O mar havia erguido um braço do tamanho de um guincho do
porto, desses que desatolavam as cargas quando elas não se equilibravam como
deviam nos atracamentos dos navios. Para a direita de onde a menina Asa olhava,
o mundo se tornara uma superfície azul enegrecida que se expandia com a calma e
sacramentada frieza de um direito milenar despertado de seu longo sono, como um
manto silencioso tentando cobrir uma criança recalcitrante. Asa escutou-a (a
superfície, o manto) gritando, depois saindo do esplendor do mar mortal que
retirara a paisagem e se tornara ele a paisagem, indo embora, cantando uma
canção de desespero feita de fagulhas indistintas de som.
Do lado
esquerdo havia só a parede.
Era um péssimo
momento para seus pais brigarem. A mentira lhe tornara alérgica quando Asa
tinha 7 anos e seus anticorpos morais nasciam como espinhas na adolescência.
Cada vez que seu pai lhe dizia que tudo estava bem, e sua mãe a olhava além de
onde ela ficava, às vezes em pé diante a porta aberta da sala em que eles
repetiam o mesmo gestuário de gritos e carrancas, o olhar atravessado que era
uma das formas não verbais da mentira, ela sentia sua pele arder, suas mãos se
crisparem.
Seus pais
resolveram realizar uma das comédias do absurdo de que eram atores amadores
falhos mas dedicados de uns anos para cá. Alto empresariato e socialite
alcóolatra eram características completamente antagônicas ao talento
interpretativo, e as brigas soavam lacônicas, o roteirista que as escrevera
esquecera-se das frases contundentes, os gestos eram deslocados. Mas os dois
insistiam, convencidos por uma compulsão acionada sempre que se viam a sós sem
a salvaguarda dos outros convidados no palco. Nas aulas de literatura clássica
dadas no instituto para superdotados que Asa frequentava, ela via o quanto os
teatrólogos superestimavam a eloquência humana diante as grandes dores,
atribuindo conteúdos visionários a longos monólogos feitos por seres que eles
queriam espiritualmente superiores, mas como isso era uma balela no mundo real
em que os reis e os assassinos não tinham mais que interjeições boçais para
responderem ao coro das desgraças, quanto mais homens e mulheres comuns, em seu
terno de gravata desamarrada e em seu vestido caseiro. Ali em seu refúgio Asa
às vezes recolhia um tom mais alto vindo do pai, dois andares abaixo, enquanto
sua mãe, inspirada pela abstinência que vinha tendo há uma semana, mandava até ali
o sopro de suas investidas sibilinas, tensamente calmas, que eram sua maneira
de se ajustar ao grau de requinte exigido pela classe das madames. Os dois
tiveram a má sorte de brigarem aquele dia. Que forma inglória de preencherem
seu último dia de vida!
Seu pai
chegara da firma e encontrara a mãe de Asa não como ela ficava nesses
entardeceres em que a rotina de seu desespero seguia seu curso habitual,
alcoolizada pelo terceiro gim, comendo azeitonas de Ibiza com pimentões
vermelhos da Bósnia e peixe salgado em uma travessa de prata colonial,
lembrança de sua última viagem à Bélgica_ com aquelas fotos de um militar de bigode
de morsa, imperiosamente belo em sua pose supremacista de terninho e chapéu
coco segurando uma corrente presa na argola de uma fileira de escravos
angolanos, lhe tendo incutido no museu da reparação africana a necessidade de
atender àquele fetiche secreto, as baixelas sugerindo um pouco da glória
festiva que aqueles banhos de sangue geravam nas reuniões à noite na grande
casa senhorial_ ela estando justo naquele dia tão sóbria quanto seu pai a
conhecera há 15 anos, vestida com uma simplicidade impositiva que surpreendeu Asa
e a deixou com a certeza de que algo se findaria pois a mãe jamais teria
estudado cada detalhe se não fosse para decretar algo decisivo e inexorável. As
mulheres quando param de amar, Asa, sua mãe lhe disse uma vez, quando lia para
ela Anna Kariênina, deitando o livro no colo e a
olhando para consolá-la com aquele diagnóstico sobre o gênero feminino que a
fizesse não se lamentar tanto pelo destino do Alexei Karenin, deixam de uma vez
por todas de fazê-lo e para sempre. Asa guardara aquela frase na cabeça e não
se achara que tinha um poder a ser usado em algum momento futuro de grande
necessidade, e via a mãe como se ela tivesse usado o seu direito a ele, um
antigo pretendente, um namorado de uma juventude longínqua e já não mais
acessível pelo compromisso que a mãe tinha com seu pai e com ela, um não irretocável como um gárgula numa
igreja medieval que destruíra a insistência de um jovem renitente. Seu pai a
vira e ele mesmo soube que o assunto era sério.
Sua mãe havia dito a Asa para se retirar para seu quarto, sem dar mais
explicações, sem nem mesmo dizer querida é um assunto de adultos entre mim e
seu pai. Ela correu para o segundo andar, passou suas pernas sobre a murada
baixa de seu esconderijo, ajeitou o vestido branco que usara na saída para o
parque com Madele, a filipina, alisando sua barra, e pulou. Encostou-se na
parede e respirou com uma felicidade plena, a felicidade que lhe dominava com
uma suficiência inexaurível por estar viva. Como um animal na selva se sente
feliz por estar vivo, um tigre, uma gazela. Seu pai emitira um grito uns quinze
minutos depois, foi o sinal inicial de protesto que escutara, o que dera
sequência a outros, sempre dele, Kunia, ele disse duas vezes o nome da mãe de Asa
no meio de frases curtas, frases que não pareciam de clemência, mas de
aceitação de sua sentença mas que estivesse cobrando, exigindo até, certa
piedade. Nada de sua mãe falar alguma coisa em voz alta, a não ser um instante
mais tarde, quando Asa já se sentara, em que, por mágica, ou por sua mãe
dominar algum conhecimento recolhido de como usar a acústica da mansão, falara
baixinho, Kyo, o nome do pai de Asa, como se ela estivesse clamando, mas sem piedade,
sem possibilidade para capitulação, Kyo, ela disse, e depois uma frase mais
longa, porque as frases de consolo costumam ser mais longas do que as que
imploram por uma revogação da sentença.
A casa era
imensa, branca e imensa e aos poucos a mentira se estendera por aquelas paredes
de vidro que fronteavam a um preço exorbitante de mercado o Pacífico, encobrira
as luminárias em forma de pingente de orelha da princesa da Pérsia, a lareira
da sala com seu fundo ileso ao fogo controlado por sensores sofisticados, e só
sobrara a Asa se refugiar naquele vão do segundo andar, entre a sala de estar e
o corredor dos quartos. Ela cabia ali como se os engenheiros o houvessem
construído com a previsão sensível de que seria útil às primeiras investidas
realistas do que era a vida para uma menina de 13 anos, os engenheiros, se dando
ao luxo permissivo de construírem um degrau fundo o suficiente para que ela se
deitasse e ficasse invisível. Ela já o havia testado inúmeras vezes, tanto em
seus aniversários quanto em natais desolados pelo excesso de presenças frias do
departamento corporativo da indústria naval em que seu pai trabalhava. Sempre o
mar regendo a sua vida. E agora, ela pensava, com a mente estranhamente limpa,
seria o mar que iria decretar o fim daquilo tudo, da sua frágil e cheia de
traumas existência cuja brevidade tornava tudo cômico.
Havia um
impreciso traço de corrente de pensamentos do que seria a sua era de existência
transitando naquele momento dentro de si. Enquanto olhava as árvores sumindo,
os últimos prédios sendo devorados por aqueles beiços porquinos flácidos e
exagerados_ tão exagerados em sua grandeza que o próprio fenômeno num ato de
protesto atirava seu desfastio na cara da potestade por tê-lo criado com tal ilimitabilidade,
o grau de riso e de ridículo que tem toda catástrofe_, a corrente de frases e
lembranças lhe mostrava que ela deveria ter consultado a cigana cibernética, a
página da internet que ela encontrara no computador de sua mãe alguns dias
atrás. Lembrara-se que na seção pesquisa, estava registrado que sua mãe
procurara pelo termo “morte na água”, e Asa ficara parada diante a tela
luminescente, sabendo-se segura naquela intrusão de segredos tão comezinhos da
mãe por os dois, o pai e a mãe, estarem em um dos jantares protolocares da
firma e na casa estar apenas ela com sua olhadeira, a moça filipina de olhos
caprinos, sempre forçando parecerem alegres e subservientes, e Asa se sentiu
profundamente burra por não saber como aproveitar aquilo, não lhe descerrar
nenhuma revelação uma frase que teria um nível esotérico na certa.
Ela era tão
inteligente para tantas coisas, mas tão burra para o que realmente interessava.
E agora, a morte prefigurada pela mãe estava vindo, chegara já por cima da
cerca viva da casa e se arrastava numa lentidão cadaverina até bater à porta, o
que ela ouvira, por mais que ela quisesse não ter um ouvido tão apurado, mas
ouvira. A batida lhe lembrara de seu velho cão andaluz, Simão, falecido há dois
ou três anos_ como, olhando bem as coisas, a morte acaba sendo a mais justa
sanitizadora das pretensões e medos, Simão já estava se apagando em sua mente,
sendo reciclado pelo descaso natural dos seres finitos que tem que esquecerem
para suportar não serem deuses, o seu cão que ela chorara tanto e que tivera
certeza que seu último estertor de velho mamífero sugado ao extremo pela idade
lhe perduraria para sempre na memória, agora ela não sabia quantos anos fazia
de sua morte_ quando o cão, Simão, como já foi dito, se sentava de repente, sem
o mínimo pudor e etiqueta, e seu gordo traseiro fazia aquele barulho oco quando
se batia na porta. O mar e o traseiro do Simão, ela riu, um riso fruto do
desespero, se tivesse tempo ela cresceria em experiência e recolhimento para
destrinchar a filosofia que havia nesse seu riso, o estoicismo, a resignação.
Afinal a morte era a mais misericordiosa das soluções entre as alternativas não
dadas. A corrente brilhou, provocado pela velocidade um pouco mais acentuada em
que os elos carrilavam-se diante seus olhos, e ela viu dentro da cintilância
sua colega na escola real nipônica, Iki Orda, filha do magnata dos tênis, lhe
sorrindo com aquele sorriso que ela detestava, que Asa era jovem demais,
infelizmente (ela suspirava) para unir as letras que se revoluteavam soltas e
sem cola no interior do turbilhão, mas que ela intuía seu significado, “puta”,
ela já ouvira essa palavra antes, obviamente, puta, prostituta, safada,
vagabunda, assim como tantas e tantas outras, buceta, cu, pau, caralho, uma
cortina havaiana de contas de alcunhas de baixo calão, palavras que ela sempre
achava feias, sem estética, forjadas na cunha da ralé mais sem cultura e charme
dos primórdios da história, não encontrava um xingamento que tivesse uma
sonoridade bonita, talvez a única classe vocabular inerentemente destituídas da
mínima beleza, até palavras como solenoide, algaravia, parangolé, eram boas de
se falar, traziam uma lufada de alegria e um errático lirismo, mas essas não,
essas vinham do ódio concentrado das legiões de mortos que confeccionaram nelas
seus dissabores quando em vida, suas fúrias cegas e seus preconceitos renhidos,
essas eram como cicatrizes horrorosas das feridas que as geraram, Asa pensava,
e o sorriso da filha do magnata que calçava milhões de pés, também agora extinta
em algum lugar por aquele oceano de asséptica justiça purgativa, que não fazia
divisão entre ricos e pobres, entre feios e belos, o sorriso dela era de puta,
ela sorria docemente e com simpatia para outros, mas quando via Asa era só o
sorriso de puta que ela fazia nos lábios para recebe-la em seu raio de
percepção. E agora Asa recebia a informação, não verbal, trazida pela corrente
de vidas e solilóquios desamparados e furiosos que passava em sua cabeça, que
aquele sorriso era um ato de carinho, aquela menina, sem saber, estava lhe
ensinando que tudo no mundo era risível, brega, sem beleza, depravado, e por
isso era bom, por isso era um consolo. O sorriso de Iki era uma régua ofertada
por aquela princesa bilionária do enfado rançoso de sua prisão no castelo de
sua alma sem proveito, de sua encarnação perdida entre as grades da hipersaturação.
A vida é só essa merda, garota, era o que o sorriso dizia, sem que sua emissora
soubesse; em uma dimensão alternativa, as duas poderiam se lançar numa aventura
de descobrimento sobre si mesmas, uma jornada de expurgação do melindre com
martirização do corpo pelas drogas e sexo, mas não naquela dimensão. Nesse
mundo, as duas iriam morrer em alguns minutos, fruto do tsunami mais devastador
que os sismógrafos do Japão não registraram.
Asa se encolhe
na posição fetal na fenda que os engenheiros colocaram ali para ela, como eles
colocam entradas falsas e corredores subterrâneos para os fantasmas antigos das
casas. Pensar isso a faz ficar incomodada. Não a incomodava o fato de que
estaria morta dali a alguns minutos, uma adstringência fisiológica que ela
nunca sentira, mas que só lera uma vez na forma como um monge sobrevivente de
um ataque de tigre escrevera sobre a visão do paraíso que seu cérebro produzira
para fazê-lo esquecer que morria quando o animal lhe cravava os dentes. Mas
saber que se tornaria um fantasma nos escombros daquela casa reativaram sua
procura por alguma alternativa para escapar disso. Levantou-se e olhou
novamente para a direita, e viu o Pacífico a encarando em pé contra o vidro.
Ele encostara o rostazão no vidro e sua cauda sem fim batia com mansa alegria,
a alegria que tem o predador diante um ratinho. Nessa hora presenciou o vidro
trincando lá no alto, naquele pé esquerdo exagerado que por pouco não tinha a
sua própria chuva nas nuvens que as respirações dos comensais nas festas se
juntavam no teto em exalações de angústia e hedonismo. A corrente de
pensamentos lhe mostrava o elo difuso do rosto de sua mãe lhe sorrindo com
ternura em um momento perdido na memória_ quando ela se manteve dignamente
silenciosa, engolindo o choro, em seu primeiro dia de aula?, quando ela fizera
por si mesma as panquecas queimadas para dar um café da manhã no aniversário de
sua mãe?_, quando então todo o vidro da sala se rompeu, com uma resistência
digna, não se espatifando, mas soltando continentes de sílica fundida de alta
qualidade com pontas tão mortais mas que se enfiavam em reação contra o braço
do Pacífico avançando por seu território não mais protegido abrindo feridas
líquidas inofensivas que se fechavam imediatamente e os engoliam. E era mesmo
de um isolamento sonoro primoroso aquele vidro das indústrias Yang Samura, pois
com seu desaparecimento todo o estrondo que ele silenciava em suas costas se pôde
ouvir em sua magnitude desestabilizadora, o ruído selvagem e assassino do
turbilhão em atividade.