sábado, 18 de agosto de 2012

Um Convertido



Ramiro Conceição, num comentário lá no blog do Idelber Avelar (Ramiro, muito emocionado com essas suas palavras, cara! Exatamente o que eu penso sobre Ulisses):

Quanto ao Ulisses de Joyce. Levei um ano para lê-lo… Briguei. Mandei Joyce tomar no cu. Pisei no livro. Abandonei-o. Retornei. Cheguei ao fim… Percebi que eram diversos livros e diversos autores: num só. Percebi que a personagem principal era a linguagem. Achei extraordinários dois capítulos, o 17 e 18: o primeiro, por provar que é possível escrever um romance através da dialética; o segundo, pelo sucesso conseguido em expressar através da escrita o fluxo do pensamento. Percebi também em muitas passagens a origem de textos de muitos autores: por exemplo, a certa altura do livro Joyce descreve um cachorrinho que enterrava e desenterrava ossos, pois bem Elliot, em seu memorável “A Terra Devastada”, se utiliza da mesma figura de linguagem para descrever a tragédia humana acontecida no século XX; percebi também numa certa passagem algo que poderia ter inspirado Drummond em seu famosíssimo poema sobre a pedra no caminho (não tenho qualquer informação se isso foi possível; contudo li: estava lá no Ulisses). Percebi também que toda a linguagem direta usada, hoje, na publicidade dirigida às massas, estava lá. Percebi também a profunda revolta contra o domínio inglês sobre a civilização irlandesa. Percebi também a crítica ácida, principalmente, contra a Igreja católica. Percebi também o amplo domínio, em todos os campos da linguagem, que Joyce possuía. E percebi, principalmente, que Joyce era um erudito em semiótica: creio que o Ulisses poderia ser considerado um quadro de Miró feito de palavras. Contudo, qual a minha grande crítica ao livro de Joyce: o rigor da forma, do estilo, atrapalhou o fluxo dinâmico do livro. Para mim, centenas, centenas e centenas de parágrafos poderiam ser eliminados sem que se perdesse a originalidade; por exemplo, para que o leitor entendesse a crítica à Igreja Católica, não seria necessário ler, praticamente, uma página inteira a listar somente nomes de santos, para mim, tal opção estética foi um erro; porém isso é um julgamento estético e, portanto, alguém, com todo o direito, pode achar o contrário. Mas gostaria de deixar claro: o que mais me comoveu foi conhecer o contexto em que Joyce escreveu tal obra, ou seja, Joyce levou até as últimas consequências, inclusive materiais, seu TRABALHO literário à superação da mediocridade contida em seu tempo; só por isso: ele deve ser lembrado, mas jamais cultuado. Portanto, creio que Paulo Coelho foi leviano em seus comentários sobre Ulisses.

Esparsismos



Estive por dois dias na Capital. Tenho que me aclimatar novamente no meu refúgio. Dois dias ali e me vem a completa certeza de que a humanidade tem mesmo um destino fatídico e inglório. Tudo a merda do dinheiro. Levei minha mãe para buscar o carro novo que ela comprou na concessionária, e haviam filas ali de compradores esperando na seção de retirada de veículos. Uma fila quase a dobrar o quarteirão. E lá dentro, quando minha mãe _ a quem não se reserva mais nenhuma felicidade consumista ou expectativas do súbito inimaginável nessa esfera de existência além de comprar um carro novo_ foi pegar as papeladas, mais gente atulhando as mesas comprando carros. Senhores cardíacos sentados em bancos requintadamente almofadados sentindo-se monarcas em suas pré-sucatas cintilantes. Mulheres de enormes óculos escuros olhando por cima dos ombros, fazendo trabalhar as fantasias intimistas. Lembrei da reportagem na Forbes que saiu semana passada, curtindo com as caras dos brasileiros compradores dos carros mais caros do mundo. No mínimo, os brasileiros compram carros, que lá fora são tidos como populares, mas aqui como última ponta do esnobismo, pelo dobro do preço que se paga não só nos EUA, mas em países da América latina. E se isso ficasse apenas nos preços exorbitantes dos carros: o seguro do carro da minha mãe é de quase dois mil ao ano; quinhentos reais para a simples transferência de nome; mais quase dois mil de imposto anual_ imposto para se andar nas estradas mundialmente conhecidas do Brasil, a maioria abaixo da linha do minimamente aceitável. E lá estão todos aqueles senhores e senhoras, cada qual tendo seus dramas de vida cotidiana mas que ali na concessionária revelam apenas o verniz magnífico das supostas vidas glamorosas. São chamados pela alcunha única de "doutor" e "doutora"; é algo que verdadeiramente que me faz doer o coração. Nós merecemos sim a mais contundente das piedades.

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Voltando do escritório da Previdência Social, de onde espero ver resolvido uma já longa novela de meu processo de averbação de tempo de serviço, deparo-me com um mendigo tocando bateria numa loja de instrumentos musicais. Umas três pessoas em pé, na avenida central de frente a loja, e o mendigo, um sujeito de cabelos e barbas brancas compridas, vestido de calça jeans e camisas jeans de mangas até os punhos, manejando as baquetas de forma que é impossível para os que passam por ali não destinar alguns segundos de consideração à sua performance. Os funcionários da loja, desiludidos não só pela natureza do ofício mas pelo excesso sensorial do ambiente daquele melífluo canto da cidade, estão escorados nas estandes olhando ao executor com um certo enfado misturado com o efêmero alívio de fim de expediente, e visível vestígio de admiração. E o mendigo, cara de auto-sátira indevassável, a ninguém contaria de que região do passado vem essa proficiência, tocando algo que me parece eivado de jazz malandro, desigual mas sério, desleixado mas tendente à perfeição. A mim pareceu que lhe ofereceram a chance e ele a pegou, mas logo partiria dali sem mais consequências. Parecia que ele zombava das atenções e de si mesmo, e mesmo das possíveis intuições dos mais imaginativos que passavam. E tocava sem paixão ainda. Como alguém que estava por demais cansado daquilo tudo.

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Não há nada de Vila-Matas nas livrarias e sebos da Capital. Incrível! Encontro os dois Javieres em profusão_ o Cercas e o Marías_, mas nada de Vila-Matas. Vou tratar de comprá-lo pelo site. Comprei na Livraria Saraiva o Uma Confraria de Tolos, que tanto o Milton Ribeiro quanto o Paulo vem recomendando bastante, e já estou quase na página 100. Parece-me que não exageraram: é muito bom. Comprei Lance Mortal, os contos policiais de Faulkner, e quando estava na fila para pagar, encontro uma maravilha de estante rotatória que é pura filantropia, com vários títulos excepcionais a preços bem em conta, lançados pela comunhão entre a Saraiva e a Nova Fronteira. Pego o Doutor Fausto de Mann, que já há algum tempo ensaiava comprar pois o que tenho está em frangalhos. Doutor Fausto por 22 reais! Dessas maravilhas da contradição que faz o mercado editorial nacional um dos melhores do mundo.Comprei também a edição de luxo do álbum Quadrophenia, do The Who, que programei para ouvi-lo em sessão ritualística hoje à noite, enquanto estou sozinho em casa.

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Estava para retirar o post intitulado Patagônia, que existe aqui no blog. Um texto meu com reminiscências adolescentes sobre o filósofo Vladimir Safatle. De algumas semanas para cá, este post ocupa o primeiro lugar nas informações estatísticas do blog, como post mais acessado. Alguns dias chega a disparar de maneira pouco confortável. Não é o tipo de atenção que gosto. Muita visibilidade traz também os assim chamados trolls e demais inconveniências da net, e isso aqui não poderia ser levado com comentários monitorados. Hoje rastreei de onde partia tanto interesse, e descobri o facebook da faculdade de Ciências Sociais da USP (claro que eu já suspeitava). E vejo lá que as informações do meu texto geraram um bem humorado debate sobre a linha rock não confessada pelo Safatle. Os alunos descobriram, para a minha surpresa, até gravações jurássicas da banda do Safatle, Oficina de Testes, que eu menciono no post, e outras performances do filósofo quando este era cabeludo e projetava as influências dark de Manchester em seus teclados. Fiquei mais tranquilo. O pessoal ali gosta pra valer do Safatle. Vi ali a indicação de que o mote do aspirador de pó deva ter ocupado alguns instantes dos momentos mais dissipativos das aulas do Safatle. Penso em lhe enviar um e-mail com o pedido descarado de seu novo livro, com dedicatória, em paga por tanto serviço que estou fazendo por ele.

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De novo essa coisa da "polêmica" entre Paulo Coelho e James Joyce. De novo um post do Idelber Avelar em que um comentário meu é censurado. O Idelber resenhou, a pedido da Folha de São Paulo, o novo lançamento de Coelho, cujo título é algo assim Manuscrito encontrado em Carcará, ou Manuscrito encontrado em Alcova. Idelber destrói involuntariamente seus argumentos apologísticos anteriores sobre Coelho, pois sua resenha é magra, miúda, nada diz de concreto além da técnica de registrar algumas referências literárias eruditas para dar autenticidade à coisa, e tem mesmo dois ou três parágrafos apressados para acabar logo o assunto. Eu li atentamente a resenha, estudei-a desenhando infográficos no computador, comparei com outras fontes, e, como resultado, postei esse comentário no blog do Honorável Doutor:

Idelber, quando é que você vai fazer uma resenha sobre o novo sabor do Toddy? Fico em dúvida se o de morango ainda continua tendo aquele gosto de bolachas Fofão, muito artificial. E quais dos sabores de chocolate você gosta mais: o Toddy tipo suíço ou o tipo italiano. Aguardando ansiosamente sua resposta.

É por isso que eu digo: a gente trata o cara com o devido respeito que ele se impõe em seus textos, e a gente é censurado.

Outra coisa sobre o mago (refiro-me ao Coelho): a Folha arrumou uma série de escritores para tornar a compressão twitteriana de Coelho ao Ulisses, inclusive o próprio Carcará. Olha só o que Coelho escreveu, no seu resumo de Ulisses em caracteres do twitter:

16/06: dia interminável, com as conversas de sempre. E de noite – #WTF! – tenho que escutar minha adúltera mulher falando sozinha. @paulocoelho

Pois quem leu Ulisses pode me explicar: em que local das mil páginas Leopold Bloom escuta a mulher falando sozinha? Será que falta a Coelho até a compreensão mais banal, de que Molly Bloom, na parte final da obra, realiza um monólogo interior? Monólogo INTERIOR.

Tempos ridículos esses!



quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Knut Hamsun e a Medalha do Nobel



Entre os vagabundos originais, ele foi o que se deitou sob céus extensos olhando as constelações em suas localizações diferentes dos dois lados do mundo. Foi vagabundo em uma cidade de sua terra natal, a Noruega, que levava o sarcástico nome de Cristiana; foi vagabundo nos Estados Unidos, dividindo seu tempo em empregos esporádicos no campo e na condução de trens.  Aos 90 anos, há muito instalado nos dois extremos da fama, reviveu a vagabundagem em asilos e hospitais psiquiátricos nos quais esteve preso. Essas imensas regiões não exploradas desses recentes países, que ainda não eram o que são hoje, estão em toda a sua obra. O frio adrenérgico acolhedor dos grandes perigos das caças e dos horizontes abertos perpassa todos os seus livros. Não tendo o tempo que queria para a leitura, preencheu o que lhe faltava na escrita de uma série de histórias erráticas que dissolviam-se nas mãos por tanta fragilidade, até que, por fim, transformou a ingenuidade primal em método filosófico seguro. Todos os dramas básicos da existência eram vistos apenas de sua ótica pessoal de auto-didata: a fome, o amor romântico, o refúgio na natureza, a paixão pela terra. Com um toco de lápis e algumas resmas de papel, passava fomes colossais na distante cidade polar onde não tinha abrigo e os cocheiros lhe arremessavam as pontas dos chicotes. Sua concepção de amor era a de lindas mulheres que atiravam ácido nos rostos para que seus amantes mutilados não se sentissem tão feios. Os heróis de seus livros são patriarcas que se apartam em definitivo da civilização corrupta para desbravarem terras inexploradas, e lá darem vazão a filhos e netos bíblicos. Escrevia de seu modo, sem que por essas paixões milenares passassem indignações de classe ou as ortodoxias das lutas sociais: era plenamente independente para buscar o anacronismo numa época em que os demais escritores sepultavam o lirismo.

Quando explodiu a guerra e a Noruega foi invadida, ficou do lado do invasor. Os que liam seus livros_ e eram aos milhões_, já notavam um indício de misoginia inapropriada por ter deixado os grandes centros culturais e instalado sua casa na Finlândia. Em pouco tempo foi transformado em vilão, traidor, e apátrida. Quando Hitler morreu, escreveu que partia um guerreiro dos povos, o mais alto grau de humanismo do século. Foram presos, ele e sua segunda esposa. Ela passou três anos trancafiada, até contar os mais comezinhos detalhes da vida de seu marido. Ele, que já era nonagenário, teve a pena comutada em internamento hospitalar pela suprema corte tê-lo decretado demente. No asilo, escreveu memórias surpreendentemente prodigiosas em que contava sobre a rotina dos exames, das conversas molejantes junto aos plátanos do jardim, dos abandonos ao destino de pessoas as quais eram colocadas ali para serem sepultadas em vida por filhos e netos e pela história. Conta-se que a mesma medalha do Nobel ganha pelo reconhecimento de sua obra, que dera a Goebbels, em sinal de sua devoção, ele havia esquecido na noite da outorga do prêmio, no elevador de um hotel de Estocolmo.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Elias Canetti e o Manicômio



É um elemento de forte demérito a um anti-freudiano que seu relacionamento com a própria mãe seja pautado inconvenientemente pelas mais pródigas teorias edipianas de Freud. Entre tantas definições que possam ser dadas para a obra de Elias Canetti, esse búlgaro que se enquadra na espécie rara de escritor que produziu tanto um grande romance quanto um grande tratado de sociologia, a de ter sido um raivoso opositor da psicanálise revela as bases de sua necessidade de construir uma outra teoria que anteponha a explicação de seus tormentos pessoais às análises da psicanálise. Quando criança, foi ameaçado de castração pelo amante de sua ama-de-leite por ter visto o que não devia; seu pai teve um colapso e morreu à sua frente, sendo que pouco mais tarde  Canetti viria a descobrir que a causa fora a descoberta da infidelidade de sua mãe com um médico de um sanatório suíço; sua adolescência foi de um solitário e constante confronto com sua mãe possessiva e protetora, que por um lado o incutiu a noção da alta cultura através dos livros, mas por outro o isolou de qualquer contato feminino até uma idade tardia. Grande parte de suas lembranças desse período é a de sua mãe, resignada com a maldição que lhe caíra pela dupla tragédia advinda de sua traição _ a morte do marido e a falta de horizontes para a maturidade de ser mãe viúva_, e ele, sentados nas salas dos pequenos apartamentos pelos quais passavam, na Bulgária, Alemanha e Inglaterra, lendo em silêncio. Mesmo nos livros havia uma disciplinação séria, em que Strindberg, a grande paixão de sua mãe, ainda era proibido ao jovem Canetti dos autores alemães provincianos; que Shakespeare era matéria tomada para aguerrir a memória e a dedicação do filho, a sua urdidura espiritual que, conforme o exercício distintivo dos aristocratas falidos, o estivesse preparando para as novas e imagináveis dificuldades de um mundo em mudanças. A juventude de Canetti diante esse fardo oracular foi, então, um concentrado e premeditado plano de fuga. A única forma que ele tinha para olhar para fora era, em paradoxo, o que sua mãe lhe oferecia: os livros, que ele foi derivando para um recolhimento pessoal combativo que no fim, objetivava a escrita.

A sua libertação veio com a necessidade diaspória que tomou os refugiados das duas guerras mundiais, principalmente aqueles médio-europeus para quem a pátria sofria a dissolução das fronteiras territoriais, e o jovem Canetti veio a morar em sua conquistada independência em um quarto diante a um hospício, na Alemanha. Ele viria a se lembrar desse tempo com doce nostalgia: foi a época em que ele conheceu, entre outras mulheres, a filha petulantemente mítica e esquisitamente moderna de Mahler, e aquela outra que seria sua esposa para toda a vida: Veza. Mas foi ali, olhando os altos muros brancos do manicômio, e ouvindo os gritos imprecisos que continuamente erguiam-se deles para o acordar à noite, ou o desviar da escrita para olhar o indiferente céu das estações acima do prédio, que ele escreveu por três anos o seu único romance, essa peça sobre o inferno e livro cunhado numa maldade pura e inqualificável chamada Auto-da-Fé.  Diante tanta coisa represada que se condensara nas páginas desse livro, ele relutou não só  em publicá-lo como em mostrá-lo para alguém. Durante as trevas que se acentuavam pelo mundo, a opressão onipresente que regia as esperadas mudanças anunciadas por sua mãe, o definhamento de tudo que uma vez o definira como continuador de uma herança espiritual iluminista européia, Canetti escondeu esse romance a sete chaves, como se diz, ainda sem saber o peso que aquilo tinha, o real grau de estudo sobre o depravamento que seu filtro de lucidez obtinha como retrato dessas mudanças. Nunca foi assediado pelos males da modéstia, assim, sabia que havia conjurado algo de grandioso, e aquele não seria o tempo certo para mostrá-lo. Foram precisos muitos anos para que ele testasse a recepção do livro em leituras públicas, em que lia alguns capítulos com uma desenvoltura e encenação treinadas; leu-o para uma platéia em que estava Robert Musil, que o aceitou mas o rejeitou quando ele apenas citou o nome de Joyce; teve a aprovação de Hermann Broch, que o advertiu, porém, sobre os perigos de confrontar o mal de forma tão desescudada.

O romance tinha tudo para se enquadrar nas litanias freudianas: um intelectual que tem uma gigantesca biblioteca, isolado do convívio social, sobre quem cai a astúcia assassina de uma mulher sem atrativos e dominadora, e de um anão luciferino que é líder de uma gangue de pervertidos. Seria a mãe o traço subjuntivo inegável que rendia Canetti às teorias de Freud, e esses símbolos a sua procura de catarse? Voltara as costas soberbamente para o eco dessas possíveis leituras futuras, e se dedicara à composição de seu trabalho o qual acreditava ser a missão de sua vida: o compêndio monumental e minucioso sobre a relação entre o poder e as massas. Para isso, naquele paraíso de isolamento perfurado pelo grito dos loucos, Canetti se embrenhou na leitura de Kafka, sobre o qual iria escrever um ensaio fundamental, espécie de complemento específico de seu importante tratado, em que deslinda as cartas de Kafka a Felice Bauer. Naquele quarto no qual se imiscuía dos tormentos da história imediata, afundou-se em sua longa leitura sobre a história das religiões, dos reis africanos, o sultão de Delhi: Muhammad Tughlak, o caso Schreber, a imortalidade genuína de Stendhal, a Alemanha de Versalhes, o fogo sagrado de Jerusalém. Subliminarmente, arrebanhava material suficiente para seu combate involuntário contra Freud e o psiquismo do culto à doença almática  eterna e oni-operante. Pouco lhe importava Freud e as ideias modernas: a história lhe provava que o mal renascia a cada ciclo devido à inerente propensão humana à idolatria e à servidão, seja a uma ideia, a um líder, a uma tribo, a um totem  familiar, as hierarquias criadas, à humildade compulsória. As leituras exaustivas lhe mostravam uma linha diretriz de onde partia toda a aparente aleatoriedade dos movimentos históricos; davam-lhe um molde ao qual podia, sob certas posições óticas apreendidas, perceber um desenho diagnóstico que subjugava o homem desde o princípio dos eventos. Mas foi um acontecimento empírico que lhe serviu de iluminação à sua teoria, a noite de 9 de novembro de 1938, a Reichskristallnacht, a o pogrom de perseguição e assassinato de judeus, e destruição de sinagogas e prédios, na Alemanha, em que a turba ensandecida o pegara de cheio e o carreara para o centro dos incêndios e expurgos. Nessa noite ele intuiu os elementos significativos que abriria seu tratado, Massa e Poder, em que a unicidade independente se perde para dissolver o indivíduo em uma legião de pertença selvagem, desprovida de conceitos humanos afora o de ser parte concordante e mística de uma força da natureza, em que   o homem se torna um componente de deuses das trombetas de combate cuja voz de conjunto é a Floresta, ou o Fogo, o Mar, as Tempestades.

Quando já era um autor famoso, sua mãe ainda se recusara a vê-lo. Rejeitava que ele tivesse se casado com aquela mulher, escrito aqueles livros, envelhecido daquela maneira distinta. As páginas de sua autobiografia sobre a morte da mãe é uma das mais tocantes. Em sua fragilidade e solidão, a mulher que o concebeu se confinara dentro de sua mais rígida aristocracia espiritual e nostalgia de  antigas salas de infância, provérbios distorcidos e reconfigurados pelo tempo do que lhe diziam um pai e um marido imaginários e desaparecidos, sobre glórias imprecisas preservadas com fidelidades sem sentido ancoradas no acirramento da loucura. Seu triste vestido negro, seu chapéu de uma era evidenciadora de sua obsolescência, sua raiva cansada mas nunca resignada, de quando o filho crescido a vira furtivamente parada numa esquina, era a sua forma desamparada de ter enfrentado as mesmas mudanças que confrontaram as várias batalhas cerebrais do filho. Olhando-a ressequida e diminuída para mais da metade da altiva beleza da juventude, deitada no caixão, o filho descobre a última parte de sua infindável teoria, na maneira como ele e ela não se coaptaram a nenhum sistema, a nenhuma doutrina, como cada um se refugiou em um matiz do discurso, ele em sua busca implacável pelo conhecimento, ela fugindo ao conhecimento e se aprisionando no mais impiedoso ressentimento. Era um tanto injusto reconhecer nela uma das faces da tirania: talvez ele nunca encontrasse a palavra definitiva para seu tratado, a verdade pós-freudiana que entre eles ocorrera a inversão imperceptível em que o tempo, o silêncio, e a infidelidade da distância, usaram ele para tiranizá-la.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Rabindranath Tagore do Lado de Fora



O padroeiro justificador de todos os péssimos estudantes que espontaneamente se negam a se dobrarem diante a opressão da Escola. Quando criança, miudinho, a pele morena inconveniente nas classes postulantes do Império Britânico, as raquíticas pernas imberbes, os grandes olhos negros repletos de sonhos sem valor para ninguém, acordava de manhã, vestia-se, e com pressa se sentava na cadeira do lado de fora, para longas horas de silêncio diário contemplando o Ganges. Não suportava paredes, lugares fechados, ensimesmamentos; iria aprender sobre a importância das ideias dos países que lhe oprimiam com seus sistemas doutrinários rigorosos anos depois, quando comprovado que os vaticínios sobre seu fracasso falharam, mas não agora que o que mais queria era voltar a seu país, a antiga Índia, as largas alamedas palacianas fora das quais seu povo se reunia indiferente em torno das estátuas de velhos marechais, usurpadores ingleses, mantos e tendas e especiarias, e a nunca silenciada algazarra, e a sua cadeira de volta sobre a qual ficava em sua quase insuportável apreensão da verdade.

Não se formou nos colégios ingleses pelos quais passou, e abandonou o curso de direito. Para cada aluno um método, era sua descoberta sobre o respeito às diferenças individuais. Nada de burros ou mais-que-inteligentes; havia apenas a imposição da régua igualitária mecanizando treinamentos de técnicas para o controle do mundo às custas do definhamento do espírito. Sob a capa da mediocridade em que lhe caíram a palmatória e as notas ruins, crescera a insuspeita estatura de um grande escritor; sob o bullying, ergueu-se um dos mais completos pensadores do mundo moderno. Em Santiniketan construiu sua Universidade de Visva-bharati para os povos, sem paredes. O local de formação espiritual que era a antítese dos sólidos blocos de pedras medievais dos soberbos internatos ingleses. Ali nunca se proliferaria o mito dos terninhos, das gravatas das irmandades, dos salões de acústicas epicêntricas em que esqueletos darwinianos dividiam espaço com caneadas barbas veneráveis. Uma escola sem calabouços e rei Arthur, plana, com várias varandas sob sombras descansadas; um grande playground de jovens, cada qual observados à maneira deles, não à maneira de uma ortodoxia resumidora. Refez ali, com sucesso, o ambiente de sua casa de 12 irmãos, em que liam-se reciprocamente Shakespeare, Shelley, Keats, Browning e os pensadores hindus; onde se estudava hidrostática, urbanismo, filosofia e todo o reformismo que na época servia a se criar a visão humanista da nova Índia aberta ao ocidente. No frontispício estava o famoso lema Yatra Visvam bhavati Eka-nidam ( "Onde o mundo inteiro encontra seu ninho comum"). Ali ele pragmatizava o oriente indiano dos amplos espaços abertos, da falta de desconfiança dos metros quadrados resguardados do ocidente.

Octogenário, escreveu o que para ele devia ser uma de suas acepções testadas, mas para todo o ocidente do entre-guerras era um paradoxo: É necessário muita coisa para se matar um homem. Perdera sua esposa e dois filhos, e em um de uma sucessão de poemas de desespero que escreveu, ouviu e reproduziu nele a seguinte explicação: Estás derramando no vazio da minha ausência a tua fé na verdade de que eu vim! Acreditou com toda a sua potência intelectual naquele absurdo que a Ciência de exigentes absurdos de universos paralelos e infinitos na cabeça de uma agulha rejeita de forma peremptória: a imortalidade da alma. Acreditava também que a alma reencarna-se continuamente até a plenitude. Esses anos vi num sebo um livro com o atestado de capa de que era uma obra psicografada pelo espírito de Rabindranath Tagore. Toquei a capa com os dedos e perguntei calado e sem nenhum pingo de crédito: Será?

Quem sabe em que novas constelações pode-se imaginá-lo, ardoroso como sempre fora por todas as novas e ininterruptas descobertas, olhando com profundo deleite as coisas usualmente tidas como as mais simples e insignificantes?

(Nesta semana, mais precisamente dia 16 de agosto, esse blog faz 2 anos. Pretendo ter tempo para postar um desses retratos de escritores_ e um músico_, a cada dia, como comemoração. Este foi escrito na fila da Caixa Econômica, sentado numa daquelas cadeiras; hora escrevendo num caderninho, hora olhando o número na tela das senhas. Explica-se o primarismo; mas deu-me prazer)

sábado, 11 de agosto de 2012

Culto à Personalidade: Meus 20 Romances Preferidos ( II )


11. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline

Também um dos romances mais engraçados que já li, apesar de ser uma obra de uma negrura devastadora. Ácido, honesto até a medula, longe de qualquer hipocrisia! Literatura como pouco se vê, daquelas em que o escritor é absolutamente livre para falar o que quer. No Brasil de hoje, obras assim jamais seriam permitidas, ou se o fossem, seria para o assassinato institucionalizado do autor pelas forças partidárias da assepsia social da correção política. No universo medíocre acadêmico nacional, em que os professores populares, ícones de alunos a quem pouco importa as letras mas a titulação acadêmica máxima (daí prolifera-se a praga epidêmica), são oligofrênicos arrogantes acabrestados pelo ideário do partido, Céline seria aceito apenas em sua menção distanciada de "grande autor maldito" em coquetéis honrosos. O tipo de autor que não precisa ler mas fala-se que se lê, para dar uma de descolado. Enfim, aqui tem uma prosa poderosíssima, ousada, feita com sangue. A biografia de Céline é um tanto complicada, como se sabe, mas como é fundamental lê-lo!

12. Em Busca do Tempo Perdido, No Caminho de Swann, Marcel Proust

Demorei para chegar a Proust. Não tem como falar de Proust em poucas palavras. Essas páginas estão entre os momentos mais felizes de minha vida de leitor. Há muito aqui oferecido à alegria do pensamento. Amo Proust.

13. O Teatro de Sabbath, Philip Roth

Há uma resenha longa sobre esse romance nesse blog. Fundamental!

14. Cem Anos de Solidão, Gabriel Garcia Marquez

Romance viciante. Viciei-me nele por uns vinte anos, e foi difícil me desvencilhar da crença de que fosse o maior dos romances, o mais bem escrito, o mais incrível. Daí que fosse natural que eu passasse a odiá-lo por muito tempo, maltratá-lo e desprezá-lo. Mas depois de muito me esquecer dele, pude retornar e ver sua real dimensão. Não sou patriótico e nem ligado a questões geográficas, mas é indiscutível que GGM compôs um imaginário representativo do latino-americano. E aquela primeira frase...

15. O Arco-Íris da Gravidade, Thomas Pynchon

Um aprendizado de estilo de um mestre da escrita. Pynchon é capaz de escrever bem qualquer coisa, de ir além em toda exposição, de atravessar profundidades inimagináveis. E o faz num desprezo às convenções e às boas maneiras de uma maneira provocadora incrível, talvez superando mesmo Joyce. Seu material de trabalho são os objetos de alienação da cultura e do entretenimento de massas: os desenhos animados, as drogas, a televisão, o cinema norte-americano. E nos surpreende com oásis de ternura arrebatadores. É um romance onde tudo acontece_ embora alguns, mesmo eu, em resenha neste blog, digamos o contrário. Há páginas e páginas de histórias alheatórias contadas com um brilho invejável. Realmente um mestre e um gênio, não há meios termos. 

16. Luz em Agosto, William Faulkner

Aqui temos um Faulkner de uma prosa menos intensa, mostrando o quanto o cara era bom na narrativa clássica. É por isso que eu digo que a alta-literatura é o maior dos entretenimentos, e é uma trista mutilação que nosso sistema educacional não esteja na condição de oferecer esse prêmio para os estudantes, mas fique na dama-de-ferro das velhas professoras tristes e pedantes que torturam os alunos com José de Alencar a Daniel Galera. Os personagens aqui violentam o leitor com seus passados, com seus silêncios, com sua incrível solidão, que descamba para a violência desesperada. Li esse romance, sério, mais que cinco vezes, atrás do segredo do por que me fascina e causa sempre um amargo na garganta. Como se nada fosse o que parece. Como se houvesse um impossível desamparo, incorrigível e esotérico, por detrás de todos os crimes. Faulkner era um tremendo de um filho da puta. Vai tomar no cu, Faulkner!

17. Extinção, Thomas Bernhard

Uma pancada do início ao fim. Há uma resenha sobre o autor e a obra por aqui no blog.

18. O Planeta do Sr. Sammler, Saul Bellow

Um romance ensaio, com várias reflexões sobre a condição humana. Também o li tantas vezes que sei longas passagens de memória. 

19. A Consciência de Zeno, Italo Svevo

Svevo foi apadrinhado por ninguém menos que James Joyce, mas não tem nada do experimentalismo joyceano, muito pelo contrário: seu tom é oitocentista e clássico, e sua erudição se embrenha lucidamente para um dos mais bem escritos romances. É um deleite ler Zeno. Ri-se tanto com esse livro! Lembro que mal via a hora de sair do expediente e retornar à casa para reaver o livro em mãos.

20. O Finado Matias Pascal, Luigi Pirandello

Muito já se esqueceu desse romance convencional que nada tem das correntes modernistas, tanto é que não achei uma imagem de capa mais bonita que a que aparece aí em cima. Há décadas ele não é reeditado por aqui. Mas como é bom a narrativa do Pascal que é dado como morto pela família cuja esposa o martiriza, ganha uma bolada milionária num jogo, e começa uma vida nova com uma identidade inventada. Maravilha de livro! 

Culto à Personalidade: Meus 20 Romances Preferidos ( I )

Listas são coisinhas delicadas, que agradam todo mundo que diz não suportá-las. Pensei e pensei, e acho que, finalmente, cheguei à ordem dos meus 20 melhores romances de todos os tempos, os que mais me influenciaram e moldaram minha visão não só do que é a arte, mas a vida. 

1. A Montanha Mágica, Thomas Mann


Esse sempre vai figurar no topo da minha lista. Nunca me senti tão absorvido e deslumbrado por um livro quanto me senti por este.

2. Os Demônios, Dostoiévski

Há um diabolismo perigoso aqui, uma forma de inteligência e uma revelação sobre o homem assustadoras. Da metade para o final desse livro imenso, eu era quase incapaz de ficar quieto sentado ou deitado, tamanha a adrenalina da leitura. O exemplo máximo do suspense. O engendramento progressivo do assassinato que aparece no romance é uma das coisas mais maravilhosas que já vi. Hitchcock é fichinha. Para abalizar minha opinião, Thomas Bernhard teve a mesma impressão quando o leu, e a disse em sua biografia. Assim como ele, ao acabar a leitura pensei que jamais iria encontrar um livro tão bom.

3. Ana Karenina, Tolstói

Não tenho muito o que dizer sobre esse. Apenas um clichê, mas não menos verdadeiros: uma das maiores realizações humanas. Quem ler Ana Karenina e dizer que não gosta, aí é caso para internação.

4. Absalão, Absalão!, Faulkner

Um livro como nenhum outro. Uma força verbal e uma beleza narrativa e reflexiva que me fez pensar que eu seria o miserável mais feliz do mundo se escrevesse igual a Faulkner. Faulkner foi o cara mais feliz do mundo. Se isolar em seu escritório e ter o domínio desse incrível talento, deveria ser um êxtase distintivo igual a nenhum outro. Andar por seus dias famélicos, passar pelas portas dos bancos onde não havia traço de seu nome, e ter consciência de levar o que ele levava... Borges, grande admirador (e tradutor) de Faulkner, expressou bem (claro!) o que uma obra de Faulkner provoca no leitor. Mesmo os mais pequenos romances de Faulkner, ele disse, causam um impacto no final da leitura. A pessoa não sai de um livro dele da mesma maneira que quando entrou. É isso.

5. Tristram Shandy, Laurence Sterne

Quando li Tristram Shandy pela primeira vez, aos 20 anos, eu não acreditei. Depois me perguntam por que eu gosto e respeito tanto a alta-literatura: taí, pelos impactos que ela sempre causa em todos os períodos da minha vida, pelos Alephs que me abre no curto horizonte da mesmice, mostrando que a aparência das coisas é enganosa, que tudo, citando Whitman, são superfícies impossíveis.Li-o em uma biblioteca e à medida que me maravilhava com aquilo, estudava instintivamente recursos de como roubar o grosso volume. Não tinha como enfiá-lo no espaço abaixo da fralda da camiseta e a cintura do jeans, como era meu método de sucesso. De maneiras que, à medida que as páginas passavam, não vi outro recurso que iniciar uma de minhas poupanças monásticas para poder comprar uma edição usada em um sebo. O maior benefício que Shandy fez em mim foi a descoberta de que nada há para se levar a sério, a não ser o humor como método filosófico. Engana-se quem subestima isso. Como Sterne diz no oferecimento de abertura do livro, quem não sorri revela uma doença no espírito. Sterne foi minha libertação. Gargalhar com essas páginas foi minha conversão espiritual. Desde então já não espero o arrebatamento, já o tive. É delicioso o enrolar da trama, que aliás jamais acontece, a infinita conversa entre o narrador e seu tio, as esplêndidas observações. Na verdade é um livro sem tamanho e deveria estar ali no primeiro lugar. Aliás, acabo de ter esse insight: ninguém nunca vai entender Ulisses se não ler primeiro Sterne. Ninguém menos que Javier Marías é um apaixonado por esse livro, tendo ganhado importantes prêmios por sua tradução espanhola dele.

6. Herzog, Saul Bellow

Já falei muito dele aqui, até em resenha própria. Foi um divisor de águas para mim. Mostrou que literatura sublime se faz com qualquer assunto, mesmo com o cotidiano de um judeu burguês e intelectual norte-americano. Só Bellow é páreo para Faulkner. Os dois estão, solitários, no Olimpo dos escritores inalcançáveis do século passado.

7. As Vinhas da Ira, John Steinbeck

Digamos que seja o romance atmosférico manniano das causas sociais. Personagens que ficam para sempre na lembrança, e uma ternura humana poderosa. Do alto da minha masculinidade ostensiva, devo confessar que se trata de um dos romances que me fez chorar. Há um pregador religioso impagável, que nas pregações que fazia citava esse cacoete frasístico de Jesus: Que diabos! Também muito engraçado. Triste e engraçado, à maneira de Chaplin e Twain.

8. Ulisses, James Joyce

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9. O Homem Invisível, de Ralph Ellison

Único romance desse autor negro. Propenso-me a colocá-lo também ao lado de Faulkner e Bellow. Incrível a falha de leitura de alguns autores contemporâneos, sobretudo nacionais, que nunca citam esse romance, demostrando não terem-no lido_ a exemplo a indiferença do mercado editorial, que há mais de 30 anos não relança esse romance. Uma crítica social das mais poderosas, não só sobre  a discriminação racial nos EUA, mas sobre a sobrelevação do humano. O negro narrador é quem é o homem invisível do título, não do ponto de vista das assombrações poeanas (como ele afirma em sua primeira página antológica), mas o homem desprezado, exilado em sua própria miséria social. Tem a força lúcida da incorreção política de Os Demônios, pois não eufemiza e heroiciza ninguém; os negros norte-americanos são mostrados em sua bronquidão e ignorância espiritual resultado de séculos de exploração. Na verdade é uma incrível jornada pelos Estados Unidos suburbano, à maneira de Dante, só que em vez da companhia de Virgílio, o narrador, como ele diz, é ciceroneado por Louis Armstrong. Um romance movimentado, com muita luta de boxe, revoluções fajutas e mal intencionadas, mulheres perversas e uma profunda, erudita e inigualável prosa poética.

10. Dia de Finados, Cees Nooteboom

Também pouco tenho a dizer a mais desse. Tem uma resenha sobre ele por aqui. Soou como uma calma e recolhida sinfonia de enorme beleza e confiança.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

A Águia Raspando o Bico



Existem duas crenças adquiridas por minha esposa sobre mim que ao longo dos anos se tornaram verdades inquestionáveis, ainda que sejam completamente mentiras sem fundamento. Uma delas é que eu tenha o costume de enfiar a colher nas panelas de feijão e colocá-la na boca, para depois enfiá-la de volta na panela sem me preocupar em limpá-la. Eu nunca fiz isso em toda a minha vida, nem quando morava com minha mãe antes de meus 25 anos, nem mesmo quando era um solteiro  e podia ser relapso quanto às normas de higiene pessoal. Mas a Dani sempre me vem com uma dessas, de que teve que jogar o feijão fora por eu tê-lo azedado. Não se trata de uma acusação, e nada tem de ofensivo, já que ela usa a voz enleivada da distração da esposa que opera dentro dos fundamentos tradicionais e mesmo religiosos de seu zelo doméstico. Talvez_engraçado que me venha meio que assustadoramente só agora, enquanto escrevo_, ela esteja projetando uma ironia finíssima de eterno estoicismo feminino ao dizer isso com calibrada ausência, e talvez isso possa algum dia se converter numa causa acumulada mais séria de um divórcio_ algo na linha da psicopatologia social mais indevassável e insuspeita que revele minha tirania nunca auto-percebida de macho insensível. Mas eu nunca nem liguei em desmenti-la, corrigir de que eu jamais me prontificara a cometer esse pecado caseiro. Não sei mesmo por que sempre fui conivente com essa crença derrisória; talvez por achar o fato de uma sensaboria completa e insignificante, e ver que ela também o ache, e saber que certos mitos devem ser ignorados para não enaltecê-los e transformá-los em problemas maiores. Talvez por haver uma inteligência do casal, uma áurea atmosférica poderosa nunca alcançada pelas palavras, e nós dois termos a presciência espontânea de que se trata de uma linguagem por si mesma, um mimetismo (quantas coisas eu acredito sobre ela que ela nunca me desmentiu?).

A segunda coisa, porém, foi naturalmente desmentida hoje. A Dani sempre achou que eu tenho medo de dentistas. Ela direto brinca comigo sobre minha "fobia de dentista", um homenzarrão desses com medo de um motorzinho, etc. E acontece que minha infância foi tão povoada por dentistas dos mais surrealísticos tipos, que me desvaneceu na origem qualquer medo ou apreensão que eu pudesse ter deles. Me recordo de salas ensombreadas e homens com aparências dickensianas de devassos mal ajambrados e de aventais sujos, abrindo a porta da sala de canais e obturações após despachar o último cliente aturdido, e sinalizar para minha mãe, enquanto esfrega as mãos numa toalhinha encardida, para que me conduzisse até eles. Não sei mesmo a razão por eu ter sido tão descuidado com meus dentes na infância, e a coisa que mais me enche de intuições tardias sobre a real vigilância materna é não entender como minha mãe pôde ter sido tão conivente. E eu tenho uma boa dentição, mas se meu cadáver fosse descoberto e não houvesse maneiras mais simples de levar os peritos à minha identificação, o estudo de minha arcada dentária deixaria com certo fascínio a um perito mais imaginativo. Se tal perito fosse um poeta intuitivo, iria rezar na beira de meu saco de indigente em honra às evidências de meu sofrimento juvenil atestado pelo palimpsesto de revelações apreendidas pelo estudo dentário. Os dentistas da minha vida foram quase sempre crápulas gananciosos; os piores deles se passavam por senhores abnegados que atendiam por um terço do preço a crianças cujas mães já haviam gastado todo o resto da apertada renda familiar com bolachas recheadas e jujubas coloridas, sabendo que suas soluções garatujadas para aquele universo de bocas doloridas e sorrisos falhos eram apenas um paliativo temporal: em dez anos, ou mesmo vinte anos, o adulto no qual a criança se transformaria estaria apto pela experiência a ver que seus dentes não foram salvos, o que se fez foi adiar o martírio para a maturidade, de forma que quase sempre não havia mais solução. Mas eram crápulas até isentos de maiores artifícios de dissimulação; bandidos que se entregavam pelo próprio descuido, mas cujas mães dos moleques queriam esconder para si mesmas que suas faculdades haviam sido porões e garagens e a experiência corajosa nos protótipos humanos que essas senhoras lhes levavam. Muita conversa fiada e muita da desinformação onde proliferou o mercado negro de todas as coisas no Brasil dos anos 70 e 80.

Pois uma dessas bombas programadas estourou na minha boca faz uns cinco anos, e eu só arranjei de ir consertá-la hoje, após saber da morte de um amigo em decorrência de um abscesso dentário. O dentista é o melhor da cidade. Um cara esclarecido e humanista, dr. Eli. Como todo clichê clássico, ele colocou uma pala azul em minha boca, após anestesiar o lado direito da minha mandíbula, e enquanto tratava o canal, pôs-se a falar sobre filosofia, política e assuntos pessoais_ e a me fazer perguntas e aguardar uma absurda resposta em silêncio, olhando para mim como se à espera de como eu passaria por aquele teste interno de maneira digna, com fios e plástico na boca arreganhada. Quem ganharia a aposta entre os outros hipotéticos dentistas que nos observavam por detrás de uma parede falsa ou por câmeras escondidas (se balançar a cabeça, a cotação é de dez reais para o apostador; se eu gesticular com a sobrancelha, vinte; se eu nervosamente erguer a cabeça e colocar tudo a perder tentando falar, cem reais e um Urra! do vencedor vindo de detrás da porta)? Ele, uma determinada hora, perguntou o que eu achava sobre os que acreditam que os EUA são um país mais rico por serem protestantes, pois ele havia discutido essa afirmativa com seu filho, um aviador militar, e eu sabia o que ele respondera? Nessa hora ele chegou a tirar a broca da minha boca, quase a afastar a máscara de seu rosto, e esperar mesmo que eu vencesse as mil traquitanas enfiadas no canal para lhe responder. A moça que segurava o ejetor de água também não conseguiu manter a cara de quem não estava ali e me lançou um olhar atento lá de cima. Eu sou um desses caras que tem uma educação subserviente compulsiva; jamais venci aquelas disputas raivosas entre pessoas que não se gostam de esperar que a outra lhe cumprimente, sempre vi sair o oi, tudo bem e o bom dia! da minha boca, mesmo me arrependendo logo a seguir por ter sido respondido por uma cara voltada com empáfia. Há um desenho da Warner em que o coelho põe a perder o seu esconderijo por não se conter em concluir a frase musical anunciada em voz alta pelo seu caçador: tchã tchã rã rãn tchãn..., ao que o coelho espicha a cabeça para fora da toca, após tentar  em vão reter a fala na garganta inchada pelo pânico, e esguelha tchãn- TCHÂÃÃÃNNN. Pois eu respondi: Zvueler. E o dr. Eli: o que você disse?, e eu: Zvveler, Max Zvveler. Ah, sim, ele respondeu, isso, concordo plenamente com você e foi isso que disse a meu filho, há teorias que abalizam isso, como a de Max Weber, você tem razão, mas não quer dizer que Deus esteja do lado deles.

Acontece que esse doutor Eli estava cotado para ser candidato a prefeito da cidade, e ele explicava toda a trama dos bastidores que lhe impossibilitara tal intento. Retirava a mão oficiosa que ora estava na minha boca, para gesticular afim de tornar mais veemente alguma parte de sua exposição; parava tudo e encolhia os ombros, e me mostrava o quanto a política real o desgastava. De maneiras que num dado momento me distraí e viajei olhando a lâmpada alaranjada voltada para meu rosto. O dr.Eli falava, falava, e quando eu percebia a deixa para minha vez, eu apertava as sobrancelhas num sinal equivalente a mas não é! Daí me lembrei de uma conversa que eu tive ontem com um colega de serviço. Eu lhe falara de meu tratamento e ele me disse, de forma ameaçadora, para que eu nunca fosse ao dr. Wagner, o pior dentista não só da cidade como de um raio geográfico de três mil quilômetros quadrados. Esse colega chegou a me mirar como aquele profeta cego dos idos de março do Julio César, firmemente, com sua carinha de tartaruga simpática de olhos aumentados por lentes de dez graus de miopia, e exigir que eu nunca, jamais fosse me consultar com o tal dr. Wagner. Para tornar o anúncio mais enfático, pois-se a contar os eventos traumáticos que lhe ocorreram quando esteve nas mãos desse facínora com diploma de odontólogo. O dr. Wagner lhe anunciara, quando esse meu amigo já estava deitado na cadeira para receber o procedimento, de que estava faltando água no consultório, mas que iria fazer o canal assim mesmo, sem mais problemas. Daí começa com a broca a perfurar o dente dele, o zum-zum-zum do pino rotativo muito alto raspando e retirando a parede interna do dente até chegar na raiz e, de repente_ esse amigo continua contando_, o que acontece?, o dente começa literalmente a pegar fogo! A fricção da broca fora tão forte que queimou o dente e a boca do meu amigo. Sai dentista, auxiliar de dentista e cliente em polvorosa, cada um desesperado à sua maneira e para um lado. Aliás, meu amigo não sai, fica estático com a cara de desespero preso à cadeira, sem saber direito o que estava acontecendo. Aparece, depois de alguns segundos que pareciam longos minutos, o dr. Wagner com uma garrafinha de água mineral e lança a água toda pela boca do meu amigo, o que lhe causa um engasgo violento diante a repentinidade da coisa e quase o mata. Seria uma morte atroz, das piores, por ser carregada de dor, por ser coaptada a um afogamento, e por ser dessas mortes que após o período de duas semanas ligeiras de respeito no memorial popular passa a perder seu veemente aspecto de tragédia para afundar o morto na mais indigna das lembranças do anedotário paroquial. O dr Wagner não só o mataria, como desonraria seu nome por todas as futuras gerações, como do infeliz que se afogou numa garrafinha de água mineral enquanto seu molar se parecia ao edifício Joelma. Capaz até de daqui a uma década esse amigo seria alvo de encenações escolares em que o gordinho da classe seria amarrado na cadeira diante a um público de pais embevecidos e entediados enquanto lhe jogam água de uma garrafinha pet na cara, e o filho da putinha do demônio simula colocar os bofes para fora ao mesmo tempo em que outras pestes de oito anos inflamam labaredas feitas de papel celofane em torno, simulando a parte sagrada da piada do fogo no molar. Uma espécie de malhação do judas.

Quando meu amigo me contou isso, eu fiquei chocado, percebi o ar humorístico acentuado por detrás, mas, por alguma razão de estar com o pensamento voltado para outras bandas, não ri mais que um leve ensimesmamento labial. E não é que me lembrei dessa história na cadeira do dentista e a graça toda me veio de forma incontrolável? Senti os pulmões agitando-se, querendo ir além da dimensão torácica usual. Ouvi minha voz interna se surpreender com a alegria errática demonstrada ao se deparar com a oportunidade rara do Grande Riso, do riso convulsivo, do gargalhar do choro. Êba, taí o Grande Riso de volta! Só que não era, definitivamente, o momento oportuno. Cada vez mais em que eu tentava me concentrar em outros pesamentos, mais a imagem do meu amigo na cadeira, com os olhos arregalados e o dente em chamas, se apresentava com uma clareza impressionante. O dr. Eli estava falando sobre algo relacionado a mulheres e organismo humano, do organismo humano não reconhecer certas raízes dentárias e as atacá-las, tão inesperado como o são as mulheres, e eu num franco desespero por não conseguir controlar a maldita de uma gargalhada que prometia tacar tudo instalado na minha boca para fora. Dei engasgos que o dr. Eli parava de falar, me olhava atentamente e perguntava se a anestesia não havia pego, se eu estava sentindo alguma dor. Impus-me uma concentração budística, onde imagens da natureza me vinham na cabeça, folhas com orvalho, colibris, céus de tormenta. Mas o meu amigo surgia inadvertidamente invadindo esses exercícios, com seu dente de fogo. Arrebanhei tragédias, a fome da África, mas nada adiantava. A onda subia em grande velocidade. Aí me lembrei, como última esperança, de um professor do colegial que um dia na sala de aula brincou com o público masculino sobre métodos de controle de inconveniências hormonais da adolescência em ônibus e outros locais que, apesar de nada serem estimulantes, resultava em incentivos estáticos de determinados músculos masculinos. Pense na águia americana que, no frio extremo de algumas regiões montesinas, raspa o bico e os pés de contra as pedras até minar sangue, para se aquecerem. Pensei na bendita da ave, majestosa, encolhida no ápice da montanha, com muito frio... e o sangue vindo à carne em sua auto-imolação. Com uma força mental, só isso aplacou o forno que saía da boca de meu infortunado amigo.

(E isso me fez recordar uma crônica lida com deleite há muitos anos de um esquecido autor de best-sellers, chamado J. M. Simmel. Trata-se da história de um crítico de cinema que entra num cinema para assistir a um drama lúgubre e, sem mais nem menos, na cena mais séria, é tomado por um ataque de gargalhadas. A coisa se transforma em uma possessão sensorial que por fora tem a aparência infernal de alegria, mas por dentro a consciência sem controle do corpo do homem entra num pesadelo terrível da premonição do fim. Ele é convidado a se retirar pela administração da sala, erra pela cidade como um louco, o riso aumentando ainda mais, e consegue entrar em sua casa para morrer na cama.)

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Ulisses

Domingo passado morreu um antigo amigo meu da faculdade. Eu fazia História e ele Letras. Nós fomos dessa classe improvável de amigos que não tinham nada em comum. Aliás, éramos os opostos perfeitos. Eu o cerebral, ele o intuitivo-emocional; eu o cara de constituição taurina, ele frágil e pouco beirando o raquitismo; eu o anti-social, ele o inteirado em todas as discussões e conversas sociais. Eu sou heterossexual por nascimento e pela inexorável prova empírica, ele havia assumido a homossexualidade unívoca fazia uns seis anos. E nos conhecemos através desse detalhe último, pois foi fruto de uma brincadeira que um amigo meu me deixou a sós com ele numa mesa de bar para que houvesse a inspiração pública de que estávamos em um affair romântico. Não nego que fiquei um tanto desconcertado e incomodado, pois não ia com a cara dele, não por sua homossexualidade, mas por ser um notório dançarino em todas as ocasiões culturais em que me passava a imagem de exibicionismo gratuito. Nos palcos eu não conseguia ver senão um rapaz abaixo do peso com tremeliques exagerados, fitas coloridas e braços estendidos para o céu em louvor sem sentido. Era um dia de semana à noite e por aquele bar passava a via pública principal da cidade, e estávamos na mesa da esquina mais visível. Eu já ouvia a transmissão de alguns amigos da onça da suspeita de que deveria haver algo de errado com minha sexualidade, pois eu purgava uns anos voluntários de solteirice e não aparecia mais em festas ou eventos noturnos_ passava por um misantropismo que me cheirava cada vez mais a depressão, mas eu não admitia isso devido ao meu real misantropismo que era avesso a doenças sociais comezinhas. 

Ulisses era o nome dele. Coincidência que seja Ulisses, que remeta à obra de Joyce, que tão presente está nestas últimas semanas na minha vida digital. Mas não é mentira, não há nenhum simbolismo neste texto, nem a mínima pretensão de choque final ou surpresas. Ele se chamava Ulisses. Nessa mesa de bar passamos uma hora conversando e rindo desbragadamente, vai ver por estar pesando essa minha solidão toda e eu estar fragilizado demais para recusar o escape oferecido de conversar com alguém autêntico. Nada de conversas sobre moldes previsíveis. Cheguei a confessar para ele, naquela noite, que o achava um dançarino miserável de ruim. Ele riu e disse que vai ver era mesmo, mas a dança era a vida dele e ele sabia que jamais poderia se profissionalizar e que logo a vida o levaria para longe daquilo, e que seu tempo era o da universidade. Dançava desesperado e toscamente como alguém que invade uma padaria de madrugada e come quinze sonhos de uma vez ao ouvir as sirenes das viaturas se aproximando. Não foi isso que ele disse, mas me veio essa imagem na cabeça. Em Ulisses nada era afrontoso, ele seria incapaz de me responder no mesmo grau de depreciação que eu havia feito na minha crítica. Ele era extremamente gentil e naturalmente cauteloso, tinha um jeito de cruzar os braços e olhar em torno, em alguma íntima deferência e um pessoal conhecimento do mundo, que revelava que tinha um espírito muito mais velho que sua idade biológica. Em suma, não era um idiota, e a força dessa certeza transbordava com toda a sua segurança de forma a que ele fosse querido por todo mundo, mesmo quando descoloria os pelos das pernas e pintava os cabelos. Numa sociedade ultra-machista como a dos interiores brasileiros, essa estampa poderia causar um repulsa que passava da linha do escárnio para o perigo físico, mas ele tinha acesso livre a todos os ambientes e ninguém nunca se dirigia a ele com pejorativismos. Era um veado consagrado pelo respeito público, e era tão afetivamente solitário naquela época quanto eu.

Não vou me alongar mais. Escrevo isso aqui às pressas por ter pensado em Ulisses a noite inteira, e vou chegar atrasado ao serviço por conta deste post. Ele merecia maior concentração da minha parte, mas quem sabe num futuro conto, em que eu possa decantar mais os sentimentos, as apreensões. A morte dele chegou de supetão. Fazia bem uns dois anos que não nos víamos mais. Realmente, a fase pós-universidade dele o cambiou para outros rumos. Ele teve que procurar emprego na capital, e pulava de um serviço a outro, pela força das circunstâncias. Sua última ocupação, fiquei sabendo depois, foi a de vendedor de consórcios de moto. Passou por duas cirurgias cardíacas de sucesso, mas no domingo, um abcesso dentário desceu pela corrente sanguínea a o matou em seu coração fragilizado. No domingo morreu, mas purgou uma semana na UTI de um hospital. Eu não fiquei sabendo de nada disso, e minha esposa que viu pelo Facebook o anúncio de sua morte. Um abcesso dentário! Uma vizinha minha, de 68 anos, passou pela mesma cirurgia cardíaca dele, e saiu andando depois. E um abcesso dentário vai e mata um sujeito que mal completara 31 anos.

Eu tenho dois molares inferiores quebrados que sempre respondem com abcessos, e ontem fui ao dentista para, finalmente, tratá-los. Contei que ia ali por causa do Ulisses. A esposa do dentista era grande amiga do Ulisses. O tratamento se iniciará amanhã e eu já o paguei. Absurdamente caro. Mais um aspecto de nossa cultura de inércias inquestionadas. Lembrei de todo o meu martírio infantil em salas tenebrosas de dentistas que, seguramente, não tinham formalização no Conselho, por serem os mais compatíveis à renda financeira de minha mãe. Pensei no sorriso desdentado de meu pai, na fase final de sua vida_ o largo sorriso bonito sem os molares, que me ficou na lembrança com tanto irradiante amor. Para coisas assim servem nosso realismo frio cotidiano, para que ao me sentar na cadeira do dentista, seja apenas alguém sentado numa cadeira de dentista, e não um elo cronológico cheio de significados subliminares numa corrente de relativos privilegiados e despossuídos.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Enamoramientos, la Impunidad




Los enamoramientos, del autor español Javier Marías, es una novela excelente. Es la historia de un crimen pero no es una novela negra. Yo la definiría como una novela de lenguaje. Y como una novela sobre la impunidad.

¿Por qué una novela de lenguaje? Porque ese es el principal talento de Javier Marías, moldear el lenguaje como si fuera una materia dúctil, mágica. Como para Platón, para Homero, para los grandes poetas –Eurípides, Sófocles, Shakespeare, Virginia Woolf– el lenguaje es su tierra, su ser. Aunque tuviera otro tema, o ninguno, una la leería para dejarse arrullar por la cadencia, por el ritmo, por la belleza variadísima de nuestro idioma, a veces aburrido, soso o farragoso en las manos de escritores y escritoras contemporáneos –con excepciones–.

Pero es también una novela sobre la impunidad. Posiblemente España sea uno de los países más corruptos de Europa, como Costa Rica lo es en Latinoamérica. La impunidad de esta novela es la de los pequeños crímenes que por fuerza van llevando a los grandes, pero mirados, sentidos, hablados desde las conciencias. Marías tiene talento para meterse en el alma de mujeres y hombres.

La buena literatura suele llevar al lector a pensar en su propia vida, en su propio país. La impunidad, grande y pequeña, ha sido y sigue siendo el principal objetivo de los políticos tradicionales de Costa Rica, especialmente del partido que hoy nos gobierna. Y me parece que, sin que nadie chistara, los diputados han dado un paso gigante hacia la impunidad legal con la nueva ley mordaza. ¡Guardar los secretos políticos! En una democracia no puede haber secretos políticos. Pero claro, nuestro sistema no es una democracia, de democracia lo único que tiene es el carnaval electoral. Es una ley que debe preocuparnos a los escritores pues impide la denuncia. Con esa ley no habría podido escribir La Loca de Gandoca. Y menos comentarla públicamente.

ANACRISTINA ROSSI

El Financiero (Costa Rica)29 de julio de 2012

Retirado aqui.