domingo, 28 de junho de 2020

Scenio



Enrietta foi assassinada há 13 anos. O sr. Flibas parou diante o semáforo para pedestres, que no momento apresentava o homenzinho em pose marcial circunscrito em seu quadrângulo vermelho, e olhou os rostos atônitos do outro lado da rua apontando seus olhos para onde ele estava sem o verem. Foi no bairro de São Bento, a dez quilômetros dali, quando Enrietta ia às seis da manhã para o serviço de conselho tutelar no qual se ingressara fazia um ano. O rapaz_ na verdade, um pertencente à faixa etária indefinida entre a infância e a adolescência_, passara por ela, estacara dois metros além e, como se algo que exigisse sua atenção tivesse quase passado batido, mas que se recuperara pelo seu afinco em ser efetivo a algum zelo irretocável, deu meia volta e voltou calmamente até onde ela estava, naquela mesma posição em que o sr. Flibas agora estava diante o semáforo, à espera de que a marcha de carros fosse interrompida na transversal e o caminho para as pessoas fosse liberado. Ela levava uma bolsa de pano bordado com uma mixórdia de desenhos africanos pendurada no ombro, e na hora em que o menino a puxou com violência, seu corpo pendera para o lado; o desequilíbrio fez com que os grandes óculos ray-ban escuros ficassem inclinados no meio do rosto e seus cabelos crespos, que lhe conferiam o principal toque de personalidade, formassem um nimbo na região acima da testa, o que era o detalhe mais visível na câmera de monitoramento de uma panificadora, que registrara tudo e que os policiais mostraram para o sr. Flibas alguns dias depois. A luz vermelha se apagou e o quadrângulo verde, com o homenzinho atarefado estendendo a perna para efetuar um passo, acendeu, o efeito entre cores tão avessas provocando o acionamento de todas as pernas da fila lateral de pedestres que esperavam por aquela adstringente libertação. O sr. Flibas agilizou para chegar ao outro lado, com a desconfiança supersticiosa de que os carros parados eram seres brutais de vontade própria que poderiam avançar a qualquer momento, sem respeito às leis. Enrietta jamais fizera aquele gesto que ele fazia agora, jamais atravessara a rua. Nos primeiros meses, mesmo nos primeiros lentos e imprecisos 5 anos, ele caía na divagação de se não comportava uma culpa pessoal em não ter sido audaz o suficiente para ensina-la a controlar certos movimentos condicionados. Se não teria sido um grande lapso não ter dedicado a instruir um ser tão imolado pela malícia sobre a corrupção que imperava do lado de fora da porta de seu refúgio. Talvez ela não teria simulado reação, como puxar a bolsa de volta, respondendo proporcionalmente à força do ladrão com a energia muscular de seu braço fino mas vigoroso. Algum transeunte que testemunhara a cena talvez tivesse expressado um gesto de admiração e achado que a história teria sido ganha, o mal enxotado e a pobre figura de David vitorioso sido representado na transfiguração de uma raquítica mulher de meia idade, quando o rapaz se estatelou no chão, sem a bolsa e de olhar primeiramente atordoado de surpresa. Mas o sr. Flibas, os policiais e a história já sentenciada de sua vida, sabiam, ao ver num ângulo apical e em preto-e-branco na imagem gravada, que a conclusão não havia sido essa. O movimento da funda tinha sido feito, não com precisão suficiente, e a pedra passara em direção perdida alheia à cabeça do Golias. O mal não se evadira, se levantara em suas orgulhosas e ofendidas pernas juvenis, fitara com um ódio transfigurador o que tinha pela frente, e acertara em Enrietta um murro carregado de fúria que a fez cair instantaneamente sem vida. Foi isso que o laudo do instituto médico legal declararia para o inquérito, um murro tão bem dado que partira seu maxilar e lhe causara uma hemorragia cerebral instantânea. Essa aberração fria, asséptica e sem transcendência o fazia ter pensamentos absurdos como achar que era uma sorte ela não ter sentido a série de chutes que o criminoso dera em sua cabeça em seguida. Não queria se lembrar daquilo, daquela cena registrada nas fitas da caixa da panificadora; os agentes policiais tocaram-lhe nas costas e pediram gentilmente que se retirasse, enquanto um deles dava o sinal para que desligassem o vídeo, mas já era tarde, por distração todos estavam de frente à televisão e a cena continuara a transcorrer, cada um afundado em seus pensamentos, confusos diante a análise que tinham de fazer diante algo que a tecnologia destilara até uma seca trivialidade, desinflando através da repetição a brutalidade de um assassinato absolutamente desproporcional e vazio.
            O sr. Flibas seguiu a recomendação do policial e passou pela porta até o outro lado da pequena sala de perícias, onde a efervescência de uma delegacia de policia continuava à toda com algumas pessoas sentadas à espera de que fossem promovidas de seres congelados no interstício entre a ação e a captura para o centro de interrogatórios pormenorizados, ao que alguns deles responderiam com prontidão, como se narrassem eventos cometidos não por eles mas por desconhecidos tomados pelo ensandecimento; outros iriam se calar com uma fúria concentrada; outros não falariam nada com nada, perturbados pela química ou pela loucura do excesso de afronta que a vida lhes fazia. Seus olhos aturdidos pousaram por um longo momento em uma mulher que estava em uma das cadeiras ligadas por uma barra de aço embaixo, sentada em uma pose inusitada, como se seu corpo não tivesse apenas um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura ou algo em torno disso mas fosse extenso o suficiente para atravessar pelas outras cadeiras numa declarada provocação. Mascava chiclete, era morena, cabelos crespos, ensebados e juntados em feixes pontiagudos revelando uma série de cuidados cosméticos tentados sem nenhuma resposta satisfatória e deixados assim como estavam, inóspitos, irregulares, um quebra-cabeça; aliás, ela percebera que era alvo da deseducada atenção do sr. Flibas, através da percepção da presa que costuma saber da presença do predador através de radares sensoriais sutis, e por isso ela parou de mascar o chiclete; o corpo, que emitia um movimento barcolejante, levando a perna cruzada acompanhando a linha da outra perna até onde ficava o limite da cadeira de uma outra mulher mais velha sentada a seu lado, se interrompeu, e seus olhos foram se iluminando de algo que parecia uma intensidade furiosa emitida à distância de dentro de uma caverna, o que faria seu observador cogitar se de dentro pularia uma fera atiçada ou revoariam criaturas noturnas acuadas em busca de outro refúgio. O sr. Flibas a via, mas não a enxergava; sua mente estava desbaratinada; um enorme cansaço como jamais sentira antes afundou seu peso em seus ombros, de forma que ele se encolhera e seus braços retos e desamparados sentiam a necessidade insurgente de abraçarem alguma coisa, nem que fosse seu próprio corpo. Seu cérebro sofrera uma pane, deixando os membros que tinham a obrigação de comandar a seus próprios domínios, e, em consequência, era como se sua alma partisse por um instante, o que ocasionara deixar seus olhos firmemente presos no último objeto em que se sentaram. Os policiais foram buscar um laudo para que ele assinasse e o deixaram ali, tomado por uma insípida vontade de desaparecer. Algo estava muito errado com o que estava acontecendo. Ele não merecia aquilo. Não, não; não era uma questão filosófica, não era uma reivindicação moral, que isso ficasse nos livros, nos compêndios e nos tratados, ele pouco se importava com eles; o que exigia em um destemperado silêncio era seu direito de não ser interessante, era seu mérito em ser invisível, era que a lei cumprisse sua obrigação sobre ele no antigo acordo que ele fez em não imolar o mundo, em não querer do mundo nada a não ser a sua porção satisfatória ínfima e cabível para que levasse sua vida, estendesse complacente sua não competição no jogo e fosse deixado em paz; sua animalidade, porque ao menos seres como ele e Enrietta tinham o direito de perfazerem seus anos em exílio pacífico, não chamando a atenção daquela fúria tão ocupada e sequiosa do mundo. Mas, como se o mistério inquirido não aceitasse mais capitulação, seu devaneio foi quebrado pela pequena mulher, que se levantara agora da cadeira e avançara para o sr. Flibas, os braços formando duas asas com as mãos na cintura, os olhos arregalados, a boca cuspindo chispas de impropérios por entre cacos de dentes amarelos. O sr. Flibas olhava-a com tênue estupefação, como se aquilo não condissesse com alguma linha de lógica que ainda se prestasse a envolver aquela zona da realidade, e a mulher esmoreceu, percebeu seu abatimento, provavelmente sentiu através dos canais telepáticos dos grandes sofredores o inferno que lhe ia por dentro e parou, silenciou de uma vez; voltou seu corpo miúdo e se sentou com uma nova integridade, como se o que vira no sr. Flibas, em sua apatia, exigisse dela uma postura respeitosa. O sr. Flibas vira que era uma menina ainda.