Solicitei à Cia das Letras que me mandasse a coletânea de ensaios do David Foster Wallace, e a biografia do Marighella (não consigo deixar de me sentir chic ao dizer isso). Fui informado de que o Mariguella ainda está para ser publicado; mas hoje o carteiro me entregou o Ficando Longe do Fato de Já Estar Meio que Longe de Tudo, do Wallace. Já no prefácio, de autoria do Daniel Galera, obtenho essa joia de citação de Wallace: "A ficção pode oferecer uma visão de mundo tão sombria quanto desejar, mas para ser realmente muito boa ela precisa encontrar uma maneira de, ao mesmo tempo, retratar o mundo e iluminar as possibilidades de permanecer vivo e humano dentro dele". Segurei o livro para ler no feriadão que se iniciará na sexta-feira, em que minha irmã virá para passar aqui em casa, e que, já amanhã, perfilarei junto aos demais humanos no supermercado o clima de fim de mundo que vem com todos os feriados. Centenas de pessoas com suas cestas e carrinhos lotados com aquele olhar apreensivo de que se deve abastecer o bunker diante toda gama de probabilidades aterradoras que pode-se surgir diante a realidade inóspita de que o supermercado deixará de funcionar por um dia. Vai que a desatenção provoque o choque cósmico da falta de uma caixa de leite para o café da manhã? Mas lá estarei eu, junto a todo mundo, com minha cara de desabrigado iminente pedindo clemência ao chocolate em pó da Nestlé para que ele me proteja do furacão com o consolo do bolo de chocolate com raspas de laranja que certo dia descobri no blog da Nikelen e que se tornou vício caseiro compartilhado compulsivamente pela minha irmã. Embora eu mesmo não vá prová-lo, devido à dieta que me impus para voltar a usar duas camisetas com a estampa da capa do Tull, Too Old to Rock´n`Roll, Too Young to Die.
Sempre que penso em Wallace me vem aquele célebre discurso em que ele observa compassivamente os consumidores de um supermercado. Esse texto consta no livro, com o título Isto É Água. Também no volume o texto sobre o festival da lagosta do Maine, esse maravilhoso ensaio que já mencionei antes no blog, e que se encontra disponível na íntegra aqui , assim como o Isto É Água aparece aqui. Há muito a aprender sobre o mal da ironia na linguagem moderna, na obra de Wallace, e isso me pareceu o mais premente a ser observado. E também o retorno da moralidade na ficção. Eu há muito me ocupo com o estudo dessa função da ficção, e às vezes me sinto na contra-mão das tendências. Escrevi sobre isso no texto O Século que Não Foi de Tolstói, em que expus a ideia de que os paradoxos sofisticados dos infernos kafkianos, beckettianos, e demais escritores do século passado que refinaram as mensagens veladas sob os enigmas, estavam por ser trocados, na ciclicidade ditada pela necessidade dos tempos, por autores mais diretos, mais incisivos e desmascarados (mesmo a máscara sublime da arte), devido as urgências de um cenário mundial à beira de um abismo que não parece abismo por suas redes de histrionismos e hedonismos, mas é abismo deletério como sempre foi a natureza unívoca dos abismos. Daí que se faz necessário um moralista do calibre genial de Tolstói, mais que um psicótico à busca da redenção pelo excesso do peso de Dostoiévski. É um posicionamento que oferece diversas frentes de ataque, e o primeiro deles é "mas deve-se levar a importância da ficção como modificador social a esse nível?". Lendo Cosmópolis, há uma cena em que o herói precisa fugir de um atirador e acaba ficando de frente a uma porta fechada; passa por sua mente avaliativa a lembrança de que todos os filmes de Hollywood, uma hora ou outra, apresentam a mesma cena: a convenção de uma sobrevivência posta em perigo devido ao clichê inescapável de uma porta fechada, resolvida por outro clichê que é o herói derrubar a porta com um simples e funcional chute. O herói de Dellilo conclui que a realidade, infelizmente para ele, é prostituída pelas ideias daninhas do cinema de entretenimento, pois as portas jamais cedem tão facilmente a um chute no mundo que existe sem os efeitos cênicos; daí, ele levanta o pé, chuta a porta e a porta cai de pronto no chão. É uma dessas ironias que Wallace talvez condenasse na ficção, pois, segundo suas palavras, "a ironia, embora prazerosa, tem uma função quase exclusivamente negativa. É crítica e destrutiva, boa para limpar o terreno. Com certeza era assim que nossos pais pós-modernos a viam. Mas é particularmente inútil quando se trata de construir alguma coisa para pôr no lugar das hipocrisias que expõe". Não levar a sério a importância modificadora da ficção é entregar os pontos para o inimigo que a usa massivamente na televisão, nos discursos políticos, nas propagandas das marcas das megacorporações, na imbecilização de tantas e sofisticadas formas de transmitir o imediatismo prostrante nos programas de televisão, nas telenovelas, nas imagens de amplidão ufanista dos partidos, nos copos de água a serem abençoados por cima das tvs e nas orações da Rosa de Saron; não corresponder desse lado de cá, com a força de reação que nos resta, é ser conivente com o crédito do presente eterno, sem passado e sem futuro, o presente imaculado que aprisiona tantos jovens que me olhavam, anuviados pelo rap, das carteiras de aula dos colégios dos quais abandonei a função de professor na época certa.
Daí vem outra questão, que não quero analisar neste texto descompromissado: o moralismo não acabaria com as sutilezas da arte? Mas não temos Conrad, Tolstói, o próprio Wallace (estremeci diante um texto do Galindo, o tradutor em trabalho de tradução da obra tijolácea de Wallace, Infinite Jest, dizendo que uma das miopias sobre esse livro é achá-lo de auto-ajuda!)? Recordo que Salman Rushdie, em um ensaio sobre um dos livros mais magníficos que li nos últimos anos, Desonra, critica a falta de eficiência de Coetzee em concluir um romance espetacular de forma tão obtusa do ponto de vista social e político. Rushdie acusa o final sem redenção e conivente com o mal do racismo cruel da África do Sul, que pressupõe ao autor a premissa aceita de que o mal pode ser desgastado com a compensação histórica cíclica: de certa maneira Rushdie está certo: mas um final que não fosse aquele engendrado por Coetzee, não destruiria a beleza cortante da obra?
Ficam esses rascunhos para futuros textos. Neste feriado, enquanto as mulheres e crianças estiverem no clube, para se refrescarem de um calor que tangencia os 40 graus _ um calor de suicídio coletivo de podas inescrupulosas de árvores para favorecer as frentes das lojas, e uma monocultura assassina e estúpida da cana de açúcar_, eu avançarei em meu escritório refrigerado por um estoico ventilador nas leituras a serem postas na ordem do dia. Tenho que acabar o Microcosmos, do Magris, uma leitura prazerosíssima_ as descrições dos escritores e artistas anônimos para o mundo mas conhecidos no fermentado ambiente cultural das aldeias do interior da Itália: um ar delicioso de Federico Fellini por todas as páginas. Avançar no estranho romance do Kobo Abe, Secret Rendezvous, que meu amigo Luiz Ribeiro me mandou. E iniciar esse Wallace.
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