Foi a segunda menção ao Espirito Santo que me fez arrepiar. A primeira foi quando, ainda adolescente, percebi o grande potencial invocativo de guerra que o ente mais enigmático da trindade possui na certeza de Florentino Ariza quando confessou ao pai de Fermina Daza que a amava. Diante aos olhos injetados de ódio do pai de Fermina Daza, que por pouco estava para atirá-lo porta afora do boteco empoeirado onde se deu o confronto, o trêmulo poeta de rodoviária que morava com a mãe e suava de amores nas noites quentes do Caribe ao pensar na amada, mantêm o seu propósito em não se afastar da moça, porque "também ele estava possuído pelo Espírito Santo". Os personagens de Garcia Márquez, uma hora ou outra, e sempre nos momentos em que suas vidas estão sentenciadas ou a perigo, suportam a alegria febril de não se comportarem mais no pobre enquadramento da realidade porque são devastados pelo Espírito Santo: Aureliano Buendía diante o pelotão de fuzilamento; o dentista de província que confronta um dos acólitos do coronel; o velho coronel que espera durante anos a chegada de um cheque que não vem, que desiste da esperança mas não da fé; entre outros.
De forma que o discurso que Slavoj Zizék proferiu na primeira ocupação do centro de Wall Street para uma multidão de inconformados com o sistema financeiro global repete a lucidez do confronto com os grandes perigos, com os ápices dos movimentos históricos quando eles estão para dar uma reviravolta. Zizék utilizou essa bela frase para encerrar seu discurso, essa frase tão ampla e corajosa de ser dita entre prédios e senhores de ternos super-atarefados cujas rendas anuais superam as cifras de milhões de dólares: "E lembrem-se, o Espírito Santo está aqui com vocês". Quem lê Zizék sabe que a incrível capacidade dele de fundir improváveis níveis de significâncias num mesmo parágrafo poderia perigosamente resvalar um vazio virtuosismo erudito de quem conhece a fundo Lacan, Hegel e Marx, e assistiu da mesma maneira engajada a série de filmes de Hollywood Jurassic Park. Quem o lê com a certeza de valor de que se trata de um dos mais fundamentais pensadores atuais sabe que essa tapeçaria de temas e essa profusão quase poluente de imagens é bem urdida o suficiente para fazer uma espécie de multicompreensão surgir ao longo das densas e provocativas páginas de seus livros, de forma que nada é gratuito no que ele escreve. Mesmo a análise surpreendente do subconsciente do capitalismo neoliberal através dos best-sellers de Michael Crichton, que abre o Em Defesa das Causas Perdidas, e as partes de humor de alto especialismo acadêmico em que ele imagina como seria uma análise sexual contundente (a um nível escatologicamente pornográfico) de Hegel, em Visão em Paralaxe, fecham apropriadamente a poderosa análise de uma saída social ao embate que vivemos hoje, e que descortina-se nas suas reflexões seguintes.
Por isso, nada mais significativo que o Espírito Santo como força catártica para expulsar o marasmo opressivo dos grilhões tão solidamente estabelecidos do capitalismo atual, que caem sobre a humanidade. Nada mais significativo que Zizék reivifique o sentido sagrado das Palavras Essencias, as únicas palavras que realmente expressam a verdade, aquelas as quais Hemingway preservava da corrupção desgastante do uso vulgar excessivo, e que Bellow utilizava como choques anacrônicos: palavras tais como esotérico, amor, transcendental, felicidade, e, o que Zizék mesmo denunciou como sintoma mais forte do poder de unanimidade conformada diante o exploração econômica globalizada: capitalismo. O capitalismo está tão enraigado na saúde cotidiana, que ninguém usa mais tal denominação; tornou-se uma palavra cuja espiação pragmática retirou-lhe por completo qualquer sentido, tanto para o mal quanto para o bem. Capitalismo tornou-se demodé, tornou-se assepsiado por um redutor ontológico que lhe torna tão inofensivamente compreensível como se visto em um cânone de antigas palavras santificadas.
Assim, ao invocar o Espírito Santo_ que na verdade foi algo mais avançado que uma pura invocação, mais para uma antecipação profética de um fato irrevogável, um toque de trompa de guerra_ Zizék renova a capacidade de um de seus mestres, Karl Marx, na crença incansável nas palavras, traz para a atmosfera super-urbana de Wall Street o frescor romanceado de que a Palavra voltou a ter a força da Espada, na hoje obsoleta cópula metafórica de pena e espada. É um dos personagens de Bellow, o sr. Sammler, que dá o devido mote de importância do gênio cada vez mais atual de Marx, além das diatribes de interpretação de sua ideias econômicas: (Karl Marx) nunca se deixou levar por sentimentos de desânimo diante de palavras. Muitos o fizeram e o fazem. Pensa o sr. Sammler. Ler Zizék, assistir a suas entrevistas ou ao seu documentário, é notória a constatação de que ele é um incansável utilizador de palavras. Diante a salvaguarda do laconismo virtual em que a grande parte da humanidade vive hoje, de nossa escassez de palavras, de nosso afonismo e constante recriação ortográfica para a monossilabação mais cômoda, ver o frenetismo verborrágico de Zizék chega a despertar uma inconsciente piedade. A piedade de quando nos deparamos, em nossa flácidas resignações, com alguém que tem fé. A mesma fé que se mantêm em pé, autistamente perseverante, ao ridículo de quando Dostoiévski escreve que a beleza salvará o mundo. Não estamos em condições de acreditar que a beleza vá salvar alguma coisa nos propósitos mesquinhos do poder corporativo que governa os corações e mentes tão explicitamente definidos hoje em dia, de forma que nos enchemos de uma culpa alastrante quando nos envergonhamos por alguém como Dostoiévski apostar todas as suas fichas em um páreo tão certamente fracassado. Eu mesmo senti uma vergonha tão consolidada e improdutiva quando li o conto A Árvore de Natal na Casa do Senhor, por saber intimamente que o garotinho de rua que morre de frio numa noite em São Petersburgo, diante uma vitrine em que está à mostra uma esplêndida árvore de natal, só foi para a ceia magnífica junto a Cristo no universo poético de Dostoiévski. Mas a verdade, talvez, seja a de que li uma vez apenas esse conto, no auge de meu niilismo dos 17 anos, mas ele nunca me saiu da memória. A sua beleza insuportável e inconcebível, o seu obsceno transcendentalismo, ficou em mim, mesmo_ ou por causa_ de seu salto no vazio.
O Espírito Santo que Zizék lança a chama por sobre as cabeças dos insatisfeitos amuados em Wall Street é não apenas sua iconização da vontade sagrada humana, muito além da perda de significado na formalização anestésica da etiologia católica e pentecostal, trazida de volta para o frescor da palavra, como também o mais próximo da antifilosofia fisicamente ativa a que se pode chegar alguém que foi criado no mundo das ideias a ponto de correr o risco de se atrofiar por elas. Diante a multidão que o ouvia, Zizék repetiu instantâneamente o que se é conseguido após horas de estenuação na leitura de seus livros: a suposição de liberdade reacionária que o limite do esclarecimento oferece. Zizék nos confronta com a exigência do treino para o aprendizado sobre a Verdade, a sua procura acima de qualquer distração, a sua recusa humilde de tê-la alcançado, o paradoxo da segurança imbatível em si mesmo e a ausência honesta em dar ouvidos às correntes modernas de cinismo para achar-se criticamente digno de merecer a Verdade e combater por ela. Zizék é da mesma classe de homens comuns emancipados que tem uma concentrada fagulha de Verdade para oferecer para os insatisfeitos, tal qual uma miríade de outros homens que usaram da forma mais auto-exigente possível a potencialidade reflexiva. O Espírito Santo invocado por Zizék é a sua fé em que a História não chegou ao fim, é a sua visão nietscheana de olhar a espécie à qual pertence de cima dos cumes das montanhas do pensamento, possuído pela soberba desaforada de que o pensamento é uma criação dada exclusivamente ao homem e por isso o orgulho de colocar na pauta das importâncias primordiais do dia a emancipação do homem pelo homem, o seu retorno paulino à comunhão do traço distinguidor intrínseco do espírito e não da escravidão aos que aproveitaram os rumos errados dos sistemas e dos regimes para exercer a dominação centenária. E espírito talvez seja a mais desgastada das Palavras Sagradas.
A lucidez de Zizék pode torná-lo um dos profetas dos finais dos tempos, como ele deixa intuir sombriamente em diversas passagens de seus livros, mas o seu salto no vazio propõe ser festivo. Como ele esclarece em suas divagações hilárias sobre a hipotética teoria sexual de Hegel, o sexo é um dispositivo de dissipação irrisória demais para os filósofos, esses que tem à disposição de si todas as maravilhas do pensamento. Tal felicidade é a mesma da qual fala Marx, que pode bem ser traduzido na liberdade para a busca das potencialidades do espírito humano através do tempo livre, tempo esse que nos é tomado abominavelmente pela obsessiva imposição de acumulação de lucro e de devoção ao crescimento das empresas e megacorporações. O que são as luzinhas coloridas das telas de celulares e das televisões de plasma e as infintas horas de distração hedonista que nos obrigam a consumir esquizofrenicamente diante nossa riqueza como seres espirituais, como seres reflexivos e pensantes, que podemos tomar nas mãos a corrente de nossos próprios rumos? Hoje mesmo é um evento de pleno otimismo que em várias partes do mundo esteja havendo manifestações solidamente explosivas contra o sistema financeiro neoliberal, que estejam ocupando centros financeiros (mesmo a reocupação recém-abortada por policiais de Wall Street que ocorreu ontem é um indicativo de que as atitudes são sérias), que a internet esteja sendo usada como difusora de ideias de reação a tudo que está aí, e que se possa marcar através do ciber-espaço os encontros de ocupação e protestos. Os tempos não estão nada tranquilos e seria leviano se alguém apostasse o contrário. O Espírito Santo de Zizék nos instiga à benção adstringente de poder ainda acreditar na mudança, e ver a incrível vantagem de que o Esclarecimento possa nos orientar para novos rumos desviados da didática visão dos erros cometidos no passado_ e da parte mais importante de toda revolução: o que fazer no dia seguinte à revolução. A superior humildade do pensamento, como escreveu Magris.
O Espírito Santo que Zizék lança a chama por sobre as cabeças dos insatisfeitos amuados em Wall Street é não apenas sua iconização da vontade sagrada humana, muito além da perda de significado na formalização anestésica da etiologia católica e pentecostal, trazida de volta para o frescor da palavra, como também o mais próximo da antifilosofia fisicamente ativa a que se pode chegar alguém que foi criado no mundo das ideias a ponto de correr o risco de se atrofiar por elas. Diante a multidão que o ouvia, Zizék repetiu instantâneamente o que se é conseguido após horas de estenuação na leitura de seus livros: a suposição de liberdade reacionária que o limite do esclarecimento oferece. Zizék nos confronta com a exigência do treino para o aprendizado sobre a Verdade, a sua procura acima de qualquer distração, a sua recusa humilde de tê-la alcançado, o paradoxo da segurança imbatível em si mesmo e a ausência honesta em dar ouvidos às correntes modernas de cinismo para achar-se criticamente digno de merecer a Verdade e combater por ela. Zizék é da mesma classe de homens comuns emancipados que tem uma concentrada fagulha de Verdade para oferecer para os insatisfeitos, tal qual uma miríade de outros homens que usaram da forma mais auto-exigente possível a potencialidade reflexiva. O Espírito Santo invocado por Zizék é a sua fé em que a História não chegou ao fim, é a sua visão nietscheana de olhar a espécie à qual pertence de cima dos cumes das montanhas do pensamento, possuído pela soberba desaforada de que o pensamento é uma criação dada exclusivamente ao homem e por isso o orgulho de colocar na pauta das importâncias primordiais do dia a emancipação do homem pelo homem, o seu retorno paulino à comunhão do traço distinguidor intrínseco do espírito e não da escravidão aos que aproveitaram os rumos errados dos sistemas e dos regimes para exercer a dominação centenária. E espírito talvez seja a mais desgastada das Palavras Sagradas.
A lucidez de Zizék pode torná-lo um dos profetas dos finais dos tempos, como ele deixa intuir sombriamente em diversas passagens de seus livros, mas o seu salto no vazio propõe ser festivo. Como ele esclarece em suas divagações hilárias sobre a hipotética teoria sexual de Hegel, o sexo é um dispositivo de dissipação irrisória demais para os filósofos, esses que tem à disposição de si todas as maravilhas do pensamento. Tal felicidade é a mesma da qual fala Marx, que pode bem ser traduzido na liberdade para a busca das potencialidades do espírito humano através do tempo livre, tempo esse que nos é tomado abominavelmente pela obsessiva imposição de acumulação de lucro e de devoção ao crescimento das empresas e megacorporações. O que são as luzinhas coloridas das telas de celulares e das televisões de plasma e as infintas horas de distração hedonista que nos obrigam a consumir esquizofrenicamente diante nossa riqueza como seres espirituais, como seres reflexivos e pensantes, que podemos tomar nas mãos a corrente de nossos próprios rumos? Hoje mesmo é um evento de pleno otimismo que em várias partes do mundo esteja havendo manifestações solidamente explosivas contra o sistema financeiro neoliberal, que estejam ocupando centros financeiros (mesmo a reocupação recém-abortada por policiais de Wall Street que ocorreu ontem é um indicativo de que as atitudes são sérias), que a internet esteja sendo usada como difusora de ideias de reação a tudo que está aí, e que se possa marcar através do ciber-espaço os encontros de ocupação e protestos. Os tempos não estão nada tranquilos e seria leviano se alguém apostasse o contrário. O Espírito Santo de Zizék nos instiga à benção adstringente de poder ainda acreditar na mudança, e ver a incrível vantagem de que o Esclarecimento possa nos orientar para novos rumos desviados da didática visão dos erros cometidos no passado_ e da parte mais importante de toda revolução: o que fazer no dia seguinte à revolução. A superior humildade do pensamento, como escreveu Magris.
Charlles, quando eu era pequenino, eu li uma bela história de uma menina que fica desamparada numa noite de Natal. Com ela só há uma caixinha de fósforos. À medida que ela vai acendendo os fósforos, vê todos os elementos que compõem um Natal Feliz. Quando acende o último fósforo, ela se encontra num lugar maravilhoso. Só mais tarde encontram o corpinho dela morto. Tenho boa memória, e acho que o conto de fadas não é o mesmo de Dostoiévsky - é incrível, mas ele tem o dom de nos afastar de Deus, já percebeu? E ele quer que pensemos o contrário. Mágico, isso. Bem, será que esse conto que li não é uma adaptação do conto dele? - nunca gostei de adaptações. O livro era belíssimo: sinto as cores, as paisagens...
ResponderExcluirQue belo texto, Charlles, fiquei com saudade de Constantino Ariza e Fermina Daza. Sabe o que vou fazer? Pegar o livro em minha pequena biblioteca nos fundos de casa.
ResponderExcluirHoje, por uma dessas coincidências que são apenas coincidências, publico um texto CONTRA o faccionismo crentes x descrentes que, penso eu, não é tão importante quanto julgam algumas pessoas, e que mesmo uma LINGUAGEM tendente à investigação metafísica dos fundamentos da vida pode aprofundar essa nossa busca por significado e sentido, por mais inútil que seja.
ResponderExcluirLi algo engraçado de um reacionázio sobre o Zizek, dizendo que ele não é matéria de discussão, mas simples caso de polícia.
Não que ame e compreenda ou tenha lido Zizek muito profundamente, mas percebo que ele, como vanguarda de um novo comunismo, pode ser, por seu comportamento e figura, uma demonstração, para os mais pragmáticos de esquerda, do quanto pode ser perigoso o canto da sereia da revolução e que, se por detrás do Ocupe Wall Street está esse ser "ensandecido", é melhor a busca pela "Terceira Via". O suposto "radicalismo" da esquerda nos levou a soluções de compromisso como as que produzem esse debate inútil do governo em meio aos processos de corrupção, que são inerentes ao que se entende por democracia. O resto é máscara.
Por isso é tragicômico o fato de que a máscara de Zizek espante tantos, reconduzindo mais pessoas para o centro do que para esquerda.
Como vemos as coisas hoje na Europa, mais uma vez o "mercado", isto é, o conjunto de meia dúzia de corporações financeiras, está a ganhar o jogo, impondo governos favoráveis à sagrada causa do "ajuste fiscal", isto é, o comprometimento das riquezas dos países não com o povo que as produz, mas com o pagamento das dívidas públicas fomentadas por esse mesmo "mercado" que antes tomara por refém o processo político e dominara os Estados e seus programas de governo CONTRA seus próprios povos.
Parece que vem mais uma derrota no caminho. E, como vimos há muito, em Rasga Coração, do Oduvaldo Vianna Filho, a esquerda se acostumou à derrota, e chega até a comemorá-las. Talvez o Zizek seja, nesse contexto, o nosso bobo da corte.
Acho que deve ser uma possivel adaptação de Dostoiévski, Milton. E...quem não gosta de O Amor nos Tempos do Cólera?
ResponderExcluirRachel, o risco de ser um bobo da corte é sempre cogitado por Zizék. É o tal "salto no vazio". Mas, lembrando Jung: " a única coisa que nos resta é a tentativa."
Ele descreve de forma fantástica a tentativa e o sacrifício ao interpretar a ação pré-ontológica_ antifilosófica_ de Kierkegaard, em Visão em Paralaxe.
Querido Charlles,
ResponderExcluirque o tempo entre as minhas respostas não seja um distanciamento entre nós, mas pelo contrário. Seu post me fez refletir muito… E, efetivamente, quando diante do olhar de meu filho pequeno, sem dúvida, estou também diante do Espírito de Deus (Amém!...).
DO OUTRO LADO DO RIO
by Ramiro Conceição
Lá, do outro lado do rio, talvez
algo esteja alegre e compense
a tristeza de cá.
Lá, talvez, comece a lucidez
que lave a insensatez deixada aqui,
mas que precisou partir ao outro lado
onde talvez comece tudo,
pois, afinal, quem sabe exista só
um lado e, enfim, mortos e vivos
façam parte dum universo sem lados.
Disso ninguém sabe efetivamente!… E
o interessante é que, não importa o lado,
sempre pousamos… cá ou lá… calados!
NOSSO LADO
by Ramiro Conceição
A inocência… é o Espírito de Deus;
mas vaidade e o poder são as faces
vis… do nosso substrato humano.
Por isso, amor, tenhamos cuidado
com quem estiver… ao nosso lado.
Charlles,
ResponderExcluirque tudo esteja sob o imenso sol e também luar desse seu Goiás e que tudo seja um pensar-sentir assim:
http://www.youtube.com/watch?NR=1&v=QgyKUEvAsxo