segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Além das convenções literárias



Em um dos ensaios do imprescindível Alfabetos, Magris lembra a vez em que Italo Calvino criou uma polêmica no circuito de literatura de seu país ao dizer que Galileu Galilei era um dos maiores escritores da Itália. A resposta imediata que despontou por parte dos especialistas era que Galilei era um dos maiores cientistas do mundo, e não um escritor. A ciência deveria ser respeitada deixando-a em paz em seu nicho conceitual sagrado, assim como se deveria fazer o mesmo em relação à literatura. Ambas era tão insolvíveis quanto azeite e água. Magris conclui o parágrafo dizendo que essa normativa das especificidades era estridente, embora não se firmasse na realidade óbvia de que os textos de Galilei eram mais belos do que o de vários poetas e escritores conceituados.

O que se segue no ensaio é um desses estudos impagáveis típicos de Magris em que, inesperada e modestamente, um simples artigo de jornal se torna uma profunda proeza filosófica, que parte da reavaliação do que é literatura de primeira grandeza acima das fronteiras da distinção de gênero acadêmico e acaba por explorar o sentido humano que sustenta toda criação estética e intelectual. É uma liberdade deliciosa ler Magris por ele ser o escritor mais despido de preconceitos e mais avesso a catalogações sistemáticas do cenário atual da escrita. A começar pelos dois grandes títulos de sua bibliografia, Danúbio e Microcosmos, que tiram o conforto obsoleto do leitor em ter um conhecimento seguro de qual parte da estante eles pertencem, pois são tanto tratados filosóficos em maior e menor escala, quanto romances metalinguísticos, quanto relatos de viagens e ensaios com a música elevada e rara da nostalgia vinda da impermanência da História. Magris é extremamente culto e um escritor com poderes fantásticos, que transitam da conscisão que namora a onisciência de Borges, às apreensões de uma verdade seinsciente que vem dos filósofos estóicos romanos e dos romancistas intimistas como Cees Nooteboom. Os textos maravilhosos de Alfabetos falam sobre suas influências de leitura, o monumento da Bíblia e dos livros sagrados de todas as partes do mundo, dos livros de aventura de olvidados autores italianos de sua infância, de Guimarães Rosa, um de seus muitos autores canônicos, e assim vai. Nesse ensaio acima citado ele vai mais longe: aceita o que todo leitor calejado sabe sem que todos admitam isso: os maiores esteticistas das letras não são necessariamente os enquadrados no bastião dos ficcionistas, assim como os textos mais belamente poéticos podem vir mais da filosofia alemã e de tratados de física do que de versadores famosos.

Nessa linha, um dos livros que mais me tirou o fôlego pela beleza da escrita é O Mal estar na civilização, um volume que me caiu em mãos inadvertidamente em um dia em que eu mantinha a firme decisão de nunca ler Freud, mas que me arrebatou na antológica musicalidade da primeira página e só me largou quando atingi o final, horas mais tarde. Pareceu mais algo escrito por um afiadíssimo Saul Bellow, pelo ar e a luz solar que dominava todos os ambientes, e a leveza da maestria absoluta do estilo. Não tinha ali nada que fosse ofensivo em minha assimilação um tanto pre-conceituosa do que poderia ser um pesado texto de psicologia (vindo de minhas leituras do obstinado opositor de Freud, Elias Canetti), mas uma radiante e profunda e dançante análise sobre a condição humana em mais uma de suas fases de estupidificação extrema. Também um dos motivos que me levou a cursar História foi a ilusão não de todo infundada de que seria uma porta de abertura para o contato com escritores espetaculares restringidos à ortodoxia de professores entendidos em textos que não orbitavam o círculo das leituras seculares e comuns. Fui à universidade por influência de Eric Hobsbawn, esse que divide minha cabeceira de leituras noturnas desde que me enxergo como leitor sério, sério no que falo tanto sobre disciplina para me aventurar além do baixo senso autorizado pela mídia do que é entretenimento livresco, quanto por ver que o prazer da leitura está na mesma proporção em Michael Chabon e Theodor Adorno. Por falar em Adorno, nele eu encontrei um nível de poesia tão sublime que releio trechos sublinhados por mim nas tantas horas agradáveis que fiquei em sua companhia e tais frases e excertos se encaixam nos mesmos moldes altaneiros dos aforismas das peças de Shakespeare e da poesia de T. S. Eliot e Auden.

O ensaio de Magris vai além, ao explorar o sentido e o dever da literatura. Concordo plenamente com Magris. Ganhei muito lendo textos não literários que provavam que literatura como conceito elitista e rotulado é a mais improdutiva das reduções. Há textos de Carl Sagan que são carregados da metafísica dos melhores romances, e, em contraposição, há uma biografia e uma reportagem escritas por Garcia Maquez que são constrangedoramente passáveis, enquanto autores até então restritos à academia arrombam a grandiosidade literária pela porta da frente com biografias de Darwin e Tolstói, e meros jornalistas alcançam a excelência com reportagens literárias sobre a liberdade sexual dos anos 60 e o julgamento de assassinos que estão no corredor da morte.

14 comentários:

  1. Que texto bonito, Charlles!

    Eu colocaria Santo Agostinho para que não esqueçamos suas "Confissões"; e outro bastante atual - e brasileiro - é o Marcelo Gleiser, que tem despontado como alguém cujos texto são de uma beleza incrível.

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    1. Grato, Carlinus.

      Ainda não li Gleiser, mas tem uma amigo aqui que é apaixonado no cara, e mais cedo ou mais tarde eu leio.

      A lista é grande. Agostinho, Chesterton, Kierkegaard. Já disse isso aqui antes, eu adoro os textos de Albino Luciani, o papa João Paulo I, de quem ganhei uma tradução portuguesa rara de suas cartas literárias (ele tinha o costume interessante de escrever para personagens de romances, como suas cartas a David Cooperfield e Tom Sawer). São peças belíssimas e desconhecidas quase por completo, pela convenção não pensar que um papa poderia ser um ótimo escritor.

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    2. Walter Benjamin e Swedenborg.. Os Fragmentos, de Novalis (mas aí acho que não conta né?)

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    3. Benjamin é excelente, Elis. Uma das minhas leituras preferidas. Ele ia além da poesia. Swedenborg já procurei mas é quase impossível achar um livro dele.

      Ainda não li Novalis.

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  2. Porra, tu podia fazer um texto é sobre esse livro do Papa. Fiquei curioso.

    Daniel Piza vivia dizendo que atualmente a prosa mais bem escrita está nos divulgadores de ciência. Eu já li uns ensaios memoráveis desses caras, em especial o Sagan e o Jay Gould.

    Da não-ficção que li esse ano, adorei A Jornalista e o Assassino, com um insight memorável sobre as transcrições de conversas gravadas, e a História da Arte de E. H. Gombrich, um tijolo bem divertido cheio de sentenças como: "as datas são cabides indispensáveis para pendurar a tapeçaria da história".

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    1. O livro do Papa foi me dado por um padre amigo meu. Não sei mesmo onde ele está entre meus livros, para te dizer o título e a editora_ estou saindo para o trabalho agora, mas depois te digo.

      Sou um leitor voraz do Sagan. Li Dawkins mas não me entusiasmou muito. Um cara que escreve textos altamente sofisticados e belos é o Edward Said. A Hannah Arendt é uma das maiores escritoras do século passado, dificilmente alguém podendo ser maior que ela.

      Não conheço o Gombrich. Tá anotado.

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    2. Eu adoro o estilo de Steven Pinker, que escreve com clareza absoluta sobre assuntos infelizmente complexos demais pra minha cabeça. Conhece o Jay Gould?

      Você já me indicou o Said uma vez que mencionei ensaístas. Vai ser o jeito ler o cara. Devo começar por aquele de sua lista?

      Esse do Gombrich é de divulgação, só que de arte (especialmente pintura, escultura e arquitetura). O primeiro capítulo, sobre gosto e valor, é uma obra-prima ensaística.

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    3. O de ensaios de Said é muito bom. Eu comecei com "Representações do intelectual", um voluminho de cento e tantas páginas que resume o pensamento dele. A sua autobiografia, "Fora do lugar", parte da crítica a compara, com justiça, a Proust.

      Não li Pinker nem Gould. Me lembrei de um divulgador da ciência de quem li um livro e gostei muito, pela maneira dele em escrever: Brian Greene. No livro "O tecido do cosmo", ele inicia analisando a frase de Camus de que a questão principal da existência é o suicídio. É um livro científico mais pesado que o usual, mas incrível.

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  3. (Você escreveu um punhado de textos excelentes esses dias. Vou começar respondendo pelos últimos e vou até aquele do Mozart Boladão.)

    Heidegger foi uma delícia de leitura; não tanto o Ser e Tempo, mas uma edição bilíngue de A Origem da Obra de arte, traduzida por uma das melhores pessoas que já conheci, o professor Manuel Antônio de Castro da Ufrj. Heidegger tinha um cuidado maternal com cada palavrinha, e não é nada impenetrável como se proclama por aí: ele aliás dizia que não há como introduzir ninguém à filosofia (seria burro como apresentar um peixe à água), e portanto rejeitaria os adjetivos penetrável/impenetrável que socamos cu adentro de alguns autores. Caso não acredite em mim, acredite na Hanna Arendt...

    Um carinha pouco lido é o Walter Otto, que estudava os gregos. Seu livros são um pouco difíceis de se encontrar (tenho aqui um livro dele sobre Dionísio em pdf, escaneado por alguma boa alma, e se quiser te envio), mas a procura vale a pena: uma escrita belíssima, e tão injustamente ignorada.

    Outro que trabalhou na mesma linha foi Kerényi, que já é mais conhecido (principalmente pelo trabalho que fez com Jung (o que é uma merda: Jung é um bichinho de matar com pedra), mas não o suficiente. Hermes: Guide of Souls é uma das jóias da minha estantezinha, comprado a preço de porra nenhuma num sebo.

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    1. Ia recomendar Alex Ross, mas lembrei que você já leu os livros dele. Recomendo que procure as postagens do Ross sobre Gustav Mahler. Mahler é meu Deus, e tenho boas memórias de, quando eu tinha acabado de entrar no ensino médio, ficar martelando insistentemente a cara no computador até entender uns textos em inglês que por alguma razão satânica pularam na minha vista sem aviso; estava convencido de que havia algo grande ali embaralhado naquela língua que eu entendia mal, e acertei.

      Ah... e tem também os livros do John Cage, pra continuar falando sobre música.

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    2. Me mande, por favor. Claro que quero.

      João, você não pode ter apenas vinte e poucos anos, cara!

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  4. Hahahahahaha! Acabei de fazer vinte e um, Charlles.

    (Estou mandando o Walter Otto agora. É um arquivo grande, então tive que enviar pelo google drive, que vira e mexe dá erro. Vê se o arquivo foi enviado bonitinho.

    E a resposta pra postagem do Mozart ficou grande demais para que eu escrevesse no estágio, então fica pra amanhã.)

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  5. Li um tempo desses uns ensaios da Simone Weil e, apesar de não concordar em vários pontos com ela (tem uma visão do comunismo que me parece ingênua) gostei da forma como ela aborda a vida dos operários. Ela largou TUDO e foi viver com eles, como eles, isso me parece louvável pra alguém que se propõe a estudar algum grupo humano. Me caiu nas mãos "No que acredito" do B. Russel, mas ainda não sei o que pensar dele. Citaram o Gleiser, lembei do Miguel Nicolelis. Muito Além do Nosso Eu (ótima edição da Cia.) não é necessariamente bonito (o começo parece demais didático) mas as informações lá, rapaz, vale a pena.
    Quanto coisa pra ler...
    Ana Paula Rocha

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    1. Quanta coisa... Ainda bem!

      Russel é muito bom, Ana. Ele é tido pela dita opinião cultural conceituada como meio ultrapassado, mas quem liga para isso? Claro que se aproveita mais lendo-o como um professor nota 10, e não como o fundador de alguma escola filosófica.

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