segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Felicidade em 2014 para todos!



"Especialmente nos dias de hoje, não existe nenhuma razão para existir a menos que se creia possível fazer da própria vida algo decisivo. Para todos, para a humanidade. Isso exige uma certa quantidade de atrevimento. Uns poderiam chamar de ambição, outros de desfaçatez. Se tentasse explicar esse ponto de vista, decidiriam me amarrar em uma camisa-de-força imediatamente. Contudo, se você acha que as forças históricas estão mandando tudo e todos para o inferno, você pode resignadamente se juntar à procissão ou então se afastar; e se afastar, não por orgulho ou por outros motivos particulares, mas sim por admiração e amor pelos potenciais e capacidades do ser humano para os quais, sem exagero, as palavras "milagre" e "sublime" podem ser aplicadas." (Saul Bellow, A mágoa mata mais)

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Tabletes de caldo de galinha



A parceria entre esse blog e a editora Companhia das Letras, pelo visto, inapelavelmente está encerrada. Não porque queira a Companhia das Letras e nem tão pouco, claro, queira eu. Mas é porque assim determinou uma das facetas do universo institucional do Brasil. De três meses para cá, a Companhia das Letras me enviou, pontual e cordialmente, dez livros_ nenhum deles nunca chegou à minha casa. Comuniquei à editora para ver se havia por parte dela algum esquecimento, mas a moça do departamento de divulgação me disse que os livros foram sim enviados, mas que não tinha problema, ela os reenviaria. Assim, mandaram uma segunda vez os seguintes títulos: Fugitiva e Vida querida, de Alice Munro, Bullet Park, de John Cheever e Num estado livre, de V. S. Naipaul. Não chegaram. Fui aos Correios perguntar como algo assim poderia acontecer, e eles, com mudas caras de vitrine, disseram que não sabiam o que poderia ter acontecido. Por serem envios simples, não há como rastrear os livros. Se algum dia chegarem, dou alguns deles de presente aos frequentadores desse blog, pois já comprei os da Munro, e os demais (há um de Andrew Solomon), estão na minha lista das próximas aquisições. O que mais me consterna é que houve um tempo, lá pelos meus vinte e poucos anos, em que os Correios era, unanimemente, tida como a empresa mais idônea do país. Nota: os livros finalmente chegaram hoje, segunda-feira, 30 de dezembro de 2013.

_____________________________________________________

Ainda sobre instituições, a cidade onde eu moro ocupou os principais jornais do país na semana retrasada. Não foi algo honroso. Para os habitantes tradicionais daqui, tratou-se da vergonhosa queda de um ícone, de um herói municipal. O único policial federal nascido e criado na cidade, filho de uma das famílias mais entremeadas nos bastidores dos apanagiados de sempre do poder ( loteam de alto a baixo os cargos públicos), foi preso pela própria policia federal, que aportou na cidade em um momento cênico histórico, com suas caminhonetas negras, com seus homens uniformizados de preto com óculos Ray-Ban, com suas algemas democráticas. Prenderam o policial federal nativo, para enorme espanto e enriquecimento por meses das conversas dos velhos sentados diante as casas ao final das tardes. O nativo era superintendente do departamento de informática da PF; a Folha se São Paulo o declarou gênio dos computadores. Ele construiu um sistema de vendas particular de informações dentro da PF, e as vendia caro para empresários; ele liderava uma quadrilha que continha ainda três policiais civis e não sei mais quantos policiais militares (incluso gente de alta patente), distribuídos por 33 municípios de 4 estados. Sua fortuna acumulada em vários anos é algo muito acima do que seus rendimentos como funcionário público teria permitido angariar (fazendas, carros de luxo, essas coisas previsíveis)_ e olha que seu salário, somado à gratificação de chefia, era algo próximo a 30 mil reais por mês. Continua preso, com bens confiscados. Não por acaso, é primo de N. Aguardemos.

___________________________________________________

E aí que a Carta Capital publicou em seu site um texto condenando o recém declarado vencedor de The Voice Brasil por americanismo. Algo a ver com o cara ter cantado, no programa da final, uma música de Leonard Cohen e não uma de, digamos, Tom Jobim ou outra figurinha de devoção religiosa de certo nicho basbaque brasileiro. A Carta Capital repaginou todo o site e virou uma espécie de república estudantil de tudo que for adepto do politicamente correto. Há por lá a feminista inconformada, obcecada por mensagens cifradas ou despudoradamente diretas por parte da mídia corporativa que denigra as mulheres; há o carinha que vive nos morros e defende com toda empostação sociológica o funk carioca como expressão legítima de aprimoramento educacional para crianças e adolescentes; há uns três ali especialistas em ler minuto a minuto o que sai na Veja, para respostas urgentes imediatas. Há muito mais que isso, e tudo pautado por uma informalidade pretensamente cosmopolita, abertamente leiga e jovial. No afã de criticar o criticável e defender o defensável, a revista, que há anos é tão ruim quanto sua contrafação em maior escala Veja, cai constantemente em contradições que a miopia dos articulistas não consegue ver, obscurecida por tanto excesso de bondade edulcorada. Daí essa crítica involuntariamente cômica de querer que um intérprete de um programa cujo nome é The Voice Brasil, sucursal de uma das maiores franquias da indústria de entretenimento americano, cujos cenários são marcas evidentes do show-business americano, e cujo jurado que mais declama sua brasilidade tresloucada se intitula Carlinhos Brown, querer, como ia dizendo, que tal candidato ostentasse patriotismo e bandeirismo étnico. O que se vê talvez seja um dos diagnósticos do que está acontecendo no meio da crise do jornalismo brasileiro, a geriatria crepuscular de gente como Mino Carta que se afasta aos poucos rumo à aposentadoria, e que dá lugar a uma mocidade que tem toda a postura exigida da nova intelectualidade reativa e libertária, mas que interiormente sofre do vazio ideológico preenchido pela paupérrima disputa partidária que tem assolado o país desde décadas.

_________________________________________________

Tá bom. Ganhei de presente de natal da minha irmã uma edição especial de seis blue-rays e nove dvds da trilogia estendida do Senhor dos anéis. Eu adoro dragões e fadas e hobbits, e sou obcecado por Senhor dos anéis. O mal é que assisti a um episódio de The big bang theory, em que a namorada de Sheldon assiste compulsoriamente a Caçadores da arca perdida junto ao Sheldon, e destrói em definitivo a apreciação devota do grupo de amigos nerds a esse filme com Harrison Ford. Ela simplesmente diz que Indiana Jones não tem função nenhuma no filme, pois os nazistas pegam a arca sem que o herói consiga mover um dedo para impedir, e no final os nazistas sucumbem sem que para isso Indiana Jones tenha corroborado uma vírgula para isso. Ou seja, todo o peripatetismo do Jones equivale a uma macaquice besta e gratuita de um tolo que passa ao largo da história que é contada sem que na verdade ele represente alguma coisa. No diálogo final do episódio de The big bang, um dos nerds ainda consegue alavancar uma apologia a Jones, causando um rápido alívio em todos, para logo um outro chegar à triste conclusão que a única coisa que Jones fez foi apressar para que os nazistas descobrissem o local onde a arca estava escondida. Pois minha devoção a Senhor dos anéis sofreu um revez de mesma categoria. Ao re-assistir O retorno do rei, não me saía da cabeça essa desconfortável miséria da razão: por que as águias gigantes que socorreram da morte por duas vezes a Gandalf não facilitaram toda a coisa levando Frodo para Mordor, afim de que o anel fosse destruído?; não foi uma bruta de uma sacanagem egoísta que Gandalf, os deístas e esbeltos elfos, Aragorn e tantos reis e povos aparecidos na trama, deixassem que Frodo e Sam atravessassem a pé, na penúria e sob constantes ameaças de serem mortos, até Mordor?; tanto foi sacanagem que Gandalf aparece com as águias para pegar Frodo e Sam das ruínas explodidas do vulcão só após a morte de Sauron; a travessia dos dois hobbits com o anel demora 13 meses para ser concluída, às custas de muita destruição e guerra, e uma simples viagem de algumas horas com as águias e pronto, Sauron estaria destruído e tantas vidas poupadas; em contraparte, e Sauron sabia que a única coisa que podia destruir o anel era as lavas de Mordor, porque ele não colocou às portas do vulcão uns mil orcs dos mais demoníacos por garantia?; pois quando Frodo e Sam e o Gollum chegam à porta de Mordor, não há ninguém, o caminho está completamente desobstruído, de tal maneira que bastou Frodo jogar o anel, com Smeagal e tudo, pelo buraco; e agrava ainda mais essa gigantesca distração de Sauron o fato de que, quando os sinalizadores espalhados por toda a terra média são acesos, convocando a todos para a luta pela resistência de Minas Tirith, em cada posto deles, mesmo no meio das montanhas de gelo até nas planícies mais desertas, havia alguém ali para tocar fogo nas fogueiras (fogueiras que estavam apagadas há séculos, mas que renitentemente dispendiam a presença de guardas para quando a guerra fosse conclamada)_ enquanto que o ponto mais importante do mundo, as portas de Mordor, continuavam estupidamente desguarnecidas.

De todas essas questões desse post, a última que tem retirado meu sono.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

De onde vem o chute



Aproxima-se o fim do ano, ou ele já está aí de forma incontestável ao término desses dois feriados festivos que se intercalam antes do fim como uma espécie de lenitivo, e as coisas de modo geral não andam muito bem. A impressão, a sombra de uma certeza indeterminada, me ronda a cada novo ano em que minha maturidade se distancia mais daquela casa onde as festas de natal sempre eram comemoradas com grande parte da minha família, tios, primos, avós, mãe, alguma eventual paixão da infância, aquela casa de meus tios que há muito tempo se divorciaram e talvez já nem exista lembranças desses tempos em sépia senão na minha memória. Não que em vários sentidos hoje eu não esteja produzindo lembranças boas na cabeça de meus filhos: há todo o banquete a ser preparado para amanhã; haverá a presença de minha mãe, de minha irmã, de amigos. Mas, por mais que isso seja seguro e disposto à alegria sincera, meus 40 anos estragam aquela leveza passiva que eu tinha ao observar as estrelas após a meia noite e orar um Pai Nosso em prol do benefício da humanidade; hoje é um tanto constrangedor tentar fazer isso sem que me venha uma nota aguda de monólogo cósmico, onde eu não tenho o mesmo aparato de fantasia romântica em intuir que alguém do outro lado esteja ouvindo. Isso é mais inexplicável que a simples menção de deus. Trata-se de uma irritante propensão a diagnósticos formais que é típico da idade. Não se trata puramente de deus. Como vou me explicar?

Bom. Vou falar então sobre uma coisa que me aconteceu há mais de 15 anos, não me lembro precisamente quando. Eu namorava com uma das Danielas da minha vida. Essa moça era paulista, de educação meio puritana, um amor de pessoa. A amei com sinceridade, julgava que seria com ela que iria me casar e resistir à felicidade e as atribulações preconizadas. Ela era_ é ainda_ bastante católica. Houve um tempo em nosso namoro que isso começou a incomodar. Mas aprendemos a contornar a falta de crítica da parte dela e a minha propensão ao sarcasmo. Ela nunca me instigava a acompanhá-la nas missas, e essa astúcia acabava por me levar a acompanhá-la em quase todos os domingos. Uma vez ela disse que iria a uma reunião de orações em uma apartamento no centro da cidade, à noite. Nessa noite eu estava profundamente desmotivado a ver sacralidade em uma turma composta por uma maioria de mulheres de todas as idades devotada ao culto mariano, mas me prontifiquei a ficar calado aguardando o encerramento dos rituais até que pudesse levá-la a uma pizzaria depois. E aí aconteceu uma coisa que desde então não penso mais e só agora me dou conta da relativa riqueza de interpretações que suscita. Eu estava no último ano do curso de veterinária, a angústia do desemprego me tirava o sono. Eu andava amargo e irritadiço. Meus planos era ir para a Austrália, motivado por uma obscura sensação de adstringência de um continente distante em que a reificação de ainda mais obscuras aspirações de aventura juvenil me fazia crer ser o caminho. Meu pai havia passado bons anos na Austrália e feito vários amigos lá. Meu propósito de vida era me afundar no trabalho, e, como disse a um amigo, me tornar aos sessenta anos devastado pelas rugas do excesso de vida tal qual Hemingway.

Pois bem. Entramos no apartamento para a sessão de orações. O apartamento ficava em um grande prédio de frente à catedral, no centro da cidade, era bem pequeno e recordo que soltei em voz baixa para a Daniela a piadinha irresistível de que tinha visto que até o papel higiênico era estampado com a figura da Nossa Senhora. Havia Nossa Senhoras por todos os lados. Se a dona do imóvel tivesse assistido os mesmos filmes de terror que eu, seria impossível a ela conter o arrepio na espinha de associar aquilo a uma santeria haitiana. Enquanto as mulheres se posicionavam, entulhando o minúsculo cubículo, eu só via vodu nas estátuas da Virgem nas estantes, as velas da Virgem por sobre as mesas, as camisetas com o desenho da Virgem. Eu não aguentei. A cada palavra de cumprimentos que a mulher fazia, eu soltava um eco de caricatura grosseira nos ouvidos da Daniela, no intuito de firmar minha contra-ofensiva de que aquilo já era demais. Daí então entra uma velhinha miúda que não estava lá quando chegáramos, uma senhora gorda, de óculos, que olhava para os objetos presentes sem reparar neles. Passava a desconfortável sensação de que estava espiritualmente em uma outra dimensão. Parecia demais com a espírita exorcista de Poltergeist. Assim que entrara, todo mundo se afundou em um silêncio mais intenso e constrito. A velha ficou no centro da pequena multidão, fechou os olhos, e o que se seguiu foi algo de notável pureza de comunicação. Entre ela e os receptores de suas palavras havia tanta resposta imediatista que a cena atingiu um nível de absurdo acrítico. Aquilo acontecia plenamente para todos que estavam lá, ninguém ligava para meus sarcasmos ou minha irrisória presença, ninguém cogitava o despropósito de ver o ridículo de tantos bonequinhos de gesso de uma mulher com mantos celestiais roxos e vermelhos. A mulher orava em uma intensidade, tornada ainda mais exultante pelo descompasso físico de ter tanta resistência e distinção em um corpo tão pequeno, que criou um vácuo deportado do mundo em que aquelas mulheres entravam e se rendiam com total confiança. A mulher disse: "Há aqui entre nós um moça que não consegue se perdoar por ter feito um aborto; não consegue viver em paz e parar de se imolar pelo arrependimento de ter abortado o filho; pois eu digo a ela, pode parar de sofrer, Jesus está com seu filho ao lado dele e pedindo que você pare de sofrer." Assim que ela terminou de dizer isso, uma moça que estava na frente das fileiras caiu com um altíssimo baque no chão. Olhei um pouco aturdido e ainda com mofa para a Daniela, para perguntar se aquilo não teria dado à moça um traumatismo craniano, mas a Daniela estava além do meu contato, chorando e orando baixinho. Uma sucessão de outras pessoas, entre mulheres e homens, foi desabando no chão. Eu fiquei escorado à parede, aguardando que o ritual acabasse, já que era impossível me retirar dali. Daí a mulher falou uma coisa que parecia ser para mim, que havia entre nós um jovem que iria se formar na universidade no final do ano, e que se angustiava muito com a perspectiva do desemprego, mas que tal jovem não se preocupasse mais, porque Jesus estava guiando seus passos. Olhei em torno explorando as estimativas de que em cada reunião de dez pessoas, pelo menos três delas se adequariam aos números do desemprego iminente no Brasil de meados dos anos 90, mas só tinha eu ali no nível etário correspondente às palavras da mulher. Fiquei em expectativa, ainda não aceitando que acabava de ser convidado à oferta de suspeita generosidade persuasiva por parte da velha. A velha falava na mesma velocidade quase sem tempo para retomar fôlego, e daí então ela falou algo que só poderia mesmo ser para mim, algo personalíssimo, afrontosamente invasivo, que envolvia meu pai, que tratava de uma antiga dor sedimentada e incontornável. Não tive a disposição de atentar ao que a vergonha de ser pego tão desprevenido poderia ter provocado de olhares curiosos (o instinto de preservação me fazia esquecer que era impossível àquelas pessoas saberem de quem se falava, e aquelas pessoas não estavam nesse plano de apreciação de fofocas). Eu escorreguei pela parede e fui atingido por um choro convulsivo que ao mesmo tempo que ocorria uma de minhas facetas mais fortes ficou em desespero para me tirar dali e me dar uns tapas de ceticismo revigorante na cara. Chorei tudo que tinha para chorar, foi o choro catártico, poder chorar na frente de todo mundo, na frente das estátuas da Nossa Senhora e da santeria toda, na frente da minha namorada apta talvez a utilizar aquilo como benefício indubitável de sua vitória cada vez no futuro que eu me predispusesse a zombar de suas crenças. Chorei com uma desproteção absoluta, com indigência moral e espiritual absoluta. No final daquilo, seja o que foi que aconteceu, eu estava em um estágio iluminado. Eu havia me transformado sem qualquer previsão de um jovem já no começo do fim de sua juventude lenitiva, raivoso e com sede de assassinatos hipotéticos, em uma ninfa do vale. Uma ninfa do vale, era isso. Eu me transformara em uma fada, literalmente. Havia o desejo de sair beijando todo mundo. Era em seu caráter externo algo bem gay, mas dentro não havia a mácula das distinções de gênero. Era algo que, analisado posteriormente, era perigosamente livre. Passei umas duas semanas com essa sensação se gastando até acabar.

Depois, no ano seguinte à obtenção de meu diploma como médico veterinário, eu trabalhei por um ano em uma cooperativa. Eramos quatro veterinários, dois agrônomos, e não sei quantos técnicos agropecuários. Morávamos em uma cidade minúscula e trabalhávamos ferrenhamente pelo campo. Foi um ano em que tive a oportunidade ímpar de sentir a felicidade do trabalho, que nunca mais desde então tornei a sentir. Nós acordávamos às oito horas na pensão onde morávamos, em que cada um ocupava um quarto em que só havia uma cama e uma cadeira, tomávamos o café que a dona do estabelecimento fazia, e íamos para uma sucessão de tarefas pelas fazendas que nos consumia até a noite. Sempre havia um excesso de coisas para se fazer, das mais simples e consideradas indignas pelos professores universitários de ser feito por diplomados, como descórnias e rufiamentos, até procedimentos cirúrgicos que eu não sabia como se fazia e aprendia no momento. Castrávamos, fazíamos cesarianas, cirurgias em cascos, em patelas, retirávamos olhos de boi furados em cercas de arame farpado, diagnosticávamos rebanhos de caprinos que definhavam de peso por causa de alguma clostridiose pega no ribeirinho da propriedade. Antes de voltarmos à pensão, passávamos pelo boteco e bebíamos cada um duas talagadas de cachaça para abrir ainda mais o apetite, e jantávamos como sultões, duas ou três vezes, assim como nossos pratos de almoço eram everestes que espantavam os olhares incautos. Eu ganhava bem pouco, mas passava meses inteiros sem ter que ir ao banco, e vivia com o mínimo possível. Voltava sujo e com um sorriso de satisfação no rosto. Considerava meus companheiros de trabalho como irmãos a quem se pode falar de tudo, sem frescuras.

Na cidade conhecia tipos que qualquer escritor teria agradecido conhecer, como um gigante de dois metros de altura que ficava rondando a frente da prefeitura onde nos reuníamos para definir o programa de serviços, que me dava calafrios quando sua presença sorrateira fazia sombra pelas nossas costas pois era de conhecimento de todos que ele havia assassinado os pais e jogado os corpos na cisterna da casa, havia ficado internado em uma clínica psiquiátrica por alguns anos pela inimputabilidade juridicamente declarada de sua loucura e agora se encontrava solto e entorpecido pela batelada de remédios que a irmã sobrevivente do massacre lhe administrava com a temerosa precisão diária de um relógio suíço. Ele não falava coisa com coisa e era impossível apreender alguma palavra distinta por entre o mar de barbitúricos, mas seu constante sorriso deixava a incômoda certeza do momento imediatamente anterior em que esfaqueara os pais, e que nem o carteiro de bigodes mexicanos que era tido como o mais destemido linguarudo do local tinha a audácia de inquerir dele sobre o que era. Havia o senhor Mozair, um mestre de obras que sempre dizia nas conversas de fim de noite que seu nome era uma homenagem feita pelo pai a um compositor de música clássica alemã que havia composto uma peça de nome Primavera, e que a mim quando ele a assoviava para que todos se deleitassem com a lembrança imediata de terem-na ouvido não se sabe onde, parecia indistinta da mesma peça, de mesmo nome, só que de Vivaldi; o sr. Mozair tinha uns setenta anos, a fala mansa e ar aristocrático, e alegava com uma ostentação simpatizada e tornada tolerável pelo respeito que tínhamos aos mais velhos ter um cultura que não tinha, mas que era realmente, contra todas as suspeitas imediatas, muito viajado, tendo conhecido meio mundo em seus trabalhos de coordenar construções pleiteadas por instâncias políticas de todas as ordens, e que agora parecia reticente quanto ao questionamento óbvio após seus relatos de tantos anos de glória vir enfrentar sua aposentadoria na feitura de uma simples rodoviária de um município desconhecido nos mapas. Como a pensão onde morávamos era a única da cidade, era lá que se hospedavam os motoristas e cobradores dos dois ônibus intermunicipais que cobriam a rota de chegada e partida do povoado, e cada um desses seres eram figuras memoráveis. Havia um cobrador negro, gordo, que falava com a voz de barítono realmente admirável como se fosse um César que jogava seu comando sonoro para que lhe obedecessem as mais simples ocorrências da trivialidade; em seus demorados banhos no único banheiro da pensão ele cantava as recentes música de rádio, de sertanejo onipresente ao brega perene, que transformava com sua potência pulmonar em óperas que faziam as batentes das portas e as panelas no fogão da velha locatária tremerem. O motorista que sempre o acompanhava era uma sujeito magrinho, que na certa tinha plena consciência que ter que conviver diariamente com alguém que lhe era o exato oposto não era só uma péssima coincidência de escala trabalhista, mas um exercício de compensação esotérica por algum erro grave do passado, e talvez por isso suportasse o fardo com estoica elegância, deixando desvirtuar a ordem de comando natural que a classe de profissionais a que pertencia tinha como algo sagrado e ser seu cobrador quem ditava as ordens, um cobrador com voz megafônica que direto fazia seu corpinho mirrado pular de susto na cadeira de fio, vamos pegar rumo por essa estrada, ou agora o banheiro é seu, não tive tempo de rapá-lo, ou se você quer dormir te dou dez minutos à frente pois eu estou tão exausto que meu ronco vai mover a cama do lugar. O motoristazinho tinha ambição de ser pastor de uma igreja pentecostal e dizia estudar com afinco para isso, coisa que me deixou na suspeita após ele ter dito que na Bíblia Maomé havia dito que se ele não ia até a montanha, a montanha iria até Maomé. Por final, no escritório onde nós transformávamos o suor feliz de nossos rostos em números computáveis, havia mais dois camaradas que a realidade tendia a transformar em caricaturas, o Divino Miguel e o Japão. O primeiro era filho da dona da pensão; era um sujeito de pele devastada pela varíola, com poucos cabelos que ficavam arrepiados e que era passatempo dele lamentar que os estava perdendo, e que em tudo que falava havia um acento de sarcasmo ferino que demonstrava uma indignação inteligente por anos de silenciamento em ter que viver em um povoado tão exilado do mundo. Um dia, anos depois, ao assistir ao filme do Grinch com o Jim Carrey, eu me lembrei dele_ ele falava igualzinho ao Grinch, cheio de desfaçatez sarcástica e humor niilista. Era casado e tinha duas filhas, e não havia um dia por semana em que ele não me chamasse pelo lado de fora da janela do escritório, com voz sorrateira que acentuava ainda mais a graça caricaturesca, para que eu fosse conferir sem levantar suspeitas se o homem que estava parado dentro de um Gol de frente ao prédio não era o mesmo que ele me descrevia exaustivamente como o incansável marido traído que o jurara de morte. Como a mim não parecia ser o mesmo homem, ele se levantava após cobrar de mim a certeza absoluta, limpava as mãos nos fundilhos das calças e voltava assobiando para dentro do prédio, cumprimentando o homem do Gol com sua vozinha ranhenta de Grinch que por dentro o mandava para a puta que pariu por ter-lhe metido tanto medo indevido. E o Japão era um gordinho de ar infeliz mas sempre prestativo, casado com a irmã do Miguel. Em uma noite, o Miguel me toma pelo ombro e diz: "O que vamos fazer. O Japão pegou todo o dinheiro da semana do caixa do escritório e fugiu para o Pará. O que vamos fazer." Eu, prontamente, disse que avisaria a polícia, nada mais. Ao que o Miguel dá um pulo de Grinch e diz, esbaforido: "Calma jovem. Vamos poupar o escândalo. Afinal não era nada de grande soma, e eu pago do meu bolso." E, diante o teste de esperteza que me impôs, ele diz por entre dentes, antes de ir pegar o dinheiro: "Você só tem  cara de bobo mesmo. de resto bobo você não tem mais nada." Depois de um mês no Para, a dupla do motorista pastor e do cobrador barítono chegam à noite à pensão e descarregam pela porta da frente um constrangido e ainda mais triste Japão, que não conseguira no final das contas consumar seu ato de rebeldia contra a existência.

Isso tudo foi para falar que aquele ano eu fui plenamente feliz, repito. Sentia a mesma sensação da ninfa do vale da abdução provocada pela exorcista na santeria. Não sei porque engendrei esse post. Tem alguma relação com o fato de ontem, ao voltar para casa de uma caminhada, eu encontrei o bêbado que inferniza a vida de meu cachorro caído atravessado no meio da rua quase de frente à minha casa. Por várias vezes eu ensaiava a fantasia mental de que pegava esse bêbado e lhe desferia um cacete sem tamanho para ele parar de ficar mexendo com o Miles Davis, tirando o Miles Davis do sério a ponto dele certa vez ferir uma das patas no portão. Certa noite, de madrugada, eu tive que sair de casa e expulsar aqui da frente um velho bêbado que ficara estacado dizendo uma salmodia sem fim em sua voz de pedregulho para o Miles, o enfurecido e puto da vida Miles. Como o velho não demovia pé, eu o empurrei para que fosse embora, e o velho, em uma fragilidade que me constrangeu desabou no chão (um pouco como a moça desabou após Jesus tê-la absolvido do peso do aborto na santeria, com a mesma imprevisível carga pesada para um corpo tão mirrado, tanto o dela quanto o do velho). Eu de imediato olhei em torno para ver se algum dos vizinhos havia acordado e visto esse ato de violência da minha parte_ o doutor veterinário surrando um bêbado. Talvez alguém me tivesse filmado e seria postado o flagrante de minha covardia no jornal televisivo do dia seguinte, ou eu me tornaria um meme cobrando justiça pelas tantas pessoas indignadas da internet. Não me movi para ajudá-lo a se levantar, mas ele se levantou com quase desesperada rapidez, os olhos esbugalhados de quem se vê pego de surpresa ainda mais em um ato tão brutal contra sua sensação acostumada de narcotizada deportação da gravidade, levantando-se claramente com o temor de que eu o fosse chutar uma vez estando no chão desprotegido, embora em pé ele soubesse que também não poderia muito contra qualquer pessoa, ainda mais alguém como eu que deveria pesar cinquenta quilos a mais do que ele. Mas em pé, ao menos, havia mais dignidade, havia uma instrumentação indispensável à presa que corroborava a algum instinto inesperado de evacuação. De pé ele poderia fugir por algum súbito milagre adrenérgico, como naqueles casos de crianças que pulam muros de dois metros sem qualquer explicação física que não o pit-bull que corre atrás delas pelo quintal da casa invadida. O velho foi embora, trôpego, e eu fiquei o observando com um latente vergonha, uma vergonha que se dividia com um orgulho íntimo e idiota de ter protegido minha casa, minha família, meu cão, contra quem? Contra um velho bêbado que com certeza estaria com os olhos lacrimejando de medo uma esquina abaixo, ou talvez de alívio. E ontem eu vejo atravessado o outro bêbado na rua aqui de casa. Dois carros passaram se desviando dele. A vontade que eu tenho é apenas tirá-lo da situação de risco, e o pego pelos sovacos, o ergo e o coloco na calçada. Aparecem duas senhoras que me explicam o nome dele e as condições de sua vida. Se chama Zé, há um mês perdeu a mãe, há tempos a esposa o deixou. É um bêbado completamente inofensivo. Ele pede para que eu o deixe onde está, eu lhe digo que onde está ele pode muito morrer atropelado, ele diz que quer morrer, essas coisas. Não saí de lá me achando herói nem nada. Pelo contrário, mal olhei as duas senhoras com receio de que elas, que aparecerem prontificadas numa hora daquelas, talvez tivessem presenciado com a mesma urgência meu ato de brutalidade contra o outro bêbado, o que temeu ser chutado no chão.

Desde aquele ano, em que eu ganhava mal, trabalhava como um burro de carga em completa felicidade, afastado de tudo e mesmo dos livros, mas junto com pessoas distintas pelo visível sinal humano, loucos homicidas, e sonhadores em diferentes graus de lucidez quanto à evidência insuportável de estarem parados no tempo, ladrões de caixa de escritório cuja única culpa era serem profundamente ingênuos, desde aquele ano eu não sinto a leveza da ninfa do vale, a graça superior de pertencer à leveza das coisas. O que eu senti quando a exorcista me denunciou para mim mesmo era que o medo desaparecia de mim, sumiu como álcool queimado no vento, sem deixar vestígio. Eu não temia falar com as pessoas, abraçá-las, falar em alto e bom som que as amava, como fiz naquela noite da santeria. Senti a mesma ausência de medo no ano de trabalho na cooperativa. Estou lendo A grande degeneração, livro escrito pelo historiador Niall Ferguson, e esse livro está por detrás da intenção caótica deste post. Um livro que aponta o futuro da humanidade como apontam os especialistas conceituados, ultra-respeitados, como sendo uma complexa questão restringida a lados econômicos e políticos, a somas algébricas que o passado oferece para cálculos seguros, a derrocada do Ocidente e a tomada de frente por um Oriente que abraçou com mais primazia a inexorabilidade certa das tendências do livre mercado. O humano é uma subjetividade descartada por inteiro dessa célebres fórmulas. O meu medo, o meu antigo, fiel e companheiro medo, é em saber em qual frente de ataque eu estou nessa guerra insurgente. Em qual eu vou querer estar, nessa transformação paulatina descansada em que eu me torno sem ver, sem refletir. Torço muito, rezo muito, para que eu restabeleça a razão do coração, a única importante, e escolha pela pessoa que está no chão, não pela qual, de pé, pode vir o chute.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Além das convenções literárias



Em um dos ensaios do imprescindível Alfabetos, Magris lembra a vez em que Italo Calvino criou uma polêmica no circuito de literatura de seu país ao dizer que Galileu Galilei era um dos maiores escritores da Itália. A resposta imediata que despontou por parte dos especialistas era que Galilei era um dos maiores cientistas do mundo, e não um escritor. A ciência deveria ser respeitada deixando-a em paz em seu nicho conceitual sagrado, assim como se deveria fazer o mesmo em relação à literatura. Ambas era tão insolvíveis quanto azeite e água. Magris conclui o parágrafo dizendo que essa normativa das especificidades era estridente, embora não se firmasse na realidade óbvia de que os textos de Galilei eram mais belos do que o de vários poetas e escritores conceituados.

O que se segue no ensaio é um desses estudos impagáveis típicos de Magris em que, inesperada e modestamente, um simples artigo de jornal se torna uma profunda proeza filosófica, que parte da reavaliação do que é literatura de primeira grandeza acima das fronteiras da distinção de gênero acadêmico e acaba por explorar o sentido humano que sustenta toda criação estética e intelectual. É uma liberdade deliciosa ler Magris por ele ser o escritor mais despido de preconceitos e mais avesso a catalogações sistemáticas do cenário atual da escrita. A começar pelos dois grandes títulos de sua bibliografia, Danúbio e Microcosmos, que tiram o conforto obsoleto do leitor em ter um conhecimento seguro de qual parte da estante eles pertencem, pois são tanto tratados filosóficos em maior e menor escala, quanto romances metalinguísticos, quanto relatos de viagens e ensaios com a música elevada e rara da nostalgia vinda da impermanência da História. Magris é extremamente culto e um escritor com poderes fantásticos, que transitam da conscisão que namora a onisciência de Borges, às apreensões de uma verdade seinsciente que vem dos filósofos estóicos romanos e dos romancistas intimistas como Cees Nooteboom. Os textos maravilhosos de Alfabetos falam sobre suas influências de leitura, o monumento da Bíblia e dos livros sagrados de todas as partes do mundo, dos livros de aventura de olvidados autores italianos de sua infância, de Guimarães Rosa, um de seus muitos autores canônicos, e assim vai. Nesse ensaio acima citado ele vai mais longe: aceita o que todo leitor calejado sabe sem que todos admitam isso: os maiores esteticistas das letras não são necessariamente os enquadrados no bastião dos ficcionistas, assim como os textos mais belamente poéticos podem vir mais da filosofia alemã e de tratados de física do que de versadores famosos.

Nessa linha, um dos livros que mais me tirou o fôlego pela beleza da escrita é O Mal estar na civilização, um volume que me caiu em mãos inadvertidamente em um dia em que eu mantinha a firme decisão de nunca ler Freud, mas que me arrebatou na antológica musicalidade da primeira página e só me largou quando atingi o final, horas mais tarde. Pareceu mais algo escrito por um afiadíssimo Saul Bellow, pelo ar e a luz solar que dominava todos os ambientes, e a leveza da maestria absoluta do estilo. Não tinha ali nada que fosse ofensivo em minha assimilação um tanto pre-conceituosa do que poderia ser um pesado texto de psicologia (vindo de minhas leituras do obstinado opositor de Freud, Elias Canetti), mas uma radiante e profunda e dançante análise sobre a condição humana em mais uma de suas fases de estupidificação extrema. Também um dos motivos que me levou a cursar História foi a ilusão não de todo infundada de que seria uma porta de abertura para o contato com escritores espetaculares restringidos à ortodoxia de professores entendidos em textos que não orbitavam o círculo das leituras seculares e comuns. Fui à universidade por influência de Eric Hobsbawn, esse que divide minha cabeceira de leituras noturnas desde que me enxergo como leitor sério, sério no que falo tanto sobre disciplina para me aventurar além do baixo senso autorizado pela mídia do que é entretenimento livresco, quanto por ver que o prazer da leitura está na mesma proporção em Michael Chabon e Theodor Adorno. Por falar em Adorno, nele eu encontrei um nível de poesia tão sublime que releio trechos sublinhados por mim nas tantas horas agradáveis que fiquei em sua companhia e tais frases e excertos se encaixam nos mesmos moldes altaneiros dos aforismas das peças de Shakespeare e da poesia de T. S. Eliot e Auden.

O ensaio de Magris vai além, ao explorar o sentido e o dever da literatura. Concordo plenamente com Magris. Ganhei muito lendo textos não literários que provavam que literatura como conceito elitista e rotulado é a mais improdutiva das reduções. Há textos de Carl Sagan que são carregados da metafísica dos melhores romances, e, em contraposição, há uma biografia e uma reportagem escritas por Garcia Maquez que são constrangedoramente passáveis, enquanto autores até então restritos à academia arrombam a grandiosidade literária pela porta da frente com biografias de Darwin e Tolstói, e meros jornalistas alcançam a excelência com reportagens literárias sobre a liberdade sexual dos anos 60 e o julgamento de assassinos que estão no corredor da morte.

domingo, 8 de dezembro de 2013

1Q84, volume 2



Não queria ter que admitir isso, mas a leitura de 1Q84 vol. 2 está sendo um martírio. Comprei o livro assim que ele foi lançado, no início do ano, e comecei a lê-lo desde então. Venci umas 50 páginas e parei, coloquei-o na estante e me esqueci de boa consciência dele, até que nesta semana Murakami voltou à tona com a publicação no Brasil da terceira e última parte do romance. Como o manejo da minha biblioteca é bastante previsível, encomendei o livro e retirei o volume 2 de seu limbo e me impus terminar a leitura antes que o sucessor me seja entregue. Ontem parei na página 159, quando Tengo, um dos dois heróis do livro (o outro, ou a outra, é a assassina Aomame), recebe em casa a visita da então desaparecida e misteriosa menina Fukaeri, autora de um não menos misterioso e bastante improvável best-seller chamado Crisálida de ar. Pois bem, antes de mais nada estou aberto a aceitar que eu é que esteja definitivamente me tornando neurastênico e irritadiço, melancolicamente vaidoso quanto ao meu prepotente bloqueio ao que é tido hoje por arte popular, desfocado quanto a escritores que são aceitos como narradores puros, e outras possíveis acusações; e afirmo que eu gostaria muito de gostar muito de Murakami, de que eu pudesse ver em que meu talento de leitor está falhando para que tal falha seja corrigida.

Mas até então, até que eu seja convencido por uma hipotética voz da verdade, Murakami tem sido a pior e mais pesada leitura para mim dos últimos anos. Vou falar de uma vez: Murakami é um escritor bem mediano. Certa vez escrevi por aqui uma crítica da falta de proteína dos livros de Vila-Matas, mas com Murakami a coisa é bem mais séria. Vila-Matas tem um inegável talento literário, tem profundidade e astúcia erudita, ainda que seja chato pra cacete; já Murakami é tão fraco esteticamente e tão previsível e sem imaginação, que não me parece digno de que se faça contra ele uma avaliação nos mesmos moldes que se possa fazer contra Vila-Matas. E seria um espanto ver que Murakami há anos está cotado em primeiro lugar nas bolsas de apostas para ganhar o prêmio Nobel de literatura, se tais bolsas não tivessem nas mesmas listas gente como Bono Vox e Bob Dylan e não fossem uma falácia feita mais por descerebrados leitores de 16 anos e não conhecedores tranquilos do que é literatura real e encorpada. Murakami, me parece, se alastrou no meio literário como uma grife cuja enxurrada de citações ligeiras e disse-me-disse sem prova-dos-nove consegue se estabelecer como produto legítimo por pura inércia; vi uma vez uma entrevista de atores brasileiros que montavam uma peça, e que enchiam o peito ao falarem que se tratava de uma peça de Murakami, "candidato ao prêmio Nobel". Murakami é um reflexo do relativismo cultural e da baixa exigência sobre o que é entretenimento de qualidade que impera no mundo de hoje, o que acarreta na pragmatização do ditado de que uma mentira repetida muitas vezes acaba se tornando uma verdade.

E o ponto aqui não é que Murakami não tenha lá suas qualidades. Não é, definitivamente, um Paulo Coelho, o que é ótimo. Mas também não é um Dan Brown ou, o que poderia representar uma escala maior de comparações, não é um Stephen King, o que é um demérito a Murakami. O japonês é organizado, revela conhecer seus limites e trabalhar com segurança dentro deles, mas é justamente o fato da opinião inercial propagada em enxurrada tê-lo como escritor de primeiro time que talvez atrapalhe para a devida medida de apreciação que um escritor de seu porte ofereça. Suas frases são, digamos, horizontais ao extremo; seus diálogos são tão didáticos e explicativos, vindos de personagens bidimensionais, que parece exasperadamente com ensaios de teatro de escola preparatória, com as crianças recitando temerosamente de cor todas as longas sentenças. Nisso o leitor percebe a preocupação de Murakami em ser elevado e filosófico, em ser profundo. E Murakami é tão profundo quanto um pé de lúvio. As tentativas dele em metaforizar são tão capengas que provocam um tédio descomunal (tenho aqui em casa mais dois títulos principais dele, e de um fui até a página 100, a história de amor de Norwegian Wood, que talvez seja a sua obra melhor construída e mais humorada [humor que falta por completo em sua escrita], e o outro é Kafka à beira-mar, que me indispôs já naquele capítulo inicial cheio de simbolismos rasos e simplistas sobre fuga de casa e busca pelo sentido da vida). Murakami é um narrador puro, e seria bem melhor se parasse de se comportar como esses prefeitos de cidades interioranas cuja acirrada assessoria de puxa-sacos os fazem acreditar serem Winston Churchill, e passasse a ter a lúcida auto-aceitação do quanto pode tirar de bom de sua pequenez. Por exemplo: em cada capítulo de seus livros, Dan Brown oferece reviravoltas inesperadas e diálogos afiados e diretos, enquanto em 1Q84 a ação não anda por várias e várias páginas, ficando claro que Murakami tenta estender a coisa com interpolações psicológicas toscas e longas reflexões existenciais por parte de seus personagens que não passam de lugar-comum dos mais ostensivos.

Da página 50, de onde eu havia parado a leitura, até a 159, onde eu parei ontem, deixa eu ver, nada aconteceu. Murakami parece perdido, sem saber o que fazer com a história. Coloca, de supetão, um capítulo com a visita de Tengo a seu pai em um manicômio (que provavelmente não seja seu pai biológico, como ele suspeita), tão vazio e mal construído que qualquer leitor, por menor que seja sua proficiência ficcional, tem a certeza de que poderia encorpar a coisa com mais tutano, tornando-a interessante_ não mais interessante, mas interessante. Enquanto isso, Aomame adquire uma pistola com a intenção de se matar com ela caso seu plano de assassinar o chefão de uma seita religiosa fracasse; ela, uma assassina profissional exímia, caríssima, recebe instruções de como usar uma simples pistola automática de um guarda costa, tal instrução preenchendo três páginas, daí se seguindo um diálogo improdutivo de como se deve dar um tiro na cabeça da maneira certa. Ou seja, Aomame, por uma esquizofrenismo do autor, deixa de ser a mulher fatal para se tornar uma criança temerosa diante uma arma de fogo. E o que acontece depois? Uma série de improvisos à lá Lost para angariar a atenção já ensonada do leitor, como o artifício da morte inesperada da amante de Aomame, assassinada em um quarto de hotel, e a chamada telefônica que Tengo recebe do marido de sua amante, em que o marido traído diz, com um misterioso ar de ausência, que Tengo jamais verá novamente sua esposa. Essas ocorrências, que podem se tornar capitais futuramente, são narradas de forma indireta, a primeira através de uma notícia de jornal vista por Aomame, e a outra pelo diálogo telefônico. Após isso, a única coisa que faz a narrativa querer andar é a entrada de Aomame no quarto do misterioso chefe da seita religiosa, o cara mal que ela deve matar (ainda que não saiba usar uma pistola e ache que seja bem mais simples fazê-lo com um furador de gelo adaptado!); essa entrada é admitida pelos próprios seguranças do chefe, que revistam o corpo de Aomame mas, como por milagre (bastando acreditar que isso aconteceria: e é assim mesmo que é explicado no livro), eles não revistam a bolsa que visivelmente traz consigo, dentro da qual está o furador de gelo e a pistola.

Muita coisa em 1Q84 é inverosímel e terrivelmente infantil. O que mais se encontra por aí são opiniões profissionais de que Murakami é o mais imaginativo e engenhoso escritor da atualidade. Mas não é isso que se vê em 1Q84, uma trama que coloca como centro um livro infanto-juvenil escrito por uma adolescente autista, que talvez contenha uma chave para o segredo de uma facção criminosa disfarçada de fanatismo religioso, e... o que mais? Só! Tem também a referência do título e do ano que acontece a trama ao romance de Orwell, 1984, mas até agora não vejo o mínimo sinal de similitude, o que reforça a crença de que Murakami, mais uma vez quedado em sua função de ser profundo, usou Orwell para dar distinção intelectual a seu projeto despirocado. Vou terminar o livro, por mais que isso me cause sofrimento (estou determinado), e talvez a história mostre todo seu caráter sublime daqui para a frente, o que espero com toda sinceridade. Acontecendo, volto aqui para fazer a mea culpa.

                                                   __________________________________

"Se ela o matasse naquele momento, teria de escapar logo. E, se o serviço terminasse muito rápido, os rapazes no quarto contíguo poderiam suspeitar de algo. Ela havia dito que a sessão duraria pelo menos uma hora." (p. 173, 1Q84, Livro 2, em uma incoerência típica de Marukami: Aomame está fazendo uma massagem por meia hora em seu inimigo deitado de bruços no chão e se recusa a matá-lo imediatamente. Mas não seria muito mais fácil ela o fazer logo e ter uma hora de prazo para fugir dos guarda-costas?)

sábado, 7 de dezembro de 2013

Nesta noite de sábado desterrada do infinito



A questão é que na black friday comprei o aparelho de som dos meus sonhos. A loja anunciou que parcelava em dez vezes sem juros, e lá estava eu, que há muito tempo passava de frente a loja e ficava namorando o produto. Sempre tive aparelhos passáveis, de marcas intermediárias no quesito qualidade, e que duravam em média três anos. Meu último era da LG, com um som que de imediato me soava deficiente, como se em mono, e que eu tive que resignadamente aceitar. E daí que, de uma hora para outra, ele começou a rejeitar cds, travar em arquivos de mp3, etc. Foi a deixa para que eu olhasse com uma dose mais perigosa de suspiros ao imponente Sony que parecia um carro alegórico, com caixas piscando luzes de led de todas as cores, seguindo o ritmo da música. Um mimo bem boyzinho, como tudo na indústria costuma ser (em sua atitude de acreditar que após os 20 anos todo consumidor morre disciplinadamente). Meu sonho mesmo seria um aparelho como os das antigas, que eram excelentes (tive um da Aiko, marca extinta há anos, que ainda é imbatível), com radiola e rádio com visor de uma aconchegante luz verde analógica. Mas desses não se acham mais. Pois eu pensei na possível bronca da minha esposa, tive a vozinha do paradoxal demônio prudente me dizendo "calma, pense na poupança das crianças"; mas a Dani, consultada, disse que, por esse preço e pelas prestações, seria um ótimo negócio; e meus filhos chegam a gostar mais de música do que eu, o que é algo impossível. (Todos aqui de casa são abençoados por amarem demasiadamente música; o Miles Davis, meu cachorro, invade a sala de fininho, se instala no canto da porta, e viaja em uma abdução tão profunda ao som do que rola no stereo que sendo artimanha ou não de sua parte, acaba vencendo a Dani, que tem dó de mandá-lo para fora; minha filha ganhou um peixinho beta lindíssimo de aniversário, que de imediato batizou de Miada_ ou Myada, como alterno_ e que esses dias a Dani descobriu encabulada que ao som de Bach que ouvíamos ele parecia ficar em inércia magnetizada.) Dai que comprei o aparelho. Tem teclas de DJ, uma bazuca de baixo, e o manual vem em uma linguagem que por pouco não me chama de "meu peixe" ou "meu chegado", e vem instruções de como distorcer o som para "tornar suas festas mais apimentadas". Sinto um misto de prazer subversivo e culpa quando coloco para tocar nele meus cds de jazz, o que parece que as luzes adquirem uma intensidade sobrancelhinha de fúria e me olham com uma sinestesia diabólica que mais cedo ou mais tarde acabarei acordando suado de madrugada após um sonho em que as caixas de 15 quilos me afundarão para sempre terra adentro. Penso em suavizar a coisa usando um boné do avesso enquanto ouço Anne-Sophie Mutter, cruzando os braços no estilo rap, mas me faltam, por enquanto, essas bijuterias, morais e materiais. Pois bem, agora mesmo, enquanto escrevo, minha esposa e meus filhos se preparam para ir a uma festa de aniversário, e eu estarei, adrenergicamente, sozinho em casa. Eu e meu som adolescente de não sei quantos mil watts. Rebaixei e discografia do Milton Nascimento, em 320 kbps_ dá uma diferença denegridora ouvir mp3 nesse som, mas fazer o quê?_, e nela achei esse magnífico álbum de Wayne Shorter (mais uma influência do Luiz Ribeiro), que será o primeiro que colocarei para tocar. Depois, minha nostalgia londrina requer uma coletânea dupla dos Smiths, e vamos ver o que acontece.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

O direito de ser Paul Auster

Leonardo Padura Fuentes

Em Negro dorso do tempo, esse que é o mais independente dos escritores espanhóis dedica páginas reveladoras sobre o mais independente dos escritores cubanos: Javier Marías relata as deliciosas conversas que tinha com o casal Cabrera Infante em Paris. Cabrera Infante dedicava longas horas a contar piadas e acontecimentos surrealistas que ele e seus amigos passavam pela Europa, de maneiras que Marías ressente de que o tempo desses encontros era incompatível com o torrente aparentemente inesgotável de histórias impagáveis que o autor de Três tristes tigres tinha para contar. Em nenhum momento, pelo menos no livro de Marías, se fala em Cuba, ou ao menos se vê algum vestígio de que Infante era um dos mais notórios intelectuais exilados do regime de Fidel Castro. Não se fala em Fidel, de revolução, e nem dos amados charutos cubanos para os quais Infante chegou a escrever um livro inteiro como tema. Para um certo tipo de leitor relativista, o relato de Marías pode ser visto como levianamente superficial e indevidamente apolítico em se tratando de um tema latente caro para os escritores modernos que se expressam em espanhol, e junta-se a isso que Marías às vezes é criticado pelo que alguns abstratamente julgam ser um ar de empáfia e um distanciamento senhorial de escritor na torre de cristal. Falar de Cabrera Infante sem citar nem passageiramente a realidade política corrente em que tal escritor está instalado pode parecer o maior dos pecados. Para outros leitores, entre os quais me incluo, a atitude de Marías é coerente ao seu depoimento de que vender milhões de livros tem a vantagem de o permitir escrever o que quer, sem prestar vênias a estados ou órgãos de ofício. Talvez a ausência de interlocuções óbvias em seu relato sobre Infante possa ser uma provocação, o que corrobora a essa impressão o fato de Negro dorso do tempo ser um compêndio de personagens reais que sofreram a indistinção de sempre estarem apegados a circunstâncias históricas. 

Talvez a atitude de Marías resume o que o atualmente mais conceituado romancista cubano, Leonardo Padura Fuentes, escreveu em um ensaio intitulado Eu queria ser Paul Auster. Como cita Jon Lee Anderson em um recente artigo sobre Padura, publicado na revista Piauí deste mês, Padura escreve: "Nunca perguntam a Auster que direção ele acha que a economia americana devia tomar", ou "por que ele não foi embora do país durante os anos horríveis do governo de George W. Bush". É nessa ruptura às expectativas que nos dois grandes romances de Infante vemos uma Cuba visceral, com putas e cantores de bar (as putas e cantores que serão marca registrada da literatura cubana assim como o são da literatura argentina os professores catedráticos e bibliotecários assolados por mensagens enigmáticas), com jovens nativos que sonham com a cultura de massa norte-americana e a ela se entregam com apaixonante libertinagem; em suma, em Tristes tigre e Havana para um defunto infante (esse último um marco do quanto pôde chegar a expressividade das letras latino-americanas só comparável a Rayuela, se não lhe for superior), Infante faz um prosseguimento em negativo da literatura norte-americana, uma espécie de releitura de todas a superioras características estéticas que se faz naquele continente no campo do romance, só que ressaltando, através de intrincados jogos subliminares, o que o fato de ser cubano retira de liberdade e de não-compromisso salutar com o que pede o partido ou a política mais baixa. Nisso é que o escritor cubano se diferencia do escritor americano: o segundo, como diz John Updike, pode muito bem fazer seu trabalho sem nunca ser incomodado pelo seu país. Infante foi tachado de traidor ao deixar Cuba após 1959; é pouco lido e respeitado na América Latina, ainda hoje (como se por aqui a passagem do tempo trouxesse a suavidade da compreensão retroativa). Com presciência, Infante escreveu com brilhantismo sobre sua Cuba juvenil, com todos os elementos helênicos etílicos de uma sociedade que estava de todo modo muito distante da redenção democrática, em um caminho ou outro, mas que se refestelava, como toda pátria de desmandos e submissão, em sua alegria libertária particular. A Cuba de Infante é como a estrada de Kerouac, ou a América sem fim dos demais autores out-siders americanos, ou a Bahia de Amado. Ler sobre o quanto o cinema americano era uma aquisição espiritual de empréstimo na ilha é tão bom quanto ler as melhores páginas de Philip Roth sobre os adornos particulares de sua maturação sexual, as piscinas do camping, os ônibus interestaduais, as estações de metrô, os grandes apartamentos luxuosos de uma Nova York efervescida pela lubricidade dos anos 60 e 70. Infante faz de Cuba o país mitológico perdido por uma excrescência inevitável da interrupção da História, do mal gosto da realidade em vir colocar de ponta cabeça o que era matéria efetiva de sonhos e identidade imaginária. 

Padura é muito mais áspero em seus livros policiais sobre a Cuba de 65 anos para cá. Ele diz que, subempregado e perseguido pela censura da ilha, ele se fechou em sua decisão de ser romancista lendo apenas autores norte-americanos e cubanos. Ninguém sabe escrever melhor que os americanos, ele sentenciou de uma vez. Leu Faulkner, Roth, Salinger, e todos os outros. Sua Cuba, como a Cuba de Pedro Juan Gutiérrez, é a nação das putas e dos famélicos, da corrupção moral em todos os níveis, da perseguição ininterrupta pela sobrevivência, do mercado negro e da pinga feita com ácido de bateria, do assassinato diário e perda do poder mínimo de ser um cidadão que já não é apenas uma carência social, mas uma mutilação na alma. É impossível ler Gutiérrez e Padura, ou ler órbitas mais ligeiras de reportagens como o artigo de Lee Anderson, e ter estômago de aço eufemístico para ainda defender a Cuba de Fidel.

Padura reivindica seu direito de ser Paul Auster, o menos político e mais comedido dos romancistas americanos. Reivindica o direito de escrever uma crítica pelas beiradas, sutil e contundente, como fez Infante de seu refúgio parisiense, sem ser retalhado e perseguido dentro e fora de Cuba. Ele mora na mesma casa em que morou seus pais e ainda mora sua mãe, em um bairro perigoso e barulhento, longe 40 minutos do centro de Havana. Teria como morar em outro país, mas é muito apegado às memórias e ao imaginário de sua Cuba particular, a seus antepassados. Ele não quer outra coisa que quer todo escritor: ser deixado em paz pelo seu próprio país.