quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Diários II, de Susan Sontag



Susan Sontag deve ter sido uma companhia maravilhosa. A felicidade que ela tinha pelas ideias e pela arte, sua total e absoluta dedicação ao pensamento, não deve ter passado batido para sua simpatia pessoal. Em tudo o que ela escreveu tem espírito. Em cada um de seus magistrais ensaios há êxtase, contemplação, engajamento, sinceridade, profundidade e leveza. Ela transformava os assuntos mais descansados e intranscedentes em uma revolução contra os conceitos instituídos. Foi graças a ela que coisas que antes eram tidas como lixo ou temas que não eram de bom tom mencioná-los, passou a serem vistos como alta cultura, como expressão artística relevante. Graças a Sontag vários escritores importantes, mas que estavam afundados em seus esquecimentos étnicos, foram trazidos para o centro da mídia cultural mundial. Ela destrinchou vários artistas obscuros; uma menção dela fazia com que esses criadores se tornassem notícia e alvos de uma irrestrita atenção. Mais ou menos o que Borges fez com vários autores esquecidos. A Companhia das Letras presenteia o leitor brasileiro neste final de ano com o segundo volume de seus deliciosos e imprescindíveis diários. Neles se vê, ainda mais que em seus ensaios, o quanto Sontag era uma energia comburente inesgotável. Feitos de fragmentos pequenos de textos e anotações soltas mas regradas, esses diários são uma fonte valiosa sobre as ideias, a fé imbatível na escrita e na literatura, e o rico cotidiano da autora com seus encontros com escritores e artistas de todos os nichos. É simplesmente uma delícia lê-los. Este segundo volume é mais generoso: tem 580 páginas, 250 mais que o primeiro. Sontag era inesgotável em ideias: aqui há enredos de romances, silogismos sobre todos os assuntos, listas de seus melhores livros, cronologias sobre seus projetos, segredos, conversas secretas. E em tudo, como eu disse, há espírito. É uma festa!

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Lendo Hermann Broch



Estou lendo "A morte de Virgílio", de Hermann Broch. Os escritores em alemão tem algo muito idiossincrático, que os tornam bastante distintos das outras literaturas. Eles acreditam profundamente que a literatura é algo sagrado, algo que possibilita que eles entrem em contato com Deus. Mesmo não acreditando em Deus, mesmo sendo avessos a toda ideia de espiritualidade, não há outros escritores que empreguem tanta espiritualidade na forma como escrevem como os da literatura em língua alemã. Eles não são estetas da palavra concisa como alguns russos, que também são escritores divinatórios; eles, pelo contrário, são palavrosos, cerebrais, olímpicos, pretensiosos ao extremo, brutalmente seguros da importância de seus papéis em manejarem algo tão poderoso e aristocrático quanto a escrita. Quando Grass ganhou o Nobel, me recordo de um crítico nacional dizendo que um escritor brasileiro jamais ganharia o prêmio porque este não se leva a sério. Os que escrevem em alemão não tem medo de ficarem loucos, de se tornarem mendigos (Musil assume quase essas duas realidades), de serem odiados, de serem perseguidos. A escrita é o templo deles, é o que lhes basta. E todos eles passam isso para o leitor, essa autarquia estética e ética, essa felicidade que é a maior de todas as felicidades, essa Missão. É assim que me deleito com esse romance de Broch, aceitando o convite. Enquanto o leio_ a mesma sensação de quando leio Mann, Musil e Grass_ sinto que nada mais importa, a não ser a sua leitura. É uma leitura tão inexoravelmente elevada que fico esses dias em um estado de imolação extraterrena, a mesma coisa que eu sentia quando me submergi em "O homem sem qualidades" ("Você está me chamando para me preocupar com isso? Sabe, por acaso, que eu estou lendo Musil?")

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Um duelo



Vi o especial da Globo News sobre Bob Dylan. O mais legal foi ver Paulo Henriques Britto falando que Tarântula, o livrinho de variações despirocadas do Dylan que ele traduziu nos anos 80, é o que é, um livrinho de variações despirocadas, e que se fossem procurar a relevância literária teriam que ir nas letras. O repórter pediu que ele lesse um trecho de sua tradução, e o Paulo, muito senhor de si, leu algo que ele sabia que iria soar como uma capa de caderno rabiscada de um colegial. Quando da repercussão do Nobel, haviam 4 Tarântulas na Estante Virtual. Custavam acima de 100 reais, e uma outra acima de 200. Mas havia uma que custava 49 reais. Como nesses filmes em que muitos consumidores enlouquecidos se veem parados diante uma gôndola de supermercado com um só produto em promoção que sobrou da devassa, eu corri para efetuar o login e comprar o livro. O livro caiu no carrinho, mas, quando fui concluir a compra, a coisa travava. A página caía em um fundo em que se dizia "não foi possível acessar essa página". Eu vi claramente o livreiro ensandecido do outro lado tentando com todas as forças fazer com que eu não efetivasse a compra, para que voltasse com o livro super-valorizado. Ficamos nisso por horas, eu voltava à página e o volume continuava em meu carrinho, mas não conseguia comprar. Jantei, tomei meu vinho, brinquei com a patota ouvindo Bob Dylan, e de ora em ora ia lá brigar com o vendedor, puxando com um supetão a beirada do livro que me cabia. Fiquei com o note ligado a noite inteira, com a página na Estante Virtual. Só lá pelo meio-dia do outro dia liberei o cara. Eu estava aliviado em não comprar um livro apenas pelo fetiche que aliás eu nem tinha. Como último floreio da espada eu escrevi uma mensagem para o livreiro dizendo que se ele quisesse me vender por 50 pilas, incluso aí o frete, eu comprava, que o livrinho era ruim e não valia mais que isso, e que logo seria republicado e ele ficaria com aquela velharia estocada. Ele me respondeu que passaria a proposta, no que eu notei uma revigorada ironia em ter ganho a parada. Duas horas depois vi que ele pedia 110 reais. No final da tarde voltei a acessar, e não havia mais nada.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Mais uma vez o prêmio Nobel



Aventa-se que tal prêmio homenageia a literatura beatnik, a contracultura libertária, certa apologia das drogas, certa vivacidade da língua jovial, o coloquialismo e a renovação meio bandida e anti-acadêmica da prosa poética,e, além do mais, é um cachimbo da paz com a literatura norte-americana. Então por que não deram o prêmio para o maior escritor norte-americano vivo, Thomas Pynchon, que representa isso tudo muito mais que Dylan? Pynchon tem uma legião de fãs apaixonados, assim como Dylan. Se a mulher tivesse dito "vai para Thomas Pynchon", seria uma convolução no mundo cultural, mais do que com Dylan. Estaria-se discutindo avidamente sobre literatura no mundo todo, em vez dessa bobeirinha efêmera que acontece e já está se apagando em torno do Dylan. Haveria uma super-exposição bastante positiva sobre modernidade artística e sobre o pós-modernismo nas letras _palavras pomposas e vazias no caso de Dylan, mas que se encaixam bem no caso de Pynchon. A academia sueca deu, na verdade, foi um tiro no pé se pretendia causar polêmica e chamar os holofotes para si. Se tivesse dado o prêmio para Roth seria uma reação morna, esperada, mas se desse a Pynchon seria um furacão de renovação na crítica literária e no mercado livreiro. Mas em vez disso, eles cometeram essa patacoada. O que reforça mais uma vez que literatura já não é mais o que importa para a academia.