terça-feira, 25 de agosto de 2015

Chorando de rir aqui




Minha fãnzice pelo Laerte vem desde quando eu tinha 16 anos. Essa resposta dele é a coisa mais genial da imprensa nos últimos anos, de uma finesa, leveza e incisividade, e que dá em poucas linhas a devida mínima importância a quem pretensamente o atacou. Me matando de rir:

Sobre o Reinaldo Azevedo.
Acho que eu não devia dizer o que vou dizer, mas minha advogada opinou que não vai gerar ação na justiça. E minha analista deu força, pra botar pra fora senão somatiza e piora a situação das varizes.
Então lá vai – esse cara me dá um tesão desgraçado.
Não sei o que é – tá, ele não é um ogro -; se é o olhar decidido, o nariz, os lábios, não sei!
Nessas noites de frio que vem fazendo eu fico debaixo das cobertas e, como diria o Henfil, peco demais.
Vou acabar tendo que depilar a mão com cera espanhola.
Acho que eu tenho síndrome de Estocolmo platônica.

P.S.: lendo os comentários no post de réplica do cara a essas 9 linhas definitivas, a coisa fica ainda mais devastadoramente engraçada. Há gente lá que se pergunta do por quê o Laerte ter consultado uma advogada antes de redigir. O próprio retratado nessas linhas ressalta a consulta como um atestado de poder. Tasca-lhes, Laerte, o analfabetismo de interpretação textual nas caras, e aqui eu repito a pergunta do Sheldon, de The Big Bang Theory: Sarcasmo? Isso foi sarcasmo?

terça-feira, 18 de agosto de 2015

Uma notícia boa e uma estranha ausência


Uma boa notícia: a Nova Fronteira reeditou O homem sem qualidades, e pelo preço bem mais acessível de 79,90 reais (é exclusivo da Livraria Cultura). Um dos melhores livros do mundo. Eu comprei o meu por 125 reais, e na Estante Virtual, quando ele aparece, não sai por menos de 180 reais. Uma ausência estranha é por que ainda não foi publicado no Brasil Mestres Antigos, um dos melhores romances de Thomas Bernhard. O meu aí de cima tive que importar da Espanha.

A necessidade existencial do esconderijo infantil



Um dos meus terrores de sempre é a inexorabilidade da onipotência do Estado em destinar os jovens à guerra. Quando criança, eu tinha pesadelos terríveis com isso. Lembro-me claramente de um, em especial, em que minha mãe e eu fugíamos por um campo devastado, ela tentando me esconder em celeiros e em moitas, enquanto a fantasmagoria dos uniformizados de altas patentes olhava-nos de cima das nuvens, dotada também de onisciência. Bastava um movimento de mão da parte deles e eu era recolhido, tal qual uma fruta ou um besouro. Alguns filmes de guerra aumentava ainda mais meu horror, pois, apesar de mostrar o drama do aprisionamento dos jovens convocados à obrigação incontornável de morrer nos campos da guerra, eles faziam uma propaganda nem sempre apenas velada da importância de que o país tivesse essa reserva de corpos a serem tombados na solidão enfumaçada de uma geografia distante. Ou seja, o lado ideológico dos filmes, que eram as adstringências do escapismo importante para mim, afim de me consolar não estar sozinho no meu repúdio contra esses homicídios em massa, se mostrava parte do esquema; o exército me olhava, assustadoramente, através do tubo da televisão, como o Grande Irmão, disfarçado de amigo. Meu desespero nesse ponto era tão nítido, que minha mãe passou a saber, sem que eu precisasse dizê-lo, que toda forma de militarismo era algo inócuo para mim. Meus amigos da escola aventavam as possibilidades que supostamente existiam para escapar desse ofício. O que mais se falava era a recusa pela homossexualidade, em que a carteira de recrutamento militar viria com um carimbo rosa, e que a apresentação que se faria por toda a vida de tal documento evidenciaria essa mácula vergonhosa (estou falando dos anos 1980). Mas eu pensava com resguardado alívio nessa bênção oferecida: sem a menor dúvida, eu sabia que se não houvesse mais nenhum outro recurso, eu assumiria uma homossexualidade inventada diante as mesas de seleção regimentares. Eu era um rapagão magérrimo, com um pomo de adão gigantesco, com alta estatura, uma cara de alienação intragável para os olhos da Onipresença, e uma profusão farta de cabelos que atiçariam ainda mais o sadismo da Onipresença, que na certa gostaria de degustar a sensação da máquina o transformando na planificadora careca militar. Ou seja, eu infelizmente tinha todos os requisitos para uma convocação. Um ano perdido na vida, uma ano de sofrimento, em que eu seria posse irrestrita do Estado. Um ano em que poderia estourar uma guerra, ou uma dessas parcerias obscuras do país com guerras de outros continentes, e eu também estaria prestes a tombar na solidão enfumaçada de geografias distantes. Eu ensaiava em meu quarto, me pondo nu diante o espelho (como me contavam que deveria se estar na frente Deles), a hora descomunal em que teria que vencer minha timidez absoluta e o preconceito severamente salvaguardador da masculinidade, e dizer num fiapo de voz que logo se transformaria em uma arrogância em brados, que eu era gay. Imaginava um tapa na cara, um chute no estômago, mas a cena de minha saída definitiva pelos portões daquele lugar compensava tudo.

Consegui minha dispensa sem precisar recorrer a esse artifício. Me alistei em uma cidadezinha do interior, e fui dispensado por "excesso de contingentes". Na verdade Eles não me viram; um tio, dono de cartório, levou meus documentos e Eles me recusaram. Anos mais tarde, li em Matadouro 5, a literariedade da afirmação de que todos os soldados da segunda guerra eram praticamente crianças. Jovens de 18 anos com olhares de criança, assombros de criança, inconsequências de criança, fascínio pela morte desconhecida de criança. Depois dessa revelação, as fotos dos combatentes me fazem estacar com aquele perigo anacrônico que traz a mesma atração paradoxal da pessoa que tem pavor de altura em olhar da janela do 15º andar. Eu poderia ter estado ali, eu penso, se tivesse nascido meio século atrás. As fotos não negam: eram crianças. Um capítulo de Matadouro é explícito demais nisso: o exército suicida de crianças. Um suicídio de montantes de crianças jogadas de uma nação para sobre a outra, num tétrico simbolismo de que ali se conflagra o patriotismo e o amor pelo Estado. Minha lucidez em perceber sem qualquer eufemismo a gratuidade estúpida disso me fez ser para sempre um apátrida, um cara que nunca aceitou pertencer a um país. Era uma coragem covarde, de alguém que fora poupado; uma coragem dessas de quem joga uma pedra na vidraça em uma tarde de rua despovoada e sai correndo. Mas meu repúdio pelas ideias de pátria sempre foi enorme; talvez por isso, nenhum amor esportivo tenha se frutificado em mim. A profundidade de minha intuição do Terror era tanta, que de uma forma incômoda, os rebanhos uniformizados nas zonas de torcida tiveram similitude imediata com os rebanhos sacrificados nas geografias distantes. O mesmo amor, bastava torcer delicadamente a lente para o lado certo para haver a transformação.

Ser pai tem enormes felicidades, mas o Terror daquela época ameaça renascer em nome dos filhos. Em minha infância, eu contornava com minhas tentativas de entendimento essa colossal superfície do Poder. Eu sabia: há um limite em que toda a nossa impressão de liberdade e independência, e mesmo nossa enganosa certeza de que os pensamentos e nossos corpos nos pertencem, em que tudo isso tomba por terra diante a invocação de que o Estado é nosso dono. Podemos brincar com nossos penduricalhos democráticos, ir e vir em crença de segurança, mas há um lugar no fundo desse corredor que, se os eventos do dia requererem, se o interesse da história protocolar o pedido, a mão do Estado nos recolhe e corta toda essa ilusão. Tenho impressão de que esta verdade é o Terror genuíno, é a matéria pura que compõe o Medo pleno. Isso que está por detrás do esconderijo infantil: debaixo da cama, dentro do armário, no casebre abandonado achado na mata, as horas que se passa neste refúgios é o lenitivo em que se alimenta a sensação em negativo de que ali pode se esconder nossas almas, mas não nossos corpos. Nossas almas veem com apreensivo exercício estoico o momento hipotético ou não em que o cumprimento do contrato social vem arrebatar nossos corpos. Um arrebatamento cárneo, para Eles nada importa as almas. As almas ficam ali nos escombros, na sujidade secular das paredes, no criptograma pessoal que a atenção em surdina desenhou na poeira do ar e na tecelagem das aranhas. Kafka pode ser lido como reflexo desse Terror, é a melhor leitura que se pode fazer dele. O Estado onipotente por detrás da inescapabilidade e a eterna não solvência do indivíduo em alguma inexistência de ternura pela alma. Li o inseto Gregor Samsa sob esta ótica, talvez o mais terrível texto de Kafka por mostrar a alma destituída de corpo, investida no assombro da geometria metastática da repugnância de sua nudez em que lhe foi retirado o corpo, o corpo confiscado por ofícios irrespondíveis, e cujo mais medonho é a indiferença da família que está do outro lado da porta, que segue em seus cotidianos comezinhos, com a consciência não vasculhada por gerações de que o confisco é o sacrifício por direito que o Grande Baal exige. Não foi dado a Gregor Samsa o direito da vergonha do carimbo rosa, assim como as irmãs de Kafka tiveram seus corpos jogados nas valas coletivas de Auschwitz. Kafka viu o fundo do corredor, viu a forma perpétua do desmistificamento do patriotismo e do ufanismo, viu o sacrifício antropológico se repetir ad aeternum das cabeças rolando pelo alto das pirâmides maias e pelo alto do século técnico e espiritualmente considerado mais avançado da história. Claudio Magris escreveu páginas de beleza tocante em Danúbio, descrevendo o último esconderijo infantil de Kafka em um quarto de um sanatório em Viena, diante a janela por onde se vê um minúsculo jardim. Ali o grande visionário, o que em uma espécie com esperanças seria lido como o mais urgente dos avisos, abrigou dos terrores da Onipresença os últimos momentos de sua alma.

Toda a obra de Günter Grass é, em última instância, a invocação da necessidade existencial do esconderijo infantil. Aliás, essa frase a Grass pertence, e está em Um campo vasto. Em certo livro, Grass diz que seus professores ginasiais reconheciam seu talento para a escrita, ainda que, no começo, ele diz, ele imitasse muito Kafka. A obra de Grass é um prolongamento de Kafka, e possui a mesma cosmovisão do terror do Estado. E coloca a infância como a força simbólica e única arma impossível para ao menos enxergar os contornos desse horror. Assim, em O tambor, o herói se recusa a crescer, parando na idade de três anos, pois não quer ser engolfado pelos horrores que ele vê estar pela frente e que serão perpetrados pela Onisciência. Em Gato e rato, o mais impactante e belo libelo contra a convocação militar de crianças para a guerra, o herói acha como único meio de escapar, seu último refúgio em um navio submerso. Em Um campo vasto, um romance que será no futuro visto como um ponto alto na produção literária do século passado, o herói encontra refúgio em uma mistura de realidade e fantasia em que o ciclo da história se lhe transforma em uma paródia amarga. As crianças de Grass são grotescamente livres, não formadas, abrutalhadas. As crianças de O tambor fazem o herói tomar sopa de mijo. As crianças de Gato e rato, mascam fezes de gaivota e se masturbam apenas pelo ato dessexualizado de combater o tédio. As crianças de Grass são evidentes almas não convertidas, com poderes sensoriais sensíveis e frágeis em demasia, e que o horror virá para arrebatar seus corpos e mutilar suas almas com uma violência absoluta.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Situações



Por que estou imune aos recorrentes temas sobre a situação brasileira? Deixei disso, deixei de me interessar. Foi uma desistência tão sincera e inerradicável, que a avalizei ao detectar uma profunda tranquilidade em mim. Sobre o Brasil, tenho a lucidez de saber que talvez nunca vire o milionário em cujos meus planos me permitiria me deportar daqui para outro país. Assim, me abstive por questões estomacais de assistir telejornais e de dar a costumeira passadinha de olhos pelas manchetes cibernéticas. Tenho lá meus furores teatrais, meus complexos de vira-lata, mas não passa da conhecida sensação de cócegas do membro já amputado. Não há jeito; não há como fazer. Percebi que tal preocupação, de tão ingênua, pode causar um dano físico concreto. Vou dar apenas dois exemplos, rápidos e práticos, do por que não me preocupo mais e sigo vivendo minha vida singela sem dramalhões colossais.

Primeiro: na cidade em que moro, considero uma felicidade ter três amigos tão fanáticos por livros quanto eu. Quando eu ainda era abalável o suficiente pelo panorama, eles me salvaram de tédios profundos, aparecendo como por milagre ao final do dia para um daqueles momentos que me davam a certeza de estar "realmente tendo uma conversa fenomenal". Um deles, o Emerson, chega a ler bem mais do que eu. Ele parece mais um reciclador automático de livros do que propriamente um leitor. Basta dizer o título de um livro, que ele aciona sua voracidade efetiva, e lá vai ele engolir o tal livro. Assim se deu com coisas que eu jamais vou ler, como O ser e o nada, os livros do Dan Brown, ou cinco livros tomados emprestados da bibliografia de Freud, que ele os meteu para dentro com uma abnegação pelo sacrifício tão pura que parecia ser mesmo apenas uma questão de movimento pavloviano dos olhos. Pois este amigo é um professor concursado do serviço estadual de ensino na minha cidade. É um tipo folclórico, cabelos grisalhos rebelados circundando uma tonsura, barbas longas no mesmo feitio, olhos azuis minúsculos, e o costume sedimentado de usar somente bermudas e camisetas, estas últimas a maioria produzida por ele com estampas de aforismos literários que ele vai colhendo no meio de seu jardim de leituras estoicas. Ele usa bermudas para trabalhar, e é folclórica também a foto gigante grudada na parede de sua sala em que sua esposa aparece radiante de felicidade em seu vestido cerimonial de noiva, com buquê nas mãos enluvadas, ao lado de um Emerson com paletó e a bermuda corriqueira da qual não abriu mão nem no casamento.

Imagina-se o nível de pensamento crítico que um professor assim provoca em seus alunos, ou na parte minúscula deles desperta na sala de aula. Emerson é um típico professor engajado brasileiro. Uma personagem busterkeatoniano. Um Quixote. Ou, em menor grau pejorativo, um desses professores ranhetas que lotam a cenário nacional com sua estampa clichezística de devoto da esquerda e antigo leitor dos Cadernos do terceiro mundo. Independente de qual dessas facetas o enquadre, o certo é que se trata de um tipo perturbador, o que, casado à sua obsessão pelo trabalho, vem dilapidando a sua saúde ao longo dos anos. Direto vejo ele, em pleno domingo e feriado, preparando aulas, fazendo downloads de documentários didáticos, usando seu estômago forte de leitor multitudinário para digerir intragáveis livros sobre pedagogia moderna. Daí que ele teve dois princípios de enfarte, e teve que se correr às pressas com ele para a capital. Até então, ele fazia por relevar seu quadro depressivo medicado por tarja preta, pois lhe configurava certo charme dissidente. Mas agora, com o coração negando fogo, ele sentiu aquele gosto laminar na boca que parece vir da faca que lhe cortou todo eufemismo de permanência. Assim, finalmente seguiu os conselhos dados por nós seus amigos, e relaxou. Abriu mão da tarefa além da vida de salvar os jovens brasileiros da bestialidade e da alienação. Só faz o necessário.

Pois bem, e o que fez o Grande Sarcasmo Nacional com ele? Preparou uma retalhação genial, destruidora, desses atos majestosos da tragédia em que nada sobra de pé. Escombros. Esse paisinho sem graça e previsível inventou de lhe retirar as raízes que o sustentavam em seu desesperado ato de sobrevivência. Não bastasse o coitado sofrer do coração às custas do absurdo cotidiano, o paisinho quer-lhe agora o fígado inteiro. Ele me contou, os olhos azuis ainda mais afundados: a partir de janeiro do ano que vem, o colégio onde dá aula será militarizado. Em cada cidade do estado, um colégio será entregue aos militares. Daqui, pois, quatro rápidos meses. Ele terá que fazer a barba, vestir-se de calças compridas e tudo o mais que lhe mandarem fazer. Talvez bater continência, e envergar seu vasto conteúdo intelectual diante algum coronel cujos horizontes costumeiros não vão além dos mesmos muros e mesmos escritórios de ofícios marciais expedidos. Um coronel que ganha, deixa eu fazer aqui as contas, seis vezes e meia mais do que ele. Ou prestar a mesma prostração regimental diante um tenente que ganha três vezes mais, ou diante um soldado que ganha quase duas vezes mais do que ele. Todos esses ganham mais e trabalham bem menos. Todos esses são acobertados por lei para se aposentarem com 25 anos de carreira, enquanto meu amigo Emerson, que purga a mais insalubre das profissões, terá que passar por aquela conta sarcasticamente mirabolante da Rainha de Copas de somar 95 anos para se aposentar. Já insinuaram os segredos que devem ser preservados na caserna-escola, as partes dos livros que devem ser recondicionadas, mutiladas ou reescritas de maneira angularmente reversa. Ele imagina, se é que consegue, os alunos marchando no pátio, a burocracia anacrônica opressiva que irá se instaurar em um meio tão inócuo a ela, e que irá recair em cima de professores que, como ele, que estão a mais de dez anos na profissão, me parece de uma verdadeira violência. Isso será um evento único na história recente de um país ocidental democrático, um dos ineditismos servidos a escusos interesses individuais de alguns escolhidos para o enriquecimento descomunal que acontece nesse paisinho, sempre às custas do interesse público e da mínima lógica funcional. E o povo... o povo faz a sua parte... aplaude, tece loas, se arrebanha com a boca de caninos sedentos nas pre-filas para a matrícula de seus filhos que passarão por uma seleção meticulosa de admissão... o povo se compraz a ser apenas o povo de paisinho falido, fingindo que não sabe quem são os felizardos que aumentarão ainda mais suas riquezas com contratos de sistemas de ensino inventados às pressas para se inserir no esquema todo.

Segundo: um dos humores da minha vida é sempre me prestar a metáforas vivas, iridescentes, espraiadas na generosidade simbólica do meu cotidiano. Querem saber a nova sobre os representantes das mentalidades nacionais? Com vocês, os personagens dessa comédia: o intelectual inexpressivo, os playboys filhos de papai, a força policial mancomunada, e o povo... ahhh, o povinho boçal e sem representatividade...

Comecemos. A casa que faz divisa com o muro detrás da minha casa está desocupada faz anos. Serve, apenas, para festas retumbantes, com som automotivo e gritos dos jovens filhinhos de papai que voltam de suas faculdades na capital para curtirem finais de semana e feriados prolongados. Me informei: são os filhos de comerciantes locais, de dentista (o mesmo que me fez duas restaurações nos molares), de médico e não sei mais quem. Os caras usam a casa como se não houvesse amanhã, ou como se estivessem em uma ilha sem ninguém por perto. Como moro em um paisinho bem típico, sabendo da necessidade de se engolir sapos para poder aumentar o número de dias em sua calculadora etária, o que é salutar de se fazer no país ocidental mais violento do mundo, nas primeiras festas eu relevei. Mesmo impossibilitando sono de minha esposa grávida, e o meu, nós relevamos. Se tivesse acordado minha filha Júlia, lá vai, mas a Júlia não se incomodou nem um pouco com isso. Mas eu chamei a polícia várias vezes, e os boyzinhos, nossa classe intelectual por direito nominal configurado, visto que são todos universitários das faculdades de direito e medicina e odontologia, futuros juízes e senhores de nossos destinos e de nossas vidas, foram informados pela polícia que o reclamante era o vizinho do muro de trás. Daí começou a provocação. Janelas batendo às sete da manhã. Latas de cerveja atiradas na frente de casa. Uma vez uma sacola de lixo aparecendo no meu quintal. Eu filmei tudo. Produzi umas duas horas pormenorizadas de documentário sobre tudo. E fiz uma denúncia na delegacia. 

Coloquei a minha vizinha da direita, que reclamou vorazmente da balbúrdia para mim, e outro vizinho, como testemunhas. O que aconteceu? Quando chamados pela delegada, afirmaram que não ouviam nada porque, 1, tomavam corticoides que os apagavam, 2, que ouviam assim assim certo ruído, mas que isso não lhes incomodavam em nada. Não incomodavam, sendo que as vidraças da janela chegam a tremer. A delegada é a mesma da qual paguei três colchões de multa para a Santa Casa por tê-la "desacatado" por certa vez exercer meu papel de crítico em dizer que ela era negligente com seu trabalho. Não tem ela, pois, razão para gostar de mim. Mas as evidentes tentativas para descaracterizar o crime, partindo dela, não tinha só a ver com sua antipatia retaliativa por mim, mas porque o dono da tal casa foi funcionário comissionado da delegacia por dois anos, e este levava a delegada mais seus dois cãezinhos para consultas em clínicas veterinárias na capital, utilizando a viatura nas viagens. Os policiais só falaram a verdade nos depoimentos, porque eu fiz questão de ser taxativo em dizer que os havia filmado duas vezes em que foram acionados comparecendo à frente da casa e pedindo com excessiva polidez para que os filhos dos ditos poderosos "abaixassem um pouco o volume". É de gelar o sangue diante a potência metafórica sobre a fervilhante corrupção pátria ver todos esses elementos reunidos.

Me faz lembrar um conto de Chécov, em que um senhor chama a empregada de sua casa e passa a violentá-la com palavras, a insultando, a acusando de crimes imaginários, até fazê-la chorar descontroladamente, para então sorrir e confessar que tudo não passava de brincadeira de sua parte. A serviçal sai aliviada e feliz do quarto do amo, e esse conclui: "Meu Deus, é por isso que esse país está atolado na lama, com um povo assim."

E depois querem que eu leve a sério o que aconteceu neste dia 16 de agosto?

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Close Cover


Para quem viu o encantadoramente artesanal documentário de Marcelo Masagão, Nós que aqui estamos por vós esperamos, a trilha sonora se encontra neste álbum. Mertens é um músico belga que tem em sua discografia mais de 50 álbuns, que se destacam pela sensibilidade, experimentalismo e delicadeza de uma obra boa parte centrada em uma brilhante expressão minimalista. A história da união improvável entre Masagão e Mertens é a história de um cineasta brasileiro fã de um músico belga, que lhe escreve pedindo permissão de uso de suas músicas, e que recebe uma generosa concessão que irá render a composição exclusiva para mais um outro filme. Difícil não ficar tocado pela beleza de músicas desta seleção, como Close cover, Humility, Often a bird, Iris, The scene.