terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Carnaval



Vejo a enorme diferença entre o site da Amazon brasileira e o site da Amazon em língua inglesa. Na inglesa, para cada livro que eu procuro há centenas de opiniões apaixonadas e críticas de leitores; não qualquer livro, mas Pynchon, Faulkner, Philip Roth, etc. Para Gravity's Rainbow, por exemplo, há 421 opiniões de clientes. Mas vamos a um lançamento mais recente, como o último livro do Ian McEwan, The Children Act: 811 opiniões de leitores. Já a Amazon brasileira é um deserto.

Vejo a mesma coisa em referência ao site PQPBach. Uma postagem como esta, antológica e histórica, com minguados 3 comentários. Sei que há centenas e talvez milhares de admiradores fervorosos do PQP, e talvez comentários da maior parte deles soem redundantes. Mas não contenho uma certa impressão de que em outro país com melhores índices culturais (sim, eu acredito que existam "melhores índices culturais" entre países), a exultação seria bem mais evidente.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Três monstros



Não se pode condenar o tom apologético de Melville em Moby Dick. O evangelismo primitivo desse livro não é mero ornamento inevitável vindo das crenças pessoais do autor, mas sua própria base de sustentação. Dizer "evangelismo" em referência a uma obra composta na mais alta esfera esotérica é incorrer no risco de cair no esteriótipo de estupidez massificada que tal termo com toda razão possui nos dias de hoje. Moby Dick tem a mesma visceralidade sensual que os grandes pastores de almas tinham no tempo em que foi escrito; tem essa mesma ingenuidade poderosa que expressa uma lucidez ilimitada que Borges disse ser o mote dos fundadores de religiões, tais como Whitman e Emerson, Blake e Swedenborg se aproximam de serem fundadores de religiões. Há tanta exultação adâmica em Moby Dick que é impossível ao bom leitor que este ainda fique atolado com os pés na realidade cínica e ultra-material corrente; é impossível que ele não seja abduzido pelo supremo convencimento dos símbolos e da loucura do livro. D. H. Laurence, no ensaio que acompanha minha edição de MD, condena o Melville humano com seus pecadilhos de afetação e sua seriedade pedante que hora e outra submerge o artista pleno, e diz que quando essa parte humana desaparece e ressurge com toda força o artista magnífico ninguém é páreo para Melville. O artista magnífico já nos arrebata na primeira página, seguindo adiante nas tantas anedotas e retratos de homens que vivem em uma dimensão peripatética contrária a toda sociologia; o artista Melville se mostra de forma solitariamente precoce sua localização em um tempo muito à frente dos outros grandes escritores do período, em sua decisão chocante de tratar do tema fundamental utilizando um quase infantil enfoque em um monstro marinho. Pode-se mesmo ouvir as consciências críticas que menosprezaram MD durante quase meio século se justificando pela desfaçatez de Melville em tentar arrombar o tema fundamental não pelas portas usuais e mais prementes, não pelas revoluções ou guerras, ou pelos vícios urbanos, ou pelos assassinatos, pelos adultérios e a decadência de grandes famílias, mas, inusitadamente, através da figura colossal da baleia branca e de seu universo náutico específico. Melville antecipa os célebres escritores autistas ao colocar na boca de seu narrador o desejo de que fosse aceito no navio baleeiro apenas para ficar em seu canto pensando em nada, divagando sobre os significados filosóficos da vida, imolado da escala produtiva e tolerado com saudável indiferença. Melville viu tão mais peculiarmente longe que seus compatriotas das terras espirituais da escrita que foi o fundador de uma forma de dissipação preguiçosa que teria sua importância política impactante na imagem da nulidade humana do século XX na opção pela não-coaptação. Em sua época, ficou para trás do caos urgente e das incendiárias insurgências na literatura das transformações políticas que se viam em Stendhal e Dostoiévski, apenas para sair de sua hibernação anos depois para ser um tipo de criador moderno que sobrepôs-se a todos os outros com seu ineditismo em criar a baleia e, de forma mais revolucionária, esse personagem de profundidade inaudita que é o escriturário Bartleby. D. H. Laurence está enganado, pois quem criou uma figura como Bartleby jamais poderia falar do púlpito a não ser no idioma elevado de Emerson e Whitman.

Por isso Moby Dick tem um evangelismo transbordante de felicidade, a felicidade do louco de deus que abandona as convenções de uma sociedade em franca atrofia para confrontar o terror divino. Surpreendi-me por nunca ter lido esse termo antes, terror divino, que contudo parece tão óbvio. A baleia é a forma como esse terror divino, que por centenas de páginas vinha sendo abordado pela tangência, se corporifica na nudez da linguagem, e, para exorcizar o perigo do cinismo, daí a preparação toda de Melville em utilizar de um tom talmúdico grandiloquente. Sua grandiloquência não tem cinismo, mas tampouco tem a moral da visão evangélica de Tolstói. Laurence aceita a generosidade de que Moby Dick atinja todos os símbolos profundos de representação; aceita que a baleia seja Jesus, sem contudo abalizar com uma mera observação os riscos simplistas de apanhar a coisa somente por aí. Pois a presciência do criador de Bartleby nos dá também na imagem da baleia os símbolos inevitáveis do frenesi dos que pertenciam à grande nação americana quando ela arrebanhava em êxtase as características mais melífluas do império futuro, oferecendo a inspiração de perceber a queda. A baleia, vinda da mesma mente capaz de escrever sobre Bartleby (esse superior personagem que paira diretamente sobre Kafka, Musil, Joyce, Faulkner e Walser), traz a insinuação aráutica do monstro que está no final da estrada de todos os sonhos, da deformidade imperceptível mas frutificante que serve de sustento para todas as telas da liberdade. Talvez por isso o monstro seja durante todo o romance uma prefiguração, uma música indistinta escutada sempre ao longe, nunca palpável, nunca manifesta em suas linhas reais terrenas, nunca abarcável. Por isso o tom místico e sonhador, que vem por detrás de todas as tendências doutrinárias da voz de pastor de Ishmael, seja o personagem verdadeiro de Moby Dick. Por isso a tolice da leitura lânguida dos que acham que os diversos capítulos preparatórios sejam chatos e vagantes, infelizes surdos à retumbante poesia de Melville, à sua canção angustiada de tanta necessidade pura de enlevação. O monstro de Melville é o terror divino em estado puro, devastador em sua infinita indiferença que perdura por sobre todas as pequenas intenções humanas, mesmo as transvestidas com os contornos trágicos seculares da vingança, e sendo essa indiferença a raiz do motivo de todo o romance ser contaminado com essa alegria de um suicídio sagrado, de uma emancipação através de uma forma do Nada jamais passível de definição.

O monstro de Melville é tanto Cristo, quanto a América, quanto a Revolução, quanto a alma humana em seu esplendor de busca altruística mais nobre. É espantoso que não haja nenhum texto de Borges sobre esse romance, Borges que era tão sensível a esse tipo de percepção alienígena senciente. Moby Dick ainda é e continuará sendo por muito tempo o grande romance subestimado, aceito no cânone por sua estatura inequívoca mas nunca realmente percebido sem que seja dependente de seus penduricalhos geográficos de ser o grande romance americano. Como se esse que é o maior dos romances esotéricos pudesse ser mutilado com interpretações ufanistas.

Ele deve ser lido em escala contrapontística causal aos outros dois grandes monstros que derivaram do Cristo-baleia e da América edênica-baleia de Melville: o Old-Ben, o urso exilado e cansado de glória assassina de Faulkner, e Calígula, a águia caçadora de iguanas de Augie March, de Bellow. Old-Ben, o único ser verdadeiramente incorruptível fora do reino dos homens escassamente povoado de homens incorruptíveis, já escoou há tempos seu terror divinatório, sua fúria deística ilimitada, sua indiferença selvagemente elegante por tudo que não fosse força e assassinato; tornou-se, hereticamente, um animal velho carregado de medo, cujas últimas ações é a dança desesperada para incutir terror aos filhos e netos de seus antigos inimigos abatidos por ele quando ele era jovem e cheio de uma saúde monástica, a dança para ser deixado em paz. Old-Ben, contudo, ainda é temido por seu passado de glória, por sua exuberância violenta, mesmo todos sabendo que não passa de um pobre ancião querendo arrego; e por isso, seus caçadores incansáveis, herdeiros dos antigos caçadores fracassados cuja moral fora abatida pelo urso, arranjam todos os estratagemas possíveis para destruir o que resta do antigo Monstro, de seu potencial religioso residual. E os novos inimigos de Old-Ben apresentam todos os evidentes sinais de que os novos tempos em que o monstro purga o final inglório de seus dias é destituído por completo de qualquer distinção da antiga nobreza: o cão gigante é uma simples fera bestial, sem inteligência, sem dignidade, sem porte, tanto que sobrevive entre a corrente de seu ódio irracional trancado em uma cela escura, sem vistas para o exterior. Todo o mundo externo a Old-Ben sucumbe à evanescência absoluta de sacralidade: acaba-se o terror divino e acaba-se também, com um suspiro elliotiano, tudo o que antes revestia a simplicidade objetiva de milagre e religiosidade. A última vingança, então, ainda é de Old-Ben, a derradeira vitória ainda parte dele, pois de sua juventude vinha o caráter dinástico das grandes famílias americanas que então levavam o selo de poderem andar pelos campos do Senhor como beneficiários legítimos da criação, americanos genuínos com céu e terra ilimitados, sem apreensões de posse e sem serem vítimas da inclemência das labutas para a povoação do Éden lhes outorgado. A novela de Faulkner é impregnada de notas de compra de armazéns e títulos imobiliários que serviram a povoar a aldeia americana, numa arqueologia que só é pueril na ardilosidade genial de Faulkner que consegue fazer dessa páginas um epitáfio da força redencionista abortada pelo sucumbimento do homem à tentação de nomear as coisas, de dar seu nome à terra, de promover cercas e decretar-se proprietário. Old-Ben é o empobrecimento da baleia quando os heróis possíveis para um novo mundo se restringem a não irem para o mar, quando os heróis se instalam na terra segura e deixam para lá os grandes poderes da dissipação e do ócio. Old-Ben é o Cristo institucionalizado e sublevado de sua aspereza de absoluta liberdade, corrompido pelas igrejas formalizadas pela sustentação do lucro, da política cartorial que cria castas de escravos a serviço da propriedade, e da economia eunucoide que transforma filósofos caçadores em obesos fuxiqueiros sentados nas escadas dos armazéns ao final da tarde. Old-Ben é a nova américa sem nada de novo, em letras minúsculas, o cumprimento do previsível.

Bellow fecha a tríade. Se Old-Ben ainda era capaz de oferecer certa distinção com sua decadência, certa lembrança dos antigos sonhos de dignidade, a águia bellowiana esvazia Moby Dick com a mera transformação na paródia. Não há mais Cristo aqui. Nem monstro a águia consegue ser, empoleirada na caixa de descarga de um pequeno banheiro de uma vila perdida mexicana. Quando ela é levada a testar seu terror divino, a magnificência e larga nobreza de suas asas, na caça da iguana, ela simplesmente despenca no chão sobre o rastro do réptil em fuga vitoriosa, tal qual um comediante em um filme pastelão. E fica piedosamente murcha em seu canto, ciente de que não tem nada.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Um insulto a Leonardo Padura



Que a wikipédia é um propagador de mentiras e sérios erros de informação é o tipo de conhecimento que se tornou um clichê, e como todo clichê se beneficia do estado anestésico em que não se analisa sua verdade prática. Ontem, pesquisando sobre as possibilidades de adquirir os excertos não traduzidos no Brasil de O homem sem qualidades, em inglês e espanhol, me deparei com a página da wikipédia referente a esse romance do Musil. Por mais que não deveria ficar surpreso, confesso que vi pela primeira vez o que existe no fundo da tautologia aceita inercialmente mas não analisada sobre a estupidez desse site. Todas as informações sobre o livro estão erradas, fruto de pessoas que não o leram ou de uma terrível tradução. Cito apenas dois exemplos colossais:

- "A falta de qualquer profundidade e a flexibilidade como guia à vida (de Ulrich, o personagem principal) são suas principais características." Diz a wikipédia. Digo eu: pois se Ulrich é um dos mais profundos e inteligentes personagens da literatura do século XX! E sua "flexibilidade" é justo o oposto, já que sua convicção inabalável em não se enquadrar aos esquemas sociais, políticos e intelectuais do mundo, é um sério posicionamento diante a vida.

- "e a esposa neurótica de seu amigo Walter, Clarisse, cuja recusa em ter uma existência comum leva Walter à insanidade. " Diz a wikipédia. Digo eu: um dos aspectos mais difundidos desse romance é o progressivo enlouquecimento de Clarisse; um amigo me mostrou textos de uma socióloga brasileira_ que não recordo o nome_ que fala sobre Clarisse, e há um ensaio em Alfabetos em que Magris cita a loucura de Clarisse. Quem fica louco no livro é Clarisse, não Walter.

Me assombra quando vejo escritores como Michel Houellebecq agradecendo a wikipédia por ser uma das fontes de pesquisa de seu livro O mapa e o território (e não é ironia da parte dele), e quando vejo trabalhos acadêmicos citando a wikipédia em suas bibliografias. Nem falo dos diversos sites, em diversos graus de sofisticação cultural, que usam links em seus textos que remetem a páginas dessa grande enciclopédia virtual dos tolos, esse grande exercício de epicurismo da ralé.

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Não vi ninguém falando sobre isso, e tentei passar batido. Mas não dá, lá vai. Fiquei muito incomodado com a tolice que a Boitempo fez em sua edição de O homem que amava os cachorros. Não dá para não sentir a obtusa hipocrisia da Boitempo, sua gritante estupidez e brutal falta de respeito pelo enorme sofrimento do livro, durante os tantos dias que se leva para ler um livro de quase 600 páginas. Cada vez que apoiava o volume para retornar à leitura, o desassossego voltava. O livro físico é uma apologia a Trótski e a Lenin, em oposição grotesca ao que o grande livro de Leonardo Padura representa em mostrar quantas vidas, quantas histórias pessoais, foram extirpadas graças a Trótski e a Lenin. O livro que empacota a terrível história contada é uma franca traição a ela. Não sei os tramites que levaram à publicação de O homem que amava os cachorros pela Boitempo, já que a editora que publicou outros livros de Padura é a Companhia das Letras. Foi erro de visão da Companhia em dispensar de seu catálogo o melhor livro do autor e um best-seller mundial? Foi uma jogada inconscientemente inteligente da Boitempo ao ver que o tema do romance se encaixava em sua visão esquerdista anacrônica de fazer certa apologia aos heróis de 1917? Digo "inconscientemente inteligente" porque a estratégia de edição usada é, como já disse, uma contradição total ao conteúdo do livro. Padura fala do sofrimento do narrador do romance, purgando uma vida miserável em Cuba, passando por privações perenes de alimentos, medicamentos e a mínima dignidade humana. O primeiro capítulo começa com o enterro da mulher do narrador, morta de um câncer ósseo originário da doença da falta de nutrientes básicos na dieta de toda uma vida passada na Cuba de Fidel, a mesma doença reportada nos prisioneiros de Auschwitz (diz o narrador). Padura não adoça a pílula ao falar dos outros personagens do livro: Tróstki é apontado como um assassino, responsável pelo primeiro massacre, o ponto zero dos crimes soviéticos, ao dizimar um motim de mineiros em Kronstadt ordenando matar mais de mil homens, mulheres e crianças; e Ramón Mercader, o assassino de Trótski, é mostrado com um homem esvaziado pelo partido e transformado em um tolo útil, um homem que no final da vida tem uma amarga consciência de ter vivido em função de nada. Padura, obviamente, enxerga os poderes intelectuais de Trótski e o fascínio que exercia, mas põe o ponto final em qualquer especulação de empatia afora do meramente funcional com a parte final da narrativa, em que um segundo narrador olha o manuscrito e se pergunta qual o propósito de gastar tanto tempo e paciência com um franco e desapiedado assassino. Quem lê O homem que amava os cachorros tem que ter mais que um simples jogo de cintura para defender Cuba, para defender Trótski, para defender Lenin, para defender qualquer sistema de socialismo aplicado até hoje. Padura é a voz de um inimigo claro de tudo isso. Mas, frente a um conteúdo e um ódio tão comburente, o que faz a Boitempo? Panfleteia o volume com fotos de Tróstki jovem vestido com seu uniforme de comandante do Exército Vermelho, de Trótski ternamente com sua criação de coelhos (que no livro ele fala que são animais estúpidos), com Trótski em sua vida doméstica sentado junto à sua esposa; coloca na capa um Trótski simpático, com uma enxada nos ombros, à busca de seus cactos nas planícies do México. Chama um doutor de uma das faculdades brasileiras para, adivinhem o quê?, escrever um panegírico sobre Trótski como estudo introdutório. E, cúmulo dos cúmulos, inventa de colocar em uma folha final uma foto de Lenin abraçado a um gatinho, com os seguintes dizeres embaixo: "Publicado em dezembro de 2013, às vésperas dos 90 anos da morte do líder bolchevique V. I. Lenin (um homem que amava os gatos)." A edição da Boitempo é um desrespeito aos leitores inteligentes e um insulto a Leonardo Padura, que cada vez mais está certo em sua declaração de que gostaria, simplesmente, de ser o Paul Auster de Cuba.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A busca pela felicidade




As pessoas que conservam algum motivo para acreditar em demônios podem se orgulhar pelas evidências espalhadas no mundo atual mostrarem que estão certas. Em nenhuma outra época da história a situação pareceu tão ardilosamente propícia para extirpar a espécie humana como a época em que vivemos. Parece mesmo que seres espirituais superiores, Lúciferes de inteligência cósmica, conseguiram posicionar as peças no tabuleiro para um inequívoco xeque-mate para abater o elemento humano. Vivemos em um miasma nunca antes tão efetivamente bem sucedido para a vitória da ilusão, de modos que ficamos enrodados num espelho no qual olhamos nossa imagem com todos os significados invertidos. Nunca tivemos tanto acesso á informação, mas padecemos da burrice inexorável causada por novos sistemas de superstições. Nunca tivemos tanto conforto doméstico, o que gerou um desconforto sem escala com nosso próprio corpo. Nunca tivemos acesso à intimidade de tantas outras pessoas através de um ambiente histrionicamente virtual, o que nos tornou indivíduos cheios de amigos em uma comunidade global distinguida pela solidão da ausência de contato. Nunca antes ficamos tão passíveis de prescindirmos de crenças e filosofias, sanitizados de preocupações maiores pelas resoluções prazerosas oferecidas pela indústria da bajulação, e isso fez com que retornássemos a uma espécie de infância espiritual. Sempre que eu vejo a vida ostensiva das redes sociais cibernéticas em que pretendemos mostrar como somos mais felizes que nossos vizinhos, não consigo evitar imaginar o olhar piedoso que teria alguém se pudesse ver essa ridicularia três décadas atrás. Regredimos e nos embrutecemos cada dia mais, de forma que é inconcebível para o pouco de racionalidade que nos resta acreditarmos piamente que algum ente celestial possa se interessar por seres tão em todas categorias insignificantes como nós. A convicção sedimentada em uma idade primordial da história de que o propósito de nossa existência é a busca pela felicidade cumpre seus passos finais do suicídio. Cultivamos as coisas erradas desde que surgiu em nós o paradoxo de uma inteligência sugestivamente suficiente para sermos capaz de fazermos as coisas certas. 

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Hoje, quando acessei os jornais de praxe antes que começasse meu dia, vi uma matéria em que cientistas preveem que a humanidade estará extinta em 2040. Na seção policial, que já nem tem uma delimitação precisa diante a unanimidade da violência, um estudante de odontologia em Minas Gerais saldou sua dívida de 300 reais com o pedreiro que construiu sua casa, premeditando ambos o roubo e o assassinato de um taxista. Como o taxista resolvera levar sua filhinha de 5 anos para atender o chamado telefônico, os assassinos executaram também a criança com um tiro na cabeça. 300 reais. É uma notícia tão mortificante que a aparência que dá é que eles inventaram o assassinato. O que corrobora para o sucesso de nossa extinção é essa lei demoníaca de que a maldade é sempre burra. O mal é completamente desprovido de inteligência. Pode parecer ter uma inteligência que visa resultados de pequeno prazo, mas na verdade é vazio e atrasado. Toda a concepção de uma maldade redencionista e cerebral é de um desconcertante romantismo: essa maldade de adstringência montanhesa de Nietzsche, essa maldade requintada do lucro a todo custo da sagrada acumulação de capital. Se os assassinos tivessem cometido qualquer crime bem menor que este, teriam obtido um ganho financeiro muito maior que 300 reais. Se tivessem praticado, por um dia, crime contra a saúde pública, vendido picolé feito com água não potável; falsificado dinheiro. Ou, se tivessem apenas roubado e liberado o taxista e a filha, em uma região urbana gigantesca como a que foi praticado o ato em Minas, muito provavelmente as chances de terem saído impunes seriam bem mais consideráveis que a de um crime de proporções de comoção pública tão escandalizante como a execução de uma criança. Eu fecho o computador e sigo para o trabalho com o pensamento de que as complexas convoluções a que fomos levados em busca da felicidade criou as condições para uma psicopatia epidêmica. O limite para que eu avalie em silêncio a percentagem de pessoas que eu vejo pelo caminho de serem psicopatas é só controlado pelo abominável da proposição. Os cientistas também dizem que há uma relação direta entre o número de fotos selfie que um indivíduo faz e a tendência desse indivíduo de ser um psicopata.

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Eu sempre tive um ódio contumaz por carros. Ainda assim, certa vez lá pelo ano 2000 comprei um carro. O emprego que eu tinha proporcionou que eu fizesse uma economia compulsória por nove meses, e como a necessidade de um carro era incontornável para a realização de minhas atividades, comprei um. Fui à casa da minha mãe e ela ficou profundamente ressentida por eu não ter levado ela a conhecer o pequeno veículo estacionado na garagem. Um momento tão importante em sua vida, e você nem me leva para compartilhá-lo, ela disse. Fique absolutamente surpreso com aquilo, e então descemos pelo elevador e eu lhe mostrei o carro. Não sabia o que falar, foi algo muito constrangedor. O que eu deveria fazer?, uma imitação ridícula de vendedor de concessionária, abrindo os braços enquanto falava "bancos inclináveis, pintura porcelanizada, e fantásticos pneus com freios ABS"? Deveríamos chorar e agradecermos a Deus, ambos, minha mãe e eu ajoelhados diante aquele avatar alcançado de um rito de passagem sagrado? Só disse: aí está, mãe. Mesmo assim ela demorou superar o trauma e muitos integrantes da família me telefonaram só para darem a indireta de que mais uma vez repudiavam minha eterna frieza de alma.

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Sempre levei a convicção íntima e secreta de que o amor abusivo por carros revela uma psicopatia. Certa vez, presenciei o desabafo de um conhecido, procurador em Brasília, com seu cunhado. O procurador tinha pago 110 mil reais por um carro zero quilômetros magnífico há três anos, mas estava angustiado porque ele estava velho demais (três anos de uso!), e porque não cabia na garagem da casa de sua mãe, e ele visitava a mãe todo final de semana. No final do desabafo, como todo mundo, ele esfrega a testa e diz: "Meu Deus mas que calor sufocante!" Não há lugar em minha cidade que mais tenha carros novos e super modernos que diante o maior colégio estadual daqui. Os maiores consumidores de carros, pelo menos aqui, são os professores estaduais. Eles trocam de carros em média a cada 5 anos, se muito, dando seus carros usados como entrada para financiamentos para a compra de novos. Imagino que vivam em um refinanciamento infinito, e tal coisa seja responsável pelos altíssimos preços dos financiamentos e seguros, pois as cascavéis das financiadoras com certeza computam que um dia o endividamento sucessivo vai se extinguir com a lógica morte do devedor, e isso tem que ser repassado para os custos gerais da comunidade de consumidores patológicos. Recorrentemente esses carros se transformam em requintados caixões desfigurados, no número de acidentes fatais que só vem aumentando, como os dois que aconteceram semana passada com moradores da minha cidade. E fica o choque de ver as caras sorridentes dos mortos em seus facebooks, tiradas mesmo um dia antes do traumatismo craniano e da incineração no meio da lataria fumegante. Havia uma dúvida se a vítima de um capotamento tinha mesmo um nome cujas iniciais eram M.B., assim que a morte havia sido reportada e ninguém sabia ao certo a identidade, e eu pesquisei no facebook de M.B. e identifiquei o Cross Fox preto último modelo que disseram ser a marca do retorcido caixão. Havia um sorriso, uma pose da moda com mãos no joelho, e o reluzente Cross Fox preto imediatamente ao fundo.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Meus 10 melhores romances (lista alternativa)_ um post carregado de superlativos

Já que minhas férias acabam hoje, e não terei tanto tempo livre para me dedicar ao blog_ não de forma programada_, vamos a um desses post preenche lacuna bem engraçadinhos. O início de uma lista alternativa de meus melhores romances. Preparados, fãs?

1. Os irmãos Karamázov, Fiódor Dostoiévski.



Convenhamos, a arte parasitante que sempre se alimentou de Dostoiévski é tétrica. Não me refiro nem ao trabalho que os acadêmicos fazem para causar terror no propenso leitor e desmotivá-lo para toda a vida quanto a um autor que é o maior barato, como Dostô, transformando-o em algo como um filósofo rancoroso complicado e sombrio. Me refiro aos desenhos, seja lá por qual firmada e bastante equívoca tradição, que atulham a grande maioria de edições da obra do moscovita. Nada contra ilustrações, aliás eu adoro quando são boas, mas as que desenham para Dostô segue uma odiosa estética monotemática de que devem ser pesadas, depressivas, sempre de um abstracionismo opressivo, sempre fazendo menção direta a patologias e maldição espiritual. Pegas isoladamente, sem que se saiba ligadas à obra para a qual foram feitas, podem facilmente ser confundidas com ilustrações de algum desses livrinhos pentecostais cheios de danações da alma e predigas de nociva atenção contra o pecado. Podem bem servir para figurarem também nesses panfletinhos que nos entregam nas esquinas falando sobre Madame Tal que lê as mãos e desfaz ou faz encostos. São realmente muito assustadores. E não são criações do mercado editorial brasileiro, sejamos justos. Já conheço muitas edições de Portugal e da Espanha, assim como de outros países de língua espanhola, em que o mesmo horrorama é fielmente seguido: loucura, depressão, esquizofrenia. Nas edições russas que já vi, também, como não deveria deixar de ser, estão lá: o velho trem fantasma que precede e muitas vezes encerra a vontade de ler Dostoiévski. Se me sobrasse tempo, interesse e verba, eu poderia fazer um estudo pormenorizado do porquê dessa aberração. Será uma contra-propaganda inteligente e perversa do regime soviético, para afastar o leitor? Ou será a recorrente obra dos ignorantes, que são armas de perversão mais antigas da Terra, que não leram a obra antes de trabalharem com ela, ou a leram bem mal, ou não a entenderam? Dostoiévski, meus irmãos (àqueles pequeninos que futuramente acharão esse blog de um autor já morto nas arqueologias das pesquisas pela net), nada tem a ver com esse negror e essa tristeza inexorável. Eu também, graças a essas pinturas, por muito tempo, na adolescência, fiquei afastado do Escritor Maníaco que me parecia ser o Dostoiévski, ou por me achar burro demais para um existencialismo tão expressivo, ou porque não queria que meus dias no reino inóspito da juventude ficassem ainda mais difíceis de serem vividos com aquelas dúvidas mefistofélicas que os desenhos demonstravam haver nos livros.

O mesmo ocorre com os livros da Editora 34. Caramba, o livro dos Karamázov tem excesso de ilustrações. Tem partes, no volume 1, em que elas aparecem a cada três páginas. Se somadas, creio dar um volume considerável de páginas que poderia bem ser retirado sem prejuízo algum para a estética da edição, além do benefício de diminuir substancialmente seu preço. Como disse, nada contra, mas por que os desenhos para Dostô não podem ser bonitos e refinados como os clássicos desenhos dos livros do Dickens, por exemplo? Por que algum discípulo do Gustavo Doré nunca fez desenhos para Dostô? Na certa, seria barrado pelos editores, que tem uma convenção a cumprir. 

Encontrei um texto sobre o David Foster Wallace em que ele escreve para um amigo que os escritores atuais deveriam escrever com paixão e humanismo como fez e viveu Dostoièvski. Escreveu sobre isso após ter lido os cinco volumes daquela clássica biografia do Dostô (que ainda não li, mas é um dos planos para esse ano, fazer uma boa economia e adquirir tais livros, que são ofensivamente caros no Brasil). DFW tem se demonstrado um guia lúcido e valioso para novos escritores, que contudo esses tem seguido logo as características de DFW que ele mesmo deplorava e tratava com ironia sublime (como eu rio ao ver escritores enchendo seus livros de notas de rodapé, à maneira de DFW, mas demonstrando uma completa falta de compreensão do humor auto-destruidor de notas de rodapé do Wallace). Pois é isso aí, meu caro Wallace (que vontade que dá conversar com um cara desses, quando vejo seus profundos insights), a literatura estaria bem mais interessante, bem mais propícia a mudar os corações e os espíritos das pessoas, se Dostoiévski fosse mais lido e seguido. Nenhum livro que eu já li tem a octanagem sensorial e sensitiva, a verdade de frente e a paixão e o amor desencorporado, o enraivecido e bombástico abraço, que tem os Karamázov. É o livro mais humano que já li, o mais terno, o mais ferino. Isso não é um exagero. Podem vir os idiotas sofisticados que condenam os superlativos. Os Karamázov é superlativo, me curvo diante ele. O maior dos escritores escreve contra todas as pompas, contra os empolamentos, contra as etiquetas, e se declara humano, se rebaixa à condição pura do homem. Toda a literatura do século XX é filha de Dostoiévski, sobretudo dos Karamázov, o que demonstra o quanto a liberdade de seu autor em escrever um romance libertário foi revolucionária. Mas claro que, assim como os seguidores de DFW tendem a seguir as coisas erradas de seu mestre, os seguidores de Dostô retiraram essa franqueza da alma, essa comunhão, esse desnudamento dos Karamázov, decretando o que faz a grandiosidade do livro como algo brega, emotivo demais, e transformaram a escrita em algo progressivamente desumanizado, coisificada, pura em seu materialismo radical, em sua falta de glândulas, em sua robótica carnal intuída, em sua numerologia serial de fábrica. Tudo o que Dostô combate e abomina em Karamázov. O existencialismo desinibido e sem freios de Karamázov se transforma na sequidão destinada à derrota e à tristeza da literatura do século XX. E é contra isso que DFW ataca, o que não é um bom sinal que isso venha de um grande escritor que desistiu da vida. Sejamos frágeis sem vergonha alguma da fragilidade, como disse um dos mais devotos seguidores de Dostô, Tarkóvski. Voltemos a nos concentrar no homem, no humano, nessa época em que o relativismo ampara a destruição do mundo e a preparação já acionada do aparecimento de uma Coisa inimaginável para suplantar o homem (suplantar o homem no homem). Sejamos emotivos, falemos sobre o que interessa. Assim se sai dos Karamázov, transformado, com a certeza fecunda de que isso não é apenas um romance, transcende, arrebata, mexe. E é, por incrível que pareça, um grande romance que enche de felicidade diante as coisas estabelecidas, os obstáculos severos demais e intransponíveis demais. Nada é mais difícil para o homem do que fazer o óbvio, o que tem que ser feito. O que tem que ser feito para a preservação da identidade humana. Lembremos disso quando os carros pipas chegarem.

2. O homem sem qualidades, Robert Musil.



Um romance escrito por um matemático. Já viram isso, asseclas? Concebem o estranhismo de tal coisa, pequenos gafanhotos? Deixe-me ver... Primo Levi e Canetti foram químicos (o primeiro trabalhou isso em sua obra, o segundo confessava abominar quando passava de frente à antiga faculdade). Na história da literatura, talvez esse seja o único caso de um homem das ciências exatas a escrever uma grande obra, uma das maiores obras da literatura. E todo o livro contêm uma prosa maravilhosa e única em que apresenta a constância da análise espiritual com a abstração totalizadora da matemática. Ulrich, o herói, tece ensaios sobre a indústria cultural, sobre a história, onde o que mais aparece é sua compreensão de que na modernidade (o tempo é o pré-primeira guerra) cada vez é mais difícil às pessoas terem uma alma. As reflexões de Ulrich, apresentadas em terceira pessoa, são tão belas e profundas quanto o melhor de Nietzsche. Essas reflexões, tecidas durante as andanças de Ulrich por Viena, compõem várias das páginas mais bem escritas da literatura dos últimos cem anos. No meu entendimento, esse é o suprassumo, o ápice, dos romances-ensaios, gênero que detêm os melhores trabalhos de escritores como Thomas Mann, Philip Roth, Saul Bellow, Saramago, etc. Os que quiserem fazer um test-drive, leiam o capítulo 72, intitulado "O dissimulado sorriso da ciência, ou primeiro encontro detalhado com o mal" e me digam se não é impossível não ficar cativado pelo poder das palavras de Musil. É difícil resumir o livro, mas aventuraria em dizer que se trata de personagens em diversos graus comprometidos com a necessidade de terem uma alma. Desde Ulrich, um matemático ultra-inteligente que se nega a ter as qualidades requisitadas pela sociedade da vida que se exibe_ um dos personagens mais livres da literatura (o fato de ser matemático não o faz cair na pobreza conceitual de liberdade-clichê do existencialismo e das demais escolas da depressão requintada)_; Arnheim, o rival intelectual de Ulrich, um empresário multi-milionário com sofisticadas ideias sobre a redenção neo-liberalista do homem, para quem todo o progresso anunciado no século é motivo de otimismo sobre os bens a serem colhidos para a humanidade (as más línguas dizem que Musil tomou Mann emprestado para criar este personagem)_ Arnheim também é responsável por capítulos extraordinários de reflexões contrárias às de Ulrich; até personagens díspares mas imortais, como o assassino no corredor da morte Moosbrugger, e as quatro mulheres com quem Ulrich se envolve. São personagens que trazem esse vínculo em comum: a procura pela legitimidade de uma alma, habitando um mundo no qual a destruição de todos os valores e a revelação de algo monstruoso e intolerável está para acontecer, um mundo que também busca desesperadamente por um significado, uma direção. Em todo o romance, os personagens estão empenhados na construção de uma liga mundial sedimentada na cultura germânica, chamada Ação Paralela, organização em que se revela ainda mais o vazio e o engano que são as reais forças a conduzirem a sociedade. Apenas Ulrich, em seu isolamento cerebral, se conserva íntegro, em um novo estoicismo. O homem sem qualidades é um dos maiores e mais deliciosos romances de qualquer tempo.

3. O mestre e Margarida, Mikhail Bulgákov.



Os capangas do capeta vem à Terra para acabar com a massacrante corrupção da União Soviética. Quem saboreou o gosto da vingança impossível de filmes como Busca implacávelO protetor e Lucy, vai adorar esse livro. Todas as outras pessoas também, desde que tenham ao menos 0,00001% de sangue nas veias. Aliás, todos os humanos vão adorar este livro. Quem não gostar, digo, quem não amar fervorosamente este livro e não o tiver entre seus preferidos, entra naquelas cifras de gente perigosa que não gosta de criança e cãezinhos. A diferença é que com estas últimas ainda dá para levar um papo descontraído na fila do banco. Bulgákov é bem melhor que Luc Besson. Outros autores russos são mestres na felicidade (Tolstói), no paisagismo com contestação social (Turguêniev), nas profundezas da alma com romance policial (Dostô), na ternura da visão sobre as grandes limitações humanas (Chékov), Bulgákov é mestre incomparável na arte da vingança. Notem bem: a vingança de Bulgákov é algo tão supremo que pode transformar a política, depor ditadores, acabar com injustiças. Não à toa esse seu romance foi condenado e perseguido por décadas. E o humor.... Deixe eu me sentar (como se eu estivesse capaz de digitar em pé depois de duas doses regradas de canjebrina): ninguém é mais engraçado que Bulgákov, ninguém. Há cenas nesse livro que provocam cãibras na barriga, sem exagero. Os demônios do livro são contrabalanceados com a narrativa dos últimos momentos de Jesus, o que localiza esse romance entre as grandes narrativas ficcionais sobre Cristo. O Cristo de Bulgákov é um personagem doce, simplório e sublime, que desconcerta os poderes instituídos. O Cristo de Bulgákov é todo o povo russo, que se conserva em uma primitiva ingenuidade protegida da perda total do ideal da revolução apodrecido por Stalin. Um belíssimo livro, que tem a mesma grandeza dos romancistas russos do século 19.

Aqui reproduzo um texto meu sobre esse romance:

Uma das minhas mais gratificantes leituras dos últimos tempos foi O mestre e Margarida, de Bulgákov. Relinchei de tanto rir o romance todo. Cheguei a babar em grande parte dele. Há um capítulo em que toda uma repartição pública, dessas repartições públicas stalinistas que conhecemos bem por aqui, é possuída: a visita de um dos asseclas do diabo faz com que os funcionários dela passem a cantar uma ópera (baseada na obra) de Púskhin. Ri tanto nesse capítulo que achei mesmo que a possessão demoníaca extrapolara as páginas e caíra sobre mim. Imaginem as pessoas em um prédio do governo não tendo como se controlar, com os olhos desesperados, todos cantando em alto e bom som toda uma obra operística, até serem internados em um manicômio_ e os ônibus que os conduzem passando por uma plateia de populares que acham que é alguma das marchas marciais acontecendo na avenida? Outra cena espetacular é a transformação de Margarida em bruxa, seu voo pelas paisagens noturnas magníficas da Rússia até um distante rio da Sibéria, onde ela se encontra com outras das instigantes figuras infernais para uma espécie de batismo. De imediato, Bulgákov se tornou meu mestre. Anos e anos para que ele chegasse até mim dessa forma sem formalidades, como se não fosse um dos acontecimentos da minha vida, mas uma trivialidade a mais. 

O mestre e Margarida tem também uma narrativa sobre os últimos momentos de Cristo. Em certa época de minha juventude, eu lia tudo na alta literatura sobre Cristo: Barrabás, A última tentação, O evangelho segundo Jesus Cristo. Esses capítulos estão entre as melhores páginas apócrifas sobre o Cristo_ empatam com o magnífico e esotérico livro do Kazantzakis. Por que Bulgákov conta os momentos finais de Jesus em seu livro? Por que, em uma crítica fantástica que faz contra a corrupção do estado soviético, ele intercala esses momentos estranhos, deslocados? Seu cristo tem só um apóstolo, o cobrador de impostos Matheus. Todos são mencionados com seus nomes originais, o que causa uma maior ambientação humana no calor arrogante da Judéia, entre homens brutos cujas barbas parece que sentimos nas mãos: Jesus é Yeshua Ha-Notzri, Barrabás é Bar-Raban, Judas é Judas de Kerioth. Jesus está lá, trocando em miúdos, da mesma forma que Jesus está em Stalker, de Tarkóvski: um homem comum, bastante lelé da cuca, bastante medíocre em sua simploriedade constrangedora, inculto, mas que deixa Pôncio Pilatos fora dos eixos por suas enormes e inusuais palavras inéditas sobre o perdão, sobre a bondade intrínseca do homem. Jesus de Bulgákov é um homem que ninguém suporia, nem nos sonhos mais disparatados, ser algo mais que um louco de bom coração, vítima de sua própria desprovidão de astúcia. Mais uma vez, o Jesus de Bulgákov se encontra com o Jesus de Tarkóvski: em sua aposta de que a fragilidade é a verdadeira força.

Mas o mais fascinante aqui é a comitiva de seres infernais do romance. Bulgákov é um gênio visual: seu romance se assiste, não se lê (estudei métodos de leitura dinâmica que defendem a imaginação da leitura como forma de rapidez sem perder concentração, e nenhum escritor se emprega melhor a essa técnica que esse russo). As cenas são tão ricamente descritas, seus personagens são tão vivos e naturais, que lembro das cenas como se as tivesse visto: na audiência de Yeshua diante de Pilatos, quando Yeshua fala com Pilatos informalmente, como se fossem íntimos, o escrivão que anotava as palavras pára a pena e olha de queixo caído para seu chefe, e isso é oferecido com tanta maestria que dificilmente o cinema seria mais elaborado que a mente do leitor. E os diálogos!: meus irmãos, tenho sido presenteado com o que há de melhor em diálogos em minhas últimas leituras, e Bulgakóv é uma festa à inteligência, é uma overdose. Que prazer e aprendizado saber, mais uma vez, que a literatura pode ser tão libertadora e ensinar tanto.

Os demônios de Bulgákov_ demônios sem nenhuma misericórdia, maus até a medula, e fascinantemente sarcásticos e elegantes_, são como agentes da transformação, como se Deus, após ter mandado os arcanjos para Sodoma e Gomorra, cidades cujo nível de pecado quase perverteu essas criaturas imaculadas (lembro de minha avó pentecostal me lendo a famosa passagem em que os habitantes avaliam o potencial libidinosamente consumível da carne desses seres etéreos), ficasse mais receoso e enviasse dessa vez capangas incorruptíveis, fascinados pelo cumprimento dos terríveis expurgos. Ver as maldades que Azazello, o ser mais feio do universo, Behemoth, o famoso gato preto que anda sobre duas patas, Korôviev, e Hella, uma mulher nua com uma extensa cicatriz no pescoço, fazem sob o comando de Woland, o próprio demônio que se apresenta como doutor em magia negra, é uma maravilha. Nietzsche, que adorava Petrônio, teria adorado Bulgákov. Este romance é um relicário, desses que os fiéis apertam contra o peito à espera de justiça divina, e Bulgákov dá uma ostensiva justiça luciferina em que a hipocrisia da sociedade e a corrupção generalizada que parte do estado soviético se cumpre com decapitações de intelectuais do partido, oligofrenia de poetas ponderados, a loucura de agentes da burocracia. Seria uma vingança meramente placebo, se Bulgákov não fosse tão superior e magistral, tanto que seu romance foi censurado, abreviado, condenado, rasgado, desprezado. Em sociedades tão encalacradas na corrupção e na idiotice como a nossa, Bulgákov ensina, otimista, que a única salvação é o humor libertário, o humor corrosivo, iconoclasta, satânico, insubmisso, subversivo, violento e visceral. Se eu ainda tivesse capacidade de rezar, rezaria ao Santo Bulgákov que intercedesse por nós, para que o Demônio expurgasse esse nosso triste e intranscedente país.

4. A quarentena, Jean-Marie Gustave Le Clézio.





A situação de falta de água em São Paulo é uma dessas realidades difíceis de acreditar. Li em uma matéria que faltam menos que 50 dias para acabar de vez a água em São Paulo_ não que vai faltar, mas vai acabar toda a reserva de água. Os lenitivos para amenizar esse quadro de horror traz uma sensação de que o horror ficará mais acentuado ainda: serão enviados carros-pipas cheio de água colhida nas regiões interioranas com reservas ainda não esgotadas para a grande cidade, e esses caminhões distribuirão baldes de água em quantidades regradas para os moradores. Para diminuir o impacto da cena, essa frota de caminhões adentrará pela cidade de madrugada_ o que me lembra a fantasmagoria de Ensaio sobre a lucidez.  A autora do artigo aventa todas as consequências que pode haver com esse estratagema: violência, desespero, roubo de caminhões, segregação. Ela retira um véu por sobre um detalhe incômodo: as pessoas se sentirão ofendidas em suas dignidades de não poderem dar descargas nas privadas, e isso aumentará ainda mais a situação de guerra. Creches, indústrias, empresas, escritórios, terão que dispensar seus funcionários por causa da falta de água, e isso descambará para uma crise econômica em avalanche e sem precedentes na história do país. Um convidado em um programa da Globo News desse final de semana tocou em mais uma das tantas feridas inesperadas que apareceu no corpo combalido da nação nesse começo dramático de ano: o Brasil se tornará, em questão dos próximos meses imediatos, a nova Grécia. Essa realidade se repete, em menor expoente mas não com menor gravidade, em Rio e Minas, e tudo indica que logo a calamidade estará instalada em todo o restante do país. A situação poderia em muito ser acautelada se os governantes de todas as instâncias tivessem alertado a população e tomado as precauções de racionamento certas, mas o ano passado era ano político e os políticos dessa nação inglória são o que são. Nas redes sociais e nas caixas de comentários dos informativos virtuais, é assustador ver os xingamentos entre pessoas que se dizem de São Paulo, e as que se dizem da região nordeste do país.

Após ler isso, minha filha deitou em meu colo e eu pensei o que eu faria para protegê-la, até onde eu iria. Imaginei-me abatido com um tiro nas costas junto a outras pessoas que invadiram residências de lotes fechados de alto luxo para roubar água. Imaginei o quanto foi terrível para os pais de Auschwitz ficarem impotentes diante o sofrimento de seus filhos. Imaginei o quanto essas reviravoltas da história é que são os nós por onde saltam as mudanças.

Esse livro trata de uma história de miséria e segregação e violência similar. Le Clézio imagina os meses em que seu avô ficou exilado em uma ilha, quando jovem, junto a um grupo de pessoas, em quarentena, porque sua família caiu em desgraça com o dirigente das Ilhas Maurício, para a qual não podia retornar. Nessa ilha fica a comunidade de doentes e os escravos. Nessa ilha, sediado pela fome, o avô conhece uma garota índia pela qual se apaixona. Le Clézio prova através da literatura a força da perseverança para não ver o fim quando a desgraça atinge um elevado grau de opressão. Tudo é mágico e intensamente poético nesse livro. E uma lição de vida. E um potente sopro de esperança, como aliás são todos os livros de Le Clézio. O tema desse grande escritor sempre foi a esperança efetivada dos pacientes, dos simples, dos que não se desesperaram, para os quais todas as janelas e portas se fecharam e toda resposta foi um impiedoso não. Mas que se deparam sempre com um novo e imprevisível caminho. Inesquecível!

5. Coração tão branco, Javier Marías



Coração tão branco é um progressivo suspense em que seu autor faz o que bem quer com o leitor. Começa com um capítulo onde é narrado com um assombroso coloquialismo um suicídio em família, segue capítulos que tem a melíflua dissimulação de nada terem a ver com o tema, e se encerra com o perfeito amarrar de todas as pontas soltas em uma tensão que lembra a coda de uma sinfonia clássica. Entremeando a narrativa, o livro está recheado de reflexões desse autor cujo sofisticado talento para a digressão se tornou uma assinatura. Minha porta de apresentação para Marías, esse romance me pareceu há cinco anos quando o li, o exemplo de uma obra genialmente elaborada, e me surpreendeu ainda mais saber que vendeu milhões de exemplares pelo mundo. Os títulos da maioria dos livros de Marías são belos e sonoros enigmas retirados de Shakespeare, e o deste remete a um momento de Macbeth de insuportável remorso. Tem a leveza de retratar enganos singelos de gestos de desconhecidos vistos pela janela, de crimes intuídos em rumores apreendidos pela parede que divide vizinhanças, e tem o peso quase macabro de descobrir que dessas supostas abstrações pode vir um horror por demais concreto.

6. Ruído branco, Don Delillo



A morte é um tabu nunca mencionado na sociedade mais hedonista do planeta, e esse romance sarcástico é um estudo cruel sobre as formas mais eficientes de um americano padrão descobrir que ele irá morrer. Tem a velocidade de incontroláveis acidentes fatais e um adstringente riso do estranho alívio que é se saber a um passo da morte. Os personagens mantêm a compulsiva ocupação de se distraírem da realidade da morte, com seus trabalhos regimentais, suas famílias justificadoras de um propósito de servidão injustificável, suas televisões e seus teatros frenéticos de consumo, até que um acidente em uma indústria química os confrontam com a perda total do eufemismo. Nessa epifania de insights de humor sombrio que o romance se torna, com alguns dos diálogos mais inventivos da literatura do último meio século, surge a possibilidade de se obter no mercado negro o milagre de não pensar mais na morte, através de uma pílula de um cientista maluco. Delillo consegue a proeza de tornar uma história que aparenta ser corriqueira (com um primeiro parágrafo propositalmente desmotivador com sua sufocante descrição de manobras de caminhões industriais), em uma mirabolante fábula urbana sobre a procura pelo Graal. O autor desvela a hipocrisia narcotizada de uma sociedade que simula se julgar imortal, dando a seus leitores a única evidência de permanência através da supressão lenitiva do medo da extinção, com freiras que cumprem sua função social de fingirem crer em um deus, de uma ciência cuja única conquista é aceitar da mesma forma o segredo de que não existe qualquer tipo de transcendência. E de homens e mulheres comuns cujo destino milenarmente aceito é a de animais intimamente cansados da prepotência de acreditarem deter uma fagulha de luz inorgânica. E como todas as grandes conquistas, Ruído branco, apesar_ ou devido a_ de sua acidez, de sua inteligência impiedosa, passa a dedução de que essa fagulha possa estar na obra.

7. Visível escuridão, William Golding



O leitor de Faulkner vai reconhecer neste livro uma versão inglesa mais radical de Luz em agosto. Há aqui todos os elementos desse grande romance de Faulkner: o exílio imposto a uma criança deformada (espiritual em um caso, e espiritual e fisicamente em outro); um zelador de colégio dotado de uma maldade genuína; em servo de deus que atinge um nível de reclusão auto-santificada que vai além da psicopatia; uma mulher que cumpre a contrapartida de ser a insígnia da liberdade em um mundo caótico. Esse é um dos poucos romances que conheço para o qual se pode usar o conceito de ser verdadeiramente assustador.

8. David Copperfield, Charles Dickens



Wislawa Szymborska diz em um poema que prefere Dickens a Dostoiévski. Li este livro a primeira vez quando tinha 17 anos, e fiquei deslumbrado. Desde então meu amor pela Londres de Dickens se tornou um dos constituintes de minha personalidade. A segunda leitura, feita nos últimos dois meses, foi ainda melhor. Merece um post, no momento certo.

9. Fome, Knut Hamsun




É uma pena que este romance esteja há décadas fora das prateleiras das livrarias nacionais. Hamsun aqui é todo eletricidade; esse livro exuma uma felicidade e uma juventude única, mesmo que seu tema seja os anos de fome e solidão terríveis que o jovem autor passou na Noruega, antes de se emigrar para os Estados Unidos. Tem a fé inabalável do primeiro Dostoiévski, e a pureza de se enxergar como um ser agarrado em suas convicções de incorruptibilidade em um mundo pérfido. É magistralmente bem escrito em sua antecipação da literatura beat, e desses romances que, lidos na febre da juventude, se tornam icônicos para toda a vida. Fui imensamente feliz quando o li em uma biblioteca, pois há nele a mesma paixão irrefreável pela literatura que eu sentia, a mesma vontade de abnegação em busca de aventuras de descobertas, a mesma percepção de que o mundo era maravilhoso demais para que eu não saísse em completa desobediência às convenções sem rumo certo para pertencer verdadeiramente a ele. O alter ego de Hamsun aqui é um vagabundo, despejado de pardieiros e com uma fome brutalizadora constante. A cada página o vemos apertar mais o cinto para que a calça não lhe caia pelas pernas magérrimas. E mesmo quando ele está atolado em total abandono e miséria, ele passa suas longas horas ociosas de segregado (sofrendo estalos no lombo de chicotes de cocheiros e apitos de guardas de praça) escrevendo um ensaio cujo propósito é desmistificar Kant, que para ele é um fanfarrão. Em todo o livro o narrador está sempre em volta com a escrita, mandando contos para revistas que na maioria das vezes os rejeitam. Hemingway escreveu certa vez que seu único propósito quando se lançou no mesmo empenho de suicida radical na escrita, era escrever tão bem como Hansum escrevia. Hamsun purgou fracassos terríveis, até que conseguiu provar para o mundo inóspito que sempre salientava não ter nenhum lugar para ele que sua tremenda prepotência em ser grande escritor se cumpriria. Era um escritor tão livre e concentrado, que quando recebeu o Nobel que consagrou toda sua gigantesca obra, esqueceu o polpudo cheque do prêmio no elevador do hotel.

10. VALIS, Philip K. Dick


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