Hoje recebi esse e-mail e comentário do Luís Augusto Farinatti. Não dá para dizer o quanto essas palavras me sensibilizaram. Peço ao Farinatti que me permita colocar seu texto como post. Pelo muito já que o conheço (incrível, pois não o conheço pessoalmente!), sei que a exposição de algo tão pessoal e tão íntimo não o ofenderia. Ainda mais que o que escreveu é tão precioso que não posso deixar relegado à caixa de comentários, pelo risco de não ser lido pelos eventuais leitores desse blog. Não sei o que te dizer, cara, por agora. E é melhor que eu não diga nada agora. Segue as palavras do Farinatti.
Charlles
Acho que nunca te contei a história inteira. Se já contei, me perdoa. De qualquer modo, vai agora. Desculpe a confissão, mas teu post me dá essa liberdade.
Nos últimos anos, tenho desenvolvido pendores para o sombrio. Vinha ficando cada vez mais pessimista. É possível que tudo tenha piorado em 2008. Meu pai sofria do Mal de Parkinson desde os 25 anos de idade. Isso não o impediu de ser um pai muito atuante na minha vida. Além disso, trabalhava, dirigia, contava piadas e andava de bicicleta. Porém, nos últimos anos, foi ficando realmente alheio, eu o sentia navegando para longe, por detrás dos olhos ausentes. No último dia do ano da tristeza de 2007 caiu inconsciente, foi para o hospital e lá ficou, em sofrimento, até morrer em outubro de 2008. Em mim, o efeito da sua lenta agonia foi devastador. Creio que ainda não me recuperei completamente.
Enquanto isso, eu e a Nikelen tentávamos engravidar, sem sucesso. Pesadelo freudiano: meu pai não conseguia morrer e eu não conseguia ser pai. Por uma dessas estranhas simetrias, fiquei sabendo que ela estava grávida uma semana antes de meu pai falecer. Foi uma semana catártica. Dois meses depois, passei no concurso para a universidade pública em que trabalho agora. Era janeiro e fui passar as férias à beira mar, em Santa Catarina, com minha mulher grávida. Foi ali, com os pés molhados na orla da praia, que decidi deixar o pessimismo que havia tomado conta de mim. As coisas estavam dando certo. Percebi que uma gravidez poderia ser um verdadeiro trem fantasma para um sujeito assustado. Decidi, então, que seria extremamente otimista durante todo o processo. Era o melhor para mim, para ela e para o Miguel, que eu já tinha visto no ultrassom e com quem falava todos os dias na barriga da mãe, como tu com a Julia.
Cumpri minha decisão com abnegada disciplina. Era fácil, a gravidez ia muito bem, o pré-natal indicava mar calmo e velas a todo vendo. Era fim de março e eu estava em uma reunião quando vieram me chamar à porta. Disseram que eu telefonasse imediatamente para casa. Liguei, a Nika estava chorando. Sentia muita dor. Corri até em casa e fomos ao médico. Contrações, ele disse. Era muito cedo, apenas 6 meses e meio de gestação. Porém, na maioria dos casos, isso se resolve com remédios e repouso. Três dias e a dor só aumentava. Fomos para o hospital para que a Nika fizesse a medicação na veia. Uma semana no hospital e as dores não passavam. Certa manhã, ela teve febre alta. Chamaram-me na aula. Quando cheguei, o obstetra estava ao lado dela, acompanhado de um cirurgião e de um infectologista. Disseram-me que ela estava com uma obstrução intestinal. Era necessário operar, com anestesia geral, e tirar a criança.
Por algum motivo que ainda não percebo bem, talvez pelo choque, entendi que havia risco para o Miguel, mas não para a Nika. Associei a cirurgia dela à extração de um apêndice ou coisa que o valha. Fui até a porta do bloco cirúrgico com ela. Falei que o médico me garantira que tudo iria ficar bem com os dois. Cerca de meia-hora depois, me chamaram no elevador: a pediatra trazia o Miguel com uma enfermeira e um tubo de oxigênio. Fiquei catatônico, só percebi que ele tinha a boca da Nika. Antes que eu desse por mim, a porta do elevador se abriu e eles entraram na CTI Neonatal, me deixando do lado de fora. Um século depois, a Dra. R. saiu de lá e me desfiou todas possibilidades tétricas, do risco de vida, passando por danos os mais diversos até a possibilidade de uma saúde perfeita. A essa altura, meu negativismo voltara e já não conseguia escutar a parte das boas perspectivas.
Três horas depois, eu estava no pátio do hospital quando vieram me chamar porque o médico que havia feito a cirurgia da Nika queria falar-me. O risco de vida é grande, ele disse. Houve perfuração no intestino e septicemia. Risco de seqüelas também. Fui para casa e eles ficaram um em cada CTI.
Os meses seguintes foram duríssimos. Escrevi assim a um amigo:
Há processos indescritíveis acontecendo em cada um de nós três neste momento. Eu sigo, tentando dar a mão para eles, me equilibrar, ajudá-los a encontrar seus equilíbrios para dançar com graça no caos.
O estado clínico da Nikelen é muito bom, mas a recuperação é lenta. Miguel vai vencendo dia a dia as etapas. Eu vou lá com um e com outro. Dois andares, três corredores, e tento juntar os fios para eles.
Tudo agora é tempo. Dentro dele: paciência, amor, esperança e força para vencer o medo e a frustração. Acho que aquelas virtudes são muito mais fortes que esses monstros. Vamos indo bem.
Como eu disse: tudo agora é tempo. No meu caso, o tempo é perigoso, por causa da angústia. Mas combato!
No caso deles, o tempo é a cura. Assim, posso dizer que o tempo, agora, é nosso amigo.
Teu carinho chega aqui alto e claro, cálido e forte.
Segue enviando.
Precisamos dele.
O final da história é feliz. A Nika teve uma recuperação que assombrou os médicos. Depois de mais duas cirurgias, amamentou o Miguel, voltou a trabalhar em quatro meses. Hoje é mãe do Miguel, dá aulas, está escrevendo um livro e pode engravidar de novo. O Miguel, que nascera com 1,5 Kg, ficou 50 dias na CTI Neo, e teve uma infecção hospitalar no período. Hoje, é um menino de saúde perfeita, com 1 ano e meio, que come como um viking e é tarado por carros “Papai Brum, Brum!”.
Eu sei lá o que pensar disso tudo, Charlles. Vou aproveitando o sorriso dos meus amores.
Depois de ler teu texto, sinto-me teu irmão em armas. Teu irmão no que há de belo, trágico e cômico na condição humana.