Estive por dois dias na Capital. Tenho que me aclimatar novamente no meu refúgio. Dois dias ali e me vem a completa certeza de que a humanidade tem mesmo um destino fatídico e inglório. Tudo a merda do dinheiro. Levei minha mãe para buscar o carro novo que ela comprou na concessionária, e haviam filas ali de compradores esperando na seção de retirada de veículos. Uma fila quase a dobrar o quarteirão. E lá dentro, quando minha mãe _ a quem não se reserva mais nenhuma felicidade consumista ou expectativas do súbito inimaginável nessa esfera de existência além de comprar um carro novo_ foi pegar as papeladas, mais gente atulhando as mesas comprando carros. Senhores cardíacos sentados em bancos requintadamente almofadados sentindo-se monarcas em suas pré-sucatas cintilantes. Mulheres de enormes óculos escuros olhando por cima dos ombros, fazendo trabalhar as fantasias intimistas. Lembrei da reportagem na Forbes que saiu semana passada, curtindo com as caras dos brasileiros compradores dos carros mais caros do mundo. No mínimo, os brasileiros compram carros, que lá fora são tidos como populares, mas aqui como última ponta do esnobismo, pelo dobro do preço que se paga não só nos EUA, mas em países da América latina. E se isso ficasse apenas nos preços exorbitantes dos carros: o seguro do carro da minha mãe é de quase dois mil ao ano; quinhentos reais para a simples transferência de nome; mais quase dois mil de imposto anual_ imposto para se andar nas estradas mundialmente conhecidas do Brasil, a maioria abaixo da linha do minimamente aceitável. E lá estão todos aqueles senhores e senhoras, cada qual tendo seus dramas de vida cotidiana mas que ali na concessionária revelam apenas o verniz magnífico das supostas vidas glamorosas. São chamados pela alcunha única de "doutor" e "doutora"; é algo que verdadeiramente que me faz doer o coração. Nós merecemos sim a mais contundente das piedades.
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Voltando do escritório da Previdência Social, de onde espero ver resolvido uma já longa novela de meu processo de averbação de tempo de serviço, deparo-me com um mendigo tocando bateria numa loja de instrumentos musicais. Umas três pessoas em pé, na avenida central de frente a loja, e o mendigo, um sujeito de cabelos e barbas brancas compridas, vestido de calça jeans e camisas jeans de mangas até os punhos, manejando as baquetas de forma que é impossível para os que passam por ali não destinar alguns segundos de consideração à sua performance. Os funcionários da loja, desiludidos não só pela natureza do ofício mas pelo excesso sensorial do ambiente daquele melífluo canto da cidade, estão escorados nas estandes olhando ao executor com um certo enfado misturado com o efêmero alívio de fim de expediente, e visível vestígio de admiração. E o mendigo, cara de auto-sátira indevassável, a ninguém contaria de que região do passado vem essa proficiência, tocando algo que me parece eivado de jazz malandro, desigual mas sério, desleixado mas tendente à perfeição. A mim pareceu que lhe ofereceram a chance e ele a pegou, mas logo partiria dali sem mais consequências. Parecia que ele zombava das atenções e de si mesmo, e mesmo das possíveis intuições dos mais imaginativos que passavam. E tocava sem paixão ainda. Como alguém que estava por demais cansado daquilo tudo.
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Não há nada de Vila-Matas nas livrarias e sebos da Capital. Incrível! Encontro os dois Javieres em profusão_ o Cercas e o Marías_, mas nada de Vila-Matas. Vou tratar de comprá-lo pelo site. Comprei na Livraria Saraiva o Uma Confraria de Tolos, que tanto o Milton Ribeiro quanto o Paulo vem recomendando bastante, e já estou quase na página 100. Parece-me que não exageraram: é muito bom. Comprei Lance Mortal, os contos policiais de Faulkner, e quando estava na fila para pagar, encontro uma maravilha de estante rotatória que é pura filantropia, com vários títulos excepcionais a preços bem em conta, lançados pela comunhão entre a Saraiva e a Nova Fronteira. Pego o Doutor Fausto de Mann, que já há algum tempo ensaiava comprar pois o que tenho está em frangalhos. Doutor Fausto por 22 reais! Dessas maravilhas da contradição que faz o mercado editorial nacional um dos melhores do mundo.Comprei também a edição de luxo do álbum Quadrophenia, do The Who, que programei para ouvi-lo em sessão ritualística hoje à noite, enquanto estou sozinho em casa.
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Estava para retirar o post intitulado Patagônia, que existe aqui no blog. Um texto meu com reminiscências adolescentes sobre o filósofo Vladimir Safatle. De algumas semanas para cá, este post ocupa o primeiro lugar nas informações estatísticas do blog, como post mais acessado. Alguns dias chega a disparar de maneira pouco confortável. Não é o tipo de atenção que gosto. Muita visibilidade traz também os assim chamados trolls e demais inconveniências da net, e isso aqui não poderia ser levado com comentários monitorados. Hoje rastreei de onde partia tanto interesse, e descobri o facebook da faculdade de Ciências Sociais da USP (claro que eu já suspeitava). E vejo lá que as informações do meu texto geraram um bem humorado debate sobre a linha rock não confessada pelo Safatle. Os alunos descobriram, para a minha surpresa, até gravações jurássicas da banda do Safatle, Oficina de Testes, que eu menciono no post, e outras performances do filósofo quando este era cabeludo e projetava as influências dark de Manchester em seus teclados. Fiquei mais tranquilo. O pessoal ali gosta pra valer do Safatle. Vi ali a indicação de que o mote do aspirador de pó deva ter ocupado alguns instantes dos momentos mais dissipativos das aulas do Safatle. Penso em lhe enviar um e-mail com o pedido descarado de seu novo livro, com dedicatória, em paga por tanto serviço que estou fazendo por ele.
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De novo essa coisa da "polêmica" entre Paulo Coelho e James Joyce. De novo um post do Idelber Avelar em que um comentário meu é censurado. O Idelber resenhou, a pedido da Folha de São Paulo, o novo lançamento de Coelho, cujo título é algo assim Manuscrito encontrado em Carcará, ou Manuscrito encontrado em Alcova. Idelber destrói involuntariamente seus argumentos apologísticos anteriores sobre Coelho, pois sua resenha é magra, miúda, nada diz de concreto além da técnica de registrar algumas referências literárias eruditas para dar autenticidade à coisa, e tem mesmo dois ou três parágrafos apressados para acabar logo o assunto. Eu li atentamente a resenha, estudei-a desenhando infográficos no computador, comparei com outras fontes, e, como resultado, postei esse comentário no blog do Honorável Doutor:
Idelber, quando é que você vai fazer uma resenha sobre o novo sabor do Toddy? Fico em dúvida se o de morango ainda continua tendo aquele gosto de bolachas Fofão, muito artificial. E quais dos sabores de chocolate você gosta mais: o Toddy tipo suíço ou o tipo italiano. Aguardando ansiosamente sua resposta.
É por isso que eu digo: a gente trata o cara com o devido respeito que ele se impõe em seus textos, e a gente é censurado.
Outra coisa sobre o mago (refiro-me ao Coelho): a Folha arrumou uma série de escritores para tornar a compressão twitteriana de Coelho ao Ulisses, inclusive o próprio Carcará. Olha só o que Coelho escreveu, no seu resumo de Ulisses em caracteres do twitter:
16/06: dia interminável, com as conversas de sempre. E de noite – #WTF! – tenho que escutar minha adúltera mulher falando sozinha. @paulocoelho
Pois quem leu Ulisses pode me explicar: em que local das mil páginas Leopold Bloom escuta a mulher falando sozinha? Será que falta a Coelho até a compreensão mais banal, de que Molly Bloom, na parte final da obra, realiza um monólogo interior? Monólogo INTERIOR.
Tempos ridículos esses!
Andei tuitando algo sobre do Coelho, tuítes de escritores na Folha (brincadeirinha segundo Xerxenesky, pqp) e pseudo-resenha do Idelber. Vou transformar num post para o blog.
ResponderExcluirVi lá! :-))
ExcluirEsse Uma Confraria de Tolos tá muito barato. Antes dessa edição, os preços da Estante Virtual estavam absurdos (mais de R$100, sendo que eu achei um de R$3 numa bienal). Diga aí, não é um livro engraçadíssimo?
ResponderExcluirEssa coleção da Saraiva/NF produz verdadeiros livros de bolso; pequenos, baratos, práticos. A coleção está muito boa. Estou doido pelos Hitler, o Flores do Mal, e para que saia Corpo de Baile.
É só eu, ou o "adúltera mulher", nessa ordem, ficou mesmo muito estranho numa frase com uma gíria cibernética "#WTF!"?
Toole é muito engraçado!
ExcluirNa coleção Saraiva/NF tem também os dois volumes do Churchill sobre a segunda guerra, e mais as memórias de Jung, que me interessaram.
A genialidade de Coelho permite esses arroubos. :-)))
o melhor dos esparsismos é q eles vão direto ao sarcasmo, sem enrolação! hauhauaha
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