sexta-feira, 10 de abril de 2020

A cadela



Os dias tinham uma oligarquia própria e os domingos eram os reis depostos, os monarcas guilhotinados da cosmogonia sem surpresas da semana de Timos. Quando era jovem, odiava os domingos, que eram dias em que sua independência ficava ainda mais longe de ser conseguida porque tinha que se subordinar à vontade da viagem da mãe, ou dos encontros protocolares com alguma namorada. Agora, aos 38 anos, esses dias lhe pareciam o que na verdade eram, mas estava distante da possibilidade de visão do homem citadino: eram encaixes lógicos do mecanismo, recortes da perfeição matemática do objeto obscuro e sem sentido da prisão da rotina. Trabalhar, transportar-se, apetites reativados, colheradas, coito, e depois, trabalhar, se deixar levar pelos ônibus com o odor acidulante da graxa passada por cima de camadas de suor que nenhum alvejante conseguia limpar. E aqueles dias imóveis, iluminados como se para sua realidade brutal fosse atenuada, entrepostos como guardas eunucos em cima do parapeito de um castelo. Restava em Timos a resignação contra o caráter acachapante dos domingos que era sempre conseguir transformá-los em inspiração para músicas ou letras baratas, nas simulações solitárias de que tinha uma banda de rock. Uma abstração fundamentada em olhá-lo não diretamente mas por vias distorcidas, de maneiras que podiam ser representados por rostos femininos escorados na janela, lânguidos corpos seminus em sacadas áridas. Naquele país os domingos atrelavam-se a golpes, mas nada os tornavam mais detestavelmente mortíferos do que serem o dia primordial dos péssimos programas de televisão. Sua mãe e ele nunca assistiam a esses programas, que em sua infância ele recordava como aberrações de velhos vestidos de palhaços e dançarinas de colant com sorrisos vazios. Onde quer que fossem, a televisão estava sempre ligada, armazéns, barbearias, alguma eventual visita a familiares. De modos que era impossível ficar longe daquilo. E nos domingos a alma do país, incorporada na sacralidade vicking do futebol, passava na tela no desfile dos guerreiros de shorts e camisetas coladas posicionando-se para lutar pela nação, ou por uma das tantas partes da nação que se digladiariam umas com as outras na dramatização de uma guerra civil que fora daqueles ensaios nunca existira. O futebol lhe causava indiferença da mesma forma que os pastiches de auditório, mas aquilo acabou por se escorrer para dentro dele, ou, antes, escorrer para dentro do modo como ele apercebia aquele rei gordo e decapitado que estava na linha de sucessão perpétua às segundas-feiras matronas, às terças-feiras beatas, às quartas-marinheiros deixadas em terra firme, às prometedoras quintas-feiras dos filósofos socráticos que por sua vez eram substituídas pelo ar da montanha das sextas-filósofos germânicos clássicos e pelo sábado-existencialista. Ou algo assim, Timos nunca catalogara a sequência além de uma piada silenciosa e vagamente cerebral. Mas os domingos sim se encaixavam como uma luva à figura de monarcas caídos. Um palácio de Versalhes em ruínas sobressaía-se como um fogo fátuo às praças desertas da cidade.
          Ele fizera um chá preto e o tomava de frente à janela, olhando a rua deserta por onde passava uma procissão de cachorros. Uma esfarrapada cadela marrom, acostumada com uma vida sem eufemismos, se mantinha séria e concentrada à frente deles. Não fazia que não via os seis ou sete cães miseravelmente fanatizados dentro do raio de sua vulva inchada, mas realmente não tinha tempo para notar à turba mais do que veria algumas moscas que a incomodassem. Timos observava as grades das sacadas dos prédios em frente, os jornais arrastados pelo vento pelas ruas, o sol projetando-se com a falta de estímulos regimental de um funcionário público nas vitrines, quando os cães surgiram. Dobraram no alto da esquina à esquerda e vieram se aproximando em uns trancos desconjuntados e desgraciosos, se chocando como um só organismo de múltiplos pés e cabeças contra as paredes e uma lata de lixo, até que entraram de vez no seu campo visual pegando um tanto do deleite de sua distração para si. Uns cães inteiramente motivados por um propósito, com exceção da cadela, que estava inserida na vida com as quatro patas. Os machos pulavam-na, cheiravam sua vulva, às vezes um entrava na dimensão solipsistas do outro e era rechaçado por um rosnado e uma mordida, enquanto ela focinhava a sarjeta, vasculhava debaixo das lixeiras, parava um instante para olhar ao longe do outro lado da rua, como uma matrona atarefada olhando se o açougueiro abrira o açougue, e depois seguia, lascando suas mordidas e reclamando daquele contratempo ridículo que lhe estavam causando. De repente, com uma fortuidade astuta, um dos machos galgou suas ancas, sem pressa, deslizando-se na lei milenar que lhe autorizava a isso, e começou a encaixar o projétil rosa desbotado que tinha como pênis por entre as almofadas tesas e vistosas do sexo dela. Isso pareceu acionar alguma antiga lembrança na cadela, como se uma frase ouvida de algum passante a fizesse se lembrar de algo importante que indesculpavelmente havia esquecido, mas tal sensação passara rapidamente e ela sentiu a velha coisa exigindo entrada em sua velha porta de acepção e imediatamente ela virou a cabeça numa versatilidade que se servia de um bem moldado feixe de músculos e tascou uma mordida de extrema ferocidade na orelha do cão. Este, apesar de ser um pouco maior que ela, e bem mais jovem, pulou fora e ganiu com um desamparo que parecia pedir justo à sua agressora algum piedoso refúgio maternal.
          Timos sorvia o chá e olhava com inesperado interesse àquela quebra de continuidade do cenário. Não eram felizes, nem os famintos e obcecados, nem a fêmea atarantada pelos arranjos da sobrevivência. Ele adorava cachorros, mais do que gatos; ou não, fizera uma curva proibitiva em seus gostos e passara a gostar de gatos tanto quanto gostava de cachorros, mas compreendia porque os muçulmanos julgavam cães animas imundos. Eram os mais humanos dos animais no sentido da abjeção e da libido, e, ao contrário do homem, que disfarçava suas lástimas higiênicas escondendo-as em tecidos e perfumes, toda a selvageria da natureza transparecia em seus pelos. Deus parece ter tido piedade dessa sua criação pois retirou dela a tragédia de suar pela pele, limitando a fazerem isso pelas almofadas das patas. Do contrário, o grau de degradação seria tão grande que vai ver não teriam sobrevivido, a evolução teria acabado com eles como fizera com as aves de escamas, ou teria destinado a eles, como uma misericórdia ocasional, uma região insular própria, como fez com as equídeas. Continuou olhando a matilha por algum tempo mais, já sem prestar atenção, e seus pensamentos planaram sobre cães e gatos, imaginou se o professor doutor que morava no andar de baixo teria um gato, não era a cara dele, mas se algum dia se deparasse com um siamês gordo e cinza identificaria imediatamente alguns pontos de atalho para se chegar a um núcleo recôndito da personalidade dele. Um gato com um nome de um filósofo, ou quem sabe de algum obscuro e muito específico historiógrafo de alguma guerra da Europa medieval que se ele desaparecesse com seus livros e alguma estante de uma faculdade pacata pegasse fogo estaria esquecido para sempre. Um gato chamado Kant, Timos pensou, sorvendo o chá ainda bastante quente e olhando a estoica cadela atarefada dobrar a esquina seguinte, sumindo daquele setor do universo que coube a ele registrar na memória, naquele domingo desterrado do infinito, como diria Baudelaire. Um dia teria o ânimo para bater à porta do professor, na maior cara dura, e violenta-lo com uma conversa? Um dia veria o sedoso gato vernacular, com seus bigodes obsidianos e seus olhos carregados de um tédio avaliativo deitado em cima de um livro em capa de couro?
          Saiu de frente da janela e voltou para as sombras do quarto. Era hora de acender a luz. As unhas defuntinas do domingo se alastravam por cima da cama, como um ator alquebrado de um filme alemão dos anos 20. O domingo ia embora e Timos mais uma vez saiu ileso dele. A cabeça acostumada com a luxúria da coroa rolava pelo cadafalso e nada acontecera, nem uma revelação, nenhuma notícia desagradável. Perseverou com a luz apagada, olhando as cobertas revoltas no colchão da sala, uma revista de filmes aberta por sobre a poltrona de couro, o abajur parecendo uma pirâmide tailandesa ao lado, verde musgo no meio do escuro por sobre a escrivaninha que continha um palimpsesto das contas de luz e extratos bancários. Atirou a revista por cima do colchão, comprada na livraria do shopping quando comprara uma lote de resmas de papel para escrever seu tratado, e se sentou. Não queria escrever. Escrevera por horas seguidas naquela tarde, e era por isso, segundo a crença de seus instintos, que o tempo correra tão depressa. Se escrevesse um mês sem parar, com pausas apenas para se alimentar e realizar suas necessidades básicas, quanto tempo pularia para o futuro? Sentia-se leve, a mente latejando, agradavelmente sem ideias, se permitindo um estágio de afasia idiótica, como se tivesse cumprido seus deveres com o que determinava a razão de sua existência e agora estivesse no crédito. Em certo momento em que fazia a síntese mais concentradamente costurada do que ele sabia sobre a tirania, viera-lhe a dúvida de se aquilo tudo não era um engodo auto motivado. Se tudo aquilo não era apenas uma brincadeira, como ele fazia no pátio do prédio quando era criança. O que havia para dar legitimidade ao que ele retirava do profundo de sua alma e depositava no papel? Apenas o fato literal que comportava nesta frase, o fato de ser algo que ele acreditava profundo e vindo de uma abstração que ele tinha que acreditar para justificar não ser apenas um gorila destrinchando uma folha, isso que ele chamava de alma. Mas continuara escrevendo, continuara seguindo aquela vontade que funcionava mecanicamente. Se era a alma, era podia render através de espremidas constantes da mesma forma que uma madeira rende sob o fornilho ou a vaca produz sob o empuxo da mão que ordenha. Era um ponto de conexão com a matéria que tornava a alma muito suspeitamente uma imaginação de uma glândula. E o cansaço beatifico que o manuseio bruto da alma causava aumentava essa impressão. Se isso fosse verdade, ele percebia o paradoxo que era destilar o que lhe parecia o sumo mais refinado da alma e coloca-lo como pensamentos no papel e a própria fisiologia da alma dizer que sua carnalidade pura autorizava todo o tema de seu trabalho. A alma sendo glândula a tirania e a própria miséria inescapável da história seriam o que há de mais natural, a disputa a céu aberto que acontecia na caravana de dias iguais seria a razão da existência, sua força combustiva, sua bateria solar de energia inesgotável. Tudo que ele estava escrevendo e os séculos de poesia seriam inúteis, todos seriam apenas crianças brincando no pátio simulando que era uma floresta. E tudo indicava que a verdade era essa. Era essa a verdade, Timos falou em voz alta, analisando a textura de suas palavras para ver como soaram. Schopenhauer teria uma voz cinzenta, depravadamente alcoólica, abnegadamente feliz saboreando essa verdade como um ácido cítrico excessivamente azedo na língua. Enquanto sua voz soava apenas como um cidadão sem muitas impurezas a não ser as horas que o separavam do banho de ontem, sem nenhum pecado. Schopenhauer seria a cadela no cio já em um estágio de pureza de sofrimento que não tinha tempo de se ligar a uma penetração anal ligeira. Não era certo falar assim de um busto tão reverenciado. Ainda que o velho alemão gostasse muito de falar umas sandices para as prostitutas que levava para seu pequeno quarto. Ele deveria sentá-las no colo, uma em cada perna_ porque o regime almático de metafísica desconstruidora deveria lhe dar uma libido imune à idade_, e dizer algo sobre Hegel, como aquele honorável professor de voz pausada, tendente ao agudo feminil quando lhe despertava o ódio ao um de seus discípulos fieis fofocar que o professor sem alunos e velhuscamente alquebrado andava dizendo barbaridades sobre ele, aquele grande pensador limpo e bonito, bem criado nas artimanhas da vida fútil burguesa para ver a desgraça a que tudo se dirigia infatigavelmente em um prazeroso conforto. Deveria rir para as putas enquanto o imitava, e se tinha algo que o Schope era bom era na arte da maledicência, e elas riam de volta com suas carinhas sacanas olhando para ele entreabrindo os olhos de lascívia, sem entender nada do que ele dizia mas sabendo que era o veneno depurado mais mortal do mundo. A velha cadela do Schopenhauer. Riu alto ao saborear a descompostura e deselegância da frase. Daria o título de um ensaio, desses que a gente usa para suicidar a carreira e procurar a fênix que iria nascer no lugar.
          Não sentia a mínima vontade de averiguar o que escrevera. Estava tudo no computador, 17 páginas em fonte colibri e tamanho 16. Apesar de tudo, sentia que tinha voado sobre uma região aprazível, sentira o vento da tundra e o gelo onde os lobos corriam embaixo. Uma glândula era o tesouro da biologia. Havia tanto desejo nela, tanta previsão de mundos, tantas utopias redivivas e eternas que se repetiam como um cacoete passado de avô para pai e de pai para filho. Não adianta resistir a ela nem com toda a lucidez científica do mundo. Um glândula comportava algo do porvir do homem na última escala da evolução, sua mesma asfixiante felicidade e sua mesma resignada tristeza.
           A caneca estava vazia. Testou a garrafa para ver se caia uma última gota de chá, mas ela estava vazia como se um vento do deserto a tivesse exaurida enquanto pensava todas essas coisas. Estava vestido de calça jeans, camiseta e um pulôver para se proteger do frio, e usava meias marrons finas nos pés, descosturadas ao longo como espinha de peixe. Esticou as pernas, espreguiçou-se estendendo os braços até o limite, e sentiu um desejo de dormir, dormir como nunca fizera depois que crescera, dormir como quando dormia na infância, atarefadamente, com compromisso, em busca de resultados conhecidos. Sabia que não era mais apto a esse tipo de desligamento, por isso se deixou cair em cochilos na poltrona. Era uma poltrona muito boa, que sua mãe lhe dera da sua biblioteca particular. Chama-se poltrona do papai, ela disse, quando ele a visitara e ela lhe levou onde estava “algo que não lhe servia mais e queria lhe dar”. Viu aquele objeto tão espetacularmente feito para descansos inauditos e a quis de imediato. Raras as vezes acontecia isso de não ter o que confrontar aos agrados de sua mãe, por isso ele se calou, olhando o feltro macio desgastado, a plataforma de se encostar as costas, da cabeça aos pés, se inclinando em um v que se alteava nas extremidades e que deveria ser como deitar nas nuvens. Era velha, olhando para ela tinha-se a impressão de que seu tempo de uso gerira alguma trave quebrada entre o esqueleto de madeira escondido por debaixo da pele, e o tecido estava esgarçado, com fiapos alteando-se para o céu de brinquedo que comportaria aquelas fogueiras de felpo congeladas na cena após as tribos nômades terem-lhe abandonado. Tá bom, mãe, eu vou levar. Aquele presente entrara-lhe tanto no gosto que não raciocinara que era impossível leva-la nas costas até seu apartamento, exigiria um procedimento de mudança, homens fortes a carregando pela porta, um caminhão no qual ela iria para o outro lado da cidade. Queria ela naquele momento, às sete horas da noite. Como fora possível que não a vira antes? Fazia tanto tempo que não visitava a mãe? Sente-se nela, veja se é o seu tamanho, ela disse. Ele titubeou olhando-a com demora, ficou sem jeito e riu encabulado, daí passou uma perna por sobre os braços cantonados do móvel, de maneira pouco inteligente e improdutiva, cuja finalidade só poderia ser uma distensão dos músculos da virilha, e, quando viu que havia feito besteira deu um pulo por sobre ela, se segurando com uma mão no assento, e pôs o corpo por sobre ela, afundando levemente, cruzou os pés e ajeitou a cabeça por sobre as mãos lá em cima, no encaixe para a cabeça. A desembargadora riu, talvez lhe voltara algum fragmento de 30 anos atrás, algo terno e que trazia alguma centelha de culpa pelas recorrentes desistências de sua parte em avaliar, algo solto na prancha onde as lembranças mais importantes e necessárias ficavam grudadas. Pegue aquele livro do Kipling para mim, ele lhe pediu, apontando para a terceira estante de mogno, a encomendada por último porque a tinta vermelha sanguínea demonstrava ser recente, recente na escala de sua mãe de dois anos, encostada nas sombras rembranteanas que toda biblioteca doméstica tinham, o Kipling da coletânea de contos de terror, aquele livro que ele amava infinitamente, e que como todo amor infinito ele não trazia seu objeto junto a si por onde andava, porque sabia que o amor para esses pequenos gigantes fundamentos de sua alma eram reecontrados após longos anos de abandonos e justo em momentos memoráveis. E aquele era um momento memorável, ela retirou o livro da estante, sem deixar tombar os outros que lhe avizinhavam (sempre muito perita com o uso do corpo, quem ele havia puxado em sua falta de charme e sua total falta de economia gestuária, já que seu pai também era como um Nijinski dos atos cotidianos, que pegava uma xícara de café da cafeteira como se fosse uma espada samurai de porcelana), e lhe entregara. Quando ela saiu, ele abrira no conto “Eles”, sobre as crianças fantasmas no jardim da senhora inglesa cega, e no final do segundo parágrafo, quando o impressionado e ostensivo Kipling passeava com seu automóvel à combustão, uma invenção caríssima e recente, ele caíra em um sono absoluto.