Aproxima-se o fim do ano, ou ele já está aí de forma incontestável ao término desses dois feriados festivos que se intercalam antes do fim como uma espécie de lenitivo, e as coisas de modo geral não andam muito bem. A impressão, a sombra de uma certeza indeterminada, me ronda a cada novo ano em que minha maturidade se distancia mais daquela casa onde as festas de natal sempre eram comemoradas com grande parte da minha família, tios, primos, avós, mãe, alguma eventual paixão da infância, aquela casa de meus tios que há muito tempo se divorciaram e talvez já nem exista lembranças desses tempos em sépia senão na minha memória. Não que em vários sentidos hoje eu não esteja produzindo lembranças boas na cabeça de meus filhos: há todo o banquete a ser preparado para amanhã; haverá a presença de minha mãe, de minha irmã, de amigos. Mas, por mais que isso seja seguro e disposto à alegria sincera, meus 40 anos estragam aquela leveza passiva que eu tinha ao observar as estrelas após a meia noite e orar um Pai Nosso em prol do benefício da humanidade; hoje é um tanto constrangedor tentar fazer isso sem que me venha uma nota aguda de monólogo cósmico, onde eu não tenho o mesmo aparato de fantasia romântica em intuir que alguém do outro lado esteja ouvindo. Isso é mais inexplicável que a simples menção de deus. Trata-se de uma irritante propensão a diagnósticos formais que é típico da idade. Não se trata puramente de deus. Como vou me explicar?
Bom. Vou falar então sobre uma coisa que me aconteceu há mais de 15 anos, não me lembro precisamente quando. Eu namorava com uma das Danielas da minha vida. Essa moça era paulista, de educação meio puritana, um amor de pessoa. A amei com sinceridade, julgava que seria com ela que iria me casar e resistir à felicidade e as atribulações preconizadas. Ela era_ é ainda_ bastante católica. Houve um tempo em nosso namoro que isso começou a incomodar. Mas aprendemos a contornar a falta de crítica da parte dela e a minha propensão ao sarcasmo. Ela nunca me instigava a acompanhá-la nas missas, e essa astúcia acabava por me levar a acompanhá-la em quase todos os domingos. Uma vez ela disse que iria a uma reunião de orações em uma apartamento no centro da cidade, à noite. Nessa noite eu estava profundamente desmotivado a ver sacralidade em uma turma composta por uma maioria de mulheres de todas as idades devotada ao culto mariano, mas me prontifiquei a ficar calado aguardando o encerramento dos rituais até que pudesse levá-la a uma pizzaria depois. E aí aconteceu uma coisa que desde então não penso mais e só agora me dou conta da relativa riqueza de interpretações que suscita. Eu estava no último ano do curso de veterinária, a angústia do desemprego me tirava o sono. Eu andava amargo e irritadiço. Meus planos era ir para a Austrália, motivado por uma obscura sensação de adstringência de um continente distante em que a reificação de ainda mais obscuras aspirações de aventura juvenil me fazia crer ser o caminho. Meu pai havia passado bons anos na Austrália e feito vários amigos lá. Meu propósito de vida era me afundar no trabalho, e, como disse a um amigo, me tornar aos sessenta anos devastado pelas rugas do excesso de vida tal qual Hemingway.
Pois bem. Entramos no apartamento para a sessão de orações. O apartamento ficava em um grande prédio de frente à catedral, no centro da cidade, era bem pequeno e recordo que soltei em voz baixa para a Daniela a piadinha irresistível de que tinha visto que até o papel higiênico era estampado com a figura da Nossa Senhora. Havia Nossa Senhoras por todos os lados. Se a dona do imóvel tivesse assistido os mesmos filmes de terror que eu, seria impossível a ela conter o arrepio na espinha de associar aquilo a uma santeria haitiana. Enquanto as mulheres se posicionavam, entulhando o minúsculo cubículo, eu só via vodu nas estátuas da Virgem nas estantes, as velas da Virgem por sobre as mesas, as camisetas com o desenho da Virgem. Eu não aguentei. A cada palavra de cumprimentos que a mulher fazia, eu soltava um eco de caricatura grosseira nos ouvidos da Daniela, no intuito de firmar minha contra-ofensiva de que aquilo já era demais. Daí então entra uma velhinha miúda que não estava lá quando chegáramos, uma senhora gorda, de óculos, que olhava para os objetos presentes sem reparar neles. Passava a desconfortável sensação de que estava espiritualmente em uma outra dimensão. Parecia demais com a espírita exorcista de Poltergeist. Assim que entrara, todo mundo se afundou em um silêncio mais intenso e constrito. A velha ficou no centro da pequena multidão, fechou os olhos, e o que se seguiu foi algo de notável pureza de comunicação. Entre ela e os receptores de suas palavras havia tanta resposta imediatista que a cena atingiu um nível de absurdo acrítico. Aquilo acontecia plenamente para todos que estavam lá, ninguém ligava para meus sarcasmos ou minha irrisória presença, ninguém cogitava o despropósito de ver o ridículo de tantos bonequinhos de gesso de uma mulher com mantos celestiais roxos e vermelhos. A mulher orava em uma intensidade, tornada ainda mais exultante pelo descompasso físico de ter tanta resistência e distinção em um corpo tão pequeno, que criou um vácuo deportado do mundo em que aquelas mulheres entravam e se rendiam com total confiança. A mulher disse: "Há aqui entre nós um moça que não consegue se perdoar por ter feito um aborto; não consegue viver em paz e parar de se imolar pelo arrependimento de ter abortado o filho; pois eu digo a ela, pode parar de sofrer, Jesus está com seu filho ao lado dele e pedindo que você pare de sofrer." Assim que ela terminou de dizer isso, uma moça que estava na frente das fileiras caiu com um altíssimo baque no chão. Olhei um pouco aturdido e ainda com mofa para a Daniela, para perguntar se aquilo não teria dado à moça um traumatismo craniano, mas a Daniela estava além do meu contato, chorando e orando baixinho. Uma sucessão de outras pessoas, entre mulheres e homens, foi desabando no chão. Eu fiquei escorado à parede, aguardando que o ritual acabasse, já que era impossível me retirar dali. Daí a mulher falou uma coisa que parecia ser para mim, que havia entre nós um jovem que iria se formar na universidade no final do ano, e que se angustiava muito com a perspectiva do desemprego, mas que tal jovem não se preocupasse mais, porque Jesus estava guiando seus passos. Olhei em torno explorando as estimativas de que em cada reunião de dez pessoas, pelo menos três delas se adequariam aos números do desemprego iminente no Brasil de meados dos anos 90, mas só tinha eu ali no nível etário correspondente às palavras da mulher. Fiquei em expectativa, ainda não aceitando que acabava de ser convidado à oferta de suspeita generosidade persuasiva por parte da velha. A velha falava na mesma velocidade quase sem tempo para retomar fôlego, e daí então ela falou algo que só poderia mesmo ser para mim, algo personalíssimo, afrontosamente invasivo, que envolvia meu pai, que tratava de uma antiga dor sedimentada e incontornável. Não tive a disposição de atentar ao que a vergonha de ser pego tão desprevenido poderia ter provocado de olhares curiosos (o instinto de preservação me fazia esquecer que era impossível àquelas pessoas saberem de quem se falava, e aquelas pessoas não estavam nesse plano de apreciação de fofocas). Eu escorreguei pela parede e fui atingido por um choro convulsivo que ao mesmo tempo que ocorria uma de minhas facetas mais fortes ficou em desespero para me tirar dali e me dar uns tapas de ceticismo revigorante na cara. Chorei tudo que tinha para chorar, foi o choro catártico, poder chorar na frente de todo mundo, na frente das estátuas da Nossa Senhora e da santeria toda, na frente da minha namorada apta talvez a utilizar aquilo como benefício indubitável de sua vitória cada vez no futuro que eu me predispusesse a zombar de suas crenças. Chorei com uma desproteção absoluta, com indigência moral e espiritual absoluta. No final daquilo, seja o que foi que aconteceu, eu estava em um estágio iluminado. Eu havia me transformado sem qualquer previsão de um jovem já no começo do fim de sua juventude lenitiva, raivoso e com sede de assassinatos hipotéticos, em uma ninfa do vale. Uma ninfa do vale, era isso. Eu me transformara em uma fada, literalmente. Havia o desejo de sair beijando todo mundo. Era em seu caráter externo algo bem gay, mas dentro não havia a mácula das distinções de gênero. Era algo que, analisado posteriormente, era perigosamente livre. Passei umas duas semanas com essa sensação se gastando até acabar.
Depois, no ano seguinte à obtenção de meu diploma como médico veterinário, eu trabalhei por um ano em uma cooperativa. Eramos quatro veterinários, dois agrônomos, e não sei quantos técnicos agropecuários. Morávamos em uma cidade minúscula e trabalhávamos ferrenhamente pelo campo. Foi um ano em que tive a oportunidade ímpar de sentir a felicidade do trabalho, que nunca mais desde então tornei a sentir. Nós acordávamos às oito horas na pensão onde morávamos, em que cada um ocupava um quarto em que só havia uma cama e uma cadeira, tomávamos o café que a dona do estabelecimento fazia, e íamos para uma sucessão de tarefas pelas fazendas que nos consumia até a noite. Sempre havia um excesso de coisas para se fazer, das mais simples e consideradas indignas pelos professores universitários de ser feito por diplomados, como descórnias e rufiamentos, até procedimentos cirúrgicos que eu não sabia como se fazia e aprendia no momento. Castrávamos, fazíamos cesarianas, cirurgias em cascos, em patelas, retirávamos olhos de boi furados em cercas de arame farpado, diagnosticávamos rebanhos de caprinos que definhavam de peso por causa de alguma clostridiose pega no ribeirinho da propriedade. Antes de voltarmos à pensão, passávamos pelo boteco e bebíamos cada um duas talagadas de cachaça para abrir ainda mais o apetite, e jantávamos como sultões, duas ou três vezes, assim como nossos pratos de almoço eram everestes que espantavam os olhares incautos. Eu ganhava bem pouco, mas passava meses inteiros sem ter que ir ao banco, e vivia com o mínimo possível. Voltava sujo e com um sorriso de satisfação no rosto. Considerava meus companheiros de trabalho como irmãos a quem se pode falar de tudo, sem frescuras.
Na cidade conhecia tipos que qualquer escritor teria agradecido conhecer, como um gigante de dois metros de altura que ficava rondando a frente da prefeitura onde nos reuníamos para definir o programa de serviços, que me dava calafrios quando sua presença sorrateira fazia sombra pelas nossas costas pois era de conhecimento de todos que ele havia assassinado os pais e jogado os corpos na cisterna da casa, havia ficado internado em uma clínica psiquiátrica por alguns anos pela inimputabilidade juridicamente declarada de sua loucura e agora se encontrava solto e entorpecido pela batelada de remédios que a irmã sobrevivente do massacre lhe administrava com a temerosa precisão diária de um relógio suíço. Ele não falava coisa com coisa e era impossível apreender alguma palavra distinta por entre o mar de barbitúricos, mas seu constante sorriso deixava a incômoda certeza do momento imediatamente anterior em que esfaqueara os pais, e que nem o carteiro de bigodes mexicanos que era tido como o mais destemido linguarudo do local tinha a audácia de inquerir dele sobre o que era. Havia o senhor Mozair, um mestre de obras que sempre dizia nas conversas de fim de noite que seu nome era uma homenagem feita pelo pai a um compositor de música clássica alemã que havia composto uma peça de nome Primavera, e que a mim quando ele a assoviava para que todos se deleitassem com a lembrança imediata de terem-na ouvido não se sabe onde, parecia indistinta da mesma peça, de mesmo nome, só que de Vivaldi; o sr. Mozair tinha uns setenta anos, a fala mansa e ar aristocrático, e alegava com uma ostentação simpatizada e tornada tolerável pelo respeito que tínhamos aos mais velhos ter um cultura que não tinha, mas que era realmente, contra todas as suspeitas imediatas, muito viajado, tendo conhecido meio mundo em seus trabalhos de coordenar construções pleiteadas por instâncias políticas de todas as ordens, e que agora parecia reticente quanto ao questionamento óbvio após seus relatos de tantos anos de glória vir enfrentar sua aposentadoria na feitura de uma simples rodoviária de um município desconhecido nos mapas. Como a pensão onde morávamos era a única da cidade, era lá que se hospedavam os motoristas e cobradores dos dois ônibus intermunicipais que cobriam a rota de chegada e partida do povoado, e cada um desses seres eram figuras memoráveis. Havia um cobrador negro, gordo, que falava com a voz de barítono realmente admirável como se fosse um César que jogava seu comando sonoro para que lhe obedecessem as mais simples ocorrências da trivialidade; em seus demorados banhos no único banheiro da pensão ele cantava as recentes música de rádio, de sertanejo onipresente ao brega perene, que transformava com sua potência pulmonar em óperas que faziam as batentes das portas e as panelas no fogão da velha locatária tremerem. O motorista que sempre o acompanhava era uma sujeito magrinho, que na certa tinha plena consciência que ter que conviver diariamente com alguém que lhe era o exato oposto não era só uma péssima coincidência de escala trabalhista, mas um exercício de compensação esotérica por algum erro grave do passado, e talvez por isso suportasse o fardo com estoica elegância, deixando desvirtuar a ordem de comando natural que a classe de profissionais a que pertencia tinha como algo sagrado e ser seu cobrador quem ditava as ordens, um cobrador com voz megafônica que direto fazia seu corpinho mirrado pular de susto na cadeira de fio, vamos pegar rumo por essa estrada, ou agora o banheiro é seu, não tive tempo de rapá-lo, ou se você quer dormir te dou dez minutos à frente pois eu estou tão exausto que meu ronco vai mover a cama do lugar. O motoristazinho tinha ambição de ser pastor de uma igreja pentecostal e dizia estudar com afinco para isso, coisa que me deixou na suspeita após ele ter dito que na Bíblia Maomé havia dito que se ele não ia até a montanha, a montanha iria até Maomé. Por final, no escritório onde nós transformávamos o suor feliz de nossos rostos em números computáveis, havia mais dois camaradas que a realidade tendia a transformar em caricaturas, o Divino Miguel e o Japão. O primeiro era filho da dona da pensão; era um sujeito de pele devastada pela varíola, com poucos cabelos que ficavam arrepiados e que era passatempo dele lamentar que os estava perdendo, e que em tudo que falava havia um acento de sarcasmo ferino que demonstrava uma indignação inteligente por anos de silenciamento em ter que viver em um povoado tão exilado do mundo. Um dia, anos depois, ao assistir ao filme do Grinch com o Jim Carrey, eu me lembrei dele_ ele falava igualzinho ao Grinch, cheio de desfaçatez sarcástica e humor niilista. Era casado e tinha duas filhas, e não havia um dia por semana em que ele não me chamasse pelo lado de fora da janela do escritório, com voz sorrateira que acentuava ainda mais a graça caricaturesca, para que eu fosse conferir sem levantar suspeitas se o homem que estava parado dentro de um Gol de frente ao prédio não era o mesmo que ele me descrevia exaustivamente como o incansável marido traído que o jurara de morte. Como a mim não parecia ser o mesmo homem, ele se levantava após cobrar de mim a certeza absoluta, limpava as mãos nos fundilhos das calças e voltava assobiando para dentro do prédio, cumprimentando o homem do Gol com sua vozinha ranhenta de Grinch que por dentro o mandava para a puta que pariu por ter-lhe metido tanto medo indevido. E o Japão era um gordinho de ar infeliz mas sempre prestativo, casado com a irmã do Miguel. Em uma noite, o Miguel me toma pelo ombro e diz: "O que vamos fazer. O Japão pegou todo o dinheiro da semana do caixa do escritório e fugiu para o Pará. O que vamos fazer." Eu, prontamente, disse que avisaria a polícia, nada mais. Ao que o Miguel dá um pulo de Grinch e diz, esbaforido: "Calma jovem. Vamos poupar o escândalo. Afinal não era nada de grande soma, e eu pago do meu bolso." E, diante o teste de esperteza que me impôs, ele diz por entre dentes, antes de ir pegar o dinheiro: "Você só tem cara de bobo mesmo. de resto bobo você não tem mais nada." Depois de um mês no Para, a dupla do motorista pastor e do cobrador barítono chegam à noite à pensão e descarregam pela porta da frente um constrangido e ainda mais triste Japão, que não conseguira no final das contas consumar seu ato de rebeldia contra a existência.
Isso tudo foi para falar que aquele ano eu fui plenamente feliz, repito. Sentia a mesma sensação da ninfa do vale da abdução provocada pela exorcista na santeria. Não sei porque engendrei esse post. Tem alguma relação com o fato de ontem, ao voltar para casa de uma caminhada, eu encontrei o bêbado que inferniza a vida de meu cachorro caído atravessado no meio da rua quase de frente à minha casa. Por várias vezes eu ensaiava a fantasia mental de que pegava esse bêbado e lhe desferia um cacete sem tamanho para ele parar de ficar mexendo com o Miles Davis, tirando o Miles Davis do sério a ponto dele certa vez ferir uma das patas no portão. Certa noite, de madrugada, eu tive que sair de casa e expulsar aqui da frente um velho bêbado que ficara estacado dizendo uma salmodia sem fim em sua voz de pedregulho para o Miles, o enfurecido e puto da vida Miles. Como o velho não demovia pé, eu o empurrei para que fosse embora, e o velho, em uma fragilidade que me constrangeu desabou no chão (um pouco como a moça desabou após Jesus tê-la absolvido do peso do aborto na santeria, com a mesma imprevisível carga pesada para um corpo tão mirrado, tanto o dela quanto o do velho). Eu de imediato olhei em torno para ver se algum dos vizinhos havia acordado e visto esse ato de violência da minha parte_ o doutor veterinário surrando um bêbado. Talvez alguém me tivesse filmado e seria postado o flagrante de minha covardia no jornal televisivo do dia seguinte, ou eu me tornaria um meme cobrando justiça pelas tantas pessoas indignadas da internet. Não me movi para ajudá-lo a se levantar, mas ele se levantou com quase desesperada rapidez, os olhos esbugalhados de quem se vê pego de surpresa ainda mais em um ato tão brutal contra sua sensação acostumada de narcotizada deportação da gravidade, levantando-se claramente com o temor de que eu o fosse chutar uma vez estando no chão desprotegido, embora em pé ele soubesse que também não poderia muito contra qualquer pessoa, ainda mais alguém como eu que deveria pesar cinquenta quilos a mais do que ele. Mas em pé, ao menos, havia mais dignidade, havia uma instrumentação indispensável à presa que corroborava a algum instinto inesperado de evacuação. De pé ele poderia fugir por algum súbito milagre adrenérgico, como naqueles casos de crianças que pulam muros de dois metros sem qualquer explicação física que não o pit-bull que corre atrás delas pelo quintal da casa invadida. O velho foi embora, trôpego, e eu fiquei o observando com um latente vergonha, uma vergonha que se dividia com um orgulho íntimo e idiota de ter protegido minha casa, minha família, meu cão, contra quem? Contra um velho bêbado que com certeza estaria com os olhos lacrimejando de medo uma esquina abaixo, ou talvez de alívio. E ontem eu vejo atravessado o outro bêbado na rua aqui de casa. Dois carros passaram se desviando dele. A vontade que eu tenho é apenas tirá-lo da situação de risco, e o pego pelos sovacos, o ergo e o coloco na calçada. Aparecem duas senhoras que me explicam o nome dele e as condições de sua vida. Se chama Zé, há um mês perdeu a mãe, há tempos a esposa o deixou. É um bêbado completamente inofensivo. Ele pede para que eu o deixe onde está, eu lhe digo que onde está ele pode muito morrer atropelado, ele diz que quer morrer, essas coisas. Não saí de lá me achando herói nem nada. Pelo contrário, mal olhei as duas senhoras com receio de que elas, que aparecerem prontificadas numa hora daquelas, talvez tivessem presenciado com a mesma urgência meu ato de brutalidade contra o outro bêbado, o que temeu ser chutado no chão.
Desde aquele ano, em que eu ganhava mal, trabalhava como um burro de carga em completa felicidade, afastado de tudo e mesmo dos livros, mas junto com pessoas distintas pelo visível sinal humano, loucos homicidas, e sonhadores em diferentes graus de lucidez quanto à evidência insuportável de estarem parados no tempo, ladrões de caixa de escritório cuja única culpa era serem profundamente ingênuos, desde aquele ano eu não sinto a leveza da ninfa do vale, a graça superior de pertencer à leveza das coisas. O que eu senti quando a exorcista me denunciou para mim mesmo era que o medo desaparecia de mim, sumiu como álcool queimado no vento, sem deixar vestígio. Eu não temia falar com as pessoas, abraçá-las, falar em alto e bom som que as amava, como fiz naquela noite da santeria. Senti a mesma ausência de medo no ano de trabalho na cooperativa. Estou lendo A grande degeneração, livro escrito pelo historiador Niall Ferguson, e esse livro está por detrás da intenção caótica deste post. Um livro que aponta o futuro da humanidade como apontam os especialistas conceituados, ultra-respeitados, como sendo uma complexa questão restringida a lados econômicos e políticos, a somas algébricas que o passado oferece para cálculos seguros, a derrocada do Ocidente e a tomada de frente por um Oriente que abraçou com mais primazia a inexorabilidade certa das tendências do livre mercado. O humano é uma subjetividade descartada por inteiro dessa célebres fórmulas. O meu medo, o meu antigo, fiel e companheiro medo, é em saber em qual frente de ataque eu estou nessa guerra insurgente. Em qual eu vou querer estar, nessa transformação paulatina descansada em que eu me torno sem ver, sem refletir. Torço muito, rezo muito, para que eu restabeleça a razão do coração, a única importante, e escolha pela pessoa que está no chão, não pela qual, de pé, pode vir o chute.
Depois, no ano seguinte à obtenção de meu diploma como médico veterinário, eu trabalhei por um ano em uma cooperativa. Eramos quatro veterinários, dois agrônomos, e não sei quantos técnicos agropecuários. Morávamos em uma cidade minúscula e trabalhávamos ferrenhamente pelo campo. Foi um ano em que tive a oportunidade ímpar de sentir a felicidade do trabalho, que nunca mais desde então tornei a sentir. Nós acordávamos às oito horas na pensão onde morávamos, em que cada um ocupava um quarto em que só havia uma cama e uma cadeira, tomávamos o café que a dona do estabelecimento fazia, e íamos para uma sucessão de tarefas pelas fazendas que nos consumia até a noite. Sempre havia um excesso de coisas para se fazer, das mais simples e consideradas indignas pelos professores universitários de ser feito por diplomados, como descórnias e rufiamentos, até procedimentos cirúrgicos que eu não sabia como se fazia e aprendia no momento. Castrávamos, fazíamos cesarianas, cirurgias em cascos, em patelas, retirávamos olhos de boi furados em cercas de arame farpado, diagnosticávamos rebanhos de caprinos que definhavam de peso por causa de alguma clostridiose pega no ribeirinho da propriedade. Antes de voltarmos à pensão, passávamos pelo boteco e bebíamos cada um duas talagadas de cachaça para abrir ainda mais o apetite, e jantávamos como sultões, duas ou três vezes, assim como nossos pratos de almoço eram everestes que espantavam os olhares incautos. Eu ganhava bem pouco, mas passava meses inteiros sem ter que ir ao banco, e vivia com o mínimo possível. Voltava sujo e com um sorriso de satisfação no rosto. Considerava meus companheiros de trabalho como irmãos a quem se pode falar de tudo, sem frescuras.
Na cidade conhecia tipos que qualquer escritor teria agradecido conhecer, como um gigante de dois metros de altura que ficava rondando a frente da prefeitura onde nos reuníamos para definir o programa de serviços, que me dava calafrios quando sua presença sorrateira fazia sombra pelas nossas costas pois era de conhecimento de todos que ele havia assassinado os pais e jogado os corpos na cisterna da casa, havia ficado internado em uma clínica psiquiátrica por alguns anos pela inimputabilidade juridicamente declarada de sua loucura e agora se encontrava solto e entorpecido pela batelada de remédios que a irmã sobrevivente do massacre lhe administrava com a temerosa precisão diária de um relógio suíço. Ele não falava coisa com coisa e era impossível apreender alguma palavra distinta por entre o mar de barbitúricos, mas seu constante sorriso deixava a incômoda certeza do momento imediatamente anterior em que esfaqueara os pais, e que nem o carteiro de bigodes mexicanos que era tido como o mais destemido linguarudo do local tinha a audácia de inquerir dele sobre o que era. Havia o senhor Mozair, um mestre de obras que sempre dizia nas conversas de fim de noite que seu nome era uma homenagem feita pelo pai a um compositor de música clássica alemã que havia composto uma peça de nome Primavera, e que a mim quando ele a assoviava para que todos se deleitassem com a lembrança imediata de terem-na ouvido não se sabe onde, parecia indistinta da mesma peça, de mesmo nome, só que de Vivaldi; o sr. Mozair tinha uns setenta anos, a fala mansa e ar aristocrático, e alegava com uma ostentação simpatizada e tornada tolerável pelo respeito que tínhamos aos mais velhos ter um cultura que não tinha, mas que era realmente, contra todas as suspeitas imediatas, muito viajado, tendo conhecido meio mundo em seus trabalhos de coordenar construções pleiteadas por instâncias políticas de todas as ordens, e que agora parecia reticente quanto ao questionamento óbvio após seus relatos de tantos anos de glória vir enfrentar sua aposentadoria na feitura de uma simples rodoviária de um município desconhecido nos mapas. Como a pensão onde morávamos era a única da cidade, era lá que se hospedavam os motoristas e cobradores dos dois ônibus intermunicipais que cobriam a rota de chegada e partida do povoado, e cada um desses seres eram figuras memoráveis. Havia um cobrador negro, gordo, que falava com a voz de barítono realmente admirável como se fosse um César que jogava seu comando sonoro para que lhe obedecessem as mais simples ocorrências da trivialidade; em seus demorados banhos no único banheiro da pensão ele cantava as recentes música de rádio, de sertanejo onipresente ao brega perene, que transformava com sua potência pulmonar em óperas que faziam as batentes das portas e as panelas no fogão da velha locatária tremerem. O motorista que sempre o acompanhava era uma sujeito magrinho, que na certa tinha plena consciência que ter que conviver diariamente com alguém que lhe era o exato oposto não era só uma péssima coincidência de escala trabalhista, mas um exercício de compensação esotérica por algum erro grave do passado, e talvez por isso suportasse o fardo com estoica elegância, deixando desvirtuar a ordem de comando natural que a classe de profissionais a que pertencia tinha como algo sagrado e ser seu cobrador quem ditava as ordens, um cobrador com voz megafônica que direto fazia seu corpinho mirrado pular de susto na cadeira de fio, vamos pegar rumo por essa estrada, ou agora o banheiro é seu, não tive tempo de rapá-lo, ou se você quer dormir te dou dez minutos à frente pois eu estou tão exausto que meu ronco vai mover a cama do lugar. O motoristazinho tinha ambição de ser pastor de uma igreja pentecostal e dizia estudar com afinco para isso, coisa que me deixou na suspeita após ele ter dito que na Bíblia Maomé havia dito que se ele não ia até a montanha, a montanha iria até Maomé. Por final, no escritório onde nós transformávamos o suor feliz de nossos rostos em números computáveis, havia mais dois camaradas que a realidade tendia a transformar em caricaturas, o Divino Miguel e o Japão. O primeiro era filho da dona da pensão; era um sujeito de pele devastada pela varíola, com poucos cabelos que ficavam arrepiados e que era passatempo dele lamentar que os estava perdendo, e que em tudo que falava havia um acento de sarcasmo ferino que demonstrava uma indignação inteligente por anos de silenciamento em ter que viver em um povoado tão exilado do mundo. Um dia, anos depois, ao assistir ao filme do Grinch com o Jim Carrey, eu me lembrei dele_ ele falava igualzinho ao Grinch, cheio de desfaçatez sarcástica e humor niilista. Era casado e tinha duas filhas, e não havia um dia por semana em que ele não me chamasse pelo lado de fora da janela do escritório, com voz sorrateira que acentuava ainda mais a graça caricaturesca, para que eu fosse conferir sem levantar suspeitas se o homem que estava parado dentro de um Gol de frente ao prédio não era o mesmo que ele me descrevia exaustivamente como o incansável marido traído que o jurara de morte. Como a mim não parecia ser o mesmo homem, ele se levantava após cobrar de mim a certeza absoluta, limpava as mãos nos fundilhos das calças e voltava assobiando para dentro do prédio, cumprimentando o homem do Gol com sua vozinha ranhenta de Grinch que por dentro o mandava para a puta que pariu por ter-lhe metido tanto medo indevido. E o Japão era um gordinho de ar infeliz mas sempre prestativo, casado com a irmã do Miguel. Em uma noite, o Miguel me toma pelo ombro e diz: "O que vamos fazer. O Japão pegou todo o dinheiro da semana do caixa do escritório e fugiu para o Pará. O que vamos fazer." Eu, prontamente, disse que avisaria a polícia, nada mais. Ao que o Miguel dá um pulo de Grinch e diz, esbaforido: "Calma jovem. Vamos poupar o escândalo. Afinal não era nada de grande soma, e eu pago do meu bolso." E, diante o teste de esperteza que me impôs, ele diz por entre dentes, antes de ir pegar o dinheiro: "Você só tem cara de bobo mesmo. de resto bobo você não tem mais nada." Depois de um mês no Para, a dupla do motorista pastor e do cobrador barítono chegam à noite à pensão e descarregam pela porta da frente um constrangido e ainda mais triste Japão, que não conseguira no final das contas consumar seu ato de rebeldia contra a existência.
Isso tudo foi para falar que aquele ano eu fui plenamente feliz, repito. Sentia a mesma sensação da ninfa do vale da abdução provocada pela exorcista na santeria. Não sei porque engendrei esse post. Tem alguma relação com o fato de ontem, ao voltar para casa de uma caminhada, eu encontrei o bêbado que inferniza a vida de meu cachorro caído atravessado no meio da rua quase de frente à minha casa. Por várias vezes eu ensaiava a fantasia mental de que pegava esse bêbado e lhe desferia um cacete sem tamanho para ele parar de ficar mexendo com o Miles Davis, tirando o Miles Davis do sério a ponto dele certa vez ferir uma das patas no portão. Certa noite, de madrugada, eu tive que sair de casa e expulsar aqui da frente um velho bêbado que ficara estacado dizendo uma salmodia sem fim em sua voz de pedregulho para o Miles, o enfurecido e puto da vida Miles. Como o velho não demovia pé, eu o empurrei para que fosse embora, e o velho, em uma fragilidade que me constrangeu desabou no chão (um pouco como a moça desabou após Jesus tê-la absolvido do peso do aborto na santeria, com a mesma imprevisível carga pesada para um corpo tão mirrado, tanto o dela quanto o do velho). Eu de imediato olhei em torno para ver se algum dos vizinhos havia acordado e visto esse ato de violência da minha parte_ o doutor veterinário surrando um bêbado. Talvez alguém me tivesse filmado e seria postado o flagrante de minha covardia no jornal televisivo do dia seguinte, ou eu me tornaria um meme cobrando justiça pelas tantas pessoas indignadas da internet. Não me movi para ajudá-lo a se levantar, mas ele se levantou com quase desesperada rapidez, os olhos esbugalhados de quem se vê pego de surpresa ainda mais em um ato tão brutal contra sua sensação acostumada de narcotizada deportação da gravidade, levantando-se claramente com o temor de que eu o fosse chutar uma vez estando no chão desprotegido, embora em pé ele soubesse que também não poderia muito contra qualquer pessoa, ainda mais alguém como eu que deveria pesar cinquenta quilos a mais do que ele. Mas em pé, ao menos, havia mais dignidade, havia uma instrumentação indispensável à presa que corroborava a algum instinto inesperado de evacuação. De pé ele poderia fugir por algum súbito milagre adrenérgico, como naqueles casos de crianças que pulam muros de dois metros sem qualquer explicação física que não o pit-bull que corre atrás delas pelo quintal da casa invadida. O velho foi embora, trôpego, e eu fiquei o observando com um latente vergonha, uma vergonha que se dividia com um orgulho íntimo e idiota de ter protegido minha casa, minha família, meu cão, contra quem? Contra um velho bêbado que com certeza estaria com os olhos lacrimejando de medo uma esquina abaixo, ou talvez de alívio. E ontem eu vejo atravessado o outro bêbado na rua aqui de casa. Dois carros passaram se desviando dele. A vontade que eu tenho é apenas tirá-lo da situação de risco, e o pego pelos sovacos, o ergo e o coloco na calçada. Aparecem duas senhoras que me explicam o nome dele e as condições de sua vida. Se chama Zé, há um mês perdeu a mãe, há tempos a esposa o deixou. É um bêbado completamente inofensivo. Ele pede para que eu o deixe onde está, eu lhe digo que onde está ele pode muito morrer atropelado, ele diz que quer morrer, essas coisas. Não saí de lá me achando herói nem nada. Pelo contrário, mal olhei as duas senhoras com receio de que elas, que aparecerem prontificadas numa hora daquelas, talvez tivessem presenciado com a mesma urgência meu ato de brutalidade contra o outro bêbado, o que temeu ser chutado no chão.
Desde aquele ano, em que eu ganhava mal, trabalhava como um burro de carga em completa felicidade, afastado de tudo e mesmo dos livros, mas junto com pessoas distintas pelo visível sinal humano, loucos homicidas, e sonhadores em diferentes graus de lucidez quanto à evidência insuportável de estarem parados no tempo, ladrões de caixa de escritório cuja única culpa era serem profundamente ingênuos, desde aquele ano eu não sinto a leveza da ninfa do vale, a graça superior de pertencer à leveza das coisas. O que eu senti quando a exorcista me denunciou para mim mesmo era que o medo desaparecia de mim, sumiu como álcool queimado no vento, sem deixar vestígio. Eu não temia falar com as pessoas, abraçá-las, falar em alto e bom som que as amava, como fiz naquela noite da santeria. Senti a mesma ausência de medo no ano de trabalho na cooperativa. Estou lendo A grande degeneração, livro escrito pelo historiador Niall Ferguson, e esse livro está por detrás da intenção caótica deste post. Um livro que aponta o futuro da humanidade como apontam os especialistas conceituados, ultra-respeitados, como sendo uma complexa questão restringida a lados econômicos e políticos, a somas algébricas que o passado oferece para cálculos seguros, a derrocada do Ocidente e a tomada de frente por um Oriente que abraçou com mais primazia a inexorabilidade certa das tendências do livre mercado. O humano é uma subjetividade descartada por inteiro dessa célebres fórmulas. O meu medo, o meu antigo, fiel e companheiro medo, é em saber em qual frente de ataque eu estou nessa guerra insurgente. Em qual eu vou querer estar, nessa transformação paulatina descansada em que eu me torno sem ver, sem refletir. Torço muito, rezo muito, para que eu restabeleça a razão do coração, a única importante, e escolha pela pessoa que está no chão, não pela qual, de pé, pode vir o chute.
fui chutado (mais uma vez, pelo teu poderoso coração).
ResponderExcluirinsustentável, essa palavra q tanto nos sustenta. q seríamos sem essa ideia?
Feliz Natal aos seus, Charlles… E também a todos desse blog… Se porventura em algum momento fui indelicado com alguém, por favor, desculpe-me. A intenção sempre foi a de buscar conhecimento… Muitas vezes se é atabalhoado certamente por ignorância, não por intenção.
ResponderExcluirBAH, Charlles. Bah!
ResponderExcluirFeliz Natal a todos.
http://rodrigogurgel.blogspot.de/2013/12/vejamos-o-verbo.html
Incrível, Charlles, como estais absorvido pela literatura! Fico a me perguntar: trata-se de ficção na memória ou memória na ficção? Tens todos os trejeitos de um grande escritor. Baita texto!
ResponderExcluirFelicidades!
Obrigado. Feliz Natal a todos, arbo, Matheus, Ramiro, Carlinus, Paulo, João, Luiz, e outros que por ventura visitam este blog.
ResponderExcluirFortes abraços.
Por onde andei meu caro, quando tudo isso lhe foi revelado. Essa sabedoria que brota do espírito, um jeito de compreender pelo êxtase que se aproxima sem aviso prévio, demolindo os castelos humanos para revelar o que realmente interessa São esses paradoxos que apontam para a verdade.
ResponderExcluirObrigado mais uma vez.
Wagner
Obrigado a você por essas palavras. Feliz Natal, Wagner.
Excluir