Enrietta foi assassinada há 13
anos. O sr. Flibas parou diante o semáforo para pedestres, que no momento
apresentava o homenzinho em pose marcial circunscrito em seu quadrângulo
vermelho, e olhou os rostos atônitos do outro lado da rua apontando
seus olhos para onde ele estava sem o verem. Foi no bairro de São Bento, a dez
quilômetros dali, quando Enrietta ia às seis da manhã para o serviço de
conselho tutelar no qual se ingressara fazia um ano. O rapaz_ na verdade, um
pertencente à faixa etária indefinida entre a infância e a adolescência_,
passara por ela, estacara dois metros além e, como se algo que exigisse sua
atenção tivesse quase passado batido, mas que se recuperara pelo seu
afinco em ser efetivo a algum zelo irretocável, deu meia volta e voltou
calmamente até onde ela estava, naquela mesma posição em que o sr. Flibas agora
estava diante o semáforo, à espera de que a marcha de carros fosse interrompida
na transversal e o caminho para as pessoas fosse liberado. Ela levava uma bolsa
de pano bordado com uma mixórdia de desenhos africanos pendurada no ombro, e
na hora em que o menino a puxou com violência, seu corpo pendera para o lado; o
desequilíbrio fez com que os grandes óculos ray-ban escuros ficassem inclinados
no meio do rosto e seus cabelos crespos, que lhe conferiam o principal toque de
personalidade, formassem um nimbo na região acima da testa, o que era o detalhe
mais visível na câmera de monitoramento de uma panificadora, que registrara
tudo e que os policiais mostraram para o sr. Flibas alguns dias depois. A luz
vermelha se apagou e o quadrângulo verde, com o homenzinho atarefado estendendo
a perna para efetuar um passo, acendeu, o efeito entre cores tão avessas provocando o acionamento de todas as pernas da fila lateral de
pedestres que esperavam por aquela adstringente libertação. O sr. Flibas
agilizou para chegar ao outro lado, com a desconfiança supersticiosa de que
os carros parados eram seres brutais de vontade própria que poderiam avançar a
qualquer momento, sem respeito às leis. Enrietta jamais fizera aquele gesto que
ele fazia agora, jamais atravessara a rua. Nos primeiros meses, mesmo nos
primeiros lentos e imprecisos 5 anos, ele caía na divagação de se não
comportava uma culpa pessoal em não ter sido audaz o suficiente para ensina-la a
controlar certos movimentos condicionados. Se não teria sido um grande lapso
não ter dedicado a instruir um ser tão imolado pela malícia sobre a corrupção
que imperava do lado de fora da porta de seu refúgio. Talvez ela não teria
simulado reação, como puxar a bolsa de volta, respondendo proporcionalmente à
força do ladrão com a energia muscular de seu braço fino mas vigoroso. Algum
transeunte que testemunhara a cena talvez tivesse expressado um gesto de
admiração e achado que a história teria sido ganha, o mal enxotado e a pobre
figura de David vitorioso sido representado na transfiguração de uma raquítica
mulher de meia idade, quando o rapaz se estatelou no chão, sem a bolsa e de
olhar primeiramente atordoado de surpresa. Mas o sr. Flibas, os policiais e a
história já sentenciada de sua vida, sabiam, ao ver num ângulo apical e em
preto-e-branco na imagem gravada, que a conclusão não havia sido essa. O
movimento da funda tinha sido feito, não com precisão suficiente, e a pedra
passara em direção perdida alheia à cabeça do Golias. O mal não se evadira, se
levantara em suas orgulhosas e ofendidas pernas juvenis, fitara com um ódio
transfigurador o que tinha pela frente, e acertara em Enrietta um murro
carregado de fúria que a fez cair instantaneamente sem vida. Foi isso que o
laudo do instituto médico legal declararia para o inquérito, um murro tão bem
dado que partira seu maxilar e lhe causara uma hemorragia cerebral instantânea.
Essa aberração fria, asséptica e sem transcendência o fazia ter pensamentos
absurdos como achar que era uma sorte ela não ter sentido a série de chutes que
o criminoso dera em sua cabeça em seguida. Não queria se lembrar daquilo,
daquela cena registrada nas fitas da caixa da panificadora; os agentes
policiais tocaram-lhe nas costas e pediram gentilmente que se retirasse,
enquanto um deles dava o sinal para que desligassem o vídeo, mas já era tarde,
por distração todos estavam de frente à televisão e a cena continuara a
transcorrer, cada um afundado em seus pensamentos, confusos diante a análise
que tinham de fazer diante algo que a tecnologia destilara até uma seca trivialidade,
desinflando através da repetição a brutalidade de um assassinato absolutamente
desproporcional e vazio.
O sr.
Flibas seguiu a recomendação do policial e passou pela porta até o outro lado
da pequena sala de perícias, onde a efervescência de uma delegacia de policia
continuava à toda com algumas pessoas sentadas à espera de que fossem
promovidas de seres congelados no interstício entre a ação e a captura para o
centro de interrogatórios pormenorizados, ao que alguns deles responderiam com prontidão, como se narrassem eventos cometidos não por eles mas
por desconhecidos tomados pelo ensandecimento; outros iriam se calar com uma
fúria concentrada; outros não falariam nada com nada, perturbados pela química
ou pela loucura do excesso de afronta que a vida lhes fazia. Seus olhos aturdidos
pousaram por um longo momento em uma mulher que estava em uma das cadeiras
ligadas por uma barra de aço embaixo, sentada em uma pose inusitada, como se seu corpo
não tivesse apenas um metro e cinquenta e cinco centímetros de altura ou algo
em torno disso mas fosse extenso o suficiente para atravessar pelas outras
cadeiras numa declarada provocação. Mascava chiclete, era morena, cabelos
crespos, ensebados e juntados em feixes pontiagudos revelando uma série
de cuidados cosméticos tentados sem nenhuma resposta satisfatória e
deixados assim como estavam, inóspitos, irregulares, um quebra-cabeça; aliás,
ela percebera que era alvo da deseducada atenção do sr. Flibas, através da
percepção da presa que costuma saber da presença do predador
através de radares sensoriais sutis, e por isso ela parou de mascar o
chiclete; o corpo, que emitia um movimento barcolejante, levando a perna cruzada
acompanhando a linha da outra perna até onde ficava o limite da cadeira de uma
outra mulher mais velha sentada a seu lado, se interrompeu, e seus olhos foram
se iluminando de algo que parecia uma intensidade furiosa emitida à distância
de dentro de uma caverna, o que faria seu observador cogitar se de
dentro pularia uma fera atiçada ou revoariam criaturas noturnas acuadas
em busca de outro refúgio. O sr. Flibas a via, mas não a enxergava; sua mente
estava desbaratinada; um enorme cansaço como jamais sentira antes afundou seu
peso em seus ombros, de forma que ele se encolhera e seus braços
retos e desamparados sentiam a necessidade insurgente de abraçarem alguma
coisa, nem que fosse seu próprio corpo. Seu cérebro sofrera uma pane,
deixando os membros que tinham a obrigação de comandar a seus próprios
domínios, e, em consequência, era como se sua alma partisse por um instante, o
que ocasionara deixar seus olhos firmemente presos no último objeto em que se
sentaram. Os policiais foram buscar um laudo para que ele assinasse e o
deixaram ali, tomado por uma insípida vontade de
desaparecer. Algo estava muito errado com o que estava acontecendo. Ele não
merecia aquilo. Não, não; não era uma questão filosófica, não era uma
reivindicação moral, que isso ficasse nos livros, nos compêndios e nos
tratados, ele pouco se importava com eles; o que exigia em um destemperado
silêncio era seu direito de não ser interessante, era seu mérito em ser
invisível, era que a lei cumprisse sua obrigação sobre ele no antigo acordo que
ele fez em não imolar o mundo, em não querer do mundo nada a não ser a sua
porção satisfatória ínfima e cabível para que levasse sua vida, estendesse
complacente sua não competição no jogo e fosse deixado em paz; sua animalidade,
porque ao menos seres como ele e Enrietta tinham o direito de perfazerem seus
anos em exílio pacífico, não chamando a atenção daquela fúria tão
ocupada e sequiosa do mundo. Mas, como se o mistério inquirido não aceitasse
mais capitulação, seu devaneio foi quebrado pela pequena mulher, que se levantara
agora da cadeira e avançara para o sr. Flibas, os braços formando duas asas com
as mãos na cintura, os olhos arregalados, a boca cuspindo chispas de
impropérios por entre cacos de dentes amarelos. O sr. Flibas olhava-a com
tênue estupefação, como se aquilo não condissesse com alguma linha de lógica
que ainda se prestasse a envolver aquela zona da realidade, e a mulher
esmoreceu, percebeu seu abatimento, provavelmente sentiu através dos canais
telepáticos dos grandes sofredores o inferno que lhe ia por dentro e parou,
silenciou de uma vez; voltou seu corpo miúdo e se sentou com uma nova
integridade, como se o que vira no sr. Flibas, em sua apatia, exigisse dela uma
postura respeitosa. O sr. Flibas vira que era uma menina ainda.
A caverna desabou antes de vermos a fera ou as criaturas noturnas.
ResponderExcluirCharlles, como escreves bem e como são significativos os teus textos. Penso que da última vez que conversamos a coisa não saiu lá muito nos eixos. Mas gostaria que soubesse como o admiro e como foste um dos maiores (se não o maior) influenciador das minhas leituras mais queridas, como Dostoiévski, Tolstói, Espinosa, Kafka, Baudelaire, Whitman e também influenciador de um dos meus favoritos antifilósofos e demolidores: F. Nietzsche. Compartilho com você a crença de que a literatura acaba sendo a maior fonte potente de vida que as páginas de um livro podem trazer. O Logos da literatura não tem um diapasão sistemático, bem como não há um Ethos confiscado. É a você que devo boa parte da minha virada como leitor, como amante de filosofia e literatura. Meu filósofo favorito, Wittgenstein, o peguei numa prateleira ao lembrar de uma resenha sua sobre um livro do Bernhard. Witt, o mesmo que demoliu os aforismas do seu Tractatus, primeiro livro, com seu póstumo Investigações Filosóficas e os Blue and Brown Books, criticando de forma ácida, até reproduzindo trechos do Tractatus só para refutá-los e trazer à tona a bela metáfora dos jogos de linguagem como pragmática, como significado no uso, como uma lógica de contornos imprecisos e não como reflexo do mundo na linguagem, como antes acreditava. Ele usa a metáfora da MEtrópole para falar da linguagem: Ruas e bairros planejados confrontados por vielas e ruas tranaversais construídas à esmo, casas antiquíssimas tombadas ao lado de prédios modernosos, muitas e diferentes vias que levam a um mesmo lugar, uma única via que leva a lugares diversos, muita matéria antiga e nova em conluio e tudo em permanente construção, corpus dialéticos, formas de vida. "Aprender uma língua é aprender uma técnica", ele diz, se referindo às palavras, enunciados, letras, gestos e tons de voz como ferramentas numa caixa com usos diversos, cada uso se referindo a um significado.. e que a mesma ferramenta, dependendo do contexto, pode ter usos (significafos) diversos. E num aforisma do mesmo livro diz que a língua é pragmática, mas tambem têm uma Graça. Charlles, espero que leia este comentário, responda com a eloquência que lhe é belamente característica e que voltemos a conversar.
ResponderExcluirAmigo Heitor, que bom ler essas suas palavras. Fiquei pensando muito em você, e ri várias vezes diante a graciosa leviandade de brigarmos por causa de Nietzsche. Ao mesmo tempo, que bom seria se as desavenças na minha vida cotidiana fossem todas dessa estirpe. Foi graças a você que conheci Amós Oz, o que se tornou um dos escritores que mais me ensinaram sobre a vida. E foi graças a você que voltei a me interessar por Nabokov. Creio que devemos ser leves e bem humorados, nós dois, em respeito à nossa diferença de idade. Essa diferença a mim sempre foi mais um clichê do que algo que merecesse preocupação com as palavras_ como dirigi-las, em assuntos espirituais, a alguém que está em outra faixa de exaltação, por exemplo_, mas vi que através da palavras escrita, que é nossa única ferramenta de comunicação, os significados tendem a soar mais sérios e exigentes de uma maior responsabilidade. Não há, absolutamente, nenhuma mágoa da minha parte_ como disse, nosso desentendimento foi por bobagem.
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