quarta-feira, 31 de outubro de 2012

As Portas que Sempre Caem com um Chute


Solicitei à Cia das Letras que me mandasse a coletânea de ensaios do David Foster Wallace, e a biografia do Marighella (não consigo deixar de me sentir chic ao dizer isso). Fui informado de que o Mariguella ainda está para ser publicado; mas hoje o carteiro me entregou o Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, do Wallace. Já no prefácio, de autoria do Daniel Galera, obtenho essa joia de citação de Wallace: "A ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas para ser realmente muito boa ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele". Segurei o livro para ler no feriadão que se iniciará na sexta-feira, em que minha irmã virá para passar aqui em casa, e que, já amanhã, perfilarei junto aos demais humanos no supermercado o clima de fim de mundo que vem com todos os feriados. Centenas de pessoas com suas cestas e carrinhos lotados com aquele olhar apreensivo de que se deve abastecer o bunker diante toda gama de probabilidades aterradoras que pode-se surgir diante a realidade inóspita de que o supermercado deixará de funcionar por um dia. Vai que a desatenção provoque o choque cósmico da falta de uma caixa de leite para o café da manhã? Mas lá estarei eu, junto a todo mundo, com minha cara de desabrigado iminente pedindo clemência ao chocolate em pó da Nestlé para que ele me proteja do furacão com o consolo do bolo de chocolate com raspas de laranja que certo dia descobri no blog da Nikelen e que se tornou vício caseiro compartilhado compulsivamente pela minha irmã. Embora eu mesmo não vá prová-lo, devido à dieta que me impus para voltar a usar duas camisetas com a estampa da capa do Tull, Too Old to Rock´n`Roll, Too Young to Die

Sempre que penso em Wallace me vem aquele célebre discurso em que ele observa compassivamente os consumidores de um supermercado. Esse texto consta no livro, com o título Isto É Água. Também no volume o texto sobre o festival da lagosta do Maine, esse maravilhoso ensaio que já mencionei antes no blog, e que se encontra disponível na íntegra aqui , assim como o Isto É Água aparece aqui. Há muito a aprender sobre o mal da ironia na linguagem moderna, na obra de Wallace, e isso me pareceu o mais premente a ser observado. E também o retorno da moralidade na ficção. Eu há muito me ocupo com o estudo dessa função da ficção, e às vezes me sinto na contra-mão das tendências. Escrevi sobre isso no texto O Século que Não Foi de Tolstói, em que expus a ideia de que os paradoxos sofisticados dos infernos kafkianos, beckettianos, e demais escritores do século passado que refinaram as mensagens veladas sob os enigmas, estavam por ser trocados, na ciclicidade ditada pela necessidade dos tempos, por autores mais diretos, mais incisivos e desmascarados (mesmo a máscara sublime da arte), devido as urgências de um cenário mundial à beira de um abismo que não parece abismo por suas redes de histrionismos e hedonismos, mas é abismo deletério como sempre foi a natureza unívoca dos abismos. Daí que se faz necessário um moralista do calibre genial de Tolstói, mais que um psicótico à busca da redenção pelo excesso do peso de Dostoiévski. É um posicionamento que oferece diversas frentes de ataque, e o primeiro deles é "mas deve-se levar a importância da ficção como modificador social a esse nível?". Lendo Cosmópolis, há uma cena em que o herói precisa fugir de um atirador e acaba ficando de frente a uma porta fechada; passa por sua mente avaliativa a lembrança de que todos os filmes de Hollywood, uma hora ou outra, apresentam a mesma cena: a convenção de uma sobrevivência posta em perigo devido ao clichê inescapável de uma porta fechada, resolvida por outro clichê que é o herói derrubar a porta com um simples e funcional chute. O herói de Dellilo conclui que a realidade, infelizmente para ele, é prostituída pelas ideias daninhas do cinema de entretenimento, pois as portas jamais cedem tão facilmente a um chute no mundo que existe sem os efeitos cênicos; daí, ele levanta o pé, chuta a porta e a porta cai de pronto no chão. É uma dessas ironias que Wallace talvez condenasse na ficção, pois, segundo suas palavras, "a ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe". Não levar a sério a importância modificadora da ficção é entregar os pontos para o inimigo que a usa massivamente na televisão, nos discursos políticos, nas propagandas das marcas das megacorporações, na imbecilização de tantas e sofisticadas formas de transmitir o imediatismo prostrante nos programas de televisão, nas telenovelas, nas imagens de amplidão ufanista dos partidos, nos copos de água a serem abençoados por cima das tvs e nas orações da Rosa de Saron; não corresponder desse lado de cá, com a força de reação que nos resta, é ser conivente com o crédito do presente eterno, sem passado e sem futuro, o presente imaculado que aprisiona tantos jovens que me olhavam, anuviados pelo rap, das carteiras de aula dos colégios dos quais abandonei a função de professor na época certa.

Daí vem outra questão, que não quero analisar neste texto descompromissado: o moralismo não acabaria com as sutilezas da arte? Mas não temos Conrad, Tolstói, o próprio Wallace (estremeci diante um texto do Galindo, o tradutor em trabalho de tradução da obra tijolácea de Wallace, Infinite Jest, dizendo que uma das miopias sobre esse livro é achá-lo de auto-ajuda!)? Recordo que Salman Rushdie, em um ensaio sobre um dos livros mais magníficos que li nos últimos anos, Desonra, critica a falta de eficiência de Coetzee em concluir um romance espetacular de forma tão obtusa do ponto de vista social e político. Rushdie acusa o final sem redenção e conivente com o mal do racismo cruel da África do Sul, que pressupõe ao autor a premissa aceita de que o mal pode ser desgastado com a compensação histórica cíclica: de certa maneira Rushdie está certo: mas um final que não fosse aquele engendrado por Coetzee, não destruiria a beleza cortante da obra?

Ficam esses rascunhos para futuros textos. Neste feriado, enquanto as mulheres e crianças estiverem no clube, para se refrescarem de um calor que tangencia os 40 graus _ um calor de suicídio coletivo de podas inescrupulosas de árvores para favorecer as frentes das lojas, e uma monocultura assassina e estúpida da cana de açúcar_, eu avançarei em meu escritório refrigerado por um estoico ventilador nas leituras a serem postas na ordem do dia. Tenho que acabar o Microcosmos, do Magris, uma leitura prazerosíssima_ as descrições dos escritores e artistas anônimos para o mundo mas conhecidos no fermentado ambiente cultural das aldeias do interior da Itália: um ar delicioso de Federico Fellini por todas as páginas. Avançar no estranho romance do Kobo Abe, Secret Rendezvous, que meu amigo Luiz Ribeiro me mandou. E iniciar esse Wallace.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Magris


Escrever significa saber que não se está na Terra Prometida e que jamais se poderá chegar lá, mas ainda assim seguir caminho com tenacidade em sua direção, através do deserto. (Microcosmos, Claudio Magris)

Cosmópolis, de Don Delillo


O herói de Cosmópolis, Eric Packer, é o elo entre duas cadeias da evolução humana. A que ele vai deixando para trás é a que por si mesma já se formou sem os adendos desnecessários da moral e as obsoletas noções da filosofia clássica; a que ele vai se transformando é o passo além do super-homem, imune de piedade, amor, ódio e imortalidade, a ponto do anseio do lugar em que outras eras mais flácidas ficava a alma ser o permanecer como memória virtual, uma informação eterna condensada em fibra ótica. Eric Packer possui bilhões de dólares, tem 28 anos, aproximados 6% de gordura corporal, e encarna na amplidão de sua limusine de alto luxo o afagar de ego dos super-ricos no monitoramento através das telas LED das cotações das bolsas mundiais e tudo que as câmeras externas do veículo captam do mundo do lado de fora. Eric Packer, em sua aproximação limítrofe a um novo avatar gênico, é excessivamente inteligente; em suas noites cada vez mais tomadas de insônia ele se dedica a ler poemas (principalmente os muito curtos, com escalas dissílabas matemáticas) e grandes tratados de física; sua capacidade de transcender a realidade num nível de refinamento simbólico é profunda; e ele constantemente é tomado pelo desejo adâmico de re-nomear os objetos (por que os pés e braços das cadeiras continuam sendo chamados assim?). Em seu avançado estágio de mutação, ele não comporta mais ser alvo das defasadas teorias sobre a psicopatologia do poder e a egolatria da dominação do mundo. Ele é outro ser, incatalogável; o predador perfeito da geração técnico-virtual que prescinde das formas usuais da identificação da crueldade e dos assassinatos cruentos. Ele tem a promessa da gélida assepsia do bebê confinado no monolito de 2001, uma Odisseia no Espaço

Toda a trama do romance transcorre desde o amanhecer em que Eric sai de seu apartamento triplex  em Nova York, descendo pelo elevador especial que só toca Satie (o outro está programado a tocar um rapper sufista chamado Brutha Fez), entra em sua limusine e se dirige para cortar o cabelo em algum lugar da quinta avenida. Até o anoitecer, tantas coisas acontecerão com Eric, na conjunção da lógica dos desastres, que ele acabará privado de todo seu dinheiro e poder. É nesse intercurso que a prosa de Delillo alcança plena sublimidade. Delillo cria uma obra-prima inigualável, que atesta ser este volume pequeno de menos que 200 páginas o ápice de sua suficiência; um produto de mestre em que tudo parece perfeito, calibrado, sem excessos, ainda que diga excessivamente, que provoque excessivamente. É um romance vertido por um William Blake enlouquecido pelas visões de sua lucidez profética (embora o pesadelo narrado seja desconcertantemente contemporâneo), com a capacidade de enxugamento de um Flaubert. E Delillo mostra maturidade e independência como escritor ao não cair nos cacoetes óbvios que tal trama parece obrigar a cair: ele não bebe dos tons distorcidos da contra-cultura nem da literatura lisérgica. O imediatismo de sua mensagem, passada na mais elevada arte, não aceita camuflagens: com frases de sintaxes cortantes, carregadas de uma poesia límpida e escatológica, os diálogos às fartas que revelam uma vivência de quem conhece o sofrimento e o terror profundamente, Delillo tece uma contundente crítica ao sistema financeiro global e sua inevitável propensão ao suicídio. Acompanhando o pós-niilismo e o maquinismo deístico de Eric, fica um tanto difícil ao leitor suavizar as premonições com o pensamento: "isto é só ficção; não se deve levar o autor tão a sério".

domingo, 28 de outubro de 2012

O Melhor Livro de Todos os Tempos para Charlles Campos



(Publicado hoje no Sul 21)

Eu cheguei a Homem Invisível através de uma dessas tantas listas dos dez melhores romances do século XX. Conhecia e havia lido boa parte dos outros títulos da lista, os Mann, os Kafka, os Faulkner, os Joyce, mas nunca nem ouvira falar do romance cujo título soava como os de ficção científica e era assinado por um tal de Ralph Ellison que me era um completo desconhecido. Na época, eu tinha lá os meus 25 anos e a onisciência disponibilizadora da internet ainda não era uma realidade, de forma que eu não tinha como obter mais informações sobre o livro além de rápidas notas em revistas desencavadas de caixas empoeiradas de bibliotecas públicas e uma coluna de reverência acadêmica de uma enciclopédia que ressaltava ser Ellison o maior escritor negro da América, e seu único romance um libelo contra a discriminação racial. Não eram informações que me despertavam maior interesse pela leitura da obra, devido o proselitismo e o acento de correção política que poderia nada ter de real valor literário; parecia uma concessão. A grande sorte é que eu já investira parte de meu tempo no conhecimento dos grandes escritores e sabia que nas mãos deles, até um panfleto se transformava em alta expressão espiritual, e me ajudava saber que a academia e a maçonaria dos professores de letras faziam seu papel de sistematizar ao extremo a leitura até torná-la uma substância temerosa e destituída de prazer, e suas catalogações insípidas de borboletas literárias não escondiam o mérito da obra por sua canonização pelo gosto de leitores sinceros. 

Comprei um exemplar de Homem Invisível, o último da livraria, publicado pela Marco Zero, em ótima tradução assinada por uma tal de Márcia Serra. Foi uma das raras aquisições em que a expectativa formada correspondeu milimetricamente ao que o livro tinha para oferecer. Há alguns anos eu dedicara uma semana de férias a devorar Os Possessos em uma biblioteca pública, o romance baluarte de Dostoiévski que era quase impossível de se encontrar no mercado editorial brasileiro (a tradução da editora 34 era uma ideia em formação em idos de 1995), e aquele volume duplo português encadernado em vermelho e com pranchas internas mostrando rascunhos do autor com  seus desenhos distraídos de mujiques barbudos na beirada das páginas, mesmo pessimamente traduzido, foi o equivalente a um ferro em brasa gravando em mim a beleza cruel que a ficção era incumbida de oferecer em sua elevada concepção da natureza humana, em nada bajuladora, e sua capacidade de ser ainda uma carreadora de primeiro nível da percepção profunda da História e da Filosofia. Então, eu esperava encontrar a mesma natureza sanguínea e violenta, o mesmo turbilhão de olho do furacão, em Homem Invisível, pois a ele era atribuído o panfletarismo libertário que outrora fora equivocadamente atribuído ao romance de Dostoiévski: e sendo que no russo eu descobrira algo desoladamente lúcido no lugar da propaganda oficial que se fazia deste seu romance. E lendo Homem Invisível, nos eufóricos três dias intensos em que não consegui fazer mais nada que me lançar nele, deparei-me ali com a mesma falta de pudor de Os Possessos, a mesma ausência absoluta de intenção em agradar, em ser digerível, em ser ameno.

Homem Invisível está tão distante de ser um panfleto de luta racial quanto Os Possessos está de ser uma cartilha marxista sobre a revolução de classe. Ambos podem ser lidos em negativo de tudo que superficialmente são tidos como apologistas de determinados setores formados da exclusão. Homem Invisível, com aqueles primeiros parágrafos antológicos, de enorme beleza, começa por afrontar um tipo de exclusão espiritual que vai muito além das circunvoluções dos conflitos raciais dos Estados Unidos, afundando-se na ferida de que a discriminação violenta tida por sobre uma raça não a distingue como determinada à nobreza do estoicismo ou à dignidade dos mártires. O narrador, contudo, aponta sua invisibilidade social tanto devido à sua cor quanto ao atraso espiritual que o pior crime da discriminação racial determina: a inércia acomodada de ambos os lados da repressão, que gera a promiscuidade e o animalismo. E no contraste entre tema e tom da narrativa que está a força incomensurável desse livro: a prosa de Homem Invisível é a melhor, a mais bem composta, a mais elevada e nietzschiana, a mais bombástica e musical da exigente prosa norte-americana do século passado. Cada parágrafo é intenso de luz verbal, em uma história movimentada que apresenta dezenas de personagens e situações inusitadas desenhadas no cenário de submundo e de constantes e disparatados movimentos sociais norte-americanos. Dizer sobre o contexto político de uma obra é desmotivar a leitura dela: Homem Invisível é antes um romanção de primeira, de mexer com o leitor na poltrona, de não se conseguir despegá-lo até o fim da leitura, daqueles livros que verdadeiramente nos transformam, e isso nada tem a ver com uma visão específica sobre partidarismo político. Sua carga filosófica e sua acentuada verdade incondicional é o que sobressai da voz frenética e concentrada do narrador, e depois desta jornada que pouco se dá tempo para a respiração tranquila, o narrador encerra com a mesma poesia magnífica ao anunciar: "quem sabe se, em esferas mais baixas, eu não esteja falando sobre vocês?".

O mercado editorial nacional, um dos melhores e mais dedicados do mundo, vem cometendo uma grande injustiça com esse romance de Ellison, que deveria ter por aqui uma edição bonita, com ensaios sobre a obra feita por outros autores (o de Saul Bellow, por exemplo), e a promoção devida para diminuir o desconhecimento entre os leitores brasileiros dessa obra capital.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Quantos Livros Ainda por Ler...


O Milton Ribeiro me pediu um texto "leve e humorado" sobre o meu melhor livro de todos os tempos, para ser publicado na semana da feira do livro lá de Porto Alegre (é isso?), junto com outros textos de outras pessoas. Escrevi às pressas umas linhas sobre um determinado romance, de um determinado autor, mas logo me perturbou a honestidade de que este romance há muito já não era o meu melhor, e eu deveria, por justiça a meu demônio interior, mudar para outro que exercesse maior representatividade sobre meu modo de ver, escrever, e sentir as coisas. Digitei um outro texto ligeiro sobre outro livro, e este não saiu leve nem humorado, mas um protótipo de tratado intimista como acaba sendo quase todas as minhas iniciativas neste setor. Mandei para o Milton por e-mail e ele respondeu "Engraçado, todo mundo muda de livro...". Ao que respondi: Na verdade é um tanto despótico querer escolher o "meu melhor livro". Ainda acho que é Montanha Mágica, mas escrever sempre sobre ele quando algo assim é exigido acaba sendo limitante. E GGM eu já esgotei todas as possibilidades exploratórias. E é gozado isso, o que torna a infinitude de livros que ainda não lemos uma bênção, pois neste exato momento acabo de ler um livrinho que vai me parecer ser um de meus melhores por um bom tempo: o esplêndido Cosmópolis, do Don Delillo. Nunca li Dellilo até então, mas como é maravilhosamente divertido e adrenérgico, e uma das mais ácidas e inteligentes críticas ao capitalismo. Desses livros que parece que o escritor, ao por o último ponto, estoura os miolos. Mas Dellilo está lá, vivo, sério, magnânimo, e o jeito é começar a peregrinação atrás de todos os livros do cara.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O Selo da Obra de Arte Imediatamente Reconhecível



Li num blog de uma psicóloga que raramento frequento que ela viajava pelos céus de Nova York em retorno ao Brasil em companhia do livrão de Ashley Khan sobre Kind of Blue e ouvindo pelos fones de ouvido o álbum Tarantella, de Lars Danielsson. A beleza que seus sentidos foram agraciados com esse material não a desviou da questão estético-filosófica de o que define que determinada obra de determinado artista seja imediatamente distinguida do restante de sua obra como a obra seminal inquestionável; ela coloca o exemplo: o que faz que Kind of Blue, o álbum tido como o melhor de Miles Davis e uma das mais maravilhosas músicas do século XX seja superior a My Funny Valentine, do mesmo Miles (embora eu ache tal comparação pouco simétrica, visto Valentine ser uma compilação ao vivo e um rebento inevitável do Kind of Blue, não havendo possibilidade que algum dia existisse se a trupe de Miles, Cannonball e Coltrane não houvesse parido o Grande Disco_ eu colocaria aqui Milestones, como modelo de substituição à altura), e por que ela, ao ouvir Tarantella, o achava tão visceralmente impactante de beleza, apesar do canonizável de Danielsson estar em Pasodoble.

Trata-se de uma questão que me envolve em divagações do mesmo tipo, e remeteu a procurar imposturas e truques da sempre famigerada indústria cultural que institui a linha de consumo programado para os objetos da arte. Ou seja: quem garante que Kind of Blue seja mesmo a súmula da genialidade de Miles?; quem institucionalizou isso?; Khan faz parte dessa perfídia industrial por escrever um livro justo sobre esse álbum, ou ele realmente é um dos que apreenderam sem culpa a superioridade desta obra?; e no ramo literário, recheado de possíveis esquemas de consumo do mesmo tipo, o que faz de obras quase ilegíveis serem tidas como as mais representativas e indispensáveis?; por que, por exemplo, os críticos citam O Som e a Fúria, de Faulkner_ uma das soluções sem muito mistério dessa questão_, sendo que tal romance, pelo menos para mim, sempre me venceu nas primeiras páginas e eu, que sou um apaixonado convicto de Faulkner, nunca consegui terminar sua leitura?

O aprofundamento no tema levaria a imensidões mais delicadas, que não pretendo esbarrar aqui (coisas do tipo: por que nossa literatura é tão inexpressiva aos olhos exteriores, ela será realmente inferior a de outros países?, e, qual o valor de Chico Buarque?). O que quero esboçar neste texto é que existem sim obras imediatamente reconhecidas como superiores, ao menos no terreno da música, e isso está longe de ser facilmente explicável. Kind of Blue é, trocando em miúdos e cortando o papo furado, meu álbum preferido do Miles Davis. Por mais que eu o tenha ouvido_e o ouvi cinco milhões de vezes_, ainda o fastio não me nublou a verdade de que este álbum é um tanto mais nobre, angelical, demoníaco, sofisticado e intenso de uma maneira única que as  demais produções também geniais de Miles não o são. E acredito que exista aqui uma espécie não-verbalizável de vox populi que confere esse selo ao álbum, e não os conceitos de entendidos de que inaugurou o jazz modal, ou fez avançar milhas a técnica de manufaturar essa música. Eu fiquei conhecendo Tarantella através do post da tal blogueira psicóloga; fiz o download com os orixás virtuais e coloquei aqui para rolar, e a casa nestes três dias ficou tomada, criança, mulher e pseudo-intelectual regalados em seus tapetes viajando ao contrabaixo do magnífico Danielsson, com um trompete que bebeu no seio farto de In A Silent Way.

E é isso, essa facilidade de reconhecer o sublime (bela palavra, apesar de ser uma das putas da gramática, ó pena!), que faz Kind of Blue melhor que Milestones. Minha esposa não se identifica com o jazz, mas quando ouve Kind of Blue, algo se cala nela; já coloquei à prova amigos não-jazzistas que se enterneceram com o disco. Um roqueiro brasileiro tentou definir a incógnita, afirmando que Kind não é jazz, mas uma música universal; o mesmo que foi dito sobre outra obra capital de Miles, Bitches Brew. Talvez a resposta seja que Kind é uma dessas coisas que acontecem quando o artista tem uma espécie de intuição mediúnica que o aproxima perigosamente do fundamento primitivo da arte, e consegue a impossibilidade de traduzir essa região sináptica (se não posso dizer espiritual) para a realidade consumível do objeto físico, em sua nudez extrema,  em sua falta de compostura e sua absoluta identidade. Em Milestones eles singram em sentido desse fundamento, conseguem divisar os contornos de sua geografia, mas ainda estão em segura distância. Essa região foi definida por Saul Bellow como os espaços singificativos, empregando o termo às tantas frases que Shakespeare resgatou em estado puro de lá; e que Walt Whitman escreveu ser o lugar das superfícies impossíveis, em que não existe impunidade e nem uma segunda chance senão aquela para ser arrebatado; os as extensões abertas das portas da percepção de William Blake; ou o que fez escritores como Robert Walser se calar para sempre; ou a antimatéria evocando a matéria na expressão de Cortázar. Por isso não existe sublimidade (essa biscate) em obras experimentais: quando se resgata o que está ali acima, num milagre que dribla a inacessibilidade, a caça vem fumegando em sua integridade selvagem e sua ausência de maquiagem, em sua expressividade violentamente pronta e independente.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Joseph Anton, as Memórias de Salman Rushdie



Uma das ironias que recheiam a auto-biografia de Salman Rushdie é que, durante os doze anos nos quais o autor estava sentenciado de morte pelo aiatolá Khomeini, na iminência constante de ataques por parte dos incumbidos a cumprirem a fatwa (e ganharem o prêmio de um milhão de dólares avaliado para sua cabeça, que subia cada vez mais, oferecido por um dos novos aiatolás), vivendo em acirrada vigilância da Divisão Especial da polícia inglesa e sem endereço fixo, foi ele quem sobreviveu e viu vários de seus amigos e intelectuais de vidas mais amenas sucumbirem pelas mesmas causas prosaicas de sempre. Rushdie reflete essa surpresa impotente ao escrever: "O câncer dominou Angela Carter, e, embora lutasse arduamente, ela não o derrotou. Em todo o mundo, grandes escritores estavam morrendo cedo: Italo Calvino, Raymond Carver, e agora ali estava Angela lutando com a Parca. Uma fatwa não era o único meio de morrer. Havia sentenças de morte mais antigas que ainda funcionavam muito bem." Nas próximas páginas, outros personagens da vida de Rushdie recebem o diagnóstico de câncer e seguem com uma sobrevida para o mesmo destino: sua ex-esposa morre de câncer, seu amigo Edward Said de leucemia, Allen Ginsberg de câncer inoperável no fígado, John Diamond de câncer na garganta. Rushdie se denomina um ateu apaixonado por religião; toda sua obra está pautada por símbolos e termos religiosos; diz no questionário Proust ser religião a palavra que mais abomina; de forma que não seria simples questão de uma mente paranoica achar um sentido de prevenção verdadeiro na condenação explosiva e sem qualquer concessão dos ateus ortodoxos à religião, e, por consequência, relacionar o mal que se abateu sobre ele como um preço caro que teve de pagar por sua leviana curiosidade aproximativa. Enquanto seus amigos viviam livremente, viajavam e eram ativos participantes da vida cultural global, criavam suas famílias ou podiam traí-las por direito, tendo o livre arbítrio de morrerem com os mesmos dramas e a mesma resignação diante o inevitável, Rushdie viveu em estado suspensivo, envelheceu e engordou, passou sete anos sem escrever que o convencera de ter perdido o talento, esteve distante do filho e perdeu a esposa, e seu cotidiano era de uma clausura infinita em que ouvia suas opções de normalidade como permissões restritas para saídas vigiadas às ruas. A invisibilidade cuidadosamente imposta determinou essa sobrevivência sobre os demais, sem valor, que foi para ele o maior dos infernos.

Não é menos irônico reconhecer que os críticos de Rushdie possam estar certos ao dizerem que também foi o confronto do autor com a religião que o tornou famoso em todo o mundo. Em boa parte da década de 90, no período entre 1989 e 2002 em que durou a fatwa, Rushdie foi o segundo homem mais conhecido do mundo. Antes disso, havia ganho o mais importante prêmio literário inglês, o Booker Prize, por seu romance Os Filhos da Meia Noite, e escreveu depois um outro romance representativo, Shame, antes que se tornasse interessante para a História. As partes mais deliciosas de sua biografia são as que se dedica a descrever o processo de concepção de seus livros; Os Filhos da Meia Noite (que segue sendo o livro o qual, pelo valor artístico e pelas amplas qualidades da prosa e da imaginação, o tornará lembrado como escritor), veio pelo mês de aprofundamento na alma da Índia, na excursão pelo interior do país realizado com o estipêndio da publicação de seu primeiro romance, a percepção whitamniana da ebulição do povo, as sonoridades das línguas e a impossibilidade de aquietamento das ruas efervescidas. Quando ele passa a descrever as formas de conexão de ideias que gerou Os Versos Satânicos (que segue sendo o qual o tornará lembrado pela história), a inocência e alegria com que o então jovem promissor escritor indu-britânico recebe a liberdade de se expressar pela arte é carregada por negras premonições tardias. E o mais terrivelmente irônico de tudo_ para continuarmos nesta hipótese de condução de um destino por forças metafísicas que estão mais propícias a serem definidas como sarcásticas_ é que o cerne de Versos advém de um erro admitido pelo próprio profeta Maomé no Alcorão. Quando Rushdie estudava em Oxford, foi o único participante de um curso optativo sobre as raízes histórias do Islã oferecido por um de seus maiores entendedores; ele recorda que foi, também, seu primeiro ato de confrontação ao sistema, visto que a universidade cancelara o curso por falta de interesse do corpo discente, mas o incipiente Rushdie, que tanto se silenciara diante as discriminações raciais sofridas por ser negro, ter as maiores notas, e não gostar de futebol (as três características que, em separado, podiam valer para tornar-se socializado com sucesso, mas cuja presença das três definia o aluno como um excluído permanente), perseverou com o diretor sobre as regras internas de que, havendo um só aluno matriculado na disciplina, o instituto era obrigado a ministra-la. Ali, junto ao professor de ar recolhido (uma mostra do talento de Rushdie por desenhar personalidades enternecedoras), ele toma conhecimento da surata 53, os assim definidos pelo islã como versos satânicos registrados no Alcorão, em que Maomé dita a mensagem que, num primeiro momento, diz ter ouvido de Alá, na qual é oferecida a possibilidade de reconciliação da nova religião com as três entidades pagãs adoradas em Meca (al-Lat, al-Uzza e Manat). Como os seguidores do profeta, diz Rushdie, rejeitaram enfaticamente essa admissão súbita de uma trinca de deidades auxiliares ao único deus, Maomé rapidamente corrigiu o erro afirmando que Alá o alertara que tal recitamento fora-lhe entregue por Satanás, que se fez passar pelo divino, e, portanto, era para desconsiderá-la imediatamente. As implicações políticas do erro fomentaram a proto-ideia do romance na cabeça de Rushdie (a vantajosa aproximação da ainda avessa Meca à nova religião, através da urdida aceitação de seus deuses), e os símbolos satânicos e de redenção aplicados à realidade do fim do século XX serviram à composição da historia em que Saladim Chamcha, o diabo, e Gibreel Farishta, o anjo, sobrevivem a um acidente aéreo caindo na Inglaterra.

Está-se pronto Os Versos Satânicos, e aqui, a narrativa de Rushdie em sua biografia sofre perceptivelmente, como não deveria deixar de ser, uma mudança de tom. A descrição progressiva do pesadelo da fatwa forma uma sequência de páginas de inigualável estudo sobre como a realidade, como coesão imposta por fatores que servem a uma rede de conexões políticas manutenciada, é uma obra de fantasia tenra, sujeita a se quebrar por um impacto dado de forma precisa. E esse impacto inicia-se com aquela inofensividade falsa dos pesadelos, aquela docilidade peçonhenta cujo veneno maior é não indicar nenhuma ameaça à imunidade cotidiana. Uma jornalista de um jornal iraniano lê os Versos, detecta a singular ofensa e a apostasia; a matéria chega em mãos de uma aiatolá Khomeini alquebrado e posto em uma delicada linha de descrédito por seus próprios sequazes devido ao desgaste das tantas mortes de iranianos na guerra contra o Iraque, e esse aiatolá, numa astúcia salvadora, percebe ali uma chance de recuperar a estima junto ao povo. Rushdie é dado como um grande presente restaurador para Khomeini, uma impulsão que ele precisava para justificar a morte de jovens iranianos na guerra através da renovação da fé em um propósito ainda mais violento e fanatizante: ele institui que Rushdie ofendeu o profeta e a Alá, de forma inadmissível, e a única maneira do islã recuperar o respeito e impor sua distinção religiosa ao ocidente é assassinar  o demônio que escreveu o livro insultuoso e cheio de prostituição e blasfêmia, Os Versos Satânicos, cujo autor é Salman Rushdie.

Com essa distorção extrema de toda a segurança pretensamente oferecida pela democracia ocidental, Rushdie, pelas extensas páginas de sua biografia, pragmatiza para a vida ensolarada das grandes metrópoles tidas como resguardadas, numa série de descrições que se transformam em uma visível transposição esquemática do diário que manteve na época, o simbolismo da opressão das obras de Kafka, o alerta até então restringido ao universo da literatura sobre a perecividade do humano diante as forças do mal. Ler essas páginas é desmistificar o Rushdie elaborado por 15 anos pela imprensa e pela mídia corporativa que envernizava a realidade passando a imagem de ativa colaboradora da democracia. Lembro que, ao ver Rushdie pela primeira vez anunciado na televisão, quando eu tinha lá meus 15 anos, na matéria em que o repórter segura em mãos a capa famosa simulando um mármore azul da edição em capa dura inglesa de The Satanic Verses, e falando sobre seu decreto de morte, o adolescente que eu era raciocinou dentro da certeza de que o ocidente que passou pelo iluminismo iria dar conta do recado e resolver da melhor forma possível aquela aberrante injustiça. Jamais me ocorreria a possibilidade de que Rushdie fosse deixado de lado e, hipótese ainda mais impensável, condenado por essas mesmas forças ocidentais como o verdadeiro culpado daquilo tudo. Por isso é um tanto claustrofóbico ver o quanto Rushdie esteve na  iminência de ser abandonado a seus assassinos, pelo governo inglês que estudava incansavelmente uma forma de retirar os serviços de proteção, alegando que era uma oneração gratuita demais e excessiva (comparando que Thatcher os tinham por prestar enormes serviços à sociedade; mas o que ele oferecia em troca?); o quanto pessoas vistas como esclarecidas e até então respeitadas por mim como artistas e intelectuais defenderam que Rushdie fosse morto, como é o caso de Cat Stevens (ou Yusuf Islam, que, constrangedoramente, nega sua apologia estúpida ao assassinato hoje em dia, mesmo sendo confrontado com os artigos de jornais que escreveu e as imagens gravadas), e John Berger (que, movido pelo mais canhestro esquerdismo, afirmava que Rushdie deveria ser morto pois assim queriam milhões de muçulmanos, e as massas jamais estariam erradas). O quanto os políticos desviavam a atenção, propositadamente, do caso Rushdie, se negando a recebê-lo em seus gabinetes, pois seus países tinham acordos comerciais com o Irã e eles não queriam prejudicá-los por um motivo tão irrisório (!!!). Como diversos países negaram a entrada de Rushdie; como jornais importantes dos EUA publicavam artigos ensandecidos de representantes importantes do islã, reiterando o prêmio pela cabeça de Rushdie, e afirmavam que o faziam pelo direito de expressão garantido pela democracia. Esse isolamento é representado pelo pseudônimo que a equipe de segurança do autor recomendou que Rushdie adotasse; vendo-se sem o direito a conservar esse traço legítimo de sua personalidade, Rushdie criou a composição dos dois nomes dos escritores que mais admirava para se vestir de um outro nome: Joseph Anton, Joseph de Joseph Conrad, Anton de Anton Tchécov. (Quem se interessa por Rushdie e leu sobre ele nesses últimos anos, com certeza se deparou com vários retratos de um escritor maníaco, martirizador violento de suas esposas, egocêntrico, esnobe; um gárgula a que juntaram insinuações de lascívia sexual que cai com precisão estudada às suas sobrancelhas capricornianas e suas pálpebras caídas, assim como se demoniza V.S. Naipaul como portador das mesmas excentricidades; uma outra parte compensadora dessa biografia é ver como o autor se desmistifica dessas simplificações criadas nos anos em que ele se tornara invisível, e passível a se visibilizar com qualquer máscara colocada de fora.)

Claro que Rushdie não foi o primeiro nem o último a sofrer esse tipo de perseguição religiosa, mas, a descrição do outro lado, do lado radioso dos que o defenderam, ilumina a escuridão dessas páginas e mostra que foi uma conflagração de quantidade inédita de intelectuais em nome de um escritor, no século passado. Rushdie escreve, com incontida comoção, o quanto a elevação de vozes pelo mundo todo mostrou, enfim, que ele não se dirigia desguardadamente para a própria aniquilação. Estas páginas reacendem o interesse dos que gostam de biografias de escritores, pelo que estas oferecem de intimidades do mundo das letras. Aqui há conversas com Günter Grass, Paul Auster, Chistopher Hitchens (admirável pela frente que tomou do caso, abrindo portas, quase aos ponta-pés, de políticos e representantes de organizações internacionais), Martin Amis (também sempre presente, e protagonista de um mea culpa por parte de Rushdie por um Rushdie bêbado ter se comportado tão infantilmente com ele, em um bar), Mario Vargas Llosa, e uma série de outras personalidades. Graças à visibilidade que este grupo promoveu, os líderes políticos se viram obrigados a arvorarem a defesa da democracia e do uso sem censura da palavra, tendo que colocar restrições econômicas ao Irã_ a Suécia, numa atitude reveladora, mesmo antes dessa defesa de Rushdie ter sido construída, já rompera um tratado de 1,5 bilhões de dólares com o Irã, a título daquele país retirar a fatwa. Mesmo autores que não participaram ativamente da defesa, aparecem no livro como instigadores de fé, o que rende cenas memoráveis: Thomas Pynchon recebe Rushdie com sua comitiva em sua casa, e se põe a monologar até altas horas da noite, ao que todos, exaustos, se negam a interromper o momento, pois, afinal, é o Thomas Pynchon. Na casa de Carlos Fuentes, este passa o telefone para Rushdie, e eis que é o Garcia Marquez, que o brinda com uma longa conversa,  e que diz ser ele, junto com Coetzee, os escritores que mais lhe interessam, sem tocar uma só palavra sobre a fatwa, o que é o maior elogio já recebido por Rushdie.

A biografia de Rushdie é a mais sui-generis das biografias de escritores. Há algumas partes atiradas a esmo, que causam a impressão de entrave na velocidade da leitura, em que fica óbvio serem partes tomadas dos diários do autor: reuniões com secretários de segurança, com representantes políticos, com entidades governamentais. Mas como não cair nesses impasses da inércia alguém cuja vida, por um longo período, se restringiu à excisão de sua liberdade cotidiana? A diferença de ritmo entre a biografia de Rushdie e de outro escritor aprisionado, como Soljenítsin, é que esse último tinha o interesse da opressão em sua forma clássica, em sua violência física premente, em sua restrição de espaço o qual tinha-se de procurar as compensações espirituais nos refúgios do recolhimento mais íntimos; já a Rushdie não foi oferecido esses amplos campos de arames farpados nem as celas de paredes umidificadas das prisões siberianas _na surrealista escala das formas a que podem chegar as casas dos mortos, a contínua ironia, a mais cruel, de sua prisão, era ele dispor de tudo, mas ser limitado a passar ao largo, em sua compulsoriedade de ser invisível.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Ladrões de Borboletas

A ideia me veio quando fazia o último ano de veterinária. Meu tempo de estágio tinha amplos recessos abertos que convidavam à vagabundagem, e caiu de me confrontar um anúncio no jornal de um concurso literário de contos de temas livres. Sentei-me durante uma semana à mesa de uma biblioteca pública bastante aprazível localizada na praça central da capital onde eu estava, e me pus a escrever compulsivamente. Me pareceu de primeiro uma organização de burocratas em nada conhecedores de literatura, com interesse de gastar a verba federal com um concursinho sem relevância, que uma das regras do edital fosse a de que o conto deveria ter 50 páginas. 50 páginas! Não intuíam minimamente que 50 páginas já não é mais, conceitualmente, um conto, mas uma novela. E o esforço que tal número de páginas incorreria, no pouco prazo de três semanas que um avisado tardiamente como eu dispunha. O que me parecia bom era o ambiente da biblioteca, que ficava no segundo andar de um prédio público onde no térreo, nos bons tempos, acontecia pela promoção de algum secretário cultural mais engajado a exibição na íntegra dos filmes de Fellini, encenação de teatro universitário e coisas tais, mas que agora as salas daquele setor estavam à míngua, abandonadas, os vidros dando para escuros vazios onde se divisava aqui e ali alguma madeira ruída, algum obsoleto móvel de armar mal colocado na caixa quando da necessidade de imediata evasão. Um corredor de paredes amarelas recendendo com as lâmpadas intermitentes que levavam ao pequeno e acolhedor cinema no qual conheci a fundo Fellini, parecia agora levar a porões que não despertava interesse de ninguém e já estava por avançar um estágio a mais no desmazelo e passar a suscitar o medo; aquele local em que eu atravessava meia cidade a pé, debaixo da chuva, para assistir Amarcord, A Doce Vida e Ginger e Fred. Mas esse aspecto de terra desolada condizia com o momento pelo qual eu passava, em vias de largar em definitivo o remanso adiador da vida universitária, sem muitas perspectivas de emprego, sem saber sequer se era com isso que eu gostaria de ganhar a vida, com a nostalgia pior de tudo dos amigos que eu passaria a não ver mais com tamanha frequência ou não ver mais de modo algum. Essa biblioteca representava muito para mim: foi nela que eu estudei para o vestibular, nela que eu me dedicava ao voyerismo de olhar por baixo das tampas das carteiras atrás das calcinhas das moças; dela eu havia cambiado tantos livros entre a fralda da camisa e minha barriga magérrima da época, que uma crise de consciência me fez dar uma coleção caríssima do Príncipe Valente como paga por tantos anos de crime, e que acabou que na pressa eu não preenchi os formulários de doação e tais livros foram cambiados, pelo que tudo indica, por uma das funcionarias (ladrão que rouba ladrão). Nela eu convivia a título de família fria de aventureiros sem rumo com pessoas as quais nunca soube o nome e com quem nunca troquei uma palavra, como um homem de seus quarenta anos que era o primeiro a chegar de manhazinha e o último a sair às dez da noite, e que se afundava em apostilas de concursos públicos, e que nunca soube se acabou ganhando o vício daquele cotidiano ou teve a estrela negra de não passar em nenhum deles (ao que tudo indicava), pois varavam-se os anos e ele continuava ali, destinado a ser um fantasma antecipado de si mesmo a vagar pelo quanto mais o prédio seria desmobilizado e só sobraria a poeira e seu semblante triste olhando da fronteira de lá dos mortos.

Sendo assim, o conto que eu me propus a escrever refletia profundamente essas inconstâncias e esse abandono, e tinha muito do medo do desemprego que me rondava. Chamaria-se Ladrões de Borboletas, e era a história de três caras não necessariamente amigos, mas que dividiam entre si o vínculo cimentado de não conseguirem emprego e estarem próximos, bem próximos, da ruína total. O cenário era algum ponto indefinido da Escócia, talvez por recentemente eu ter assistido um filme sobre um grupo de desempregados irlandeses que incorrem no inesperado mercado de danças eróticas e clubes de mulheres como último recurso desesperador. Assim, esses meus três desempregados descobrem uma fazenda de borboletas num povoado contíguo do de onde moram, e descobrem que através da manipulação de um ferormônio específico, uma onda de borboletas sairia por um rombo improvisado na tela de proteção e pousaria numa placidez exploratória de probóscides excitadas dentro de caixotes carregados de insuportável cheiro sexual. O apartamento de um deles_ o anti-herói sobre o qual recai o foco da narração e que na minha imaginação se parecia muito com Robert Carlyle_, fica lotado de borboletas e pupas, o que deveria ter acarretado um tanto de motivos de comédia de erros. Como eles percebem que envolve riscos demasiados de serem pegos pela polícia as tentativas de contatos para vendas das borboletas para as indústrias de cosméticos e de bijuterias, eles tentam devolver os incrivelmente reprodutores animaizinhos de volta para a fazenda, ao que acabam se envolvendo, por acaso, com um poderoso grupo de mafiosos que os confunde com assassinos profissionais em busca de serviço. Tudo muito rápido e fácil, mas cuja metástase das 50 páginas me indispôs com as complicações surgidas com a trama. Perdi as folhas_ deu quase as 50 completas, mas jamais ganhariam um concurso_, mas me lembro da disciplina da escrita em que me envolvi, a sensação de alegria por divagar sobre algo tão bobo e contraproducente num momento em que tudo me parecia exigir produtividade e sentido. Foi uma das últimas vezes em que tive a sensação à beira do abismo, mas à sua maneira extraordinária, do supertramp.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

32 Curtas Sobre Glenn Gould



Tantos carcinomas, obstruções severas de artérias cerebrais, infartes fulminantes, atropelamentos e encapotamentos finais nos rondam nessa nossa descolada vidinha moderna que é uma verdadeira inconsequência perder-se duas horas de tempo com o cinema. Mesmo Tarkovski exige a promessa do arrebatamento já na segunda sequência de cenas, senão é imprescindível que se desligue o aparelho (o de dvd, não o de hemodiálise ou as máquinas que promovam a respiração, já que estamos combinados em não levar certas formas de expressão artísticas tão a sério), e Hitchcock nessa altura de nossos desventurados 40 anos vale pelas ternas curiosidades preto-e-brancas cuja duração é de uma hora e meia e é sempre fascinante ver a formosura congelada no passado dos já bem acabados cadáveres, Cary Grant, o espécime masculino mais bonito do mundo com seu rosto cheio de detalhes inapreensíveis (que desagradável um encontro pessoal com ele e não se poder vencer o magnetismo de tentar apreender a impossível simetria daquele quadro complexo de furinho no queixo, olhos e bochechas, e cabelos de raízes tão bem fincadas que parecem cabos de aço negros misturados a uma lisura de seda; que constrangimento sermos pegos tão desprotegidos em nossa macheza desamparada!), e a surpresa em descobrirmos através de uma consulta pelo Google que Joan Fontaine ainda está viva; ou Kim Novak, que nos constrange ainda mais por termos que admitir ser belíssima, mas não tão com a mesma perfeição ortodoxa e insuperável de Cary Grant (o que nos resta festejarmos por um ultraje filosófico destes estar bem enterrado em Davenport, ainda que Groucho tenha antecipadamente duvidado disso).

Sendo assim, me vi neste feriado colocando para rolar um dos meus cem dvds nunca assistidos mas cuja curiosidade repentina sobre Glenn Gould me motivou a me sentar diante a tv e confrontar pelo menos 15 minutos de 32 Curtas sobre Glenn Gould. Glenn Gould não entra nem perifericamente na minha lista de músicos preferidos. Os cristais matemáticas intrincados, ou estrelas de gelo, que gravou, que levam nos catálogos a assinatura de composição de Johann Sebastian (esse sim o número 1 da minha lista), também nunca me impressionaram, ainda que eu perceba um benefício superior no progressivo hermetismo dessas peças e na necessidade quase angustiante de ter que jogar grãos de feijão pelos corredores do labirinto para se saber voltar quando encerrada a jornada; mas a leitura de O Náufrago, a novela maravilhosa de Thomas Bernhard que trata de Gould, me colocou de sobreaviso quanto a ele, pelo que ele me pareceu ter de insuportável esnobismo, de personalidade autista execrável em seu voluntarismo, de distanciamento e alienação em confeccionar uma verdade artificial sobre a existência e se prender maniacamente a ela. Glenn Gould, trocando em miúdos, sempre me pareceu o pior tipo de gênio (reconheci desde o princípio sua irritante natureza semi-divina), aquele que para nós, inconformados nativos de um paralelo geográfico tropical há dez mil quilômetros dessas regiões ancestrais da arte empostada que legitimam essas personalidades de todo alienígenas, não se configura como uma presença humana, mas como um clichê psicopatológico manniano. Coloquei para rodar o filme no propósito de ter um som ambiente pela casa enquanto realizava determinadas funções de feriado, seja catar cubos de lego debaixo do sofá, seja ajeitar certos livros de sobre a impressora de volta em seus cantos passageiramente inadmoestados, seja acabar aquela última palavra-cruzada do exemplar de 300 páginas que me pressiona a saber o nome do elemento decorativo no castiçal sem que eu cole nas respostas das páginas finais. E eis que sou levado a prestar atenção.

32 curtas é a exata medida da minha paciência com o cinema, pois não oferece vínculo contínuo de atenção, sendo desviada para outros temas assim que o anterior é encerrado, e me pareceu sublime na forma em que trata de uma personalidade. 32 visões sobre Gould, o que deveria ser a fórmula para se analisar o mais prosaico e desinteressante dos humanos. Já esse esquema me aliviou bastante do preconceito que Bernhard me instalou: Gould multifacetado, simples, maravilhosamente sagaz, esplendidamente engraçado. Inegável que teria sido um grande escritor, se tivesse escolhido isso. Há um texto produzido por ele no filme, em uma das peças curtas, em que ele imagina uma entrevista entre um típico repórter de revista especializada e ele: é de um humor tão bem construído que meu desejo imediato foi o de passar pelo exercício martirizante de colocar em slow motion e copiar o texto. Há outro texto de Gould em que ele se descreve para uma hipotética nota de jornal atrás de um encontro amoroso: joyceano. Teria sido sim um grande escritor. Mas as primeiras cenas da casa do lago em que morava com seus pais, o ambiente musical diuturno e ilimitado promovido pelos pais, a felicidade que Gould teve na infância, o contato infinitamente vantajoso que isso garantiu entre ele o mistério, entre ele e o esoterismo da arte, é que são de calar fundo ao expectador. Tais cenas me ganharam o feriado, me preencheram do prenúncio acolhedor da chuva que bate contra o telhado e os vidros da janela e ensombrece benevolamente os rostos dos que amo aqui que nessa hora brincam nos campos do sonho. No filme há também uma animação em que fica impossível não se aproximar da compreensão da música de Sebastian/Gould como líricas fórmulas algébricas, esferas vibrantes. Gould é apresentado longe de sua doença, longe de sua excentricidade (o máximo que se tem dela é o anúncio feito por ele ao zelador que lhe pede um autógrafo antes de sua última apresentação pública, da sorte que tem por ser esse seu último autógrafo), como um artista puro que vive pela música mas que se mostra afável, apesar disso_ compreendendo que se existem aqueles que só vivem para executar longas travessias em uma bicicleta, ou por arremessar com os pés a bola em um gol, ou para mostrar seu rosto plasticiado numa tela, existe por direito e sem bullying o que vive para a chuva de dedos no piano [aqui fica evidente ao desmontador de imposturas que eu tomei tal termo de um crítico que o dirigiu à tríade de guitarristas, Al Di Meola, John Mclaughlin e Paco de Lucia, não a Gould]). Um filme terno, generoso e ligeiro, belíssimo e inteligente e bom o suficiente para se levar a lembrança dele para o reino dos mortos.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Os Enamoramentos, de Javier Marías


Na cena final de O Coração das Trevas, a novela de Conrad sobre a submissão do homem à aleatoriedade da história, o narrador, Marlow, está na casa em Londres da noiva do capitão Kurtz para comunicar-lhe suas últimas palavras antes que morresse nas selvas do Congo. Na verdade o propósito de Marlow era o de saciar a sua curiosidade em descobrir como era essa mulher negligenciada por um homem que preferiu o isolamento a todas as conformidades sociais, disfarçando tal curiosidade com a obrigação formal de oferecer-lhe seus pêsames, mas se vê pressionado pela mulher a cometer uma mentira. Os últimos pensamentos de Kurtz, deveriam ter sido dirigidos a seu enlouquecido projeto de se fazer o deus de uma tribo de homens primitivos na  floresta, e nada estava mais longe dele que a lembrança de uma moça apaixonada à espera em um dos centros culturais de uma distante Europa; mas Marlow, compadecido do sofrimento da moça, lhe diz que as últimas palavras do capitão foram para ela, que ele, em seu leito de morte, ocupou seus derradeiros devaneios com ela. Ele o amava, era a conclusão ultra-eufemizada que Marlow piedosamente ofereceu à moça. Na saída pelas ruas de Londres, Marlow pensa, que diferença faria se ele mentisse ou contasse a verdade? O universo continuava o mesmo, os céus não foram abalados, o tempo não parou em choque compadecido com aquele drama sobre o qual só pairava a grande indiferença que rege todas as coisas, e para a qual as ações humanas eram uma migalha cósmica em rápida progressão para o desaparecimento. 

A imagem de aleatoriedade pintada em cores fortes por Conrad se firmou como uma das mais poderosas da literatura. Edward Said vasculhou todo o mobiliário espiritual dos livros de Conrad para tecer sua crítica ao colonialismo, o que não o isentou de colocar o próprio Conrad no centro dos dogmas impostos pelo lado dos vencedores, naquilo que Said afirmou ter sido um modelo de notável impacto em direção à verdade, mas cuja situação amordaçada do autor de Lorde Jim nos conceitos institucionalizados do poder o impediram de ir mais além, de atravessar para o outro lado. E é com esse sentido nitidamente conradiano sobre a loucura, a conformidade, a mentira apaziguadora diante um universo para o qual pouco importa o peso das palavras, que Javier Marías escreveu seu magnífico novo romance, Os Enamoramentos. Os leitores acostumados de Marías sabem o quanto um romance seu oferece de tonalidades, nuances, sutilezas jamesianas, e para os mais atentos não deve ter passado despercebido que essa sua mais recente produção é uma reconstrução de O Coração das Trevas, aparentemente amenizada pelo prosaísmo cotidiano de uma sociedade global para a qual não existem mais grandes tragédias e entidades infernalmente perturbadas, não existem mais inserções hipotéticas em proto-sociedades tribais que, por sua vez, ofereçam paisagens de loucuras descomunais. Marías produziu um drama conradiano astutamente desinfectado de conflitos grandiloquentes que antes alimentavam a vaidade iluminista de nossa espécie, mesmo em seu momento de derrocada negativa na obra de Conrad. E tendo o prodígio de entregar um produto tão anômalo de suas outras obras, tão diferente e exótico, o que vejo entre algumas das resenhas dos adeptos a seu estilo digressivo e de ensaísmo pausado é um desconcerto em definir se este seu novo filho agradou ou desagradou, uma certa dificuldade em dizer se se trata, enfim, de um filho realmente legítimo ou mera epifania de virtuoso que esbanja as técnicas de seu ofício. Pois Marías, afirmo com absoluta convicção, fez aqui um de seus maiores livros; investido com uma concisão e a disciplina de limitar sua prolixidade verbal apenas aos eventos da trama de um assassinato brutal, Marías aqui consegue o efeito de estender uma análise crítica quase subliminar (ao nível insinuador de Henry James) à negligência de sentimentos do homem urbano high-tech e sua frieza corporativa adepta à elegância da religião da uniformidade  destituída de todos os excessos. Marías aqui atinge o mais elevado grau da acusação nietzschiana de que o homem moderno transformou o que antes eram traumas servidos a evoluir o espírito a simples e macilentos temas de consultas da psicanálise.

A começar por esse quase neologismo do título: enamoramentos. Um termo que só existe, um dos personagens do romance diz, em alemão e espanhol, e quem sabe em francês antigo. Esse recurso a um vernáculo obscuro e até então desconhecido da grande maioria, além de ser algo cacofônico aos ouvidos (quando soube que o título era esse, senti uma desconfiança quanto ao equilíbrio de julgamento artístico de Marías: enfim, pensei, as qualidades mannianas de sua prosa não se sustentaram e decaíram nisso), é visualmente um prejuízo a qualquer apelo comercial. Lembra a falta de traquejo de escritores esquecidos ou as primeiras obras ingênuas e repudiadas mais tarde pelos próprios autores (como O Enigmático, de Knut Hamsun). Em se tratando de um dos maiores nomes das letras atuais, e por isso nada que suspeite amadorismo ou lesão cerebral irremediável, é cabível que tal título seja visto como uma peça preciosa de ironia, uma ironia triste e, em última instância, uma ironia coberta de terror que remete aos contos de terror de Arthur Machen, autor citado em duas outras obras de Marías. Enamoramentos é um substituto a todas as fórmulas mais elegantes, aprazíveis e mercadológicas que se oferecem ostensivamente às mãos (os derivativos adverbiados de paixão, amor, amantes, noivos, casamentos, etc). 

Os personagens são todos alheios a qualquer um desses termos mais aquecidos que no imediatismo da cultura cinematográfica remetem ao amor e às paixões arrebatadoras; são tão envernizados na mesma cor dos escritórios, carros, restaurantes e camas em quartos arquiteturalmente feitos para o conforto, que a vida deixou de ter o mínimo caráter aventureiro e ousado, a mínima constituição externa. A narradora, María Dolz, (os romances de Marías são narrados em primeira pessoa), se enternece, todas manhãs, em ver o que para ela é o casal perfeito, sentado de frente a ela no restaurante em frente à editora em que trabalha; nunca se aproximou daquele homem e mulher insustentavelmente felizes (o que lhe encabula é que tem todos os sinais de um casamento de longos anos, mas demonstram interesse e assuntos recíprocos que parecem não terem acordado juntos na mesma cama), nega-se a lhes saber os nomes e mesmo a procurar dirigir-lhes palavras as mais triviais. Mas esse voyerismo é o oásis em seu cotidiano insípido, em que enfrenta o egocentrismo de escritores espanhóis caricaturescos e o tédio das viagens e promoções editoriais. E a narradora só vem a tomar uma atitude quanto ao casal, quando, ocasionalmente, uma de suas colegas de trabalho lhe comunica que o marido da mulher fora brutalmente assassinado por um flanelinha louco. Daí, María visita a viúva, conhece os dois filhos do casal, e Javier Díaz-Varela, o melhor amigo do morto. Aos poucos, o que era somente a placidez desinteressante de um acaso brutal, se oferece à narradora o vislumbre do que estava realmente por detrás do assassinato: um conluio em nome não da ganância ou da disputa empresarial, não de fervorosas necessidades de posses, mas apenas, em nome do enamoramento.

María Dolz (uma das fragmentações auto-acusadoras do nome do próprio autor), serve como uma repaginação de Charles Marlow, e cabe a ela a opção por escamotear a verdade no final do romance. Ela suporta os longos monólogos kurtzeanos que o responsável pela loucura do isolamento deísta que acarretou na tragédia da trama lhe dirige durante o transcorrer do livro: monólogos que Marías, diabolicamente, faz monótonos e monocromáticos, destituídos de conexão com a carga de violência que contêm. María retorna para seu apartamento, deita-se na cama, da qual ouve continuamente o som dos galhos da árvore de fora batendo contra o vidro da janela, e repensa essas experiências e o segredo que inadvertidamente agora sabe, e se martiriza quanto à sua responsabilidade moral de revelar ou não um crime. O Congo de María Dolz é a tibieza, a indiferença, o uso pessoal da verdade para esconder o que, em outros tempos onde o calor não fora dissipado, seria o inconcebivelmente cruel. O assassinato, as razões para ele, sua explicação elegante, é desfiado de maneira tão distinta e parcial, pela voz de um dos que estão do lado de dentro e contra o qual nenhuma ameaça chega, protegido pela sociedade ornamental da segurança refrigerada, que Os Enamoramentos é uma obra de um diabolicismo raro, apto para adentrar a lista de obras diabólica proposta por Giovanni Papini (que nomeou De Quincey, Nietzsche, William Blake, ao lado de Dos Passos, que, segundo ele, é responsável pela descrição das "formas mais diabólicas da vida americana dos nossos dias"). Marías nos instruí a pensar em um grau que justifica cada vez mais a sua altura entre os grandes criadores modernos.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

A Peruca


A polícia sugeriu que ele usasse uma peruca. O melhor peruqueiro deles o visitou e levou uma amostra de seu cabelo. Ele duvidava muito que o plano desse certo, mas vários agentes da proteção lhe garantiram que as perucas eram mesmo eficientes. "O senhor vai poder andar pelas ruas sem chamar a atenção", disseram. "Confie em nós." Para sua surpresa, o escritor Michael Herr confirmou isso. "Com relação a disfarce, você não vai precisar mudar muito, Salman", disse Michael, devagar e piscando bastante. "Só os traços mais visíveis." A peruca foi feita e chegou numa caixa de papelão marrom, parecendo um bichinho adormecido. Ao pô-la na cabeça, ele se sentiu um completo idiota. Para a polícia, estava ótimo. "Está certo", disse ele, indeciso. "Vamos dar um passeio com ela." Levaram-no à Sloane Street e estacionaram perto da Harvey Nichols. No que ele desceu do carro, todas as cabeças se viraram para fitá-lo, e várias pessoas começaram a rir e até a gargalhar.

"Olhe", ele escutou um homem dizer, "aquele ali é a besta do Rushdie, de peruca." Voltou para o Jaguar e nunca mais usou a peruca.

                      (Salman Rushdie, Joseph Anton, Memórias, Companhia das Letras, p.234)

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Aliás


Aliás, eu que sempre sou atrasado em tudo, achei somente hoje o Google livros, em que ficam disponíveis para leitura quase todos os títulos do mundo. Estava procurando algo do Murakami para ver qual é a do cara, e achei. Comecei a ler Minha Querida Sputnik (já um tanto desconfiado pelo título típico de Fausto Fawcett), e depois passei para as primeiras páginas da trilogia 1Q84, que só na primeira semana de lançamento no Japão vendeu a cosmológica quantia de 2 milhões de exemplares. Essas páginas ligeiras mexeu com todas as minhas concepções sobre literatura. Murakami me pareceu constrangedoramente fácil, leve. Ele que disse ter partido para a escrita para acabar com a mania de escrever bonito da literatura chinesa, parece ter conseguido. Será possível que se está criando uma nova modalidade de literatura em que os olhos passem por cima das palavras sem necessariamente as verem? Como se lessem música, ou cinema, na página impressa? Será essa literatura que acabará com o cansaço da literatura, a inércia intrínseca da palavra escrita? E os temas de Murakami são uma miscelânea de coisas assombrosas, realismo fantástico com mangá, assassinas profissionais com universos paralelos. Soa caótico e juvenil por demais, mas pensando um pouco mais, não fica difícil perceber que Shakespeare (para irmos ao nascedouro do romance) também era assim. Preciso urgentemente ler Murakami.

Nobel de Literatura Vai para o Chinês Mo Yan_ Alguém aí Já Ouviu Falar?



Tá bom, tá bom! Que bonito! Que politicamente correto! Um chinês! Tantas implicações políticas e econômicas! Mas de vez em quando a academia deveria pensar na promoção da literatura para as massas, principalmente nessa nossa época em que a literatura precisa mesmo de uma forcinha, em que os escritores precisam de um pouco do pecado do glamour das revistas de celebridades e do potencial de venda das empresas de publicidade. Um Philip Roth como laureado teria desencadeado discussões e atenções exageradas pelo mundo, um clima de festa, teria levado um sem número de possíveis leitores às livrarias; ou um Murakami. Mas não... taí o, coméquechama?, Mo Yan, que ninguém conhece e não vai despertar a atenção de ninguém, e tem tudo para ser esquecido rapidamente como o foi o ganhador do ano passado, que não me recordo o nome.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

E Agora Algo Totalmente Diferente...

Segundo a previsão, faltam cerca de doze horas para o anúncio do Nobel de literatura deste ano. Algo me diz que não vai dar Philip Roth, mas espero que eu queime a língua. Os caras lá de Estocolmo cheiram a muita disposição de surpreender, não no melhor sentido, e se forem dar o prêmio para um norte-americano, vão desencavar algum desconhecido nonagenário ex-hippie e militante frustrado de esquerda que, os que se lembrarem dele se verão na compulsão de dizer: mas esse aí não tinha dado um pipoco nos ouvidos há 30 anos? Por outro lado, ficaria feliz se o eleito fosse Cees Nooteboom, um dos maiores escritores vivos e autor de dois dos romances mais belos e fundamentais dos últimos 50 anos, o que motivaria as editoras nacionais a prestarem uma atenção mais respeitosa ao cara: a Cia das Letras traduziu Dia de Finados não diretamente do holandês, e ainda falta ser publicada por aqui mais da metade da produção do autor (sobretudo o maravilhoso Tumbas). Mas o senso de humor da academia é sempre pythoniano, e não espero que esse ano ganhe alguém conhecido_ quando eles elegem alguém conhecido, fazem a questão de ser aquele que até o próprio desistiu de esperar ser laureado um dia, como foi o caso de Vargas Llosa. Tudo para sacanear bolsas de apostas e previsões colegiais.

Eu poderia jurar que eles jamais premiarão Thomas Pynchon, pelo fato de Pynchon fazer parte dos que estão acima do prêmio, como foi o caso de Graham Greene, James Joyce, Tolstói, cada um à sua maneira e com suas diferenças. E seria algo bombástico ver o velho Pynchon, após uma vida toda de reclusão, se mostrando um ventríloquo de si mesmo, excessivamente loquaz e com aquela disposição toda em queimar um filme e convidar uma das senhoras da plateia para dançar uma mazurca, como o fez, cheio de incitação à vergonha alheia o Rubem Fonseca. O poeta Adonis, que tem uma dessas caras que o obstetra já reconhece ser destinado ao Nobel, terá de resistir pelo menos mais um ano em sua permanência por esse planeta, pois eles nunca premiaram dois poetas seguidos (pelo que eu me lembro, de minhas consultas à lista). 

Eu só espero mesmo que eles não premiem o Murakami. Neste final de semana eu estava na capital para o aniversário da minha filha, e procurei obras desse japonês pelos sebos e pelas livrarias dos shoppings, e não encontrei nada. Acabei comprando dois romances do Llosa, por quem estou hipnotizado desde que li A Guerra do Fim do Mundo. São O Sonho do Celta, e A Festa do Bode. Murakami ganhando, incorreria em gastos maiores pelo cartão que eu não estou em condições confortáveis de ter, pelo menos pelo próximo mês. Em todo caso, terminei de ler Os Enamoramentos, o maravilhoso recente romance de Javier Marías (quem espero que a academia deixe em paz pelo menos mais uns dez anos, para que o espanhol continue lançando, numa fantástica linha de continuidade ininterrupta, uma obra-prima atrás da outra), e estou na página 200 da fundamental auto-biografia de Salman Rushdie, este um provável laureado de 2017 ou 2018.

A foto da festinha de dois anos da minha filha Júlia, acima, me recordou a belíssima capa de Paraíso Perdido, do Cees Nooteboom.

P.S.: a propósito, vejo no blog do Javier Marías, surpreso, que ele também tem alto apreço pelo conto A Pata do Macaco, citado aqui como um de meus 10 contos preferidos.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Feio



Em sua auto-biografia, Tempos Interessantes, Eric Hobsbawn afirma que ajudou-o a se dedicar desde muito cedo aos estudos o fato de ter sido sempre o aluno mais feio da turma. Também servira a não tentá-lo para outras possibilidades afora a vida intelectual o fato de todos os períodos da sua vida ter tido a teimosa filiação aos eventos mais traumáticos do século XX: nasceu no ano da revolução bolchevique; teve sua infância e adolescência coincidida com a derrocada do colonialismo que descambou para as duas grandes guerras mundiais; as crises financeiras dramáticas advindas com esses eventos; a ascensão de Hitler; para citarmos apenas os que comportaram os anos em que, em tempos menos interessantes, teriam propiciado condições a um jovem judeu nascido sob o domínio britânico a se lançar a aventuras sociais mais hedonistas e menos contemplativas. Mas o fato de ter o rosto alongado, os olhos míopes confrontados por armações continentais de óculos de lentes grossas, os dentes encavalados, os cabelos desalinhados e mais volumosos que pede o molde natural do rosto, e o semblante de todo modo imediatamente reconhecível como o de um nerd, foi que erigiu a fundação, em sua adolescência, para que se internasse no monastério de leituras e não cedesse às tentações dos bailes estudantis e dos namoros efêmeros. Uma mente observadora dada a confabulações extemporâneas cairia na tentação de silogizar que o maior historiador do século passado deveria mesmo se proteger contra o material sobre o qual estava incumbido de escrever, refugiar-se nos tantos livros que o preparariam a arrebanhar as característica díspares do "século mais violento da História" e torná-lo coordenadamente assimilável_ que, em sua cátedra de acadêmico reservado, ele pudesse misturar os ingredientes ebulientes e instáveis que compunham esse período e os conferisse ao menos a enganosa aparência de harmonia na página escrita. E tanto mais era trabalhoso por sempre ter que driblar essa generosidade que a sorte lhe fizera de fazer andar lado a lado a sua vida e o século XX, para que pudesse obter a distância necessária para entender ampla e profundamente. E foi isso que o menino feioso fez de forma brilhante e com uma energia assustadoramente incansável ao longo da maior parte de seus 95 anos de vida, vida que se encerrou hoje: transformou a história em um elemento estético de altíssimo padrão, escrevendo-a com a mesma perícia e beleza dos melhores textos literários, e mantendo sempre uma postura combativa, mesmo (ou, principalmente, já que seus escritos são ainda mais belos em sua fase tardia) quando se tornou octogenário e esperava-se que ele anunciasse sua aposentadoria. Hobsbawn cumpriu o que escreveu em A Era dos Extremos: "De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender."

Mais uma vez a coincidência com os pontos críticos da história o pega mesmo na morte: ele se vai num momento em que se acentuam as evidências para o temor de que a escuridão que pressagiara na frase final de seu grande livro sobre o século XX se estabelece velozmente no mundo. O hedonismo do qual sua feiura o poupara na infância está cada vez mais presente na manutenção do descerebralismo global, enquanto, beneficiados com isso, crescem cada vez mais a usura das velhas e repaginadas formas de dominação, as crises econômicas fatais de arrasto às especulações bancárias, e o descrédito de toda postura que seja dissidente ao modelo econômico que está aqui e que foi a causa dos grandes males dos últimos cem anos. Sua espécie de gêmeo semi-antagônico, o também falecido, só que prematuramente, Tony Judt, assim como ele salientava a importância imprescindível da humanidade se agarrar novamente nas grandes ideias humanistas e na defesa das Questões Sociais e do Estado previdenciário. A diferença, que não vem ao caso aqui e que, numa possibilidade de análise retroativa após a sua morte que talvez abalize sua teimosia, ou sua fé, é que Hobsbawn nunca abandonou de todo a Esquerda clássica, mesmo com todos os erros que se cometeram em nome dela, enquanto Judt o atiçava a responder mais pausadamente sobre o que lhe parecia a mais grave omissão do maior historiador do século. E a sua teimosia rendeu um dos mais fundamentais livros das últimas décadas, que parece ousadamente anacrônico se não fosse a produção de um senhor que nunca se rendeu aos esteriótipos fáceis e às mais saudáveis ideias arraigadas, o compêndio de entendimento plural do marxismo Como Mudar o Mundo

Eu mesmo estou longe de retornar às antigas searas das lutas de classes com paranoica fixação no aspecto econômico dos marxistas ou marxinianos, e nutro uma ojeriza contra o fogo-fátuo da Esquerda clássica (sobretudo a dita esquerda latino-americana) mais voltada para Judt do que para Hobsbawn, mas ler esse seu compêndio de textos sobre Marx foi um exercício revigorante de não render à Verdade consolidada. A Verdade Consolidada de que só nos resta o capitalismo, e que tudo já testado e fracassado no campo oposto serviu para enterrar de vez as grandes imaginações do espírito. Hobsbawn escreveu em sua magnífica auto-biografia que nunca usou jeans para firmar seu não-pacto com o estilo norte-americano de impor as normas do império como inofensividades cotidianas. Não parece uma mera pirraça de um erudito capacitado, principalmente quando o leitor, mais adiante, é agraciado com uma pausa em seu ensaio e fica por todo um longo capítulo lendo uma narrativa cheia de lirismo e memorialística de primeira quando Hobsbawn se recorda das viagens de férias que fazia para uma fazendinha no País de Gales. A casa empoeirada, a falta de água encanada, a paisagem maravilhosa que compensava essas penúrias, a sensação plena de união familiar e juventude. Hobsbawn, como bem diz Judt, foi um dos maiores escritores do século; ele podia fazer isso e o fazia constantemente: nos render diante a suavização de sua voz, nos desacelerar diante ao que está aquém da história e dos especifismos acadêmicos, que é a arte de observar, a arte de se embevecer, a sempre adrenérgica tarefa da descoberta do conhecimento. A prosa de Hobsbawn, para mim que me empenhei um tempo em períodos herméticos de leituras acadêmicas de História, é sui generis, nenhum de seus conterrâneos se igualou na arte do deslumbramento da escrita que ele possuía. Ler os livros clássicos dos outros historiadores ingleses marxistas, tais quais Christopher Hill e E. P. Thompson, é uma tarefa de certa maneira árdua, está-se constantemente ciente de que se está sendo penetra em salas universitárias de ingressos restritos, de estar-se aventurando por áreas muito doutorais do saber. A escrita de Hobsbawn já é uma tarefa erudita que junta música e cinema, Dickens e todos os prosadores que intercalaram miríadas de narrativas conjuntas na mesma página; mostra que o garoto feio lia de tudo em seus quartos reservados. Daí que em praticamente todos os seus livros existir capítulos específicos sobre literatura. Daí ele frequentar constantemente as listas de best-sellers, sem, nunca, ter feito concessões, sem, nunca, ter aparecido trajando jeans.

Daí ele ter sempre se apegado aos ideias hoje vistos como retrógrados do grande humanista, com olhos voltados ativamente para os despossuídos e desprivilegiados, como se pode ler neste texto. Hobsbawn criou uma escola literária, que ainda não tem nome mas que contêm os livros que serviram a trazer a História para o âmbito doméstico. Basta o leitor pensar em qualquer dos mais influentes livros de história produzidos no quarto final, ou na metade final, do século passado, e lá estará o prosseguimento à primogenitura de Hobsbawn, seja Tudo que É Sólido se Desmancha no Ar, seja em Pós-Guerra, seja em Cultura e Imperialismo. Como o fez Sagan para a difusão da ciência, Hobsbawn popularizou a história, com alto requinte e sofisticação. Deveriam ter-lhe dado o Nobel de Literatura.

Meu filho de três anos se chama Eric em homenagem a ele. Pretendo ficar bem longe do pieguismo, mas devo confessar que o modelo que ele passou para seus leitores me salvou em variadas ocasiões. Me safei de provas escritas espinhosas por invocar a música de Hobsbawn para meus textos, seu jeito fluido e babélico de escrever, o que contagiava minha capenguice literária. Nunca me rendi à desistência fácil de me achar velho e cansado para o conhecimento: ao contrário de grande parte dos outros escritores, Hobsbawn mostrou uma juventude ativa espetacular depois de velho_ depois de muito velho. Ele morre deixando com a Companhia das Letras, sua editora brasileira, textos para a compilação de um novo livro.

Eric Hobsbawn (1917-2012)