sexta-feira, 22 de março de 2013

O que me irrita em Haruki Murakami



Haruki Murakami é bom. Gostei muito do primeiro volume de 1Q84. Instigante, imaginativo, prazeroso. Quando acabei a leitura, me veio aquela angústia em saber quando a Alfaguara iria lançar os outros dois volumes. Já quanto a Norwegian Wood e Kafka à beira-mar, iniciei-os e parei, um na página 100, outro na página 30, respectivamente. Não são ruins, mas não estava no humor adequado (e, reconheço, a paciência adequada), para enfrentá-los agora. Um outro dia. A Alfaguara lançou o volume 2 de 1Q84. Assim que chegou às minhas mãos, comecei a devorá-lo. Daí eu percebi porque não consigo, ainda, ler esses outros títulos do autor japonês. 1Q84 é mais Dan Brown que literatura séria. Murakami é um Dan Brown mais conscientemente comprometido com a escrita, por isso que fantasias cinematográficas como 1Q84 funcionam melhor que seus romances filosóficos, seus cenários de desolação pré-suicida e seus anseios juvenis de fuga. E o que mais me atrai em Murakami é justamente o que ele tem de mais fraco: a sua ingenuidade, sua crença de que seu leitor não é muito inteligente e necessita ser melhor guiado por explicações e redundâncias, a predisposição quase magnética de seus personagens em serem bidimensionais e rasos. O pretendente de escritor em mim, quando diante de Murkami, respira aliviado: se não puder ir com Pynchon, pode-se ir com Murakami. Bastaria que esse pretendente de escritor em mim tivesse uma enorme, quase colossal fé em si mesmo, e a mesma proporção em disciplina. Murakami é um escritor pré-Joyce, e ter a coragem, a fé e a disciplina dele, revela muito da capacidade nipônica em superar as expectativas mercadológicas de qualquer nicho do consumo, mesmo o das letras. Bastaria que o escritor em mim se livrasse de sua auto-crítica e visse o leitor na outra ponta como um ser mais simples, mais feliz, mais pragmático.

Mas algumas coisas em Murakami me irritam a ponto de eu pensar em largar a leitura. Sou um leitor combativo, e sei que não vou abandonar Murakami. Mas vamos a essas coisas irritantes:

1. Os diálogos nãos são os pontos fortes de Murakami. Muitas vezes parece que os personagens decoraram suas falas e as pronunciam com a mesma temeridade que em teatros infantis da escolinha. Já nas trinta primeiras páginas de 1Q84, II, existe uma profusão de exemplos. A assassina de violentadores de mulheres, Aomame, pede ao guarda-costas particular Tamaru, que este lhe arranje uma pistola. Tamaru lhe questiona por quê. Aomame informa que está para realizar a missão mais perigosa de sua vida, e, no caso de ser pega, usará a pistola para se suicidar, impedindo assim que seja torturada e revele segredos de sua contratante. Tamaru, então, faz um discurso sobre as leis que regem a posse de armas de fogo no Japão, algo muito pedante em seu didatismo, para, no final, dizer que vai ver se consegue arranjar a arma. Aí vem o primor do diálogo abaixo:

_ Segundo Tchekhov_ disse Tamaru, levantando-se lentamente_, se uma arma aparece na história, ela tem de ser disparada.
_ Como assim?
Tamaru ficou de frente para Aomame. Ele era um pouco mais alto que ela.
_ Ele quer dizer que não se deve inserir numa história um objeto desnecessário. Se aparecer uma pistola, em algum momento ela deve ser disparada. Tchekhov gostava de escrever histórias sem ornamentos supérfluos.

E Aomame faz a constatação que evidencia a pouca fé de Murakami na inteligência de seu leitor:

_ Pelo visto, isso te preocupa. Você acha que, se eu tiver uma pistola, vou ter de necessariamente usá-la em algum momento.

2. Murakami falta sublinhar, ou percorrer com a cor amarela, as partes da narrativa em que se deve prestar mais atenção, como a indicar: olha, gente, isso aqui vai ser necessário páginas adiante, vamos parar de mascar o chiclete e ler pausadamente. Em um parágrafo curto, ele repete por TRÊS VEZES o longo nome Nova Fundação Japão para a Promoção das Ciências e das Artes. Três vezes!

3. Muitas vezes parece que Murakami fala para uma turma de aluninhos japoneses de uniforme azul e branco sobre o quanto o mundo é deslumbrante e perigoso. No volume I de 1Q84, há um diálogo completamente doutrinário sobre o uso da camisinha, feita entre a assassina profissional e sua amante policial. E é um tanto desconexo que Murakami esteja preocupado com a educação sexual básica de seus leitores adolescentes recorrendo a tantos clichês da regra do sexo desatinado e sem reservas da mídia moderna.

4. As cenas de sexo de 1Q84 são constrangedoras, forçadas. Alguém disse para o jovem Murakami, barman de um pub de jazz, que para se ter sucesso na literatura tem-se que temperar com altas doses voláteis de sexo, e então ele se esforça para ser o cara mal, pervertido e sem amarras. E da-lhe felação, ejaculações em peitos grandes, masturbações furtivas, insinuações pedófilas, lesbianismos. O resultado: páginas de tédio que, puladas, não farão a mínima falta à narrativa.

5. A espontânea reformulação dos personagens. É o caso da amante de 40 anos de Tengo, uma mulher sem atrativos, casada e mãe, que se presta a sexo descompromissado com Tengo em uma rotina semanal. Por todo o volume I, sua profundidade psicológica não passa disso, com metade dos prodígios sexuais apontados no item acima. Mas, então, num súbito acréscimo de qualidade, no início do volume II ela se revela uma erudita conhecedora de jazz antigo, dedicando a dar uma profunda aula sobre jazz antigo para Tengo (enquanto faz carinho em seu testículo: mesmo aqui Murakami teme perder o compasso de escritor moderno ultra-sexuado transitando por um desvio erudito, e não larga o calejado saco de Tengo por nada). Uma mulher que se comprazia às ortodoxias do sexo oral, de repente faz uma análise sobre a transcendência de um solo de Barney Bigard em Atlanta Blues, de Louis Armstrong, que não deixa nada a dever a Alex Ross.

Há alguns outros itens, mas paro por aqui.


16 comentários:

  1. Bom, vou colocar na conta da sua ironia a observação sobre a didática da camisinha em 1Q84 e o resto da resenha na do seu mau-humor.
    Mas concordo contigo que os diálogos de Murakami são bem descartáveis. Como que se Murakami estivesse reverberando a fala do japonês nessa intersecção entre Ocidente e Oriente.
    O narrador de Murakami também, quando não é em primeira pessoa, parece esquálido diante da robustez intelectual por exemplo de um Saul Bellow.
    Veja bem, nunca disse que o Murakami era o melhor que o Japão já produziu nas letras. Mas daí compará-lo ao Dan Brown (de novo coloquei na conta da ironia, mas em todo caso...), que é devidamente descrito por Hary Bloom como um moron with a super-computer, um agente do que há de mais deprimente da literatura feita sob encomenda de estudos mercadológicos... Ele se quer faz a pobre literatura da sua compatriota Banana Yoshimoto (essa sim, uma espécie de Dan Brown para mulheres, uma versão comédia romântica do autor de Da Vinci)
    O forte de Murakami são seus mundos impossíveis e imaginativos.
    Depois a gente pode conversar sobre isso.

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    1. Luiz, eu tenho boa fé com o Murakami. Acho ele realmente bom, como disse. Há alguns arranjos em 1Q84 que são pura técnica para subir na lista de best-sellers, e isso não difere de Dan Brown. Talvez por o talento dele para a escrita não se prestar a tal, ele se limita ao romance retilíneo, absolutamente legível em tudo. Aqui eu dou plena razão ao Pynchon quando diz que um texto não pode ser absolutamente compreensível; tem de deixar margem para a insinuação, para o mistério, para o não-dito. Me faz lembrar que uma delegada aqui me processou por eu ter dito que ela era negligente. No texto de sua queixa de desacato, ela escreveu que eu havia dito tal palavra com um ar de zombaria. Diante o juiz, eu que já sabia o que o Joaquim Barbosa revelou da grande promiscuidade corporativa que existe entre juízes, delegados e advogados, ri e expliquei que era impossível para alguém afirmar que outra pessoa era negligente e usar um ar de mofa. Os ares de mofa eram para ironias; eu a teria usado se tivesse sido irônico, se tivesse dito "nossa, como a senhora é eficiente" (cole aqui um ar de zombaria). Já para negligente não cabe ironia, era tão somente um julgamento direto e insofismável. É o que Murakami faz em seu livros: as palavras não tem subníveis, os tons não tem o diabulus in musica, não tem trinado.

      Mas sim. Murakami vale por sua poderosa imaginação.

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    2. Olha. Eu entendo essa sua nota sobre o caráter redondo demais das frases do Murakami. Mas há bastante da insinuação (não propriamente na forma de elipse e ironia nos diálogos) no plot dele. Há inclusive insinuações que tentam mimetizar a típica construção de enredo esnobe desses autores que foram grandes leitores. Por exemplo, Borges ou Mann. Murakami faz muito disso com a tradição Greco-Romana. Ele não te pega pela mão e te leva até o Fedro através de uma inocente nota, por exemplo, na boca do bibliotecário transexual Oshima do tipo, "quando eu tinha dezessete anos, eu li absorto o mito do vôo da alma narrado por Sócrates... almas decepadas de suas asas porque não descobriram ainda Eros", etc. O Fedro está simplesmente lá, na narrativa, e não somente na sua versão pocket book. Ele está lá enquanto fruto de uma leitura, me pareceu, bem atenta de Platão.

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    3. Tá bom. Torço para que eu passe a ver essas coisas quando encarar os livros mais vultosos, como o Kafka e o NW. Mas há sim uma parte toda no primeiro volume de 1Q84 que abre precedente ao mistério, que é uma borgeana (ou uma poe-ana), inserção de um maravilhoso relato daquela viagem histórica de Tchékhov.

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    4. Mas eu concordo com sua nota que falta elipse no fraseado do Murakami (já passei da idade de desejar a dialética perfeita no debate)
      Sputnik Sweetheart é uma merda.
      Johnnie Walker, o misterioso serial killer de gatos em Kafka on the Shore é uma montagem no mínimo engenhosa.
      E a famosa construção de narrativas paralelas que no final confluem, a marca do ganha-pão de Murakami, funciona muito bem em Hard-Boiled Wonderland and the End of the World. Um pesadelo meso-Wells, meso-science fiction de folhetim.
      Acho que você faz um desfavor a você mesmo, enquanto leitor, e ao Murakami, quando você intenta ler o japonês no contexto de Pynchon, Frazen, etc.
      Ele se encontra mais perto de Stevenson, Wells e Nerval.

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    5. Você está certo. Cogitei essa hipótese: Stevenson, Wells e Murakami.

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  2. Do Murakami eu recomendaria Wind-Up Bird Chronicle, este sim um baita livro onde o Murakami mostra o que tem de melhor. Kafka on the Shore é bom também, mas ainda sim bem inferior ao Wind-Up na minha opinião. O resto é realmente bem suspeito.

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    1. Acabei não lendo o Wind-up Bird Chronicle porque a editora Knopf mutilou o original japonês do Murakami. Não sei bem a quantas anda a hybris (hubris) do autor moderno diante das tantas exigências de dezenas de mãos de editores. Mas de repente o fato do Murakami se submeter a tanto já significa alguma coisa.

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    2. Jonas, já tinha ouvido falar muito desse Murakami. O Luiz citara essa lamentável deficiência da editora Knopf. É esperar a Alfaguara publicar por aqui. Não sei se as traduções americanas são feitas direto do japonês (as da Alfaguara brasileira são). No site da LV, até semana passada, estava com 1Q84 II entre os dez mais vendidos, o que aumentam as chances de uma tradução.

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    3. Eu o li na edicão da Vintage de Londres, que pelas informações que eu tenho não foi mutilado.

      Mudando de assunto, o Chinua Achebe morreu. Mais um pra lista de injustiçados pelo Nobel.

      Abs

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    4. Pô, o Achebe morreu! Quando você o disse, algo em mim estralou um "mas ele ganhou o Nobel". É, não ganhou. Há meses ensaio comprar o "O mundo se despedaça".

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  3. Também estou um pouco com o pé atrás com o Murakami. Até havia me empolgado, a história é fantástica, mas há trechos didáticos ao extremo. Já li muita gente o colocando como best-seller descartável, mas está um pouco longe disso, creio. Comecei a ler o segundo na versão de português de Portugal, mas parei para ler depois a tradução brasileira. Confesso que já perdi a vontade de saber o que vai acontecer com os "nossos heróis", o que já bem previsível.

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    1. Eu quero saber a razão daquelas duas luas e do "povo pequeno".

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  4. Pelo que escreveste, tenho a impressão de que o Murakami só não é criador de Anime-quase-Hentai por detalhe.

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  5. Sintetizando, o que há de ruim em Murakani é que ele insiste em ser um autor contemporâneo que, como tal, não precisa cuidar da psicologia das personagens, pois elas, como taius, são apenas simiulacros, algo passível de se observar literariamente, e não adquirem vida própria só porque um autor a preenche de microdetalhes e descrições preciosistas - isso é coisa da literatura até os anos 50, se tanto.

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