferecido por uma empresa que fabrica a comercializa cursos de inglês, e era voltado para seus vendedores. Após muitos ritos nonsense, aos quais as pessoas respondiam eufórica e mecanicamente, foi anunciada, pela diretora executiva, a grande novidade gerencial para o semestre: os trabalhadores que mais curso vendessem ganhariam uma viagem para o Nordeste; as despesas, contudo, ficariam por conta dos "perdedores". Um dos relatos mais impressionantes que eu li foi de Cristophe Dejours, que contou de um processo seletivo no qual os aspirantes à vaga receberam cada qual um filhote de gato para cuidar por alguns dias. Passado esse tempo, receberam a ordem de matar os gatos a fim de mostrar o comprometimento com o almejado emprego. E paremos por aqui, pois a coisa vai longe e é nauseante.

Após ler a respeito, fazer algumas entrevistas, escutar incontáveis casos como esses e até vivenciar coisas do gênero, não foi difícil enxergar aquilo que eu estava pesquisando quando assisti, pela primeira vez, a um episódio do Big Brother Brasil (BBB). Era o episódio do "quarto branco", no qual três participantes passaram por uma sessão martirizante de privação de sentidos. Quando findo o suplício, com a eliminação sumária de um rapaz que entrou em colapso nervoso, o apresentador voltou-se para os demais participantes e lhes atirou uma pergunta retórica: "Vocês acham que o BBB é colônia de férias?". "Não", responderam todos em uníssono. Não, é trabalho. Trabalho flexível, explorado e degradado.
                                   (Silvia Viana, autora de Rituais de sofrimento, ao Le Monde Diplomatique de março 2013)

sexta-feira, 8 de março de 2013

Algumas notas breves sobre leituras


Informo aos visitantes do blog que na semana que vem voltarei com novos textos. Não me sobra tempo por esses dias; demasiado envolvido com assuntos veterinários. Mas as leituras continuam nas horas livres, e minha luta é para garantir o máximo de tempo ocioso possível. O Matheus citara o História do Medo no Ocidente em uma das caixas de comentário; foi o suficiente para acionar o estopim para a leitura desse livro, que há alguns meses aguardava na estante. Terminei-o ontem. Leitura prazerosa, espantosa, e amplamente informativa. Uma das coisas que me impressionou_ eu que viro uma criança deslumbrada com o conhecimento a cada livro_, foi a descoberta do real sentido das lápides de cemitério e a razão do luto. O medo dos mortos era tão grande, que já no início da Idade Média as pessoas colocavam blocos de pedra por sobre as sepulturas, para que o morto não conseguisse se evadir de dentro das sepulturas. E o negro usado no luto, na verdade não traz em suas origens nenhum respeito, sendo sim uma atitude de antipatia contra o defunto, novamente para que ele desconsidere qualquer ideia torta de não aceitar sua condição de finado. Os capítulos sobre a peste na Alta Idade Média e no começo da Idade Moderna são esclarecedores sobre o egoísmo elementar do ser humano. Um tanto chocante ver que era comum pais se voltarem contra filhos, no desespero de se protegerem contra a doença.

Iniciei ontem O Professor do Desejo, do Philip Roth. Fiz uma anotação mental de jamais ficar tanto tempo sem ler Roth. Um show de inteligência e de qualidade de escrita; um deleite para os sentidos. Comentávamos o Luiz Ribeiro e eu que Bellow é superior a Roth, mas a leitura desse romance tem me mostrado que a caudalosidade de Roth, seus longos parágrafos, sua fixação por si mesmo e sua enorme vaidade e sua enorme paixão pela literatura, formam um contraponto com o autor de Herzog que ensina muito sobre a estatura de literatura norte-americana. Isso me faz lembrar uma frase não muito feliz do Sérgio Rodrigues, afirmando que a terceira pessoa equivale ao doutoramento do escritor. Roth escreveu cerca de 95% de sua obra na primeira pessoa _embora seu inigualável O Teatro de Sabbath tenha sido na terceira pessoa_, mas existem casos mais desmistificadores à máxima de Rodrigues: Javier Marías, que compôs todos seus romances na primeira pessoa, nunca teria saído dos bancos escolares, e o que dizer de Proust?

Por final, hoje após o almoço tive o prazer de ler o maravilhoso ensaio de Alejandro Chacoff, intitulado A Viúva e a Vanguarda, sobre Maria Kodama, o espólio de Borges, e querelas judiciais envolvendo a viúva do grande autor e um escritor experimentalista argentino bastante curioso. Um texto de encher os olhos, publicado na Piauí 78, de março, um dos melhores textos publicados pela história dessa revista.

sábado, 2 de março de 2013

Neste sábado desterrado do infinito


Abrindo um Porto e comemorando os 40 anos de Dark Side of the Moon, o magnífico álbum do Pink Floyd.

(Já fiz altas viagens com esse disco. Estou escutando o primeiro solo de Time neste exato momento. Não sei dizer agora o quanto essa obra representa para mim. Lembro de três fatos relacionados entre ela e minha vida, de certa forma banais mas muito representativos [tomei três cálices do Ferreira, por enquanto, então me aturem]: uma madrugada na capital em que ligo na rádio universitária e me deparo com eles deixando rolar todo o vinil, na íntegra, o que me passa a imagem de esquecimento_ como se eles tivessem se deleitado com a música e esquecido de a interromper; ou como se, às 3 da madrugada, soubessem que quem estivesse sintonizado na rádio, ficaria bastante feliz daquela permissividade; outra noite, no apartamento de décimo andar da minha mãe, eu com meus 25 anos infernizados, deitado no sofá da sala, absolutamente sozinho, e alguém lá nas quebradas das esquinas além da avenida atrás do prédio, em alguma casa entre os galpões e lojas de pneus, põe a rolar em máximo volume este álbum. O som parece tomar meia cidade; parece um evangelho whitmaniano; o cara por detrás disso, uma incógnita desde sempre, sempre me pareceu algum tipo de intelectual em exaustão, explodindo esse som como para educar a  vizinhança. O álbum foi tocado por inteiro, nenhuma viatura (passava das 22), só os solos maravilhosos do Gilmour. Essa cena ficou indevassável à minha audição do DSM. A terceira experiência é que puseram este disco na minha primeira de duas fumadas de maconha; um clichê de efeitos tão fajutas que só menciono o episódio como amadurecida contemplação de minhas besteiras.)