segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sem Palavras



Gracias à Caminhante, que me passou esse site:

http://youpix.com.br/viral-2/estudante-processa-o-facebook-por-guardar-suas-informacoes/


Falando Russo

Chegou-me hoje Guerra e Paz, traduzido por Rubens Figueiredo e publicado pela Cosacnaify. Volumes belíssimos, cuja tiragem extravagante para os números da Cosac (7.ooo exemplares) revela o ensejo de repetir o que foi feito em efeitos de boa promoção mercadológica com a primeira tradução de Crime e Castigo do russo, pela Editora 34. Letras grandes, dois charmosos fios de seda em cinza e azul escuro como marcadores de página, capas de material aveludado, estudo introdutório (ainda que bastante resumido), painéis históricos e de ajuntamento didático para que o leitor não se perca com os inúmeros personagens que trafegam pelas 2.536 páginas, mapas e uma série de outros mimos. Vai vender. Vai entrar para a lista de best-sellers de revistas como a Cult e a Bravo.

Mas a chegada desses livros me fez meio que esclarecer e arrefecer uma dúvida que tenho há décadas. Li Guerra e Paz pela editora portuguesa Europa-América, lá se vão uns 15 anos. Mas não há a mínima referência se a tradução, assinada pelo enigmático casal de tradutores lusitanos Isabel da Nóbrega e João Gaspar Simões, foi feita diretamente do russo. Daí justo hoje, que resgatei essa edição das prateleiras da minha biblioteca, me veio à ideia as possibilidades de sanar tal dúvida através do Google. (Um desses insights desarroadamente tardios que me mostra o quanto a tecnologia me deixa ciente da minha latente obsolescência, do quanto passam-se os anos.) Eis que digito os nomes da dupla e me surge uma revelação: Isabel da Nóbrega não só foi a primeira mulher de José Saramago, como está no centro de uma história da biografia negada do nobel português. Saramago dedicou toda a sua produção literária entre 1968 a 1986 a Isabel, o período de tempo em que durou o consorciado entre eles, para depois apagar por completo seu nome e substituir pelo de Pilar del Río. E Isabel, pelo que consta, foi a responsável por abrir as portas da elite cultural portuguesa para o autor de Caim. Mais detalhes no seguinte endereço:

http://www1.ionline.pt/conteudo/66408-a-mulher-que-saramago-tentou-apagar

Mas, ainda assim, nada foi esclarecido sobre se a propalada estatura intelectual da Isabel desprezada e apagada do passado de Saramago, comportava a proficiência no idioma russo.

sábado, 26 de novembro de 2011

Uma Página Memorável de Garcia Márquez

Crônica de Uma Morte Anunciada não é um dos meus romances preferidos de Garcia Márquez. Mas essa única página, que trata das cartas que a esposa desonrada devolvida à família enviava durante meia vida ao esposo o qual a abandonara, sempre me emociona. Uma das mais belas passagens da literatura do nosso continente. (Tradução de Remy Gorga Filho.)



Bastava fechar os olhos para vê-lo, ouvía-o respirar no mar, acordava-a a meio da noite o calor do seu corpo na cama. Em fins dessa semana, sem ter conseguido ter um minuto de sossego, escreveu-lhe a primeira carta. Foi uma missiva convencional, onde lhe contava que o vira sair do hotel, e que teria gostado que ele a visse. Esperou em vão uma resposta. Ao fim de dois meses, cansada de esperar,mandou-lhe outra carta no mesmo estilo enviesado da anterior, cuja única intenção parecia ser a de censurar-lhe a falta de cortesia. Seis meses depois tinha escrito seis cartas sem resposta, mas conformou-se com a prova de que ele estava a recebê-las.

Dona pela primeira vez do seu destino, Angela Vicario descobriu então que o ódio e o amor são paixões recíprocas. Quantas mais cartas mandava, mais atiçava as brasas da sua febre, mas também mais aquecia o rancor feliz que sentia contra a mãe. "Revolviam-se-me as tripas só de a ver", disse-me, "mas não a podia ver sem me lembrar dele." A sua vida de casada devolvida continuava a ser tão simples como a de solteira, sempre a bordar à máquina com as amigas, como antes fazia tulipas de pano e pássaros de papel, mas quando a mãe ia deitar-se, ela ficava no quarto a escrever cartas sem futuro até quase de manhã. Tornou-se lúcida, imperiosa, senhora da sua vontade, e voltou a ser virgem só para ele, e não reconheceu outra autoridade senão a sua, nem mais servidão que a da sua obsessão.

Escreveu uma carta todas as semanas durante meia vida. "Às vezes não me lembrava que dizer", disse-me morta de riso, "mas bastava-me saber que ele as recebia." A princípio foram cartões de cerimônia, depois foram pequenos papéis de amante furtiva, bilhetes perfumados de noiva fugaz, memoriais de negócios, documentos de amor, e por último foram as cartas indignas de uma esposa abandonada que inventava doenças cruéis para obrigá-lo a voltar. Uma noite de bom humor entornou-se-lhe o tinteiro por cima da carta acabada de escrever, e em vez de rasgá-la acrescentou um post-scriptum: "Como prova do meu amor mando-te as minhas lágrimas." De quando em vez, cansada de chorar, zombava da sua própria loucura. Seis vezes foi substituída a funcionária dos correios, e seis vezes ganhou a sua cumplicidade. Só não lhe passou pela cabeça uma coisa: renunciar. E, no entanto, ele parecia insensível ao seu delírio: era como se escrevesse para ninguém.

Uma madrugada de ventos, pelo ano décimo, acordou-a do sono a certeza de que ele estava nu na sua cama. Escreveu-lhe então uma carta febril de vinte folhas, na qual soltou sem pudor as verdades amargas que trazia apodrecidas no coração desde a noite funesta. Falou-lhe das cicatrizes eternas que ele deixara no seu corpo, do sal da sua língua, do rastilho de fogo da sua verga africana. Entregou-a à funcionária dos correios, que ia à sexta-feira à tarde bordar com ela para levar-lhe as cartas, e convenceu-se de que aquele desabafo final seria o derradeiro da sua agonia. A partir de então já não tinha consciência do que escrevia, nem sabia de ciência certa quem escrevia, mas continuou a escrever sem tréguas durante dezessete anos.

Num meio-dia de Agosto, estava ela a bordar com as amigas, sentiu que alguém chegava à porta. Não precisou de olhar para saber quem era. "Estava gordo e começava a cair-lhe o cabelo, e já usava óculos para ver ao perto", disse-me. "Mas era ele, gaita, era ele!" Assustou-se, porque sabia que a via tão decaída como ela o via, e não acreditava que tivesse dentro de si tanto amor como ela tinha para suportar isso. Vestia uma camisa empapada em suor, como quando o vira pela primeira vez, e trazia a mesma correia e os mesmos alforjes de couro cru com enfeites de prata. Bayardo San Román deu um passo em frente, sem ligar às outras bordadeiras atônitas, e pousou os alforjes sobre a máquina de costura.

- Ora bem - disse -, aqui estou eu.

Trazia a mala da roupa para ficar, e outra mala igual com quase duas mil cartas que ela lhe escrevera. Estavam arrumadas por datas, em maços atados com fitas às cores, e todas por abrir.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A Péssima Trilha Sonora de Nossa Angústia Adolescente


Um amigo afirma que chegou à literatura através do rock nacional. Já ficamos entardeceres tratando disso, tanto de como cada qual fora convidado gentilmente a entrar no reino da leitura, como sobre a qualidade do rock nacional. A banda gaúcha Engenheiros do Hawaii e a banda candanga Legião Urbana o introduziram em obras de contextos tão díspares quanto a de Thomas Mann e John Fante. Esse amigo, nota-se, tem essa porta de entrada como uma das mais emocionalmente efetivas para o gosto da leitura, e sua profissão de professor de adolescentes o faz ver como um apostolado passar essa graça adiante para seus alunos. Ajuda-o muito seu talento natural para o teatro e a excentricidade. Como todo apaixonado pelas descobertas do intelecto engajado, já me convidou algumas vezes a assistir a suas exibições coletivas. Numa delas, cantou na íntegra uma canção de 11 minutos intitulada Metal Contra as Nuvens, do quinto álbum da Legião. Em outra, forrou as paredes de uma das salas do colégio com espelhos de variados tamanhos, distribuiu caixas de som pelos cantos, e, à medida que os alunos eram convidados a entrarem, ouvia-se músicas dos Engenheiros. Tenho a obrigação de ser demasiado sincero com meus amigos, de forma que vi como uma enorme felicidade que apenas uma vez ele tenha me perguntado sobre o que eu achava dessas performances. Ainda procurei amortecer as palavras o máximo possível, assim, meu veredicto foi o de que sempre achei o rock nacional medíocre quando não se consegue ter a lucidez de parar de escutá-lo após os 20 anos de idade. (Esse meu amigo também é um exímio gozador e nada é mais avesso a ele que a iconização, daí suportarmos sem sensibilidades as visões opostas um do outro.)

Atualmente esse amigo se empenha em comprar um dos ouros de tolo da editora Abril: o catálogo completo dos álbuns oficiais da Legião Urbana, com capas duras e preços acessíveis (mas sem a única coisa que seria realmente indispensável, que é uma nova remasterização). Assim, ir à casa dele conversar é ter que suportar horas de relembramentos do imaginário adolescente dos anos 80, com Será, Eduardo e Mônica, Faroeste Caboclo, Há Tempos, como trilha sonora de fundo; toda aquela depressão distintiva de excluídos da classe média, aqueles quartos escuros e festinhas de becos onde não se pegava nenhuma garota, aquelas voltas para casa em madrugadas solitárias; e, sobretudo, a visão forçada, através de retalhos mal digeridos de poesia de segunda categoria, de um mundo onde o antagonismo da dominação de adultos perversos nos diminuía ainda mais em nosso paroxismo imóvel de adolescentes inadaptáveis, cujo único escape lógico era o suicídio, mesmo que simbólico. Quando ele se levanta para substituir o àlbum Quatro Estações já devidamente detonado, com os olhos de satisfação lupina de que minha total falta de menção à música por todos os 40 minutos de execução fosse afinal uma rendição à supremacia de Renato Russo, eu solto o que havia preparado com a devida atenção, dizendo que o único momento de humor entre tanta rima fácil e mensagens truncadas de auto-ajuda católica e de seja você mesmo da Seven-up, eram aqueles versos abomináveis de sei rimar romã com travesseiro. Aproveito para soltar o deboche de que eles deixaram de ser a Geração Coca-Cola, para serem os Gurus do Seven-up.

Como vingança, ele coloca o que já sabe ser o álbum que para mim é o supra-sumo da covardia moral e da implosão artística de Renato Russo, o constrangedor A Tempestade. Já então abandonamos qualquer outro assunto e eu me preparo para a apreciação do martírio com um visível êxtase. Um monte de faixas descartáveis, péssimas letras, instrumentalizações que fazem lembrar que tudo é possível para a eficiência impessoal da indústria fonográfica, até mesmo juntar os dedilhamentos sofríveis da cozinha da Legião afim de lucrar-se com o sofrimento do vocalista. Uma atmosfera de depressão tão pouco saudável, como se o sentenciado à morte desejasse vampirizar em vingança a alegria de viver dos que ficavam. Lembrei a meu amigo a moda jovem de alguns centros urbanos norte-americanos de convidar-se um soro positivo desconhecido para participar de uma loteria de sexo grupal. Não foi isso que a vítima fez, um tanto pior a leviandade de tê-lo cometido no auge da cruência da doença?, para a qual ainda não haviam coquetéis que garantissem a sobrevivência controlada?

Que direito ele tinha então de difundir aquelas mensagens de suicídio? Não foi uma fatalidade, ele não pertencia à classe de Lennon, um morto súbito; não era Morrison, Duane Allman, Brian Jones; só fez com que uma coerência depreciativa se instalasse nessa nova fase da emulação do rock brasileiro em querer ser o carbono sem mais consequências do rock inglês: estava na linha sequencial de repetição despirocada de um Arnaldo Baptista, que não conseguia ser um porra-loca de cérebro torrado cultuado e que morava com a mãe e assistia tv o dia inteiro, como o Syd Barret, mas tinha que cair por uma janela e desaparecer, e reaparecer já velho e disposto a viver da condescendência pública em gravar coisas sem a mínima substância. Na verdade, os anos 80 sepultaram a possibilidade de um rock inteligente e bem produzido que só deu as caras no final dos anos 70 para desaparecer para sempre: os Engenheiros e a RPM acabaram com o Violeta de Outono, os acordes toscos de Gessinger e as suas rimas que juntam chiclé de menta com você aguenta destruíram a excelência jazzística da Bacamarte. A nossa trilha sonora, eu continuava dizendo, sempre foi paupérrima. Do que adianta criticar a Globo, se o rock nacional soa, transpira, é um selo de qualidade da visão massificada de controle social sobre a adolescência das corporações Globo? Que distância há entre Renato Russo e Tarcísio Meira? As letras da Legião e dos Engenheiros dão a dosagem terapêutica precisa para o cidadão médio que espera para ser inserido no mercado de trabalho para extravasar suas curtas angústias quanto às privações do final dos anos de ditadura, e tudo era ainda mais fácil por essas privações nunca terem sido as reais e relevantes, mas as que de antemão preparavam-nos para os desejos de consumo. Mãe, eu quero uma guitarra elétrica.

Por isso que nada soa mais comprado e coadaptado que ver um Gessinger e um Toni Belloto hoje em dia, esses que sempre foram falsos profetas da juventude, agentes da acomodação. Nenhum deles se deu um tiro na cabeça e legou uma carta de suicídio que reassumisse suas canções como legítimas armas de contestação. Perder tempo ouvindo as lamentações arrependidas de Renato Russo é um tanto pior por saber que Edward Said, Thomas Bernhard, Roberto Bolaño, quando diante a morte iminente, produziram textos maravilhosos, verdadeiros, corajosos, que em nada colocavam suas sinas como o centro do universo.

Mas talvez haja mesmo um critério possível nesse investimento de fé de meu amigo no rock nacional como promotor de leitura. Não vi ainda nenhum de seus alunos falando de Thomas Mann, mas ainda julgo que mesmo na bestialidade existam padrões hierárquicos de gosto. Ouvir Titãs ainda é menos deletério que ouvir Luan Santana. E os rapazes que vejo pela casa desse meu amigo demonstram ao menos alimentarem os preconceitos usuais que eu via quando eu era da idade deles: nada é mais repulsivo que o sertanejo, o pagode e a música romântica.

domingo, 20 de novembro de 2011

Burocracia

Leio o seguinte trecho de um artigo de Isabel Allende, publicado no Financial Times, em 15/11/2003:
  o funcionário encarregado exige que o pobre requerente apresente provas de que nasceu, de que não é criminoso, de que pagou seus impostos, de que se registrou para votar e de que ainda está vivo, porque, mesmo que tenha um ataque para provar que ainda não morreu, ele é obrigado a apresentar um "atestado de vida". O problema chegou a tal ponto que o próprio governo criou um órgão para combater a burocracia. Agora, os cidadãos podem prestar queixa por terem sido pessimamente tratados e abrir processo contra funcionários incompetentes... por meio de um formulário que exige carimbo e três cópias, é claro.
Não por acaso essas palavras atualmente exercem um peso de estóica constatação sobre as eternas heranças comuns que dividem entre si os países subdesenvolvidos_ não só os da América Latina, mas também os outros, os que estão bem além de nossas fronteiras e do Atlântico. Digo atualmente porque tenho essa estrela de ser um sujeito que vive em épocas intersticiais sob a sombra da mais inflexível burocracia do Estado; uma hora ou outra eu sou obrigado a perder meu precioso tempo livre em frente a balcões de cartórios de ofício, sentado com os ombros em paulatina reformulação postural para ficarem com a humildade rendida de derrotado olhando a funcionária do INSS com sua carranca de divindade impávida, ou escorado a uma mesa de universidade à espera de que a secretária venha me dizer a inexorável verdade de que não poderá me fornecer o documento por mim requerido e que me assoma como algo de extrema necessidade. Tenho tantas memórias sobre episódios tais que poderia abrir um blog apenas com esse tema, postando um texto por dia: O Perene Aborrecimento, O Fardo Sem Fim
Recordo que assim que entrara na faculdade de veterinária, precisei sacar um antigo montante em dinheiro que haviam depositado em meu nome há décadas e que vinha rendendo juros sob a mais cândida tranquilidade bancária, mas quem disse que sequer eu conseguia a mínima atenção das moças dos caixas do Bradesco? Foram três dias num imblógio que só a mim parecia constituir alguma característica de um drama da inacessividade kafkiana, porque para as ditas moças o dia passava numa eterna primavera de sorrisos em que elas não viam ninguém que não tivesse o perfil de um senhor muito bem ajustado no mundo financeiro, usando ternos, com maletas com trancas com segredos nas mãos, e a cara de quem está diuturnamente sintonizado nas ondas olímpicas da única e verdadeira metafísica: a dos ganhos esponenciais insofismáveis. Sentado numa das cadeiras incômodas no salão gigantesco do banco, ao lado de senhoras de 70 anos com óculos de sol que lhes tampavam quase todo o rosto e tinham noscivas armações vermelhas, ou de office-boys felizes por terem descobertos a abstenção da realidade através de inovadoras técnicas de mascar chicletes, eu revia a repetição desses meus companheiros aéreos de infortúneo e pensava tô fodido. E o pior é que o dinheiro nem era muita coisa, mas naquela fase da adolescência, mesmo mantendo uma atitude monástica diante as tentações convencionais da vida, era como se houvesse em minha cola uma turba de traficantes de drogas e putas desalmadas batendo-me à porta querendo receber o que lhes era de direito.
De forma que me veio um insight desproteinado, e eu voltei para casa, me vesti todo de branco com as roupas destinadas às aulas práticas de laboratório, peguei emprestada de um vizinho uma maleta das mais distintivas, e me pûs novamente de frente às moças de Acapulco que só por uma distorção dimensional não estavam de biquine na praia mas detrás de tampos de fórmica lambuzadas de gordura humana atendendo com os molares arregaçados de alegria solar a executivos. Na época, devo aqui violentar minha modéstia, eu era de quebra um sujeito pra lá de boa pinta, como todo adolescente beneficiado por uma estatura alta, magro e com saudosos cabelos negros, fartos e brilhantes, o é; sendo assim, a eficiência dessa minha aposta no poder da aparência social não só me garantiu ter a grana pretendida imediatamente nas mãos, como até o telefone da atendente escrito em letra galante num cartão, enfiado no bolso branco da minha calça branca. Nunca telefonei para ela; mesmo naquela época hormonal eu tinha pleno conhecimento da desfaçatez exaustiva do pós-coito para me lançar aos extremos de calibrar a máquina de contabilizar o máximo de trepadas com que eu seria socialmente admirado; falar o que com uma mulher dessas, no depois
Há dois meses minha esposa precisou ir ao cartório local para fazer uma procuração em nome da irmã, para que essa recebesse para ela uns antigos direitos trabalhistas de uma empresa da cidade onde ela morara. Minha esposa sabe como me desgasta esses ambientes, como eu sou um completo inútil em bancos e locais afins. Eu deixei claro para ela desde o momento em que uma das luzes do restaurante em que a levei para jantar na primeira semana de namoro rescendiu de forma extraordinária no verde de seus olhos e tive a certeza de com ela me casaria (romântico! romântico! romântico!): você é o homem da casa. Eu só mantenho os delinquentes longe e recolho a bosta do cachorro, mas você prega a cortina, conserta a calha, regula o cartão de crédito e enfrenta, principalmente, os bancos e cartórios. 
Mas dessa vez tive que ir não sei por qual motivo, e, como é natural ao ímã que tenho para atrair a Burocracia, o que seria a simples emissão de um documento se a Dani tivesse ido sozinha, comigo ali do lado se transformou na infinita estagnação de resultados de Almas Mortas. O escrivão, um sujeito que já me indispûs desde a primeira vez que vi seu tipo de quem tem o poder e sabe das coisas (a síndrome que acomete grande parte dos funcionários públicos brasileiros), pareceu-me se promover instantaneamente para o patamar dos mais indubitáveis energúmenos quando berrava numa voz altíssima com um senhor que estava sendo atendido à nossa frente, e dizia que "não, não é assim, meu senhor! As coisas não são assim tão simples. Há papéis, há a burocracia, não fui eu que inventei; temos que cumprí-la", blablabla. E tal senhor, com o chapéu amassado em mãos, era o oposto em tudo ao dito cujo, falava baixo, ou tentava falar, já que a Voz atravessava tudo sem hora e sem cortesia, e o atropelava como a afirmar de sobrepelo que ali naquelas quatro paredes e entre aqueles arquivos de ferro não havia lugar para fracos. De cara eu tive a absoluta certeza de que o escrivão teria resolvido a vida do senhor num átimo, o teria liberado feliz para cumprir os afazeres realmente importantes de seu dia, mas o mantinha ali à garra e colocava toda espécie de empecilhos só para provar seu poder. Aquilo custaria meses ao pobre homem, ai dele se ainda tivesse a audácia de contestar, aí só se resolveria no próximo ano, e depois do carnaval. Eu fui me enfurecendo. Havia acordado aquela manhã com o propósito de refletir no mundo minhas concepções de guerreiro gandhiano pacífico, havia ouvido Prayer for Passive Resistance, do Mingus, na noite anterior, de formas que a Dani me olhava de sobreaviso e me perguntava por que eu não deixava as crianças com ela e ia dar uma volta na praça. Mas não. Chegara a vez dela e o energúmeno já foi gritando que não podia passar uma procuração em seu nome de solteira, conforme os documentos que ela lhe apresentava ( a Dani não mudou ainda os documentos para o nome de casada justamente para evitar a burocracia que isso iria causar para a retirada desse dinheiro), pois ele via que ela vinha acompanhada de dois filhos e o marido (apontando para mim como se eu atendesse perfeitamente ao artifício de sua encenação de grandiosidade em ser um estúpido autóctone sem voz própria), e não podia incorrer em uma mentira por isso ser flagrantemente antiético conforma artigos blablabla. Ou seja: uma única procuração, uma coisa absolutamete espúrea e inofensiva, ele havia transformado em um pecado capital; não iria fazer, o que a resolução deixava de ser garantida em um segundo para ser uma peregrinação por mais cartórios e a contratação de advogado para mudar o nome que aparece nos contratos de negociação da empresa com minha esposa, o que incorreria mais uns quatro meses. Não me contive. Diante a platéia de outras pessoas que esperava a vez para também ser martirizada, eu comecei a proferir uma réplica bem equilibrada para contornar sem cair no artigo penal de desacato a um funcionário público. Perguntei ao energúmeno oligocéfalo se não era esse cartório o mesmo que recém havia sido alvo de uma reportagem da revista Istoé, assim como de diversos jornais televisivos do país, em que aparece como tendo firmado como verdade o Termo de Acordo entre o atual prefeito e o prefeito anterior, em plena época de campanha eleitoral, sendo tal documento uma miríade de crimes contra a administração pública, compra de votos, garantias de contratação de apanágios do antigo prefeito em cargos de comissão, garantias de que no concurso público que se realizaria assim que dado como eleito um dos assinantes uma conta de pessoas seria investida no cargo como aprovadas; se foi naquele mesmo cartório que ficara firmado tal contrato, que rezava também que o apoio do ex-prefeito à candidatura do atual seria paga em montantes parcelados cujo valor final ultrapassaria meio milhão de reais...E por aí vai. O energúmeno deu um pulo na cadeira, se levantou com uma trêmula solicitude, contornou as mesas a me tocou no ombro, cheio de uma súbita gentileza. Deixei que ele fizesse seu papel de argumentar que aquilo a que me referia já fora levado a seus superiores e eles haviam professado que afinal não era crime coisíssima nenhuma, blablabla. O resultado é que saímos com a procuração em mãos...

A Burocracia alastrada pelos serviços públicos e relacionados exige pois que se vá diante os balcões com o cenho fechado e disposto ao contra-ataque imediato. Se te lançam na cara o artigo 331, de desacato,lança-lhe de volta o 319, retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício.





sábado, 19 de novembro de 2011

Manha de Cavalo


Desde domingo passado até quarta-feira eu tive uma febre terrível causada por um  molar quebrado. Minha face direita ficou deformada por um inchaço que uma correlação de lógica cubista fez-me parecer um cavalo. Eu olhava no espelho o maxilar espichado e abria os lábios com os dedos para ver, admirado, o contorno da enorme bola de pus ali dentro. E a dor era extrema. O pior era que a impressão de segurança da odontologia moderna ficava subtraída pela impotência medieval do dentista em não poder fazer nada até que todo o inchaço acabasse. Tomei 550 mg de um forte antiflamatório, duas vezes ao dia, e já estava por cair em desespero diante a renitência da coisa em não querer capitular, até que na terça-feira acordei com a massa diminuída, a equinidade mutante já não tão evidente. Na janta, não tanto pela debilidade da moléstia mas para externar uma constatação biográfica, deitei a colher de sopa na mesa e, olhando para a Dani, disse o quanto minha vida mudara mesmo nos detalhes mais ínfimos desde que nos casamos. A última lembrança que eu tinha de ter tido febre dista uns sete anos. Fiquei três dias trancado em minha casa de solteiro, tremendo sob cobertores, e absolutamente indiferente quanto ao abandono. Depois de ter finalmente suado, levantei-me, tomei um banho e já estava de volta à vida. Agora_ continuava a dizer à Dani_ nesta febre, havia você a cada cinco minutos me perguntando como eu me sentia, assegurando-se de que tomei os remédios, ligando para o trabalho para dizer que eu não iria na segunda-feira, ligando para sua mãe para saber o que era bom para inflamações, e me administrando um chá de gargarejo de alho, vinagre e sal. De forma que não consigo entender como eu aguentava minha solteirice, não consigo mais me ver antes de você. (Talvez o que estivesse querendo dizer, inconscientemente mesmo para mim, era o quanto o casamento havia me deixado debilitado, sem aquela independência e auto-suficiência de quando eu era solteiro e que agora soa tão alienígena.)

Bom... a Dani e eu temos muitas coisas em comum. Gostamos das mesmas comidas, somos loucos por espaguete e talharim, por chocolate, por chá gelado, por posta de peixe, por leite batido no liquidificador com ovomaltine. Amamos a paternidade com uma devoção deslumbrada. Ela não é tão devotada aos livros como eu, e nem poderia ser, mas esporadicamente dividimos a leitura do mesmo livro e varamos noites a dentro comentando a obra. Ambos gostamos de casas antigas e espaçosas, preferencialmente com fantasmas, inclusive compramos uma. Ela tem um senso de justiça elevado que me deixa orgulhoso; certa vez chegou puta da vida aqui em casa por não ter visto uma alma viva oferecer a poltrona do ônibus para uma senhora, que seguiu toda a viagem em pé. Mas paradoxamente somos também muito dessemelhantes. Eu tenho uma calma explosiva; ela tem uma doçura permanente. Eu sou lacônico com desconhecidos e sempre me ponho na defensiva; ela é altamente social, o tipo de pessoa que todo mundo gosta. Ela já traçou itinerários de viagens para me desentocar de meu reduto confortável. 

Eu disse a ela que fico muito sensibilizado quando ela e as crianças viajam. Eles terão que passar a primeira semana de dezembro na casa de minha mãe, na capital, para os últimos exames da Dani afim de que o médico finalmente suspenda seus remédios. Já antevejo meu stress. Da última vez, discuti com ela pelo telefone, ela chorou, eu me senti um crápula e por aí vai. Outra coisa de que gostamos é do natal. Enfeitamos a casa, fazemos uma ceia, compramos todos os tipos de panetone e não estamos nem aí com as críticas de consumismo e o escambal. Ela me pediu um vestido, descaradamente. Eu nunca digo o que quero, mas ela sabe e sempre me dá livros. Desde a semana passada estou namorando a edição de Guerra e Paz, traduzida direto do russo, e a ser lançada pela Cosacnaify ainda esse mês. Como fiz encomenda de alguns livros antes de ter ciência desse lançamento, só poderei adquirí-lo lá para março do ano que vem. Todos os dias acesso o site da Cosac e namoro os dois volumes da maior obra de Tolstoi, do maior romance de todos os tempos. Traio todas as minhas leituras de Bauman ao me identificar como o consumidor padrão, possuído pelo fetichismo de que serei um excluído se não fizer parte dos felizardos da lista de pré-venda do livro. E se venderem toda a primeira edição e eles só lançarem uma outra daqui um ano?

Daí que minha esposa, que não consegue guardar surpresa, me revelou hoje que encomendou o Guerra e Paz e esse será meu presente esse ano. Um tanto astuciosa! Calculou as datas de lançamento e entrega e sabe que o presente chegará na semana em que ela e as crianças estarão na capital. Sabe que as 2500 páginas me consumirão pelo primeiro mês de licença prêmio que tirarei a partir de janeiro, de modos que sobrarão ainda três meses pela frente (incluso minhas férias) para que seu propósito de uma viagem ainda seja atendido. Talvez ela nunca tenha gostado de natal (tenho que consultar isso com minha sogra, sorrateiramente), e ela não faça outra coisa que meus pais faziam quando eu ainda era muito criança: me amanse. Uma semana a um mês de sossego da criança diante seu triciclo vermelho. Um mês de dominação supraciente de seu homem fragilizado pelos costumes domésticos para conduzí-lo como quiser. A mim só resta exercer meu papel: recolher-me ao quarto dos fundos, onde a música e a ótima leitura me afagam, e a lembrança de quando eu era um solitário viril, prepotente e seguro de si ao extremo, está para sempre confinada no fundo da memória.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

"O Espirito Santo Está Aqui com Vocês"

 
Foi a segunda menção ao Espirito Santo que me fez arrepiar. A primeira foi quando, ainda adolescente, percebi o grande potencial invocativo de guerra que o ente mais enigmático da trindade possui na certeza de Florentino Ariza quando confessou ao pai de Fermina Daza que a amava. Diante aos olhos injetados de ódio do pai de Fermina Daza, que por pouco estava para atirá-lo porta afora do boteco empoeirado onde se deu o confronto, o trêmulo poeta de rodoviária que morava com a mãe e suava de amores nas noites quentes do Caribe ao pensar na amada, mantêm o seu propósito em não se afastar da moça, porque "também ele estava possuído pelo Espírito Santo". Os personagens de Garcia Márquez, uma hora ou outra, e sempre nos momentos em que suas vidas estão sentenciadas ou a perigo, suportam a alegria febril de não se comportarem mais no pobre enquadramento da realidade porque são devastados pelo Espírito Santo: Aureliano Buendía diante o pelotão de fuzilamento; o dentista de província que confronta  um dos acólitos do coronel; o velho coronel que espera durante anos a chegada de um cheque que não vem, que desiste da esperança mas não da fé; entre outros.
          De forma que o discurso que Slavoj Zizék proferiu na primeira ocupação do centro de Wall Street para uma multidão de inconformados com o sistema financeiro global repete a lucidez do confronto com os grandes perigos, com os ápices dos movimentos históricos quando eles estão para dar uma reviravolta. Zizék utilizou essa bela frase para encerrar seu discurso, essa frase tão ampla e corajosa de ser dita entre prédios e senhores de ternos super-atarefados cujas rendas anuais superam as cifras de milhões de dólares: "E lembrem-se, o Espírito Santo está aqui com vocês". Quem lê Zizék sabe que a incrível capacidade dele de fundir improváveis níveis de significâncias num mesmo parágrafo poderia perigosamente resvalar um vazio virtuosismo erudito de quem conhece a fundo Lacan, Hegel e Marx, e assistiu da mesma maneira engajada a série de filmes de Hollywood Jurassic Park. Quem o lê com a certeza de valor de que se trata de um dos mais fundamentais pensadores atuais sabe que essa tapeçaria de temas e essa profusão quase poluente de imagens é bem urdida o suficiente para fazer uma espécie de multicompreensão surgir ao longo das densas e provocativas páginas de seus livros, de forma que nada é gratuito no que ele escreve. Mesmo a análise surpreendente do subconsciente do capitalismo neoliberal através dos best-sellers de Michael Crichton, que abre o Em Defesa das Causas Perdidas, e as partes de humor de alto especialismo acadêmico em que ele imagina como seria uma análise sexual contundente (a um nível escatologicamente pornográfico) de Hegel, em Visão em Paralaxe, fecham apropriadamente a poderosa análise de uma saída social ao embate que vivemos hoje, e que descortina-se nas suas reflexões seguintes.
           Por isso, nada mais significativo que o Espírito Santo como força catártica para expulsar o marasmo opressivo dos grilhões tão solidamente estabelecidos do capitalismo atual, que caem sobre a humanidade. Nada mais significativo que Zizék reivifique o sentido sagrado das Palavras Essencias, as únicas palavras que realmente expressam a verdade, aquelas as quais Hemingway preservava da corrupção desgastante do uso vulgar excessivo, e que Bellow utilizava como choques anacrônicos: palavras tais como esotérico, amor, transcendentalfelicidade, e, o que Zizék mesmo denunciou como sintoma mais forte do poder de unanimidade conformada diante o exploração econômica globalizada: capitalismo. O capitalismo está tão enraigado na saúde cotidiana, que ninguém usa mais tal denominação; tornou-se uma palavra cuja espiação pragmática retirou-lhe por completo qualquer sentido, tanto para o mal quanto para o bem. Capitalismo tornou-se demodé, tornou-se assepsiado por um redutor ontológico que lhe torna tão inofensivamente compreensível como se visto em um cânone de antigas palavras santificadas.
            Assim, ao invocar o Espírito Santo_ que na verdade foi algo mais avançado que uma pura invocação, mais para uma antecipação profética de um fato irrevogável, um toque de trompa de guerra_ Zizék renova a capacidade de um de seus mestres, Karl Marx, na crença incansável nas palavras, traz para a atmosfera super-urbana de Wall Street o frescor romanceado de que a Palavra voltou a ter a força da Espada, na hoje obsoleta cópula metafórica de pena e espada. É um dos personagens de Bellow, o sr. Sammler, que dá o devido mote de importância do gênio cada vez mais atual de Marx, além das diatribes de interpretação de sua ideias econômicas: (Karl Marx) nunca se deixou levar por sentimentos de desânimo diante de palavras. Muitos o fizeram e o fazem. Pensa o sr. Sammler. Ler Zizék, assistir a suas entrevistas ou ao seu documentário, é notória a constatação de que ele é um incansável utilizador de palavras. Diante a salvaguarda do laconismo virtual em que a grande parte da humanidade vive hoje, de nossa escassez de palavras, de nosso afonismo e constante recriação ortográfica para a monossilabação mais cômoda, ver o frenetismo verborrágico de Zizék chega a despertar uma inconsciente piedade. A piedade de quando nos deparamos, em nossa flácidas resignações, com alguém que tem fé. A mesma fé que se mantêm em pé, autistamente perseverante, ao ridículo de quando Dostoiévski escreve que a beleza salvará o mundo. Não estamos em condições de acreditar que a beleza vá salvar alguma coisa nos propósitos mesquinhos do poder corporativo que governa os corações e mentes tão explicitamente definidos hoje em dia, de forma que nos enchemos de uma culpa alastrante quando nos envergonhamos por alguém como Dostoiévski apostar todas as suas fichas em um páreo tão certamente fracassado. Eu mesmo senti uma vergonha tão consolidada e improdutiva quando li o conto A Árvore de Natal na Casa do Senhor, por saber intimamente que o garotinho de rua que morre de frio numa noite em São Petersburgo, diante uma vitrine em que está à mostra uma esplêndida árvore de natal, só foi para a ceia magnífica junto a Cristo no universo poético de Dostoiévski. Mas a verdade, talvez, seja a de que li uma vez apenas esse conto, no auge de meu niilismo dos 17 anos, mas ele nunca me saiu da memória. A sua beleza insuportável e inconcebível, o seu obsceno transcendentalismo, ficou em mim, mesmo_ ou por causa_ de seu salto no vazio.
           O Espírito Santo que Zizék lança a chama por sobre as cabeças dos insatisfeitos amuados em Wall Street é não apenas sua iconização da vontade sagrada humana, muito além da perda de significado na formalização anestésica da etiologia católica e pentecostal, trazida de volta para o frescor da palavra, como também o mais próximo da antifilosofia fisicamente ativa a que se pode chegar alguém que foi criado no mundo das ideias a ponto de correr o risco de se atrofiar por elas. Diante a multidão que o ouvia, Zizék repetiu instantâneamente o que se é conseguido após horas de estenuação na leitura de seus livros: a suposição de liberdade reacionária que o limite do esclarecimento oferece. Zizék nos confronta com a exigência do treino para o aprendizado sobre a Verdade, a sua procura acima de qualquer distração, a sua recusa humilde de tê-la alcançado, o paradoxo da segurança imbatível em si mesmo e a ausência honesta em dar ouvidos às correntes modernas de cinismo para achar-se criticamente digno de merecer a Verdade e combater por ela. Zizék é da mesma classe de homens comuns emancipados que tem uma concentrada fagulha de Verdade para oferecer para os insatisfeitos, tal qual uma miríade de outros homens que usaram da forma mais auto-exigente possível a potencialidade reflexiva. O Espírito Santo invocado por Zizék é a sua fé em que a História não chegou ao fim, é a sua visão nietscheana de olhar a espécie à qual pertence de cima dos cumes das montanhas do pensamento, possuído pela soberba desaforada de que o pensamento é uma criação dada exclusivamente ao homem e por isso o orgulho de colocar na pauta das importâncias primordiais do dia a emancipação do homem pelo homem, o seu retorno paulino à comunhão do traço distinguidor intrínseco do espírito e não da escravidão aos que aproveitaram os rumos errados dos sistemas e dos regimes para exercer a dominação centenária. E espírito talvez seja a mais desgastada das Palavras Sagradas.
        A lucidez de Zizék pode torná-lo um dos profetas dos finais dos tempos, como ele deixa intuir sombriamente em diversas passagens de seus livros, mas o seu salto no vazio propõe ser festivo. Como ele esclarece em suas divagações hilárias sobre a hipotética teoria sexual de Hegel, o sexo é um dispositivo de dissipação irrisória demais para os filósofos, esses que tem à disposição de si todas as maravilhas do pensamento. Tal felicidade é a mesma da qual fala Marx, que pode bem ser traduzido na liberdade para a busca das potencialidades do espírito humano através do tempo livre, tempo esse que nos é tomado abominavelmente pela obsessiva imposição de acumulação de lucro e de devoção ao crescimento das empresas e megacorporações. O que são as luzinhas coloridas das telas de celulares e das televisões de plasma e as infintas horas de distração hedonista que nos obrigam a consumir esquizofrenicamente diante nossa riqueza como seres espirituais, como seres reflexivos e pensantes, que podemos tomar nas mãos a corrente de nossos próprios rumos? Hoje mesmo é um evento de pleno otimismo que em várias partes do mundo esteja havendo manifestações solidamente explosivas contra o sistema financeiro neoliberal, que estejam ocupando centros financeiros (mesmo a reocupação recém-abortada por policiais de Wall Street que ocorreu ontem é um indicativo de que as atitudes são sérias), que a internet esteja sendo usada como difusora de ideias de reação a tudo que está aí, e que se possa marcar através do ciber-espaço os encontros de ocupação e protestos. Os tempos não estão nada tranquilos e seria leviano se alguém apostasse o contrário. O Espírito Santo de Zizék nos instiga à benção adstringente de poder ainda acreditar na mudança, e ver a incrível vantagem de que o Esclarecimento possa nos orientar para novos rumos desviados da didática visão dos erros cometidos no passado_ e da parte mais importante de toda revolução: o que fazer no dia seguinte à revolução. A superior humildade do pensamento, como escreveu Magris.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Comentários com Os Pés na Mesa

Que diabo! Mais um vez vou usar um comentário meu no blog do Milton Ribeiro como post aqui no blog.



Já disse antes que gosto muito de Calvino, mas ele não chega a ser um dos meus preferidos. Dos italianos: Svevo e Pirandelo.

Borges é um dilema. Já vejo professores se decepcionarem ao tentarem adotar seus contos mas os alunos reagindo negativamente. Que coisa cacete! Borges se tornará “cacete” para a futura geração Kindle. E isso é curioso, pois a versatilidade da obra do argentino, num primeiro momento, parece se prestar ao mundo portátil. Seus contos são curtos (muitos, aliás, não vão além de três páginas), e são movimentados como um romance de Dumas Pai; e falam de magia, de absurdos (não à toa a capacidade mercadológica inconsciente dos temas de Borges tornou a disparar as vendas do Paulo Coelho nos EUA, o seu romance do Aleph).

Mas… aí vem o x da questão, na qual divirjo (essa palavra tá certa?) de você e do Luiz Ribeiro e do Idelber: o ponto em que trata da influência de Macedôneo sobre a escrita de Borges. Vocês veem como uma influência de fato, estilística e temática. Eu já penso que Macedôneo exerce um poder notável no humor borgeano. Macedôneo e a geração de escritores argentinos da qual fez parte Borges, praticamente criaram um “humor argentino”. Assim como se identifica os méritos do humor inglês na sutileza e na auto-crítica firmada no absurdo e no non-sense do esnobismo britânico, e a auto-depreciação do humor judáico, o humor argentino nascido com Macedôneo bebe das fontes inglesas e se adentra numa revelação do absurdo do prosaísmo cotidiano, e o texto argentino, daí para frente, se tornou cuidadosamente metaliterário, mais cheio de mensagens subliminares do que as capas dos discos dos Beatles e a cabala_ a maior parte, só entendida pelo grupo de escritores argentinos. O humor de Macedôneo perfila a obra de Borges e se expande em Cortázar. Macedôneo criou o Monty Python da Argentina, e só nisso (o que já é uma contribuição gigantesca) é que ele é transparente na obra de Borges. Borges mesmo, num texto sobre Macedôneo, diz que era a antítese de Macedôneo em todos os sentidos da criação literária: Macedôneo era desregrado, pouco se importando com a beleza da escrita, e Borges um estilista rigoroso.

Então… as sutilezas da escrita de Borges é que são indigeríveis para a geração Kindle. Borges disse que conheceu a obra de Whitman em alemão (olha só o montypythianismo de Borges mesmo aqui), e só depois de lê-lo em inglês que viu o quanto era absurdo ler O Canto da Estrada Aberta na lingua de Schopenhauer. É da mesma forma absurda ler Borges no Kindle, e os leitores do Kiindle já nascem predestinados à incapacidade de ler Borges. Mas isso é outro assunto, que nos remete ao mimeógrafo adorniano (Adorno profetizou que as únicas obras relevantes desse nosso século seriam as mimeografadas): e Borges é o legítimo mimeógrafo.

Particularmente gosto mais da seleção de contos do Aleph. E adoro os ensaios, e adoro os prólogos (releio-os todos os dias na privada). Borges é um dilema por ter sido um grande escritor que se articulava dentro de um espaço limitado. A escrita de Borges revela que por pouco ele não se tornara um autor fracassado. Ele não era exuberante (Calvino era). Nota-se que o único meio de Borges era desenvolver esse estilo conciso ao extremo. Daí que tal coisa tem seus efeitos colaterais: Ficções e O Aleph são maravilhosos, revolucionários, bombásticos, imortais; já os contos tardios, como os de A Memória de Shakespeare, a mim soam cansados, repetitivos, sem talento, já sendo o mecanicismo da criação agindo por si mesmo com pouco espírito. Garcia Márquez já havia anunciado isso antes_ logo quem, que se tornou o macaco do realejo da emulação da própria técnica_, de que Borges se afundou no desgaste da incapacidade de ir além de seu estilo.

São muitos os “filhos” de Borges. Claudio Magris é um dos maiores deles ainda vivos.

Uma Súbita Saudade


Tenho uma imaginação hiperatrofiada, o tipo de benefício dúbio que me entretém em longas filas de banco ou na sombra de um dia morto. Grande parte dela, creio eu, veio dos poucos momentos que tive com meu pai, nos encontros cheio de culpa que minha mãe divorciada nos cedia com o preço de atulhar a atmosfera de presságios e proibições. Um certo dia, meu pai me sequestrou. Entrei no seu chevete novo, naquele ano mais inocente em que a gagueira provocada pela separação dos dois ainda me afigurava o pior dos infernos, e passamos um mês inteiro confinados numa fazenda que ainda hoje estou por descobrir de quem era. Passadas as horas de puro terror em que vi confirmadas as suspeitas de minha mãe de que aquele homem era capaz de tudo para separar-me dela, esse mês foi o melhor da minha vida. Todo mundo estava lá, como num crime premeditado, minhas tias, meus tios. Quando li vinhas da ira, refiz aquele calor familiar, aquele humor despojado e espiritual que tive por trinta dias. Mas findo aquele período, meu avõ materno apareceu, conciliador, conversou com ele quinze minutos, e meu pai foi até mim, sorrindo: “Naninho, chegou a hora de ir embora”

Meu pai contava mentiras grandiosas para mim. Carregava-me no bolso da camisa, quando eu era bebê. Em certas épocas eu voava por sobre os postes de luz e me sentava nos fios elétricos, deixando todos desesperados a me procurarem, até que ele percebia termos passado dos limites e me sinalizava com a cara compungida para que eu descesse.

Em 1990 eu abandonei a faculdade, meio que fugi de casa e fui até o meio da Amazônia atrás dele, a metade do caminho de carona. Haviam dito que ele sofrera um acidente, uma tora de madeira teria caído em cima dele. A forte impressão de sua imunidade me confortava em não acreditar naquilo, o que confirmei ao vê-lo aparecer de barba, com um semblante de Aureliano Buendia, pela soleira da porta de sua nova casa, com sua nova família, num povoado esquecido chamado São Miguel. Sua nova esposa tinha minha idade, os olhos verdes, e a lucidez da bondade que só um espírito muito antigo podia ter. Estava feliz, com saúde. Andando pela floresta, ele fez um movimento de abranger a mata com o braço e disse: “Deus também esta aqui!”

Há três anos ele foi devastado por um câncer. Vê-lo, então, foi terrivelmente doloroso. Herdei dele, também, o amor exacerbado pelos animais, principalmente cães. Um semana depois de que foi enterrado, meu cão latia de madrugada. Um cãozinho miúdo, magro até os ossos, como sabendo que em minha casa poderia ter sua última guarida, estava deitado de frente ao portão. Até então eu não tinha cedido à crueza absoluta daqueles dias; peguei o animalzinho com um pano, trouxe para os fundos de casa, coloquei-o no quarto de despensa e passei a noite lá, corroído por uma piedade ilógica, junto dele.

O filtro contra a realidade da existência havia falhado, como ás vezes acontece. E a visão de um túmulo em nada corrobora para que o filtro volte a funcionar.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Luz Interior


Aguardo ansiosamente o documentário de três horas e meia de Martin Scorsese sobre George Harrison, Leaving in The Material World, cujo DVD está prometido ainda para esse ano. O excerto abaixo, que me deixou inusitadamente comovido nessa hora da manhã, é do depoimento de um Ringo Star com lágrimas nos olhos e mal conseguindo falar, sobre seu último encontro com Harrison:

-- Nas últimas semanas de vida do George ele estava na Suíça, eu fui visitá-lo. Ele estava muito doente, só podia ficar deitado. Só deitado. E, embora ele estivesse doente e eu o estivesse visitando, em seguida eu iria para Boston, porque minha filha [refere-se a Lee Starkey, a caçula de seus três filhos] estava com um tumor cerebral. Eu lhe disse ‘tenho que ir embora, ir a Boston’… e ele disse…foram as últimas palavras que ouvi ele dizer, na verdade: ‘Você quer que eu vá com você?’. [Emoção, risos]. Oh, Deus. Era o lado incrível do George.”