terça-feira, 18 de agosto de 2015

A necessidade existencial do esconderijo infantil



Um dos meus terrores de sempre é a inexorabilidade da onipotência do Estado em destinar os jovens à guerra. Quando criança, eu tinha pesadelos terríveis com isso. Lembro-me claramente de um, em especial, em que minha mãe e eu fugíamos por um campo devastado, ela tentando me esconder em celeiros e em moitas, enquanto a fantasmagoria dos uniformizados de altas patentes olhava-nos de cima das nuvens, dotada também de onisciência. Bastava um movimento de mão da parte deles e eu era recolhido, tal qual uma fruta ou um besouro. Alguns filmes de guerra aumentava ainda mais meu horror, pois, apesar de mostrar o drama do aprisionamento dos jovens convocados à obrigação incontornável de morrer nos campos da guerra, eles faziam uma propaganda nem sempre apenas velada da importância de que o país tivesse essa reserva de corpos a serem tombados na solidão enfumaçada de uma geografia distante. Ou seja, o lado ideológico dos filmes, que eram as adstringências do escapismo importante para mim, afim de me consolar não estar sozinho no meu repúdio contra esses homicídios em massa, se mostrava parte do esquema; o exército me olhava, assustadoramente, através do tubo da televisão, como o Grande Irmão, disfarçado de amigo. Meu desespero nesse ponto era tão nítido, que minha mãe passou a saber, sem que eu precisasse dizê-lo, que toda forma de militarismo era algo inócuo para mim. Meus amigos da escola aventavam as possibilidades que supostamente existiam para escapar desse ofício. O que mais se falava era a recusa pela homossexualidade, em que a carteira de recrutamento militar viria com um carimbo rosa, e que a apresentação que se faria por toda a vida de tal documento evidenciaria essa mácula vergonhosa (estou falando dos anos 1980). Mas eu pensava com resguardado alívio nessa bênção oferecida: sem a menor dúvida, eu sabia que se não houvesse mais nenhum outro recurso, eu assumiria uma homossexualidade inventada diante as mesas de seleção regimentares. Eu era um rapagão magérrimo, com um pomo de adão gigantesco, com alta estatura, uma cara de alienação intragável para os olhos da Onipresença, e uma profusão farta de cabelos que atiçariam ainda mais o sadismo da Onipresença, que na certa gostaria de degustar a sensação da máquina o transformando na planificadora careca militar. Ou seja, eu infelizmente tinha todos os requisitos para uma convocação. Um ano perdido na vida, uma ano de sofrimento, em que eu seria posse irrestrita do Estado. Um ano em que poderia estourar uma guerra, ou uma dessas parcerias obscuras do país com guerras de outros continentes, e eu também estaria prestes a tombar na solidão enfumaçada de geografias distantes. Eu ensaiava em meu quarto, me pondo nu diante o espelho (como me contavam que deveria se estar na frente Deles), a hora descomunal em que teria que vencer minha timidez absoluta e o preconceito severamente salvaguardador da masculinidade, e dizer num fiapo de voz que logo se transformaria em uma arrogância em brados, que eu era gay. Imaginava um tapa na cara, um chute no estômago, mas a cena de minha saída definitiva pelos portões daquele lugar compensava tudo.

Consegui minha dispensa sem precisar recorrer a esse artifício. Me alistei em uma cidadezinha do interior, e fui dispensado por "excesso de contingentes". Na verdade Eles não me viram; um tio, dono de cartório, levou meus documentos e Eles me recusaram. Anos mais tarde, li em Matadouro 5, a literariedade da afirmação de que todos os soldados da segunda guerra eram praticamente crianças. Jovens de 18 anos com olhares de criança, assombros de criança, inconsequências de criança, fascínio pela morte desconhecida de criança. Depois dessa revelação, as fotos dos combatentes me fazem estacar com aquele perigo anacrônico que traz a mesma atração paradoxal da pessoa que tem pavor de altura em olhar da janela do 15º andar. Eu poderia ter estado ali, eu penso, se tivesse nascido meio século atrás. As fotos não negam: eram crianças. Um capítulo de Matadouro é explícito demais nisso: o exército suicida de crianças. Um suicídio de montantes de crianças jogadas de uma nação para sobre a outra, num tétrico simbolismo de que ali se conflagra o patriotismo e o amor pelo Estado. Minha lucidez em perceber sem qualquer eufemismo a gratuidade estúpida disso me fez ser para sempre um apátrida, um cara que nunca aceitou pertencer a um país. Era uma coragem covarde, de alguém que fora poupado; uma coragem dessas de quem joga uma pedra na vidraça em uma tarde de rua despovoada e sai correndo. Mas meu repúdio pelas ideias de pátria sempre foi enorme; talvez por isso, nenhum amor esportivo tenha se frutificado em mim. A profundidade de minha intuição do Terror era tanta, que de uma forma incômoda, os rebanhos uniformizados nas zonas de torcida tiveram similitude imediata com os rebanhos sacrificados nas geografias distantes. O mesmo amor, bastava torcer delicadamente a lente para o lado certo para haver a transformação.

Ser pai tem enormes felicidades, mas o Terror daquela época ameaça renascer em nome dos filhos. Em minha infância, eu contornava com minhas tentativas de entendimento essa colossal superfície do Poder. Eu sabia: há um limite em que toda a nossa impressão de liberdade e independência, e mesmo nossa enganosa certeza de que os pensamentos e nossos corpos nos pertencem, em que tudo isso tomba por terra diante a invocação de que o Estado é nosso dono. Podemos brincar com nossos penduricalhos democráticos, ir e vir em crença de segurança, mas há um lugar no fundo desse corredor que, se os eventos do dia requererem, se o interesse da história protocolar o pedido, a mão do Estado nos recolhe e corta toda essa ilusão. Tenho impressão de que esta verdade é o Terror genuíno, é a matéria pura que compõe o Medo pleno. Isso que está por detrás do esconderijo infantil: debaixo da cama, dentro do armário, no casebre abandonado achado na mata, as horas que se passa neste refúgios é o lenitivo em que se alimenta a sensação em negativo de que ali pode se esconder nossas almas, mas não nossos corpos. Nossas almas veem com apreensivo exercício estoico o momento hipotético ou não em que o cumprimento do contrato social vem arrebatar nossos corpos. Um arrebatamento cárneo, para Eles nada importa as almas. As almas ficam ali nos escombros, na sujidade secular das paredes, no criptograma pessoal que a atenção em surdina desenhou na poeira do ar e na tecelagem das aranhas. Kafka pode ser lido como reflexo desse Terror, é a melhor leitura que se pode fazer dele. O Estado onipotente por detrás da inescapabilidade e a eterna não solvência do indivíduo em alguma inexistência de ternura pela alma. Li o inseto Gregor Samsa sob esta ótica, talvez o mais terrível texto de Kafka por mostrar a alma destituída de corpo, investida no assombro da geometria metastática da repugnância de sua nudez em que lhe foi retirado o corpo, o corpo confiscado por ofícios irrespondíveis, e cujo mais medonho é a indiferença da família que está do outro lado da porta, que segue em seus cotidianos comezinhos, com a consciência não vasculhada por gerações de que o confisco é o sacrifício por direito que o Grande Baal exige. Não foi dado a Gregor Samsa o direito da vergonha do carimbo rosa, assim como as irmãs de Kafka tiveram seus corpos jogados nas valas coletivas de Auschwitz. Kafka viu o fundo do corredor, viu a forma perpétua do desmistificamento do patriotismo e do ufanismo, viu o sacrifício antropológico se repetir ad aeternum das cabeças rolando pelo alto das pirâmides maias e pelo alto do século técnico e espiritualmente considerado mais avançado da história. Claudio Magris escreveu páginas de beleza tocante em Danúbio, descrevendo o último esconderijo infantil de Kafka em um quarto de um sanatório em Viena, diante a janela por onde se vê um minúsculo jardim. Ali o grande visionário, o que em uma espécie com esperanças seria lido como o mais urgente dos avisos, abrigou dos terrores da Onipresença os últimos momentos de sua alma.

Toda a obra de Günter Grass é, em última instância, a invocação da necessidade existencial do esconderijo infantil. Aliás, essa frase a Grass pertence, e está em Um campo vasto. Em certo livro, Grass diz que seus professores ginasiais reconheciam seu talento para a escrita, ainda que, no começo, ele diz, ele imitasse muito Kafka. A obra de Grass é um prolongamento de Kafka, e possui a mesma cosmovisão do terror do Estado. E coloca a infância como a força simbólica e única arma impossível para ao menos enxergar os contornos desse horror. Assim, em O tambor, o herói se recusa a crescer, parando na idade de três anos, pois não quer ser engolfado pelos horrores que ele vê estar pela frente e que serão perpetrados pela Onisciência. Em Gato e rato, o mais impactante e belo libelo contra a convocação militar de crianças para a guerra, o herói acha como único meio de escapar, seu último refúgio em um navio submerso. Em Um campo vasto, um romance que será no futuro visto como um ponto alto na produção literária do século passado, o herói encontra refúgio em uma mistura de realidade e fantasia em que o ciclo da história se lhe transforma em uma paródia amarga. As crianças de Grass são grotescamente livres, não formadas, abrutalhadas. As crianças de O tambor fazem o herói tomar sopa de mijo. As crianças de Gato e rato, mascam fezes de gaivota e se masturbam apenas pelo ato dessexualizado de combater o tédio. As crianças de Grass são evidentes almas não convertidas, com poderes sensoriais sensíveis e frágeis em demasia, e que o horror virá para arrebatar seus corpos e mutilar suas almas com uma violência absoluta.

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